segunda-feira, 30 de novembro de 2009

"A VIAGEM..."





Eu estou com ideias de ir de viagem..."eu", quero dizer "ela".
Temos que fazer uma viagem grande, porque isto aqui "já não está com nada"!!...
Só que as viagens grandes dão cá uma trabalheira!... Já estive a pensar : desta vez, a mala é que vai leve e não vai ser necessário aquele tormento para a fechar e para a transportar...não vou precisar de grandes coisas.

As que transporto comigo, vão bem acondicionadas em dois sítios : na cabeça e no coração. E aí é fácil...são porões enormes...

Antes de ir é que não posso esquecer nada, e isso é difícil. "Eu", quero dizer "ela", já pensámos : aquelas continhas diárias de multibanco, que sempre têm prazos, convém pagarem-se... óbvio!

As janelas não precisam ficar fechadas...afinal virão muitos verões, invernos, primaveras e outonos, e as plantas precisam de sol...e nós também não sabemos a duração da ausência...

Deve dar-se uma faxina àquelas coisas mais empoeiradas do tempo. Não vão servir a ninguém mesmo, durante este período...
Outras, aquelas que a gente gosta de ver, aqui ou noutra galáxia qualquer, aquelas que só a gente entende, "ela" é de opinião que a gente leve. Organizam-se, põem-se numas caixas maneirinhas, ata-se-lhes umas fitas de laço e não mais as perdemos de olho...
Essas sim, têm um peso lixado, porque têm eternidade lá dentro...mas não há como fazer...essas têm mesmo que ir.
Pelo menos, uma não vamos precisar, porque conseguimos esvaziá-la antes de partir...essa, é a dos sonhos...Fica para quem precisar...

Há depois uma tarefa...ui!!!...Essa é exaustiva, cansativa demais, que é deixarmos cá, bem explicado (o que não é fácil), por que tivemos urgência em aproveitar esta chance de viajar.

Porque cada um vai entender à sua maneira e ninguém acerta, porque ninguém consegue perceber a canseira que vai aqui deste lado. É um lufa-lufa igual todos os dias, e nunca acertamos em nada do que se devia.

É tanto para pensar, com os neurónios a "desmiolarem-se", coitados...

É o espelho todos dias que não consegue acertar na imagem..."eu", ou melhor, "ela", pomo-nos frente a ele, e o safado nunca dá a mesma imagem : sempre outras, mais desfocadas, riscadas, com pele que não era nossa a sobrar; os olhos pequeninos mais e mais... Que raio! Houve dias em que "eu", ou melhor "ela", perguntávamos se a parede estava mais para a frente, ou o que era que se passava...

E depois, o diabo dos sapatos ou das botas, desataram a encalhar nas pedras da calçada...ou estas já não estavam tão bem postas como antigamente...Já não se faz trabalho perfeito como dantes!...

E então o "saco" que a gente tem de por nas costas, sempre, ao levantar da cama, e que como a uma besta, nos carrega o dia inteiro?!...
Tenho p'ra mim que Alguém anda a divertir-se às nossas custas...

Alguns vão dizer que esta partida foi puro egoísmo (parece que já os estou a ouvir), aproveitar este excesso de liberdade, e pronto, "eu", ou melhor "ela", agarrarmos nos bilhetes gratuitos e ala...aqui vamos...deixando cá os outros, continuando a trabalhar para a loucura.
Lógico que também não é bem isso!

Às vezes é mesmo preciso fazer-se uma "fugazinha" (os jornais de fim de semana estão cheios de sugestões) e mudar...mudar tudo...deixarmos de ser "eu", ou melhor, "ela"...
Mas digo-vos.....também, nesta altura do campeonato, quando já não há condições de reverter o jogo, os espectadores costumam começar a abandonar as bancadas; nos cinemas, ainda as luzes não estão bem acesas, ainda o elenco desfila na tela, e já o pessoal está cheio de pressa, não é?... Afinal as pessoas têm sempre pressa...

Por isso é que se calhar, nunca conseguiram encher uma "arca dos sonhos", como "eu", ou melhor, "ela"... lá, estão os pores-de-sol com os roxos, os rosas, os plúmbeos, os laranjas; lá, está a chuva tropical da Jamaica ou de Sta. Lucia a envolver-nos em bênção, por inteiro; lá, está o vento que sempre aproxima os corpos antes que arrefeçam; lá, está a espera doce duma promissora noite de amor; lá, estão raminhos, colhidos com calma, seixos de praias desertas, corais ou conchinhas...lá, está Sting, Jean Michel Jarre, George Michael e os seus temas...lá, está tudo, tudo, tudo!

Mas, de qualquer modo sempre convém deixar para alguns a explicação da urgência da viagem : não é porque não os amemos mais que tudo... Não é!...

Não é porque não carreguemos connosco a culpa do tamanho do Mundo, por não poder adiar a viagem, porque o normal seria ficarmos para assistir ainda ( já de bengalinha, óculos na ponta do nariz, um braço sempre grudado em nós - para que não aconteça nenhuma desgraça e se estrague a festa- tendo quem nos ponha o guardanapo ao pescoço e nos diga como comer, como e onde sentar, nos limpe a boca...),aos eventos todos que hão-de acontecer pelo tempo fora, mesmo que nós não estejamos...

Não é!...

É porque o destino da viagem é mesmo aliciante, e "eu", ou melhor "ela", já não podemos esperar mais...estamos mesmo muito cansadas...

Continuámos então a pensar alto, "eu", ou melhor "ela" : "há que deixar códigos e orientações económicas, porque lá não precisamos dessas coisas...e por cá sempre se vão entretendo.
Ah!...é verdade, e o PC...O PC é uma chatice...é assim uma espécie de cofre violado; lá temos coisas que iam "mofar" durante a nossa viagem...Não vale a pena!
Então há que limpar de lá tudo o que só valia a pena para nós, e "eu", ou melhor "ela", somos um bocado "nabas" nestas coisas da Informática. Então, há que tirar o lixo. A gente não deixa a porcaria para os outros varrerem...

Cansativo, já viram?
Tão difícil partir, seja lá para onde for!...
Deixem lá!...Pode ser que para vocês seja mais fácil, quando os vossos bilhetes de ida, chegarem, e que também não tenham tantos preciosismos como nós...

Assim, "eu"...quero dizer "ela", pensamos que teremos de deitar mão a estas tarefas quanto antes, até porque depois do Inverno que está aí, terá de vir uma Primavera e um Verão para todos os que por cá ficam!...

