segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

" O VELHO E O NOVO "


O velho está a despedir-se.  O novo está a chegar.

Tudo igual, apenas um dia depois do outro.
A seguir a uma meia-noite, o relógio dá e dará sempre uma só badalada, a primeira hora do dia que se inicia, o primeiro momento de outro dia que renasce ...
A seguir a uma madrugada que dorme, uma alvorada acorda, e tudo será igual, sempre será igual ...

O ano que termina, conhecemo-lo exactamente.
Já se nos desvendou, ao longo dos 366 dias que ora findam.
Chegamos ao seu fim, com uma sensação generalizada de uma imensa fraude, de um desencanto, de um cansaço e de uma preocupação, instalados.
Tudo isto, são já infelizmente, lugares comuns.  Tudo isto assola, tenho a certeza, todas as pessoas, tudo isto são sinais dos tempos conturbados e desanimados que vivemos, tudo isto é resultado da falta de esperança, e de alguma / muita manifesta incapacidade de resiliência dos seres humanos.

Foi um ano, serão uns anos carrascos, sem fim à vista, em que já não se vive, sobrevive-se na maioria das vezes.
Alguma qualidade de vida perdeu-se completamente, as pessoas deixaram de sorrir, e assumimo-nos numa vida de um automatismo, em que recusamos até parar para pensar muito, porque se o fizermos, ou fugimos, e não temos para onde, ou nos suicidamos ...
e é exactamente verdade que a procura dessa solução, cresce exponencialmente, para quem já nem um lusco-fusco tem no horizonte.
Vive-se encurralado, acossado, com medos e fantasmas, como se uma hecatombe ou um cataclismo ainda maior, viesse a caminho, e provavelmente vem, como se a onda gigante do tsunami estivesse para nos engolir.

Os votos de "Bom Ano" são trocados entre rostos compungidos, e quase se confinam à saúde e à paz, como se as pessoas de facto, achassem que não vale a pena desejar, pedir, sonhar com nada mais, e que isso, no contexto que se vive, já é de "bom tamanho" !...
Mesmo a paz, já é alguma coisa que dará uma trabalheira dos infernos, ao "staff" do Grande Arquitecto ... já que sem ovos não se fazem omeletas, e conceder-se paz na conjectura mundial em que se vive, só por milagre ... e esses, nem na Feira da Ladra, nem no Continente, ou mais misticamente, lá por Fátima, se conseguem ...
O próprio Pai Natal teve que alienar as renas, porque as ferraduras das patas estavam tão poídas, que corriam sérios riscos de derrapagem, e como tal, este terá sido o último ano, em que o pobre andou na distribuição, visto  ter  já metido  os  papéis  para  a  aposentação  antecipada,  com  a  pensão  mínima  de  duzentos  euritos ...

A ilustrar este meu pequeno post, que é apenas um apontamento referenciador do dia de hoje, coloquei uma gravura de Stuart de Carvalhais, publicada em 1913, na revista "Ilustração Portuguesa".
Nela, o ano velho recebe os cumprimentos de uma criança, que simboliza o novo ano, como gratidão pelo legado, que de positivo, ele lhe tenha transmitido.
Receio que nos tempos actuais, a adaptação desta gravura se torne muito difícil, direi mesmo, inviável, a menos que a gentil menina, em vez de um bouquet de gratidão, oferecesse ao vetusto ancião, um cálice de estriquinina, contendo todas as raivas, amarguras, dores, revoltas e deseperança de todos nós, os resistentes, que atravessaram este 2012 de má memória ( ano bissexto, que segundo a minha mãe, "ou muito bom ou muito travesso " ), sem se vergarem, ainda assim ... pois como diz um amigo meu, blogueiro também por aqui :

        " UM   HOMEM  NUNCA  SE  RENDE ;  MESMO  DE  FATO  E  GRAVATA " !!!...

Anamar

sábado, 29 de dezembro de 2012

" A ÁRVORE "


Sei o que não quero da minha vida.
Do que quereria, apenas o concebo em sonho.
Reparem que coloquei o verbo no condicional, porque efectivamente me falta a  condição principal, para alcançar o que quer que seja ... acreditar que o conseguiria.  E isso, eu  não acredito.

Como eu, certamente milhões de pessoas serão capazes de apontar numa folha de papel, o que não querem de todo, mas provavelmente são titubeantes,  se lhes fosse pedido que escrevessem o que realmente ainda gostariam de viver.
Por vezes penso que os meus padrões de desejos, são padrões simples.
Penso que as fasquias que coloco no nível de exigências, são baixas.
Penso que não sonho alto, sequer.  Não me movem ânsias de bens materiais, não deslumbro com vontades megalómanas, nem com espectativas infundadas.

Já tive casas, carros, férias à discrição.
Já comprei duas camisolas iguais, só porque não me decidi na cor.
Já fiz férias no estrangeiro, sem saber sequer quanto custaram.
E no entanto, não fui, nem fiz as pessoas felizes.
Tive uma fortuna na vida, efectivamente.  Será um chavão, é uma frase feita, mas é a realidade : tive duas filhas.
Nem sequer digo que tive uma família, porque essa até acho que geri muito mal ...
Tive duas filhas, com todas as inerências positivas e negativas, que se prendem a qualquer individualidade, a qualquer ser autónomo, que se solta de nós e se torna gente.
E apesar  de dizer muitas vezes, que se recuasse no tempo, jamais teria tido filhos, acredito que não, porque bem ou mal, mais bem que mal, aos "trancos e barrancos" como "soi dizer-se", há algo absolutamente inegável.  E isso, é a sensação quente e doce, de em qualquer momento, de facto, me saber "escorada" na Vida.
"Escora" é a palavra-chave que rege, na verdade, as relações de afecto real entre as pessoas.
E "escora", é aquela coisa que sabemos que ampara, segura, reforça, alicerça, quando a adversidade faz abanar, quando a tempestade açoita, quando o chão resvala !
E isso, eu sei que emocionalmente existe, até mesmo quando parece que não !

Depois, e tirando essa conquista da minha estrada, sinto obviamente outras escoras igualmente importantes, que são propiciadas pelas amigas, embora eu saiba e respeite que cada uma delas tem as respectivas vidas, e tal como eu, ou qualquer pessoa, nem sempre estão disponíveis, nem sempre podem "bombeirar" situações que carecem de socorro.
Mas não me queixo, porque em alturas cruciais, sempre tenho tido uma, por perto, e isso gratifica-me ...

Há também aquelas pessoas que nos cruzam, e nós cruzamos, no caminho.
Pessoas com quem estabelecemos empatias, e que as estabelecem connosco.
São pessoas de momentos, de circunstâncias, não esquecendo que a soma de momentos e de circunstâncias, perfaz períodos de tempo, mais ou menos longos.
Não são mais do que esta ou aquela flor, que plantamos num cantinho do jardim, o jardim que tem muitos cantos e recantos, que deverá ser alindado, e que é a nossa existência !

Dessas plantas, umas vingam, outras  morrem  muito ou pouco tempo depois, outras ganham raízes fundas na terra, e acabam florescendo em uma ou outra temporada, até que um dia percebemos, que por condições adversas, elas estão de partida.
Mas seguramente, vamos sempre lembrar que ali, naquele cantinho, resguardada da intempérie, plantámos e existiu em tempos, uma linda e colorida trepadeira, uma azálea, um agapanto, uma alfazema, um alecrim ou uma madressilva, que foram alvo do nosso olhar, do nosso cuidado e do nosso amor.
E que também elas nos encheram o coração, nos adoçaram o olhar, nos perfumaram a alma, nos atapetaram o caminho, enquanto por lá estavam.
Mas partiram ... deixaram o espaço, a terra, o canto  de novo devoluto, e a recordação ... Que essa sim, fica em perenidade, acredito !!!...

Por  que  será  que  eu  não  sou,  nunca  fui,  uma  "jardineira"  à  altura ??!!...
E no entanto, eu amo todas as flores, das singelas que nascem espontâneamente nos campos da minha terra, às mais sofisticadas que tenho encontrado por esse Mundo fora.
Contudo, de todas as que me rodearam, sempre me restam só, pétalas entre folhas de livros, botões secos que guardam segredos, fotos que atestam as suas existências na minha vida, ou a terra de solidão, onde elas algum dia estiveram !