Anamar

sábado, 28 de novembro de 2009

"A SOLIDÃO É O EXPOENTE MÁXIMO DE LIBERDADE"



"As ruas da amargura" ou "Ruas de amargura"é um filme-documentário de um realismo impressionante.
Na verdade não nos põe à frente dos olhos nada com que todos os dias não tropecemos, em qualquer esquina, em qualquer vão, em qualquer escada mais protegida...ou em última análise, em qualquer banco de jardim, se a noite prometer ser mais prazenteira.

As razões porque são utentes da rua neste momento, os sem-abrigo da cidade, também não são muito diversas, todos as conhecemos mais ou menos, e todos deveremos pensar, creio, que qualquer um de nós, com uma vida aparentemente estruturada, equilibrada, sólida até....pode, por vicissitudes imponderáveis,   também chegar lá!...

Eu penso assim muitas vezes...

Impressionou-me particularmente o espírito corporativo criado entre pares que afinal dividem o mesmo tipo de dificuldades, o respeito pelas hierarquias que acabam estabelecidas, a partilha da própria miséria...

Impressionou-me igualmente, apesar da maioria aparentemente lutar para recuperar uma vida dita "normal", sentir-se nalgumas personagens (que são figuras reais das nossas noites de Lisboa, e não figurantes), uma certa resistência a um qualquer cercear do estabelecido, e a sujeição a regras e normas que lhes seriam impostas em qualquer instituição de reinserção.
Tal como se o romantismo duma vida de pássaro livre, de galho em galho, não tivesse preço e não pudesse sequer ser  questionável...
Contrariando Bécaud, ("La solitud ça n'existe pas"), a canção do "Moedas", meio filósofo, meio boémio, meio louco, deixa claramente passar para o espectador, a noção de que é na solidão que se vivencia o expoente máximo de liberdade ...

E se pensarmos a propósito, o que deixa aqueles homens e mulheres, enteados da sorte, verdadeiramente livres, é o inevitável despojamento de todos os pertences materiais, a total ausência de explicação ou justificação para comportamentos não padronizados, a total ausência de "uma gravata social" apertada no colarinho...

O seu pensamento é tão livre quanto o seu corpo ; a demência que já os domina, não é mais do que uma defesa biológica, para que lhes seja lógico tudo o que para nós surge aberrante, desgraçado, injusto...
Tem sido essa a erosão deixada na herança de anos e anos de vinho, de drogas, de fome, numa marginalização que já nem enxergam...

Perto de mim, há anos atrás, "vivi" a remake deste filme: o sr. Quintas, escanzelado, pestilento, com um cheiro que se sentia à distância, piolhoso...vivia numa carrinha abandonada, repleta de papéis e jornais, cujo objectivo era que lhe tornassem as noites menos agrestes, com uma matilha de cães abandonados (tão miseráveis quanto o sr. Quintas).

Ia sendo deslocado na cidade, por reclamação dos moradores, de lado para lado, enquanto se tentava "negociar" com ele, o acolhimento numa instituição adequada.
Esta situação já se repetira, e ele sempre acabava desaparecendo e voltando à rua.

Ganhámos a confiança do sr. Quintas, eu e a minha filha, o que era extremamente difícil, até porque, por qualquer suspeição da sua parte, em relação a si ou aos cães, apedrejava quem se aproximava.
Começámos por alimentá-lo quase diariamente, começámos a conversar longamente com ele, e a ouvir as suas histórias.
Segundo a sua versão (e tudo levava a crer que sim), fora professor de filosofia.
Aliás, recordo que recebia uma pensão de reforma ou invalidez, não sei bem. Mas independente de o ter sido ou não, o sr. Quintas era mesmo um filósofo. Contava histórias incríveis dos tempos da primeira guerra mundial, dissertava sobre variados temas, e cheguei a levar-lhe lápis e caderno para que fosse apontando tudo o que lembrasse...

Trouxe-o a minha casa, onde lhe dei banho, fiz a barba e cortei, como pude, o cabelo. Vesti-o com roupas lavadas do meu pai, que falecera pouco antes... A sua roupa, ao roçar os azulejos da casa de banho sujara-os de tal forma, que careceram de uma desinfecção total...
Enfim, cativámos como pudémos o sr. Quintas, ele confiava em nós e já "exigia" a nossa visita na carrinha. Via-se que ficava muito feliz...

Houve várias reuniões com a Delegada de Saúde, a Assistente dos Serviços Sociais, comigo, com o vereador da freguesia onde "habitava"...O sr. Quintas nunca cedeu...

Foi encontrado um dia, morto dentro da carrinha, com os seus "amigos", numa rua escusa da cidade, para onde lhe rebocaram o carro, por ser mais deserta, e ter, portanto, menos moradores incomodados...

Era uma manhã de Primavera...e o sr. Quintas era igual ás andorinhas, que sempre chegavam e sempre partiriam....
Afinal, ele também sabia que "a solidão é o expoente máximo de liberdade!!... "

Anamar

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O "TORTO" DO DIREITO - curiosidades interessantíssimas







Desta vez, nada é meu, nada é de ninguém...e eu acho que merece ser de todos....

Historinhas no mínimo engraçadas, verídicas, que certamente todos acharão interessantes.....Agora, o pessoal de Direito então!!!!......

Enfim, uma lufada de ar mais fresquinho, aqui por estas bandas.

Se alguém se sentir plagiado, copiado, "espoliado"....ou algo assim parecido, que o diga! Lamentarei, mas retiro tudo, se for o caso, ok?

Advogados vs. Advogados

Essa é uma história real e que ganhou o primeiro lugar no Criminal Lawyers Award Contest.
Um advogado de Charlotte, NC, comprou uma caixa de charutos muito raros e muito caros. Tão raros e caros que os colocou no seguro, contra fogo, entre outras coisas.
Depois de um mês, tendo fumado todos eles e ainda sem ter terminado de pagar o seguro, o advogado entrou com um registro de sinistro contra a companhia de seguros.
Nesse registro, o advogado alegou que os charutos haviam sido perdidos em uma série de pequenos incêndios".
A companhia de seguros recusou-se a pagar, citando o motivo óbvio: que o homem havia consumido seus charutos da maneira usual. O advogado processou a companhia... E GANHOU !!!
Ao proferir a sentença, o juiz concordou com a companhia de seguros de que a ação era frívola. Apesar disso, o juiz alegou que o advogado "tinha posse de uma apólice da companhia na qual ela garantia que os charutos eram seguráveis e, também, que eles estavam segurados contra fogo, sem definir o que seria fogo aceitável ou inaceitável" e que, portanto, ela estava obrigada a pagar o seguro.
Em vez de entrar no longo e custoso processo de apelação, a companhia aceitou a sentença e pagou US$ 15.000,00 ao advogado, pela perda de seus charutos raros nos incêndios.
AGORA A MELHOR PARTE: depois que o advogado embolsou o cheque, a companhia de seguros o denunciou, e fez com que ele fosse preso, por 24 incêndios criminosos!!!
Usando seu próprio registro de sinistro e seu testemunho do caso anterior contra ele, o advogado foi condenado por incendiar, intencionalmente, propriedade segurada e foi sentenciado a 24 meses de prisão, além de uma multa de US$ 24.000,00.
MORAL DA HISTÓRIA
Cuidado com o que você faz! A outra parte também pode ter um advogado melhor e mais esperto!








O estupro

SENTENÇA JUDICIAL DE 1833

Como se tratava o estupro em 1833. Leia e veja porque havia menos estupros naquele tempo...

SENTENÇA JUDICIAL DATADA DE 1833 - PROVÍNCIA DE SERGIPE
Veja como era a Lei "nos antigamente" aqui no Brasil
SENTENÇA JUDICIAL EM 1833
"Ipsis litteris, ipsis verbis" - TRATA-SE DE LINGUA PORTUGUESA ARCAICA

PROVÍNCIA DE SERGIPE

O adjunto de promotor público, representando contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant'Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava de em uma moita de mato, sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimonio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova.

CONSIDERO:

QUE o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ela e fazer chumbregâncias, coisas que só marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana;

QUE o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quiz também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas;

QUE Manoel Duda é um sujeito perigoso e que não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens.

CONDENO:

O cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a MACETE. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa.

Nomeio carrasco o carcereiro.

Cumpra-se e apregue-se editais nos lugares públicos.
Manoel Fernandes dos Santos

Juiz de Direito da Vila de Porto da Folha Sergipe, 15 de Outubro de1833.

Fonte: Instituto Histórico de Alagoas

Anamar

terça-feira, 24 de novembro de 2009

"ECHOES IN THE GLEN"




"ECHOES IN THE GLEN" é um CD relaxante, de árias e baladas celtas.
É um tipo de música que a qualquer hora, mas em especial pela noite que se avizinha e em que se ouve apenas o teclado do computador, é particularmente grata.

"ECHOES IN THE GLEN" também não ficaria pleno, sem as imagens, tiradas da NET (infelizmente, na altura eu ainda não possuía máquina digital), do Pueblo espanhol onde em boa hora, adquiri o CD.
Sabem aquelas lojinhas dirigidas particularmente aos turistas, e onde se encontra sempre algo, grande ou pequeno, que se prenda com a região, com o meio, com a nossa visita, com os nossos acompanhantes?? "Echoes in the Glen" era música de fundo na loja...e "chamou-me"...

Pois é! Cada viagem é de "per si" um "momento" irrepetível, singular, inesquecível, único na vida das pessoas...Eu, pelo menos, sinto e penso assim.
Há "flashes", há palavras ditas, há risos e gargalhadas que nem a eternidade apaga...

Puebla é isso...é a eternidade gravada naquelas pedras, naquela calçada, naqueles balcões floridos, no ar que se respira em igrejas que vêm desde o Séc. XI.
Puebla é um convite à evasão, ao "deletar" do tempo, ao deixá-lo correr manso, sorvido, sugado...para que se entranhe debaixo da pele...porque uma vez entranhado, não há quem tire...

Estou a falar-vos de Puebla de Sanabria,(2005), bem pertinho de Portugal, a um passinho curto de Bragança, ali mesmo onde os Picos da Europa se espreguiçam e banham no maior lago de água doce do Mundo. O branco perene dos contornos dos picos (misturado com os verdes da erva tenra que apascenta o gado que por ali corta o silêncio com a música dos chocalhos, ou o balido descarado da cabra montez), leva-nos a esquecer que há mais mundo lá fora...

Hoje deu-me p'ro saudosismo, porque eu tenho a certeza que se morre sempre um bocadinho, por cada reprise que os circuitos cerebrais apaguem na nossa mente, já que a esclerose nunca a deixamos entrar no coração...

O CD que oiço agora, foi quase um momento mítico, vivido numa praça junto á Catedral de Santiago de Compostela, em que um quarteto de rua, fez parar, emocionou, "suspendeu" os passantes, ao tocar magistralmente, num silêncio que se gerou como se não pudesse profanar-se o momento, temas como "Aranjuez", "Ave Maria" de Schubert, "Adagio"... ou mesmo "Tears in heaven"...

E muito, muito mais haveria a lembrar, porque de facto há momentos mágicos na Vida, e são esses, que eu acredito, alimentarão um dia o que restar de nós...quando as ilusões, o crer, o sonho, já injustamente nos tiverem violentamente sido roubados!...

Anamar

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

"WHAT ABOUT US?..."




Nunca fui fã de Michael Jackson.
Nunca delirei com o seu estilo de música, menos ainda com a excentricidade das suas exibições e posturas na vida...nunca entendi porque o designavam de "rei da pop".
Não discuto por hábito aquilo que não domino, e não gosto de "meter a colherada" em "fenómenos" sociais massificantes, com os quais não me identifico.

Se oiço e gosto...gosto, vibro, retenho, nunca mais apago...e o inverso é verdadeiro.

Há temas, géneros musicais, intérpretes que mexem comigo por isto ou por aquilo, e sobre isso, acho que nada há de mais subjectivo...

Tenho no entanto para mim, que, para lá do que expus, a maior "colisão" entre mim e o "rei", advém da sua provocadora, inconsequente, louca, intolerante...digamos que quase criminosa xenofobia, que lhe permitiu alucinações deístas...como se o seu poder fosse inalcançável ou insubstituível, quase desafiador de uma entidade suprema, que eu creio, acreditar ser ele próprio...
Jackson "pairava" num "ghetto" entre os impuros, refém e apavorado; profundamente só e infeliz, tendo vivido toda a sua vida, como escravo da sua própria loucura.

Felizmente que há excepções que confirmam as regras; sem precisar de acrescentar muito mais, e sem precisar de invocar que o tema que este vídeo aborda está gasto de repetido, sendo um alertar de consciências, sendo um grito no desespero, sendo o aproveitamento pela positiva da figura mediática que Michael Jackson representou, deixo-o aqui para vocês, com o meu humilde reconhecimento a quem quer que ele tivesse sabido ser enquanto vivo...

Anamar

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

" O MEU PAI É UM CABRÃO DE MERDA E UM GANDA FILHO DA PUTA..."