Sei o que não quero da minha vida.
Sei o que nela não quero semear.
Mas sei também, que ainda gostaria de nela plantar, uma daquelas árvores de copa  larga, generosas de sombra, de raízes tão fundas que o vento jamais abana, de ramos feitos braços protectores, envolventes e embaladores, pródiga em flores que me perfumassem nos dias sem cheiro nem sabor, e prenha de frutos suculentos e doces, que me adoçassem o espírito, quando ele está mais angustiado, azedo, ou desistente ... como hoje !!!...

Talvez seja esse, o meu único sonho !!!...

 Anamar

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

AS " BRANCAS " ....


Mas será possível ??!!

Obama ... pois ... mas o "quê " Obama ?
Michelle Obama, a mulher do presidente.  E ele ??  Richard ?... Não !   John ?... Não !   Joseph ?... Não !

Meu Deus ... na televisão passam imagens sobre imagens, notícias em rodapé, e o nome do homem não sai da cartola !
Que angústia !...  Estou há seguramente mais de um quarto de hora, para me lembrar do primeiro nome do presidente, que admiro, que tenho como uma referência na história da governação dos Estados Unidos ... e nada de me sair o seu primeiro nome !!!...

As "brancas" ... as famosas "brancas", que as pessoas em solidariedade "institucional", referem, animando-se umas  às  outras ... " Oh ... fazes lá  ideia as vezes que me acontece !... "  ou ... "Agora tenho isto com uma frequência !... "

Caraças !...
Como diz a minha mãe : "Não vem nada de bom ! Tudo piora com o maldito BI !!! "

No dia de Natal, à conta disso, do BI, ri-me que nem uma perdida, com o humor fino da minha filha, que conseguiu desdramatizar o efeito de uma ocorrência que poderia ter sido grave, e me deixou com o sistema nervoso aos pulos.
Passo a explicar : Havíamos combinado que o almoço de Natal seria em sua casa, para onde me dirigi com a minha mãe e uma amiga um pouco mais velha que eu, embora, digamos que da mesma faixa etária.
Como o trânsito pela hora de almoço estava caótico, e o estacionamento também, parei o carro na subida da garagem, apenas para que elas saíssem, tencionando ir depois estacionar, algures.
Tentando sair, a minha mãe, nos seus 92 anos, apoiou-se no travão de mão e destravou-me o carro, que iniciou uma marcha atrás em velocidade crescente.
Eu e a minha amiga estávamos na rua, exactamente ajudando a minha mãe a sair, e esta, meio dentro meio fora, não se apercebia sequer que recuava, e persistia em querer descer.
Bom, foi um "sufoco" desgraçado, tendo o carro, desgovernado, parado, não sei muito bem porquê, a centímetros dos carros estacionados, e o episódio terminou, finalmente.

Ao subir, e narrando, ainda em alvoroço, o que acabara de ocorrer, diz a minha filha, tentando aliviar-me o susto :   Já  imaginaste, mãe, amanhã nos jornais viria : " Velhinha de 92 anos atropelou duas idosas, e provocou vários danos em carros estacionados !..."  E vocês  iam ser manchete dos jornais ... Que mais queres ???...

Obviamente que as gargalhadas se soltaram desbragadamente ...

Mas houve uma palavra que retive :  "idosas" ...
Idosas ?.... Talvez !
Bolas, não me sinto idosa, de facto !  Rejeito, enjeito  e fico louca de pensar nisso !

Logo de seguida  veio-me  à mente uma afirmação, verídica efectivamente, para a qual a Manuela me remete, quando me quer ver afinar :  "Já viste que nos jornais noticiam muitas vezes :   Sexagenário  atropelado  ..... e  não  simplesmente  ... Um  homem  foi  atropelado " ??!!!
Tendências persecutórias, é o que é !!... ( rsrsrs )

E  depois,  ainda  ela  ( em  tom  jocoso  e  ironizando  com  a  própria  idade ), refere um ditado, de um sadismo atroz, que  me  deixa  possessa,  e  com  isso  me  mata :  " Por  detrás ... liceu !  Pela  frente ... museu " !...
Esse provérbio prende-se com a silhueta da mulher de hoje, que como sabemos, foge frequentemente aos estereótipos cultivados culturalmente desde sempre, e  que se entendiam consentâneos com o envelhecimento : saias mais compridas, cabelos "demodés", saltos baixos ou rasos, calças, nem pensar, roupa clássica ... enfim, o mais discreta, envelhecida, pouco chamativa, possível ... numa espécie de capitulação, que me deixa no mínimo, nervosa.

Estamos fartos de saber, que a mulher hoje está noutro patamar, vive e vê a vida de outra forma. Sacudiu a poeira, e não abdica de ser apresentável, sedutora e desejável em qualquer idade.
Temos avós a confraternizar e a participar na vida dos netos, com quase igual grau de loucura, reduzindo-se  o desnível etário, de uma forma espantosa.
Mas ainda assim, o raio do ditado confronta-me com a hipotética mas inevitável realidade, de nos transformarmos todos, tristemente, em "peças de museu", "carcaças", "múmias", etc, etc, etc ... os tais "mimos" do BI !...

Noutro dia, a minha mãe, "simpaticamente" dizia-me, na sua melhor vertente crítica e censuratória que lhe está no sangue de alentejana, de  um  Alentejo  profundo, castrador,  fechado  e  pouco  tolerante :   " Agora andas armada em menina de quinze anos !!!  Pudera, dão-te menos idade do que a que tens, porque andas de saias curtas e decotes ....  Agora, se te virem de frente ...... "

Puxa !!!  Arrasador !!!  O BI  novamente, irra !!!...

Eu acho mesmo, que parte da maluqueira que caracteriza a minha personalidade, e que cultivo religiosamente, advém de uma resistência e de uma frente que faço, ao avanço dos anos, porque não consigo conviver com a  ideia  de  que  eles  sempre  progridem,  enquanto eu regrido ... Sem  apelo, regrido, porque  essa é a lei da Vida !
É uma espécie das birras dos adolescentes, face ao que lhes é AINDA vedado.
No meu caso, face ao que  JÁ  me é vedado !!!...
Mas também ... eu sou apenas uma "enxuta  sexalescente " ... essa a verdade !!!

Vedado ??!!  Uma gaita !!!  Faço e farei toda a sorte de loucuras, enquanto puder ... Porque ... "idosa" ... é a mãe !!!...
Desculpem.  Hoje estou de mau feitio !!!

Bom, e passada bem mais de uma hora desde o início desta minha escrita ... ainda não consegui tirar de "debaixo da língua", o nome do Obama !!!
Raios !!!

Lá vou ter que perguntar à minha mãe, agora que vou estar com ela.
Quem sabe ela se lembra ??!!...  Ahahah...

Uma "branca" destas, com o Obama .... é dose !!!...

Anamar

" PÓS - NATAL "



Hoje que é o dia depois de ontem, não me apetece sair da cama.
Está sol e o ar é morno, disse-me a minha mãe pelo telefone, que repousa tão adormecido quanto eu, na cabeceira da cama.
Eu, durmo mas não durmo.
A minha noite foi um desfile de reprises sucessivas, como num cinema de sessões contínuas.

No café, as pessoas parecem ter sido deixadas de véspera.  Ocupam os mesmos lugares, têm as mesmas caras, não têm mais histórias para contar.
Apenas que foi Natal, e que hoje é o "day after" ... é o dia da descompressão.
E como sempre, as ressacas não são boas.
Eu estou como o balão do menino, que se lhe encostassem o bico de um alfinete, rebentaria.
Tenho os olhos húmidos, a tentarem trair-me a todo o momento.  Aliás, estou num esforço que só visto, para levantar diques, que parecem sacos de areia frente a enxurrada.  E ainda por cima, hoje o café está cheio ...
Tenho o peito amarfanhado.  Hoje, eu tenho a certeza que o coração é aqui que mora, e que é no coração, que as merdas todas calcam até esmagar, como um laço de fita que apertasse mais e mais no pescoço, até tirar o ar !...