Credo!
Acabei de escrever o título deste post, e já olhei para ele de enviesado, dez vezes....
Aposto que a minha "audiência" hoje vai aumentar substancialmente. Aqui está o efeito das manchetes apelativas, pelos mais variados aspectos, todos os dias, nos mídia...

Fui há pouco a casa da minha mãe desincumbir-me da missão que me calhou em destino desde que ela decidiu viver na margem sul, numa zona de pinheiros, relvados, pássaros, as suas inalienáveis sardinheiras e o seu Gaspar, que é mais gente que muita gente...ou seja, fui ver o correio e regar as plantas, numa casa que está fechada há quase seis anos, escolhendo o lusco-fusco de uma tarde que invernou aos poucos, e "pedindo" que não cruzasse ninguém conhecido naquela avenida, que de conhecido meu, já tem muito pouco...pese embora os muitos anos que por ali deambulei, entre catraia, estudante, mãe de filhos e respeitável professora, do liceu que fica apenas alguns metros atrás...

"Respeitável professora"....eu, que graças a Deus ou ao Diabo continuo a ser a "Guidinha" para os agora velhotes, resistentes lá do sítio!!

O meu ânimo não era o melhor, porque não estou de facto com alma e coração para demonstrar aquela afabilidade necessária para quem está também sempre disposto a contar histórias, já mais ou menos "trôpegas" da solidão...e porque ir áquela casa, não me faz lá muito bem, sobretudo num momento em que ando a tentar reunir os meus "cacos".

A minha mãe ficou definitivamente na outra banda, corria a quadra natalícia de 2004, por razões que não vêm ao caso.
Tinha enfeitado a casa com dois ou três apontamentozitos, do que era o seu Natal por aqui : uma coroa de Natal, a dar as boas vindas a quem entra, portanto, pendurada na porta de entrada, um castiçal natalício, em que não falta o azevinho, os sininhos dourados e os raminhos de pinheiro, e claro, sobre a mesa, um Pai Natal, da Loja dos Trezentos, com aquele ar de velhinho bonacheirão, saco às costas e creio que uma lanterna, dadas as hipotéticas curtas dioptrias...e pronto...acho que nada mais.
Sempre que meto a chave à porta e entro naquele rés do chão, evidentemente às escuras, sempre sorrio e penso: "Continua a ser Natal na casa da minha mãe...ainda!..." Depois sigo pensando como sou diferente dela e como a invejo...

Aqui, na casa onde vivo, há muito mais adornos alusivos, inclusive uma árvore de Natal estilizada, em dourado, de colocar sobre um móvel por exemplo...um bonito presépio que até esqueço, bolas, velas, fitas e luzes, de quando o Natal se impregnava debaixo da pele...
Há cerca dos mesmos seis anos, que ano após ano nada sai do lugar onde está guardado...
Há assim uma espécie de um "não valer a pena" aqui dentro.
Já referi algumas vezes que sou anti-convencional, mas teria maior mérito se fosse essa a razão por ignorar a quadra decretada. Era mais coerente...Mas nem sequer é disso que se trata....É sim, aquela desvalorização que tira amor a quase tudo o que faço comigo, e na minha vida....
É assim....e não adianta violentar-me....eu sou mesmo "uma coisa".....pouco, de "gente"......

Bom, mas lá fui e vim, com a noite a anunciar-se para breve.
Com ela, fim de aulas e a multidão de estudantes, seja da escola básica, seja da secundária (porque ficam quase lado a lado), têm por regresso esse caminho. Por isso,  falo em multidão mesmo.

É a multidão dos "bué", dos"curtes a cena, meu", dos "foda-se" para a esquerda e para a direita (já nem estremeci ao escrever....tenho p'ra mim, que estou já no domínio do calão, tal a vulgarização...), "do stôr é do baril" ou "o gajo é um cromo!..."

É a geração da calça bem "arejada", dos casacos com carapuço que tapa quase tudo, das barriguinhas Danone, das garotas que só não apanham pneumonia no umbigo, porque não é sítio de pneumonia...de t-shirts que ainda ficaram da estação anterior, e que ou encolheram, ou a miúda cresceu...(é provável!...), e sempre se areja cada vez mais...

É a geração dos diálogos mais "edificantes" que se possam conceber...
Dali, não sai coelho...nem música, nem filmes, nem livros, nem temas escolares......nada, nadica de nada....um vazio que dói, uma frivolidade que abisma, um desinteresse que preocupa, uma pergunta que atormenta: esta gente vai ser o nosso país daqui a meia dúzia de anos?????...


E do meio desta amálgama hululante, deste desenfreado de loucura colectiva, de patetice doentia, de geração que é órfã, seguramente, dum Mundo em que não sabe por que o ocupa, o que deve fazer dele, cujos valores e princípios já pertencem às "Calendas Gregas"...e isso nunca souberam o que era....e eis que do meio desta TRISTE SOLIDÃO E ABANDONO....estou certa, dizia... surge, largos decibéis acima, a voz duma adolescente, que para se fazer ouvir na "manada", propalava aos quatro ventos : "O meu pai é um cabrão de merda e um ganda filho da puta!... Eu já lhe disse: Se me casca outra vez, nunca mais me vai ver a cor!..."

Bom, realmente essa frase fez-me levantar os olhos do chão...e de imediato pensei comigo: "..."cabrão" esse que foi capaz de te pôr no Mundo, e provavelmente está sim, a desempenhar um emprego "filho da puta mesmo", para te sustentar!!!...."

Benza Deus!!....

Anamar

terça-feira, 17 de novembro de 2009

"EU SEI LÁ POR QUE VIM AQUI!!!..."





Vim aqui escrever o que quero, se calhar o que não quero, o "politicamente correcto", ou talvez não... (eu que me borrifo e tenho raiva exactamente a isso, ao "politicamente correcto", ditado por "tias" que não têm onde cair  mortas"...) enfim, vim aqui, porque o dia esteve igualinho a mim, mas não consegui sequer, dele tirar partido - logo hoje que nem aulas tive ...
Vim aqui, porque é meia noite e vinte e vou agora comer um prato de sopa....
Vim aqui porque já me deitei, já me aninhei no édredon, já dormi (eu e a Rita), já acordei...continuo "atafulhada" de tudo o que não sei, não posso e não devo escrever aqui, neste espaço, com mil olhinhos a piscar e mil neuroniozinhos, a aumentarem as rotações pela curiosidade desperta....
Vim aqui, porque vou, de algum modo, levar alguém a sentir-se absolutamente acertivo quando, sem me conhecer, nem de perto, "doutamente" diz: "ai, não acho que a Margarida esteja nada feliz"....(à boa maneira das mulheres, que de facto são um espectáculo único, quando vampirescamente sentem o doce na boca, ao pressentir alguém com coração a sangrar)...
Vim aqui porque me sinto presa e tolhida, e não queria ser mais Anamar, nem Maria da lua, não ter nome, nem cara, nem olhos nem coração....
Vim aqui, porque estou há séculos a congeminar o que tenho que fazer para conseguir um atestado médico (tão poucos  usei na minha carreira), mas não tenho força, nem vontade, nem paciência, nem alma, para ir dar as convenientes aulas amanhã...
Vim aqui, porque desta vez alguém dirá: "coitada, desta é que se passou!!!..."