Ontem, na minha praceta deserta, ao sair para o almoço do dia, em casa da minha filha, apenas os pombos eram os seres viventes por ali.
Os pombos e um homem que estava só, sentado num dos bancos vazios, com duas canadianas que colocara à frente e lhe serviam de apoio aos braços, e estes, à cabeça.
À cabeça, porque à tristeza, ou à dor, ou ao cansaço, ou à desilusão, ou ao desespero, ou tão só à solidão, não haveria suporte possível que lhe valesse ...

Hoje, bem frente à minha porta, estava outro homem desalentado, sentado, ou melhor, derrubado pelo Mundo que não se via, mas que eu sei, lhe caíra em cima !
Nem a cabeça ergueu, ou os olhos direccionou para a porta, quando esta bateu ... e bateu com força !
Ali, estava ele com ele só, tenho a certeza.  Ele e as pedras da calçada, para onde olhava, perdido !...

No café, espaço de todos os dias, tantas vidas que se percebem sem vida !
Pessoas sós, muito sós, claramente.
Há uma espécie de solidariedade estranha, em alguma tristeza que se denuncia nos cumprimentos, no calor do afecto discreto que passa através de sorrisos cúmplices.  Uma espécie de necessidade de nos dizermos que afinal estamos mergulhados simplesmente num panelão fervente, de múltiplos seres anónimos, mas que são nossos pares, nesta coisa que é fazer de conta que vivemos ...
Na verdade, seres que se partilham por momentos, que se tocam por instantes, que se cruzam por episódios, e que depois vão para o silêncio e para o frio, do frio das suas vidas !
No fundo, estrebuchamos todos lado a lado, sobrevivendo, sorrindo-nos sem nos conhecermos, dando-nos braços sem que o saibamos, iluminando rostos com um simples sorriso, despertando afectos, apenas porque o barco é o mesmo, e isso, mais ou menos todos o pressentimos, creio, aliviando-nos no "peso", porque dividido, é menor em cada um ...

E ninguém sabe nada de ninguém.
Apenas nos vemos, conhecemos rostos, adivinhamos almas, descodificamos corações, ou julgamos que o fazemos ... e depois, no fim de cada dia, não sobra mais nada, porque cada um viaja para o seu canto, para a sua realidade, para o seu Mundo de paredes tão altas que poucos as escalam, de muros tão inexpugnáveis, que apenas são afagados e quase nunca transpostos, de fossos fundos, sem pontes mesmo levadiças, que os atravessem ...

Sinto cada vez mais, que brinco por cada dia da minha vida, ao jogo do "toca e foge", compulsivamente.
As pessoas chegam-me, mesmo sem se anunciarem, mesmo sem serem pertença minha, ocupando um pedacinho do meu eu, tocando-me quase sempre só o corpo, porque a alma e o coração têm caminhos tão tortuosos e inalcançáveis, que poucos os conheceram ou conhecem, poucos os "calcorrearam".
E os que o fizeram, partiram há muito !...
Deixaram um sabor doce e doído, deixaram uma lágrima que não seca, deixaram o calor de uma carícia, deixaram a doçura de uma recordação ... e deixaram-me, afinal !!!...

E cada vez mais, os meus dias são dias "pós-Natal" ...
Cada vez mais são dias de "toca e foge", cada vez mais são apenas dias destas partilhas anónimas, com anónimos que me continuam anónimos, e sempre o continuarão !
Até porque cada vez mais, não vale a pena permitir que o não sejam, já que isso acarreta custos que não consigo pagar, com juros a perder de vista, e com taxas tão elevadas que me matam, me secam e destroem o que ainda possa valer a pena, dentro da pessoa que resta em mim !!!...

Anamar

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

" OS RESTOS ..."



É espantoso como as pessoas continuam a desejar-se "Bom Natal", "Boas Festas", como se tudo estivesse normal, como se a vida corresse normal !
É espantoso  como, adormecidos que parecemos, entramos na roda, e repetimos com um automatismo confrangedor, os gestos, os passos, os sorrisos, os desejos !...

E no entanto, as pessoas dizem-se mais angustiadas do que nunca, as estatísticas dizem que as pessoas estão a consumir muito abaixo dos outros anos nesta época, as pessoas sentem-se ou pelo menos mostram-se, com algum desânimo e apreensão nos rostos, ou então sou eu que estou a ver tudo a preto e branco, "as usual" ...
Porque o que também é verdade, é que os centros comerciais abarrotam, as pessoas correm na afobação de sempre nesta altura, telefonam-se ininterruptamente a transmitirem os tradicionais votos, em telefonemas longos, de telemóvel, que têm obviamente custos por vezes não parcos ... enfim ... continua a existir a tal alucinação colectiva, a tal "anestesia" não explicada, como se o Mundo fosse acabar não a 21, mas sim, hoje, três dias depois.
O "day after" parece não existir nas mentes,  embora saibamos que se depois de uma tempestade vem uma bonança, também é verdade, que depois de uma bonança, se prevê mais cedo ou mais tarde, alguma tempestade, e a realidade em  todas  as vertentes virá aí,  e aterrar-nos-á  em cima, alguns dias depois, apenas !...

Cada vez me enquadro menos nisto tudo.
Sinto-me um pouco a toque de caixa, pelas inerências sociais que me obrigam, tendo embora, uma ausência de coração e de espírito, do que me cerca.
É triste, é lamentável, é provavelmente sintomático de alguma coisa menos boa e muito negativa, ansiar-me como eu anseio, que  as datas se ultrapassem, que os dias corram, que a droga do tal calendário, avance.

O Natal, o réveillon já me disseram muito.
Muito, quando eu os vivia de outra forma.  Era o tempo em que as prendas  se  resumiam  a  uns chocolates ( uns cigarrinhos e uns lápis da Regina ... ainda se lembram ?  Eu, pareço vê-los !... ), e uma  roupa para a solenidade do dia.
Era o tempo em que o Natal era família a sério, inteira, unida, era calor, mas humano, e não do aquecimento central das casas.
Era o tempo em que o Natal era "missa do Galo", na meia-noite gélida do Alentejo, ou  na noite fria da Beira.
E era Natal de gente com corações a bater.  Havia pertença, havia chão, existiam laços, uns mais visíveis que outros, mas existiam !...

Hoje, os valores materiais tomaram conta dos restantes ;  todos  o  sentimos,  todos  nos  insurgimos  " em teoria ",  mas  todos  claudicamos !
Parece não haver força objectiva para deter a "correnteza" dos acontecimentos, e do que está assimilado, a começar pelas gerações mais novas, infelizmente.
Por outro lado penso, que estaríamos numa época privilegiada para reverter o curso das formas de pensar e sentir, porque afinal, a sociedade está em convulsão atroz, e talvez mais do que nunca, fosse altura para PARAR, que é algo que o ser humano sabe já pouco o que é.
Parar para reequacionar, parar para reverter, parar para iniciar outros caminhos, mudar mentalidades, ensinar tudo de novo, sobretudo a reavaliar o essencial em detrimento do supérfluo, do dispensável, de tudo o que está a mais e desvaloriza o verdadeiro, o que vale a pena, o que é autêntico !

E depois há a solidão, depois da consoada ...
Há o vazio, que é muito mais vazio, quando as luzes se fecham, quando a mesa se levanta, quando a árvore se desmancha, quando os risos se calam e as gargalhadas dos inocentes emudecem ...
É quando os silêncios nos assustam, quando nos sentimos abandonados sem coordenadas, quando todos os cordões invisíveis que nos mantinham em pé e nos impulsionavam adiante ... como farrapos de luar, sumiram, em noite de céu carregado ...
É quando se escancara um buraco aqui no peito, que nos sufoca o coração, e nos põe a alma a escorrer gotas de água em avalanche incontrolável ...
É quando o ser humano fica mais só consigo mesmo, é quando o vazio é muito mais tétrico, porque as ausências se fazem sentir, mais prementemente, e quando no nosso quarto, perambulam só recordações, fantasmas e retalhos de vida ...
São os restos, com que no dia seguinte, como numa ressaca imensa e colectiva, tentamos fazer "roupa velha" de afectos, de emoções e de sonhos !

Anamar

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

" OS MARCOS DO TEMPO "


Odeio  os  marcos  do Tempo.