Vim aqui...porque esta droga, ainda é o único buraco para onde vomito o fel, nem que seja por sarcasmo...é o único local onde publicamente, a minha filha, por exemplo, e exactamente como todas as pessoas que são o meu avesso e não me entendem, se dão ao luxo de me confrontar com a minha loucura explícita...
Vim aqui para que digam: "que saturação...é sempre a mesma merda de registo, chova ou faça sol"...
Vim aqui para que me chamem bipolar, depressiva, neurótica, esquizofrénica, tontinha (numa hipótese quase lisongeira)...
Vim aqui porque sou infantil e utópica, porque não cresço, porque fiz "menos" um ano e a ressaca ainda mexe... As pessoas pasmam porque eu me amarguro até à alma com isso, porque simpaticamente (eu entendo) me parabenizam e desejam felicidade...quando eu me pergunto...parabéns de quê? Felicidade, como, se não sei bem o que isso significa...Se for apenas acordar viva todas as manhãs, cumprir o "cardápio" do dia e andar...então para quê?...

Em suma, vim aqui, para amanhã ter detestado exactamente...ter vindo aqui, assim...

Como todos os doidos, tenho afinal direito aos meus momentos de "fúria"....Desculpem lá, mas isto é assim: baboseiras, todos dizem e fazem...talvez menos genuínas que as minhas...e eu...estou extenuada...o caminho está cada vez mais e mais lixado!!...

Anamar

terça-feira, 10 de novembro de 2009

ESTÓRIAS DA "HISTÓRIA" OU "SE BEM ME LEMBRO..."






Se o meu pai fosse vivo, comemoraria hoje, sessenta anos de casamento com a minha mãe. Essa, não esqueceu a data, e eu também não.
O casamento dos meus pais foi sempre algo singular com que convivi, mas que eu assimilei pacificamente, também não sei porquê...Talvez porque não fosse cabível nessas gerações,  serem equacionadas certas questões, menos ainda, colocadas.
Era assim, porque foi assim...nada a acrescentar.

O meu pai, filho maior de cinco irmãos, deixou a escola, não faço ideia com que escolaridade atingida, e com sete anos já era moço de recados ou marçano de armazém, como sempre lhe ouvi dizer.
Alentejo profundo, muitas dificuldades, famílias grandes, época de fome mesmo...havia que trabalhar no que, e como se podia, para ajudar em casa.
No caso do meu pai, a troco de comida, porque os préstimos de uma criança de sete, oito anos, são parcos.
O meu avô, que não conheci, era sapateiro, mas costumava acabar as tardes de pouco trabalho, na mesa da taberna da aldeia, presumo que o único luxo que se permitia. Era o tempo do "pé descalço", e as botas, se existiam (robustas e cardadas para durarem), tinham que ser poupadas.

A pobreza grassava numa terra de meia dúzia de senhores. Trabalhavam-se os campos se o tempo o permitia, debaixo de sol impiedoso nos Verões torturantes do Sul ; mas os Invernos rigorosos e muito longos, traziam a fome às mesas, e quando na janta havia uma açorda de pão dormido, quantas vezes sem azeite por a almotolia já o não ter, e os "lavradores" nem sempre se compadecerem da aflição, já era confortante...
Piores eram as noites em que se ia para a cama mal o sol se punha, por não haver lenha para a lareira e o estômago roncar, de vazio...

O meu pai fez-se gente, "criou" praticamente os irmãos, saldava as dívidas do próprio pai e partilhava o que podia, com a mãe, que também não conheci, mas que das fotos a que tive acesso, sempre me pareceu uma velhinha pequenina, sofrida, frágil, infeliz...inertemente infeliz!...

O meu pai casou e a mulher com quem o fez, morreu três anos mais tarde...tísica, doença vulgar na época, como sabem (estou a falar  sensivelmente do meio da década de 30).
Nunca chegaram a viver em coabitação, dado que a senhora foi permanentemente sujeita a tratamentos em termas e sanatórios.
Ficou então o meu pai, muitos e muitos anos viúvo, tantos que chegaram para que conhecesse a minha mãe, desde os três anos de idade (os meus avós maternos detinham um estabelecimento hoteleiro que o meu pai frequentava, devido à sua actividade profissional ).
Acabou casando com a minha mãe, tinha ela já vinte e nove anos, e ele...mais dezanove...

Será escusado dizer que a minha existência terá representado para ele, uma relação de avô-neta e não de pai-filha. Sempre fui tratada, como já aqui descrevi sobejamente, com os desvelos, as preocupações, os "apaparicamentos" de um avô e não de um pai.
Estava pouco tempo em casa, pois era viajante de um armazém de ferragens, que com mais dois sócios, conseguiu concretizar. Assim, por esse Alentejo fora, de "camioneta da carreira", de comboio, de "carruagem" (ainda as  havia), até de burro...como "caixeiro-viajante, perambulava de terra em terra, e se estava mais afastado, nem os fins de semana vinha passar a casa.
Fui, portanto, cuidada quase exclusivamente pela minha mãe, que tinha sobre si, a total responsabilidade da minha educação e formação.

Quando era um fim de semana em que o meu pai estava, sentia-me mais acompanhada, talvez protegida. A maior parte do tempo, a casa era excessiva para nós as duas.
Habituei-me a isolar-me, a viver "para dentro"; a minha mãe, com o brio da mulher alentejana, tinha aquelas exigências de ordem, limpeza, organização, desmedidas e por vezes sem sentido.
Assim, o seu tempo era passado num permanente afã com a casa, com o meu arranjo, com o meu desempenho escolar, a minha alimentação...tudo como se tivesse que prestar contas a algum "patrão".

Não se criou nunca uma cultura de diálogo, de cumplicidades entre nós as duas. Eu diria que cada uma tinha o seu mundo.
Eu pensava "para dentro", se sofria, era comigo mesma, se tinha dúvidas, inquietações, alegrias ou mágoas, também teria que ser entre mim e mim.
Era uma "mulherzinha" pequena; uma criança com responsabilidade de adulta; sabia que não podia defraudar as expectativas com que me investiram. Lembro-me de ser sempre muito sozinha.
A minha casa não era frequentada por outras crianças, nem eu ia a casa de possíveis amiguinhas. A minha mãe sempre achou que não se devia "maçar" ninguém, e em casa havia que manter a arrumação e a ordem, coisa difícil, com duas ou três crianças juntas.
Lembro uma festa de aniversário de uma colega do colégio, filha do Presidente da Câmara da cidade, a Elisinha...e lembro, o meu ar aparvalhado quando vi que a Elisinha tinha um quarto de brinquedos, só para ela e os amiguinhos brincarem, um mundo onde ela reinava!.... Aquilo para mim, era demais...eu achava que só existia nas histórias contadas nos livros...

Ocupava assim os meus dias, a estudar (para ser uma aluna referenciada e premiada no liceu que frequentava), a ler ( o mais que podia), a escrever e a esconder o que escrevia (porque tinha vergonha de mostrar aquilo que passava para o papel) e a sentir sempre que se a vida era só aquilo, não valia muito a pena...
Passava horas a ver a minha rua, da janela do primeiro andar. Em frente havia uma chaminé em tijolo, de uma fábrica, e nessa chaminé, em cada ano, um casal de cegonhas sempre regressava para aí nidificar.
Eram "figurantes" de guiões de filmes que eu recriava na minha cabeça...eram companhia para mim...e como eu ficava feliz, quando numa bela manhã, acordava e elas estavam lá...
Eu ficava tão grata, mas tão grata...e elas nem sabiam!!...
Sempre que volto a Évora, faço questão de passar na "minha rua", à "minha porta"...e na primeira vez que isso aconteceu, de imediato o meu olhar procurou a chaminé...Ela já não existia...mas eu também já não era mais uma criança!!...

Lembro ainda, e não deixa de ser interessante que o lembre...(hoje deu-me pr'aqui...), que o meu caixote de brinquedos "jazia" na despensa da casa, bem arrumada, como seria esperável, e só de lá saía quando o humor da minha mãe se "compadecia" com as minhas lamúrias. Mas, depois de na cozinha, atrás da porta, eu ter armado a "cantareira"...logo se esgotava o tempo concedido. Havia que arrumar tudo de novo e voltar a colocar na despensa, porque a cozinha não era para estar desarrumada...

A Lolinha, uma boneca de porcelana daquelas com mola na barriga, que quando se balançavam p'ra frente e para trás faziam um "pseudo-choro" mais aproximado a miado de gato, era demasiado mal empregada para que sequer eu lhe mexesse muito, não fosse desastradamente parti-la...o que seria uma verdadeira calamidade...
Realmente, a Lolinha vestia de cetim, tinha olhos azuis com pestanas, que abriam e fechavam, tinha cachos de cabelos louros, que a tornavam uma espécie de princesa ; foi a primeira boneca que o meu pai me ofereceu, (num Natal em que veio a Balanço de fim de ano, à Firma), deixando-me louca de felicidade. Ainda lembro o papel que embrulhava a caixa que a transportava...era branco com florzinhas soltas, azuis, e lembro com total nitidez a chegada do meu pai, vindo de viagem de Lisboa,  à cozinha, e o balançar da caixa, para que a Lolinha "miasse"...Talvez eu tivesse os meus 5, 6 anos...e uma estupefacção e alegria sem tamanho...
A Lolinha dura, por tudo isto, até hoje. Hoje, sim, religiosamente guardada por todas as razões do mundo, numa vitrina, na companhia de outros objectos da minha "história", que sobreviveram estoicamente ao tempo. Um deles, é um serviço mínimo de chá, em porcelana, decorado com figurinhas do Walt Disney, com que me presentearam mais tarde e com o qual, obviamente, também nunca brinquei.

Quando penso em brinquedos e brincadeiras...brinquedos e brincadeiras felizes, logo os associo aos dias de férias, passados em casa dos meus avós maternos ou tios complacentes.
Nessas férias é que eu me "esbaldava" a brincar, simplesmente porque os meus brinquedos eram então cacos de loiça partida, frascos e frasquinhos sabe-se lá do quê, latas e caixinhas, bocados de espelhos...verdadeiras preciosidades, catadas numa montureira de objectos inúteis lançados num terreno baldio.
Essa montureira era para mim uma verdadeira "arca do tesouro". Não havia prazo para se desmancharem as casinhas construídas;  porque já estavam partidos, os "tesouros" das minhas brincadeiras, não corriam o risco de se partirem mais...porque não eram de ninguém, ninguém os queria de volta.
Com eles, erguia salas, quartos, cozinhas...verdadeiros palácios do meu imaginário infantil. Eu usava "salto alto" com os carrinhos de linhas da minha avó, atados aos sapatos e colocava óculos escolhidos entre os quinhentos mil pares, redondinhos e de tartaruga, que existiam num cesto, comprados nas feiras, para solucionar urgências de oftalmologia, e que já ninguém queria...

Essas férias eram felizes; eu andava solta, de casa de tios para casa de primos, para casa de avós, para casa de amigas (porque lá, como se percebe, já era inócuo que eu tivesse meninas para brincar, sujar-me, esfolar joelhos...).
Eu era disputada por toda a família e todos me queriam fazer um agrado ; era o "brinhol" - a tradicional "fartura" -  que o meu tio comprava para o meu pequeno almoço, era a romã, arranjada com açúcar numa tacinha para o lanche, eram os pratos principais que eu mais gostava, era o "pirolito" de berlinde no gargalo, bem geladinho do poço do quintal...enfim, até tinha uma tia, que me pesava quando eu chegava, para que ao partir, eu tivesse uns quilitos a mais...
A minha mãe, rodeada pelos pais, irmãos, tios, sobrinhos e amigas, até me esquecia, e eu transformava-me numa cabrita solta e feliz!
Nesses dias havia gente, havia conversa, mesa cheia, risos, histórias contadas, notícias dadas...família!...

Em Évora, havia nós duas e uma casa de dois andares com nove divisões, que sempre me pareceu imensa, triste e escura.
Se estávamos na cozinha, o resto da casa tinha logicamente as luzes apagadas. O corredor que terminava na escada para o piso de baixo, tinha sempre a luz apagada e só se acendia se fazia falta.
Eu dormia com a minha mãe, quando o meu pai não estava e sempre me parecia ver sombras, vultos, figuras fantasmagóricas que se agigantavam ao longo das paredes.
E eu tinha medo...lembro-me de ter medo daquela casa...