O Tempo  não  tem  culpa ... ele  corre  sempre  uniformemente.  Aos  dias  seguem-se  as  noites, seguidas de  outros dias.
Acordamos , comemos, trabalhamos, encontramos  ou  vemos  pelo  menos, gente, corremos  por  isto ou por aquilo que  parece urgentíssimo.  Amamo-nos e odiamo-nos, rimos e choramos, sofremos e somos felizes  nos intervalos ... e dormimos ... tentamos dormir o mais repousado possível, porque nos é imprescindível, senão  andamos  a  bater  mal, ou  andamos  a  bater "pior".
Uns  dias  chove, outros apenas  fica cinzento,  depois  vêm  dias  azuis  lindos, vemos  o  sol, vemos  luas esmagadoras de belas,  estrelas  também, quando  as  nuvens as deixam visíveis ...
Uns dias está calor e desnudamos  o  corpo,  noutros  está  frio,  por  vezes  um  frio  de  rachar, e cobrimo-nos  o  mais  possível ... e  sempre,  sempre  assim ...
Entediantemente assim !...

Inventam  depois  balizas  ou  marcos, para  percebermos  as fatias  que  vão  passando, tipo  sinais  de trânsito, que se desenrolam  nas  laterais da estrada.
Até  porque  mais  ou  menos, todos  temos a  ideia do tempo, que "em  teoria" nos  é  disponibilizado  para este "bailinho" !
Claro que  uns são obrigados  a  regressar  mais  cedo  aos "balneários".
Aos   outros,   vão-os    deixando   continuar   ...   entediantemente   assim !...

E  vêm  os aniversários  disto e daquilo.  Os  nossos, e  todos  os outros que artificialmente determinaram marcar numa coisa a que chamam calendário, e  de que  nós  todos dependemos mais, do que do bife do almoço.
Consulta-se a agenda, o calendário, quase  diariamente, para se verificar  o que  nos  espera nesse  dia ou nos tempos  mais  próximos.  Para consciencializarmos  quais as obrigações sociais,  profissionais, familiares, a cumprir.

E  assim,  toca  a  campainha  do  Natal ... e  toca  a  ser Natal  para  todos,  com  vontade  ou  sem, com disposição  ou  sem,  com  dinheiro  ou sem ...
Toca  a  ser  Páscoa ... idem, idem, aspas, aspas !
Depois   o  Tempo   diz :   "  É  Agosto !   Ora  bem ...  Hora   de  férias  ( aquele  período  em  que  pensamos que andamos  numa  gozação  danada ... ) ",  e vá de achar que tem que ser diferente de qualquer forma, apesar de  acordarmos, comermos,  vermos  gente,  corrermos,  amarmos,  odiarmos,  rirmos, chorarmos, sofrermos  e sermos  felizes  na  mesma ...
apesar de dormirmos, e  vermos dia e vermos noite, sol, lua, estrelas ... com um bocadinho de sorte, chuva também !...
Exactamente  na  mesma !..
E andamos todos alucinados ... porque "afinal  estamos de férias" !!!

E chega o dia ( porque numeram os dias ), em que te dizem que  num igual a esse, nasceste, e por isso tens que ser feliz, porque afinal, já que nasceste e vingaste, estás cá, na corda bamba !...
E olha, assim como assim, tens direito àquelas mordomias todas, de acordares, comeres, veres gente, correres, amares, odiares, rires, chorares, sofreres e seres feliz ... dormires, veres sol, veres lua, veres estrelas e chuva ...
Tantas coisas que te deixam experimentar, ainda assim !!!

E até te dizem que o Mundo acaba no dia X, do mês Y, do ano Z ... porque os Maias se recusaram a continuar mais p'ra frente com o calendário, que no fim de contas, inteligentemente, perceberam que dava um trabalho "do caraças" !!!

E também te dizem que novas eras astrológicas se aproximam, com o solstício de Inverno. Dizem-te que termina um ciclo que durou 5125 anos, e que se inicia outro, e que agora sim, é que vai ser porreiro, porque as  potencialidades, as melhorias, os  caminhos  e  a  luz se abrem, surgem  transformações espirituais  ou  físicas  positivas ... e vai ser ouro sobre azul !!!...

E contudo anda cada um por si, a safar-se apenas ... 
Como os "Jonas da Vida", quando andam escondidos debaixo dos carros, na lixeira, a dormir nos pratos das árvores, a fugirem das doenças e dos humanos, escorraçados daqui para ali, a escaparem do atropelamento, do pontapé, do veneno no bolo, da vassourada ... a lutarem desesperadamente para sobreviverem, porque isso é uma necessidade que não se explica, mas está nos genes ... nunca percebi porquê !...
A lutarem desesperadamente, ganhando garras, dentes, raivas, ódios, ou então, cansaços, indiferenças, somando fracassos e desistências, exaustão ... tudo "armas" que os defendem, tão só  porque espantosamente os deixam como um animal acossado, sob ameaça constante, e em "guarda" permanente. Persistindo  irracionalmente  na  luta  pela  tal  sobrevivência  que  não  mata,  apenas  porque incoerentemente  para  ela  estão / estamos  programados !!!...

Programados simplesmente para nos arrastarmos no tal Tempo que não tem culpa, que corre uniformemente, numa engrenagem onde nos meteram sem nos perguntarem nada, numa malha tão ardilosamente tecida, e de que, como  da  teia  de  uma  aranha,  ou  como dos tentáculos de um polvo gigante, nunca conseguiremos escapar !!!...

Anamar

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

" CONTO DE NATAL "



Os campos há muito estavam brancos.
Este ano a neve viera bem mais cedo, em jeito dos tempos antigos, que os idosos diziam normais.
Os últimos brotos verdes, ficaram envolvidos no manto gélido, aguardando, em sono retemperador, que os primeiros raios de sol da Primavera, os acordassem, para os dias de céu azul.
As folhas perenes, das árvores, sempre arqueavam para o solo, ajoujadas sob o peso dos floquinhos que nelas haviam poisado.   Havia também as árvores esquálidas que se despiam totalmente, e apenas apontavam aos céus os seus ramos, em arquitecturas elaboradas ;  também essas esperavam o calor de retorno, para se recobrirem dos verdes mimosos, já que as últimas folhas que as haviam abandonado há pouco, se vestiam de castanhos, alaranjados, ocres e vermelhos.
Os azevinhos, arbustos bravios dos bosques, ostentavam orgulhosos as contrastantes bagas vermelhas.
Juntamente  com  os  musgos que trepavam pelos troncos ( como barbas em rostos encarquilhados de velhos ), haveriam de engalanar a Sagrada Família, que constituía o seu presépio.

Monique recolhera a sua vida àquela quinta, propriedade dos avós e depois dos pais, que há muito tinham partido.
Era a sua quinta de infância, onde em menina brincava, corria, apanhava as flores da Primavera com que a mãe lhe fazia grinaldas para o cabelo, o que a tornava uma princesa, no seu imaginário infantil.
Era a quinta por onde, como os seus amigos do bosque, espalhava alegria, vivia a liberdade de potro selvagem, apanhava os medronhos, as amoras e os mirtilos, para as tartes dos lanches.



Crescera, fizera os seus estudos em Paris, e por lá tentara radicar-se, por lá delineara a sua vida.
Sempre regressava em férias ou em alguma pausa de trabalho, para rever as pessoas ... mas sobretudo os sítios, os cheiros, as cores, os sons ... e a liberdade, com que o ar leve e desanuviado da montanha que ficava no horizonte, a presenteava.

Hoje, Monique vivia em definitivo ali, naquele seu chão !

Era Dezembro outra vez .
Lembrava os Natais em Paris, o réveillon, as luzes, os vidros das montras ricamente decoradas, embaciados do gelo que se fazia sentir ...
Lembrava o escuro da noite, as golas dos casacos a protegerem o rosto, as luvas nas mãos, e aquele "fuminho" a sair da boca, como as chaminés da aldeia distante, que também a essas horas, deveriam ter as lareiras a crepitar ...

A vida de Monique não correra feliz.  Tomou a decisão de ficar só ... mas não em Paris.
Regressaria à quinta, lá na Provença.  St. Remis esperava-a ... e perto, os seus campos também !
Resolvera começar de novo ... sozinha. !

Deixara Marcel em "Les Ombres", o "bistrô" junto ao Sena, onde se haviam conhecido, e onde mantinham o ritual de, sempre que possível ao fim do dia, quando ambos regressavam a casa, tomarem um café, um copo, um chá de jasmim ...
Monique fizera de tudo, para ficar com aquele homem na sua vida.
Simplesmente, Marcel vivia preso ao passado, um passado que não cortara, não cortaria nunca.
Um passado que o tornava refém, por valores, princípios, convicções, os quais não sabia gerir.  E essas amarras de consciência, são aqueles nós, que um homem por muito forte que seja, dificilmente consegue desatar.
Por isso, Monique decidiu partir.
E para partir e chegar a algum lugar, ela só tinha de facto, o seu chão, o seu céu, os seus campos, as cores de St. Remis, o calor da fogueira acesa naquela casa desabitada, para a acolher !

Naquele dia de fim de Novembro, Monique deixou Marcel  ao balcão, em "Les Ombres", envolto nas espirais do seu fumo de cigarro ( que sempre começam e caminham pelo espaço, sem nunca terem fim ).
Dali, ouvia-se ainda que abafado, o gorgolejar das águas do Sena, imparáveis.
A tarde estava a fechar.
O dia fora cinzento, escurecido, tão escurecido e angustiante quanto o peito de Monique estava.
As folhas das árvores, de um Outono instalado, espalhavam-se pelas alamedas, imóveis ;
coladas ao asfalto, pela chuva que tombara a espaços, ao longo do dia, pintavam o chão, com a doçura das cores da estação.  Não havia frio. Antes, havia uma mornidão húmida espalhada no ar.
Ao cruzar a porta, parou, para ainda olhar uma vez mais, longamente, a figura sossobrante, derrotada e impressionantemente cansada, que imóvel, se perdia em pensamentos distantes, na meia obscuridade do botequim ...
E saíu ...
Naquele exacto instante virara a sua página,  fechara o seu livro, acabara de ler o último episódio ...

E era Dezembro, de novo.
Haviam decorrido tantos anos desde aquele dia !...
O Natal aproximava-se uma outra vez.
Naquela quinta novamente com vida, todos os anos por essa altura, Monique carregava do bosque, braçadas de azevinhos, ramos de tuías, pinheiro e musgos dos troncos ... e com as velas,  as fitas e as luzes, enfeitava a sua sala, aconchegante.  Simples, mas de bom gosto ... aconchegante no mobiliário antigo, fiel às recordações, nos paninhos bordados sobre os móveis, nas cortininhas de rendas nas janelas, deixando ver os campos a perder de vista,  nas almofadas e mantinhas sobre os sofás.
A Sagrada Família, o seu presépio herdado dos avós, pousava sobre a lareira, que crepitava por todo o dia, até que Monique se recolhia.
Junto dela sempre estava o Rudi, seu fiel companheiro, sombra dos dias e noites, com quem conversava, e com quem caminhava longas horas, pelos campos, até ao rio, lá ao fundo ;
junto dela, sempre estavam os gatos ronceiros e ronronantes, que mais dormiam do que caçavam, apesar de andarem dentro e fora, circulando pela gateira que recortara na porta.


Depois do Natal, viria o Novo Ano ... mais um !
Monique já não se lembrava de uma forma nítida, como era sentir-se "família" de novo, como era sentir o aconchego e o conforto no coração, que o embalo de uns braços transmite, e como a cumplicidade do silêncio ( que apenas olha o vermelho do fogo e as faúlhas da lareira  a subirem no espaço )  pacifica a alma.
Desde que Marcel ficara em Paris e ela ficara "órfã" de afectos ... desde que  os seus dias criaram rotinas ... desde que apenas St. Remis era espectadora dos seus estados de alma, dos seus risos e das suas lágrimas, que Monique procurava apagar no seu  "calendário do coração ", esses dia pungentemente mais "agrestes" !

A noite chegou, as luzes acenderam-se coadas na penumbra da sala.
As chamas das velas, bruxuleantes, criavam sombras fantasmagóricas nas paredes.
Mais um ano ia virar.
Nessa noite, Monique sempre "cutucava" tempos sem fim, as brasas, sempre silenciava, ouvindo apenas os estalidos da lenha a arder, sempre colocava uma toalha alva ( bordada pelas mãos já trémulas da avó ) na pequena mesa junto à lareira, sempre trazia o seu vinho ( um bom vinho, fazia questão ), algumas vitualhas da quadra que se vivia, as passas dos desejos, e dois copos de pé alto, do serviço que vivia adormecido por todo o ano, no guarda-loiças das memórias.
A seu lado, Rudi dormia completamente espreguiçado na carpete de sisal que cobria  o chão, e os gatos, enroscados um no outro, saboreavam o calor próximo, do lume.
Às vezes passava temas de Natal na aparelhagem, baixinho, embaladoramente, embora preferisse outras tantas, o silêncio alto dos seus pensamentos que rodopiavam livres pela sala, transpunham paredes, janelas, distâncias, vontade e tempo, percorriam espaço, venciam eternidades ...

O relógio antigo, de chão, iniciou a sequência das doze badaladas da meia-noite.
Lá fora nevava abundantemente.  Sentia-se, pelo toque leve, nas vidraças.
Colocou um outro tronco na lareira, encheu os dois copos, com o vinho tinto que "respirava" há tempo, e cadenciadamente começou a comer uma a uma, as doze passas, acompanhando-as de um só desejo.
Era um desejo global, que envolvia os doze que pudesse pedir :  ainda poder ser feliz, na vida que lhe coubesse viver !...



Rudi ergueu a cabeça e arrebitou uma orelha, como que perscrutando o silêncio lá fora ;
os gatos também despertaram do sono profundo, e espreguiçaram-se com satisfação.
A argola de ferro ( agora emoldurada por uma coroa de Natal ), na porta da sala, bateu uma só pancada seca.
Monique foi abrir, como se sempre soubesse, que algum dia, aquele som iria ouvir-se ...
Na soleira da porta, recortada no breu da noite e no branco da neve, a figura de um homem, com o cabelo totalmente grisalho, segurava na mão, um vaso de "Estrelas do Natal", espantosamente rubras, contra o verde intenso das folhas ...

" Voltei " !... - disse Marcel .

Anamar

sábado, 8 de dezembro de 2012

" SOPA DE IDEIAS, OU BARALHAR E VOLTAR A DAR "


De repente "arrefeci" na inspiração.
Devo ter arrefecido, na proporção do arrefecimento atmosférico que se tem feito sentir, e do meu arrefecimento interior.

Dezembro  aproxima-se  do  fim  a  passos  largos,  a  época  que  se atravessa  mexe-me,  irrita-me  ( mais ainda, porque não me consegue deixar ilesa psicologicamente ).
O ano a encerrar portas, puxa-me p'ra pieguice habitual de rever, rever, rever .
E apesar de tantas "reprises" e tantos balanços que me imponho, não passo da "cepa torta", ou seja, por mais que me esforce, sempre "rebolo" num ciclo vicioso de ideias, valores, princípios, conclusões.
Provavelmente porque sempre analiso tudo na minha vida, sob a mesma óptica, perspectiva e desesperança.  Sempre encaro o presente e o futuro, com uma ausência de convicção promissora, como se eu tivesse nas mãos uma carta de determinações destinadas, irreversível e imutável !
Uma espécie de determinismo, contra o qual ... "nothing to do " !!!

Sinto-me cada vez com menor maleabilidade de ideias e vontades ;  mais fossilizada, e menos aberta a novas "chances", menos ou nada crente na possibilidade de que se operem mudanças ... já não falo em milagres, nesta minha realidade idiota !
Ofereço  uma  resistência  férrea  às alterações que eu queria operar, mas para as quais não estou artilhada, e nas quais, começo logo por não apostar !
Bolas, vá-se lá entender alguém que quer, porque precisaria, alterar tantas coisas, não acredita na mudança, e pior, não mexe um passo para que isso  possa ocorrer, porque desiste antes de começar !!!