Eu disse há pouco que a relação dos meus pais era singular...
Hoje, pensando nela, verifico que o sentia, mas nunca o coloquei em causa ou o interroguei. Não recordo os meus pais dialogarem ou sequer conversarem normalmente, como julgo que os casais fazem ou devem fazer.
Nunca vi sequer uma troca de carícias mais ou menos íntima, entre eles.
De facto, o meu pai representou-me sempre uma figura hermética, que cruzou a minha vida e que acabei não conhecendo.
Nunca identifiquei ou reconheci uma sexualidade normal entre aqueles dois. E penso que isso me marcou e me fez encarar as relações afectivas, a ligação num casal, a abordagem e a vivência sexual dentro do mesmo, de uma forma muito particular, até muito tarde, ou pelo menos, até que a maturidade real, me catapultasse a uma capacidade de análise das coisas, mais objectiva e correcta.

Casei com dezanove anos...e tenho a certeza que o meu casamento foi atropelado ou mesmo dinamitado pela menina que eu fui, pela adolescente em que me tornei...pela adulta profundamente inacabada ou imperfeita que fui capaz de formar!...

E pronto!
Estas "estórias" da parte primeira da minha verdadeira história, já vão longas!....
Tudo o que se lhe seguiu e de que recolho até hoje, entre fruta apetitosa, muita fruta bichada....irá acompanhar-me inevitavelmente sem capacidade de grandes alterações já, enquanto por cá andar, pois afinal, mesmo sem pedirmos, há inumeráveis determinantes exógenas, que talham por vezes mais profundamente um indivíduo, do que as próprias marcas genéticas...

Anamar

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

"QUEREM MAIOR CLARIVIDÊNCIA??..."



"Encontrei" um sósia mental...
Eu explico: um sósia mental meu, é alguém que pensa, sente, interpreta as realidades, os sofrimentos, a vida, igualzinho, igualzinho a mim....
E digo "encontrei", porque me veio parar às mãos, um texto seu, que me fez exactamente...parar!
Até a linha um pouco sarcástica e clarividente, de analisar e de exprimir o que nos povoa a alma e nos lança inquietudes no espírito, é muito "colada" à forma como eu  sinto, exponho, entendo.
O sabor agridoce da sua interpretação da vida, até me deixou um pouco mais tranquila...e agora, a dúvida existencial que se me coloca, é se estou mais para ET, como referia no último post, ou se mais para louca, desinserida, "outsider", como um girassol que tivesse nascido vermelho-papoila, num campo "normal" de girassóis amarelos-sol!!...

Como o "meu sósia mental" tinha um nome que não me dizia nada (seguramente ignorância atroz da minha parte), fui indagar na NET e sei agora, tratar-se de um psicanalista, teólogo, filósofo, escritor (tanto em prosa como em poesia), brasileiro, do Estado de Minas Gerais, com 76 anos.
É ele Rubem Alves...um psicanalista heterodoxo como se auto denomina, um "mergulhador" na alma humana, diria eu...

Girassóis amarelos..."normais"...
"Normal"...mas o que verdadeiramente é o normal?

"Toda a pessoa com saúde mental aparente, é um psicopata latente"...

Esta frase de clarividência e desassombro totais, é um desafio à tomada de consciência de uma convicção absoluta generalizada e acomodada, de que o ser humano para se enquadrar, deve posicionar-se nos figurinos e nos arquétipos pré-determinados.

Rubem Alves é a "pedrada no charco", é a "contra-corrente", é a coragem de assumir o diferente, é a força e a frontalidade de dizer "não"...
Tanto haveria para ser dito...Eu fiquei fascinada com a polivalência de uma mente sã e um espírito genuíno!

Não resisti a passar-vos dois textos seus, que dispensam, creio, demais comentários...

"SAÚDE MENTAL"
Fui convidado a fazer uma prelecção sobre saúde mental. Os que me convidaram supuseram que eu, na qualidade de psicanalista, deveria ser um especialista no assunto. E eu também pensei. Tanto que aceitei. Mas foi só parar para pensar para me arrepender. Percebi que nada sabia. Eu me explico.
Comecei o meu pensamento fazendo uma lista das pessoas que, do meu ponto de vista, tiveram uma vida mental rica e excitante, pessoas cujos livros e obras são alimento para a minha alma. Nietzsche, Fernando Pessoa, Van Gogh, Wittgenstein, Cecília Meireles, Maiakovski.
E logo me assustei.
Nietzsche ficou louco. Fernando Pessoa era dado à bebida. Van Gogh matou-se. Wittgenstein alegrou-se ao saber que iria morrer em breve: não suportava mais viver com tanta angústia. Cecília Meireles sofria de uma suave depressão crônica. Maiakoviski suicidou-se.
Essas eram pessoas lúcidas e profundas que continuarão a ser pão para os vivos muito depois de nós termos sido completamente esquecidos.
Mas será que tinham saúde mental? 
Saúde mental, essa condição em que as ideias se comportam bem, sempre iguais, previsíveis, sem surpresas, obedientes ao comando do dever, todas as coisas nos seus lugares, como soldados em ordem unida, jamais permitindo que o corpo falte ao trabalho, ou que faça algo inesperado; nem é preciso dar uma volta ao mundo num barco a vela, bastar fazer o que fez a Shirley Valentine (se ainda não viu, veja o filme) ou ter um amor proibido ou, mais perigoso que tudo isso, a coragem de pensar o que nunca pensou.


Pensar é uma coisa muito perigosa...
Não, saúde mental elas não tinham. Eram lúcidas demais para isso. Elas sabiam que o mundo é controlado pelos loucos e idosos de gravata. 
Sendo donos do poder, os loucos passam a ser os protótipos da saúde mental. Claro que nenhum dos nomes que citei sobreviveria aos testes psicológicos a que teria de se submeter se fosse pedir emprego numa empresa. Por outro lado, nunca ouvi falar de político que tivesse stress ou depressão. Andam sempre fortes em passarelas pelas ruas da cidade, distribuindo sorrisos e certezas. 
Sinto que meus pensamentos podem parecer pensamentos de louco e por isso apresso-me aos devidos esclarecimentos. 