Isto chega a desesperar-me, a esgotar-me, e a fazer-me odiar a mim mesma.
Arvoro-me eu em defensora de abertura de espírito, jovialidade que não quero perder por nada, irreverência que cultivo ... quando afinal me pauto como um verdadeiro dinossauro, um estrato da arriba, um fóssil paleolítico !!!
Tudo imutável, tudo mumificado, tudo gelidamente imóvel ... tudo num marasmo adormecido de eternidade !

Às vezes tenho ganas, sobe-me uma "coisinha" ruim, uma vontade estúpida, de me meter num "shaker" qualquer, que me agitasse, me obrigasse a fazer pinos, cambalhotas, rodopios, como num tambor de máquina de lavar roupa, e me centrifugasse os miolos, me trouxesse os fígados à recauchutagem, e me agitasse um coração, que parece vezes demais acomodado, por cansaço !!

Já aqui abordei algumas vezes, o cepticismo total que me provoca uma recusa e uma fuga apriorística, de tudo o que me cheira a técnicas manipuladoras da mente e do espírito, da emoção e da razão.
E não me disponibilizo desarmada, a novas experiências ou a novos percursos, apenas porque o meu derrotismo é de tal ordem, que logo à cabeça, sou um "cavalo"  auto-excluído da corrida, quando ainda está na linha de partida.

Recuso livros de "auto-ajuda", enjoam-me e cansam-me, frases bombásticas e lamechas que apelam à "luz", ao "amor", à "viagem interior", "ao pensamento positivo que atrai realizações positivas", ou "que o sorrir insistente ao espelho, nos reforça a auto-estima" ...
Irritam-me as pieguices das "espiritualidades", impingidas em discursos demagógicos, os artificialismos dos "feng-shuis",  as forçadas terapias de hipnotismo, a inutilidade da aromaterapia, cromoterapia, e quejandos  ...  o "rescue" proporcionado  pelos "coachings" ...
Porque efectivamente, não acredito na eficácia de nada disso.

Por outro lado, este posicionamento, parece-me um sinal visível de falta de inteligência e de  mente aberta , de desconfiança, de desaposta, de não investimento ... direi mesmo, de fraqueza, cobardia e boicote.
Até porque depois, encho a boca e não só, incoerentemente, com grandes frases feitas, tais como : "Fraco não é quem erra, mas quem não tenta" ou "Estupidez é esperar resultados diferentes, se se seguem sempre os mesmos caminhos " ...

Como se vê, não bate a "bota com a perdigota" !...

Será que eu tenho medo de mudar?
Será que eu gosto de me vitimizar, e me é confortável um leito de desgraça ?
Será que eu sou masoquista, mas já num grau de desequilíbrio assimilado e interiorizado?
Será que sentir-me e dizer-me infeliz aos outros, não passa de sucessivas chamadas de atenção, porque simplesmente a minha carência afectiva é total, e está na base da minha desordem mental ?
Ou será que tenho pavor a experimentar, e ingenuamente me enganar outra vez, nisto e naquilo, porque já não me sinto com "estaleca" para mais desaires na minha vida ?!
E aí então, sinta em definitivo, fechadas todas as luzes e todas as portas, e conclua que afinal, eu sempre estivera de posse da razão, porque nada muda do dia para a noite ?!
Ou simultaneamente, receie que com o baixar da última ponte, eu perceba da solidão inapelável da minha alma ?!
Será que eu tenho medo de esgotar, então sim, a total ausência de alternativas, porque com isso, terei experimentado todo o cardápio  "terapêutico" ?!
Porque se o não conhecer, ou o não tentar, sempre poderei pensar, que teria havido caminhos de recurso, que deliberadamente assumi não experienciar, por burrice, arrogância ( talvez ), falta de fé nos mesmos, ou porque sou simplesmente ... "nhurra" ... se calhar com a prosápia de que sou mais iluminada que ninguém, numa falta de humildade chocante !!!...

Mas ... e ganho o quê com isso ?
Melhorar seria possível, ficar na mesma, é o certo !

Então por que não aposto ?
Por que, pelo menos, não me torno ainda que por algum tempo apenas, aberta a novas experiências ?
Por que não me desarmo, e por que no mínimo, não me coloco tão só,  como espectadora de mim, de fora para dentro, assistindo ou não às mudanças, mas pelo menos sem que as obstrua, as obstaculize, ou as sabote ??!!...

São estes ciclos viciosos  mentais, são estas "pescadinhas de rabo na boca", são estes raciocínios provavelmente falaciosos, que me "embananam" o espírito ;
é esta desordem mental que me desgasta ;
é este pântano de ideias lodosas e cansativas, que me destrói ... me tira a alegria, a garra e a vontade ... me faz sentir perdida e atordoada !

Em suma, é esta convulsão de pensares e sentires, esta interminável  "sopa  de  ideias",  que  me  arrasta  dia  após  dia,  mortalmente  vivente !!!...

Anamar

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

" UM DIA, VOLTA !... "



Lembras aquele acordar de madrugada, ainda a luz se coava pela vidraça ?
Quando o frio da noite que começava a findar, trazia de longe os rumores de sonhos antigos ?!

Era  quase Inverno, mas contigo acendeu-se a Primavera no meu quarto ...
As roseiras começaram a florir,
e os pingos de chuva  ao tombarem lá fora, faziam-se cordões dourados, que desciam pela nudez do meu corpo.

Havia uma lareira acesa na memória,
Havia a cor do fogo espalhada por ali,
e havia um frémito doído que passava,  por se saber apenas inventado ...

As tuas mãos, regatos a desvendar caminhos, corriam incessantes, da nascente  à foz ... Lá, onde as águas se misturam com o sal que tempera a minha pele ...
Os teus braços, raízes que prendem as árvores na terra,  tinham a força indomável que liga o carvalho ao solo, ainda que o vento açoite forte ... mas também a ternura da sombra generosa do choupo, que nunca ofusca o sol por inteiro ...

Contigo fui gaivota, de penhasco em penhasco ...
pardal que saltita de poça em poça ...
Fui  águia  altaneira   das  montanhas,  que  dos  picos,  domina  o  Mundo ...
Só que naquela hora, o meu mundo eras tu, éramos apenas nós naquela cama desfeita, aquela chuva lá fora, e a força que então, eu tinha no meu peito ...

O meu sonho ninguém aprisiona, porque é metade de mim,
e a outra metade, é o meu crer, que não conhece grades, nem grilhetas,
nem fronteiras, nem fantasmas,
nem deuses, nem destinos,
nem máscaras, nem medos ...

O meu crer, é o calor-ninho de um sol imaginado
É a luz que se acende no céu em noites de lua cheia ...
que o farol verte na escuridão, do mar infinito ...
É  a  pincelada  de  cor  com  que  a  chuva  e  o sol  acordam  o  arco-íris,  em  dias  escuros,  mascarados de Verão ...

Volta ...

Volta outra vez, trazendo contigo as braçadas das flores que me colheres ...
E nos olhos, as estrelas que conseguires apanhar do firmamento ...

... porque haverá outras madrugadas, em que a luz só se coará ainda, pela vidraça ...
e me tomes nos teus braços, para me dizeres baixinho ...  "Como eu  te  amo " !!!...

Anamar

domingo, 2 de dezembro de 2012

" POR QUE NÃO UM OUTSOURCING DE BRAINS ?!... "


Começo as  minhas escritas  em  Dezembro, deixando  aqui  este  texto, que foi  compartilhado  no Facebook pelo site " Sensivelmente Idiota ", como aqui está registado.

Neste meu espaço, não tenho nenhuma "etiqueta", em que seja  verdadeiramente cabível enquadrá-lo.
Talvez uma que se chamasse : "Abra os olhos, e não seja idiota", lhe assentasse  como uma luva.
Mas não tenho, de facto ...
Então vou inseri-lo na classificação de  "Devia ser Ficção", que é o mais aproximado que me ocorre, ao deparar-me com esta "pérola" de artigo.

Efectivamente temos o país que merecemos, os políticos que merecemos, os actores que merecemos, os artistas que merecemos, os escritores que merecemos também, obviamente.
E como  em  qualquer  sociedade  pouco  exigente,  pouco  culta,  pouco  informada, que lê  ( quando lê ), desde a "Maria", passando pelas notícias "cor-de-rosa" todas ( vulgo, revista de cabeleireiro ), jornais como "O crime", "O Correio da Manhã", de teor muito "interessante e útil" ... até aos livros de qualidade, de autores insuspeitos .... também  se "papam" livrecos que não massacrem muito os neurónios,  com argumentos para boas telenovelas de vão de escada.
Livrecos, que espremidos, deitam "zero" ... verdadeiros atentados, a um país que pariu um Prémio Nobel, um Pessoa, um Eça, um Camões, um Aquilino, uma Agustina, um Namora, um Torga, um Nemésio, e todos quantos jamais carecem de apresentação, a  mentes com reais preocupações culturais, informativas e formativas.

Mas livrecos que vendem !...Vendem que se fartam !...
E com isto, enchem os bolsos a figuras do perfil da senhora aqui citada, que tem o topete, a falta de senso e a distinta "lata"... já  p'ra  não  falar em saber estar, em provocação,  em  desfaçatez, em  insanidade ( só pode )... em falta de respeito para com os seus concidadãos, todos aqueles que lado a lado com ela ( só que em degraus economicamente bem mais abaixo, já que não conseguem escrevinhar duas linhas de  "merda" ... desculpem-me a ira mal disfarçada, que se me está a escapar dos fígados !... ),  sofrem e vivem a dureza da vida REAL, as dificuldades sérias, e não têm as mordomias duma vida oca e frívola,  de "faz de conta".

Com esta entrevista, Margarida Rebelo Pinto não  necessitaria "desnudar-se" mais,  tão tristemente ;
não necessitaria ter ido tão longe, p'ra denunciar, pela negativa, a falta de qualidade, de verticalidade, de sensibilidade, de isenção, de valores, e de princípios, da sua própria pessoa...

...porque falta de qualidade enquanto profissional da escrita, verdadeiro "bluff" numa "intitulada" escritora, autêntico embuste na veiculação de ideias valorizáveis e com conteúdo .... tudo isso, os mais atentos já lhe haviam reconhecido e já lhe haviam feito justiça,  há tempo suficiente !

Deixo  portanto,  sem  me  alongar  mais, à  vossa  consideração ... Margarida  Rebelo  Pinto ... no seu melhor !!!...

Margarida  Rebelo  Pinto  só  enganará,  os  incautos,  os  ingénuos,  ou,  penso,  quem  for "sensivelmente idiota" !!!...
  "Sensivelmente Idiota"
A Margarida Rebelo Pinto fez um downsizing do seu lifestyle. Acho que vou chorar.

A foférrima da Margarida Rebelo Pinto disse há dias numa entrevista: "Eu vivia numa casa com jardim e piscina e saí dessa casa porque decidi que tinha que fazer um downsizing do meu lifestyle".
Seja como for, vou já começar a chorar. Só não sei ainda se chore com pena dela por já não ter piscina, ou se chore pela estupidez do downsizing do lifestyle.

Mas há mais partes da entrevista que são muito interessantes.
A quiduxa diz que fica revoltadíssima, sei lá, toda possessa (!) quando vê jovens nas manifestações com telemóveis melhores que o dela. Realmente, é um escândalo Margarida! A solução para o desemprego dos jovens é vender os telemóveis por 400€ e já está. Afinal, com 400€ quem é que não se aguenta pelo menos 10 anos?

Vamos ao clímax da entrevista. Deliciem-se com este parágrafo:
"Nunca vi a minha mãe de pantufas ou as minhas avós saírem à rua sem luvas. Faz parte de uma coqueterie que sempre foi cultivada. Na minha família ninguém vai mal arranjado para um jantar. Aliás, uma coisa que me faz confusão em Portugal é as pessoas andarem cada vez mais andrajosas e mal arranjadas. Não fazerem a barba, não cortarem o cabelo."

A Margarida espeta logo ali com a palavra "coqueterie". Pumba! 1 para a Margarida, 0 para a plebe.
Mas vamos por partes. Por exemplo, os hobbits também não usam pantufas porque têm mais pêlo no pé que o José Cid tem na peitaça. Será que a Margarida é filha de um hobbit? É possível.

Uma coisa é certa, finalmente alguém tem a coragem de se chegar à frente, pôr o dedo na ferida, e falar dos verdadeiros problemas do país. Como é que andamos para a frente com gente tão andrajosa? Como é que estamos à espera de cativar investimento estrangeiro se há gente com barba por fazer? É uma vergonha aqueles homens que não fazem a barba há meses e meses só porque dormem em caixotes de cartão e comem o que apanham no lixo. Assim não pode ser!
Eu percebo perfeitamente a Margarida. Na minha família também ninguém vai para um jantar mal arranjado. No outro o dia, o meu primo apareceu à mesa com a camisa para fora das calças e eu fui logo pô-lo a jantar no chão da cozinha ao pé do cão e dos criados. 
Escândalo dos escândalos é ir pedir uma refeição à Santa Casa da Misericórida e aparecer lá vestido de cobertores e luvas com buracos.

Enfim, acho que faz falta à Margarida bem mais do que um downsizing do seu lifestyle.
Talvez um outsourcing de brains.

"A Margarida Rebelo Pinto fez um downsizing do seu lifestyle. Acho que vou chorar.

A foférrima da Margarida Rebelo Pinto disse há dias numa entrevista: "Eu vivia numa casa com jardim e piscina e saí dessa casa porque decidi que tinha que fazer um downsizing do meu lifestyle".
Seja como for, vou já começar a chorar. Só não sei ainda se chore com pena dela por já não ter piscina, ou se chore pela estupidez do downsizing do lifestyle.

Mas há mais partes da entrevista que são muito interessantes.
A quiduxa diz que fica revoltadíssima, sei lá, toda possessa (!) quando vê jovens nas manifestações com telemóveis melhores que o dela. Realmente, é um escândalo Margarida! A solução para o desemprego dos jovens é vender os telemóveis por 400€ e já está. Afinal, com 400€ quem é que não se aguenta pelo menos 10 anos?

Vamos ao clímax da entrevista. Deliciem-se com este parágrafo:
"Nunca vi a minha mãe de pantufas ou as minhas avós saírem à rua sem luvas. Faz parte de uma coqueterie que sempre foi cultivada. Na minha família ninguém vai mal arranjado para um jantar. Aliás, uma coisa que me faz confusão em Portugal é as pessoas andarem cada vez mais andrajosas e mal arranjadas. Não fazerem a barba, não cortarem o cabelo."

A Margarida espeta logo ali com a palavra "coqueterie". Pumba!  1 para a Margarida, 0 para a plebe.
Mas vamos por partes. Por exemplo, os hobbits também não usam pantufas porque têm mais pêlo no pé que o José Cid tem na peitaça. Será que a Margarida é filha de um hobbit? É possível.

Uma coisa é certa, finalmente alguém tem a coragem de se chegar à frente, pôr o dedo na ferida, e falar dos verdadeiros problemas do país. Como é que andamos para a frente com gente tão andrajosa? Como é que estamos à espera de cativar investimento estrangeiro se há gente com barba por fazer? É uma vergonha aqueles homens que não fazem a barba há meses e meses só porque dormem em caixotes de cartão e comem o que apanham no lixo. Assim não pode ser!
Eu percebo perfeitamente a Margarida. Na minha família também ninguém vai para um jantar mal arranjado. No outro o dia, o meu primo apareceu à mesa com a camisa para fora das calças e eu fui logo pô-lo a jantar no chão da cozinha ao pé do cão e dos criados.
Escândalo dos escândalos é ir pedir uma refeição à Santa Casa da Misericórida e aparecer lá vestido de cobertores e luvas com buracos.

Enfim, acho que faz falta à Margarida bem mais do que um downsizing do seu lifestyle.
Talvez um outsourcing de brains."

Anamar

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

" NÃO SERÁ JUSTO ! "


A Rita está a desistir.

Os animais são assim, e nisso também, dão uma lição ao ser humano.
Desistem devagarinho, em silêncio, sem perturbar, sem reclamar, como se fossem saindo em bicos de pés, ou de pantufas ... para não incomodar, pedindo mesmo desculpa com o olhar, por nos estarem a dar mais um desgosto, por não poderem ficar mais, como tinham prometido, por não serem nossos companheiros por toda a nossa vida ...