Nós somos muito parecidos com computadores. O funcionamento dos computadores, como todo mundo sabe, requer a interacção de duas partes. Uma delas chama-se hardware, literalmente "equipamento duro", e a outra denomina-se software, "equipamento macio".
O hardware é constituído por todas as coisas sólidas com que o aparelho é feito. O software é constituído por entidades " espirituais"-símbolos que formam os programas e são gravados nas disquetes.
Nós também temos um hardware e um software. O hardware são os nervos do cérebro, os neurónios, tudo aquilo que compõe o sistema nervoso. O software é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória.
Do mesmo jeito como nos computadores, o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo "espirituais", sendo que o programa mais importante é a linguagem.

Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software.
Nós também.
Quando o nosso hardware fica louco há que se chamar psiquiatras e neurologistas, que virão com suas poções químicas e bisturis consertar o que se estragou.
Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fendas. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele.
Assim, para se lidar com o software há que se fazer uso dos símbolos. Por isso, quem trata das perturbações do software humano nunca se vale de recursos físicos para tal. Suas ferramentas são palavras, e eles podem ser poetas, humoristas, palhaços, escritores, gurus, amigos e até mesmo psicanalistas. 

Acontece, entretanto, que esse computador que é o corpo humano tem uma peculiaridade que o diferencia dos outros: o seu hardware, o corpo,é sensível às coisas que o seu software produz.


Pois não é isso que acontece connosco? Ouvimos uma música e choramos. Lemos os poemas eróticos de Drummond e o corpo fica excitado. Imagine um aparelho de som. Imagine que o gira-discos e os acessórios, o hardware, tenham a capacidade de ouvir a música que ele toca e se comover. 
Imagine mais, que a beleza é tão grande que o hardware não a comporta e se arrebenta de emoção!
Pois foi isso que aconteceu com aquelas pessoas que citei no princípio: a música que saia de seu software era tão bonita que seu hardware não suportou.

Dados esses pressupostos teóricos, estamos agora em condições de oferecer uma receita que garantirá, àqueles que a seguirem à risca, saúde mental até o fim dos seus dias: Opte por um software modesto.
Evite as coisas belas e comoventes. A beleza é perigosa para o hardware. Cuidado com a música. Brahms e Mahler são especialmente contra-indicados. Já o rock pode ser tomado à vontade. Quanto às leituras, evite aquelas que fazem pensar. Há uma vasta literatura especializada em impedir o pensamento.
Se há livros do doutor Lair Ribeiro, por que se arriscar a ler Saramago? Os jornais têm o mesmo efeito. Devem ser lidos diariamente. Como eles publicam diariamente sempre a mesma coisa com nomes e caras diferentes, fica garantido que o nosso software pensará sempre coisas iguais. E, aos domingos, não se esqueça do Silvio Santos e do Gugu Liberato.

Seguindo essa receita você terá uma vida tranqüila, embora banal. Mas como você cultivou a insensibilidade, você não perceberá o quão banal ela é. E, em vez de ter o fim que tiveram as pessoas que mencionei, você se aposentará para, então, realizar os seus sonhos. Infelizmente, entretanto, quando chegar tal momento, você já terá se esquecido de como eles eram...

Autor: Rubem Alves



"A GENTE É VELHO"
A gente é velho quando, para descer uma escada, segura firme no corrimão. E os olhos olham para baixo para medir o tamanho dos degraus e a posição dos pés.

Quando eu era moço, não era assim.
Não segurava no corrimão e não media degraus e pés. Descia os dois lances de escada do sobrado do meu avô com a mesma fúria com que um pianista toca o prelúdio 16, de Chopin. Ele, pianista, não pensa. Se pensasse, não conseguiria tocar, porque o pensamento não consegue seguir a velocidade das notas. Toca porque seus dedos sabem sem que a cabeça saiba. O pianista se abandona ao saber do corpo.

Assim descia eu as escadas do sobradão do meu avô. Mas no dia em que o pé começou a tropeçar, a cabeça compreendeu que eles, os pés, já não sabiam como sabiam antes. Agora é preciso o corrimão. Depois virão as bengalas, corrimãos portáteis que se leva por onde se vai.

A gente é velho quando, no restaurante, é preciso cuidado ao se levantar. Moço, as pernas sabem medir as distâncias que há debaixo da mesa. Mas, agora, é preciso olhar para medir a distância que há entre o pé da mesa e o bico do sapato. Há sempre o perigo de que o bico do sapato esbarre no pé da mesa e o pé da mesa lhe dê uma rasteira, você se estatelando no chão. 
Quando se é velho, até uma pequena queda pode se transformar em catástrofe. Há sempre o perigo de uma fractura.

A gente é velho quando é objecto de humilhações bondosas. Como aquela que aconteceu comigo 25 anos atrás. O metro estava cheio. Jovem, segurei-me num balaustre. Notei então que uma jovem de uns 25 anos me olhava com um olhar amoroso. Olhei para ela. E houve um momento de suspensão romântica. Minha cabeça e meu coração se alegraram. Até o momento em que ela se levantou com um sorriso e me ofereceu o seu lugar. Foi um gesto de bondade. Com o seu gesto ela me dizia: "O senhor me trás memórias ternas do meu avô..."

A gente é velho quando entra no polibain do chuveiro com passos medrosos e cuidadosos. Há sempre o perigo de um escorregão. Por via das dúvidas, mandei instalar no polibain da minha casa, uma daquelas barras metálicas horizontais que funcionam como corrimão.

A gente é velho quando começa a ter medo dos tapetes. Os tapetes são perigosos de duas maneiras. Há os pequenos tapetes de fundo liso, que escorregam. E há os grandes tapetes que ficam com as pontas levantadas e que fazem ondas. O pé dos velhos movimenta-se no arrasto e tropeça na ponta levantada do tapete ou na armadilha da onda.

A gente é velho quando começa a ter medo dos fotógrafos. Fugir das fotos de perfil porque nelas as barbelas de nelore aparecem. Nelore é um boi branco. Os pastos estão cheios deles, vivos, e as mesas também, sob o disfarce de bifes. E eles têm uma papada balançante, as barbelas, que vai da ponta do queixo (boi tem queixo?) até ao peito. 
Velhice é quando as barbelas de nelore começam a aparecer. Aí vem a humilhação conclusiva. Prontas as fotos, eles nos mostram e dizem: "Como você está bem!"

A gente é velho quando, tendo de subir ao palco para dar uma palestra, tem sempre uma jovem simpática que nos oferece a mão, temendo que a gente se desequilibre e caia. A gente aceita o oferecimento com um sorriso. Nunca se sabe...

A gente é velho quando perde a vergonha e se desnuda, fazendo as confissões que acabei de fazer...
Autor: Rubem Alves


Anamar