E fecham a porta sem ruído ou estrondo, para que não nos assustemos ...

Os animais têm a dignidade e a postura que o ser humano não tem.
Não reclamam, não fazem chantagens emocionais ... não "jogam" !  Os animais não sabem "jogar" ...

E eu estou a vê-la ir ... e não sei o que posso fazer, para lhe explicar que vai ser muito difícil dormir sem ela metida na minha roupa, a aquecer-me nas noites frias de Inverno, quando eu lhe pedia que me aquecesse ...
Que vai ser muito difícil não ter a quem dizer, nos dias tristes : "Rita ... isto hoje está mau, já viste " ?...
Que vai  ficar muito vazia esta casa, sem a sentir, mesmo silenciosa, a dormir no sofá, sobre o saco da água quente, ou quando pedia para a acompanhar ao prato da comida, ou a beber água no fio da torneira, ou ainda que a aninhasse no cólo, no robe quentinho de Inverno ...

A Rita quase não come.  A pele cobre-lhe os ossos, pouco mais .

Adoptei o Jonas, um "bonequinho" de três meses, para o retirar da amargura do infortúnio da rua.
O Jonas ... que é uma réplica do Óscar, quando entrou na minha casa, no mesmo mês, há dezoito anos atrás.
A Larissa, que adora a Rita, diz que nada acontece por acaso.
Por que será que há mais de três anos, quando o Óscar partiu, eu disse que não adoptaria mais nenhum animal, agora o recebi ?!

O Jonas entrou, tem três meses ... a Rita tem treze anos.
O Jonas virou o mundo da Rita, ao contrário.  De um dia para o outro, todos os seus hábitos se subverteram.
A presença daquele "boneco a pilhas", que só quer brincar a toda a hora, acabou-lhe com o sossego, a necessidade do sossego que os seus treze anos lhe impõem.
Ele é um bébé traquina e reguila, que não pára um só minuto, que não pára de fazer disparates dia e noite, que não pára de a provocar com uma sapatada, uma tentativa de lhe apanhar a cauda, um salto mortal por cima dela.
Um bébé que quer comer quando ela come, e do prato dela ( apesar de estarem dois pratos lado a lado ), que se empoleira, sem chegar, para beber água, exactamente quando ela também bebe, que faz com que eu tenha parte da casa fechada, impedindo-lhe o acesso para evitar demais disparates.
Com isso, a Rita, que pela manhã de dias de sol como hoje, adorava apanhá-lo, deitada  na carpete da sala principal, está impedida de o fazer ...

Estou a roubar o sol à Rita ... Estou a confiná-la à penumbra do outro quarto ... já ... antes de tempo ... e não é justo !
Sinto-me culpada, porque ainda que involuntariamente, acabei abrindo talvez antes da hora, as portas para a Rita sair da minha casa, da minha vida, da minha história ...
Não é justo !!!...

A Rita é parte de mim.
Foi o animal mais doce que se partilhou comigo ...
Atravessou os meus dias longos e escuros ... ouviu-me, só por me olhar.
Aqueceu-me o coração, tantas e tantas vezes, só porque me aquecia o corpo, nas noites frias e sós, de tantos Invernos da minha vida ...
Foi companheira do Óscar, até ele a deixar.  Ficou só, e desencadeou um problema de saúde crónico, do foro psicossomático.

Quem   diz   que   os  animais   não   têm   lutos  absolutamente  sofridos ??!!...

Problema crónico, como digo, que se arrastará com ela, controlado apenas com uma alimentação especial, enquanto viver.  Contudo, jamais o irá curar.
Sendo psicossomático, tende a agudizar-se em situações de alterações dessa natureza, o que aconteceu com a entrada do Jonas, e que eu não pude prever.
Ficando sujeita a stress, e a modificações dos ritmos da vida instalados, voltou a fazer um novo pico da doença, só que desta feita, mais grave.
O Jonas entrou, fará um mês, e a Rita definha desde então.
Entristeceu, quase não come, e permanece como os nossos velhos, sobre o saco de água quente, no sofá, indiferente, apática, desligada.
Não tem medo do Jonas, porque dormem enroscados um no outro ;  "sopra-lhe", em desespero de causa ...
Apenas, ele perturba-a, incomoda-a, desespera-a.
A necessidade de brincar permanente, de um gato bébé, alucina e confunde a Rita, deixa-a estupefacta.
Ela não entende que um gato que se preze, se coloque "colado" ao televisor, e faça caçadas aos passarinhos que voam na imagem ...
Ela não percebe, por que raio ele a desafia, de pé nas patas traseiras, e a "caça", em cada esquina do corredor ... Por que raio, ele "adora" o rabo dela, e a persegue de noite e de dia ...
De facto, é um stress constante, mesmo para mim, que o entendo, e  acho graça à sua inconsciência infantil !!

Tenho tentado tudo em termos médicos, alimentares, no  redobrar do carinho e das atenções.
Continua a dormir comigo, grande parte da noite. Bem coladinha a mim, como se o meu corpo a protegesse, do que talvez não tenha protecção possível ...
Como sempre, para o animal, o dono é o seu Deus, omnipotente ... e não é verdade, nunca é verdade !!!...

A Rita está a desistir ...
... e eu sinto-me a pessoa mais injusta, mais impotente e mais ignóbil do Mundo ...

Sem querer, sequer sonhar, estou a ser uma fraude para o amor, a dedicação e a confiança que a Rita ( seguramente sem sequer me desaprovar, porque isso os animais nunca fazem ), ainda e sempre, irá depositar em mim !!!...



Anamar

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

" COMO SERIA BOM SER ÁGUIA !... "




Eu sou mesmo uma pessoa enviesada, torta e mal acabada ...
Por que será que sempre acho que efectivamente vou morrer assim, e não há volta a dar, a esta minha forma desgraçada de ser ?
Por que será que não aposto, ou dou  "chances", a que portas ou janelas se abram nesta minha alma, que cada vez se encarcera mais e mais, numa concha inapelavelmente agarrada a rochedo do areal da Vida ??!!
A maré tapa-a, destapa-a ... ela nunca vai, ela permanece estratificada, presa, retida ali, e ali fossilizará, tornar-se-á também ela própria, rochedo duro e agreste, dia após dia ...

Dali vê o céu, umas vezes azul ... no Inverno, cinza, mais ou menos escurecido ;   vê as nuvens que pairam lá por cima, ou que giram em turbilhão de vento desgovernado ... e sonha ... sempre sonha !
Vê o sol que muitas vezes é quente, mas mais, muito mais são os meses, em que ele nem sequer sobe acima das falésias, e em que o frio invade o seu mundo .
Vê as aves que poisam perto, em comunhão de felicidade, só algumas vezes.  Quase sempre planam lá bem alto, donde se vê tudo, e onde se experimenta a liberdade absoluta.

O mar vai e vem, umas vezes manso, de "boa catadura" ... acaricia-a ;  outras vezes, quase sempre, altaneiro, duro, insensível açoita as rochas sem dó nem piedade, sem nunca pensar se lhes deixa feridas abertas.
Talvez  não deixe, porque eles não sangram, mas desgasta-as cirurgicamente dia após dia, consome-as noite após noite, e vai deixando a sua marca de morte, nos séculos ...

E a  concha que me dá guarida vai permanecendo, apesar das oscilações e das turbulências ;  sente o apelo dos céus, ouve o chamamento das gaivotas em bandos soltos, livres e irreverentes pelo céu fora, pensa como seria bom romper as amarras e partir, partir na ondulação, ou ganhar asas e subir para o alto, para outros  rochedos, outros penhascos, donde pudesse ver o Mundo,  estender os olhos e soltar o coração ...

Mas fica ... sempre fica, porque lá no fundo, nunca acredita que poderia partir, porque lá no fundo tem uma desistência  instalada,  sabe que jamais ganhará asas para voar, pés para andar, e que de seu, só tem mesmo o sonho, porque esse se soltou há muito, cortou amarras, e anda liberto por aí ..
Esse é irrequieto, é imenso, jamais se acomoda ou confina ao espaço exíguo que a vida lhe destinou.
Esse, deixa a concha onde não cabe, nunca coube, e parte nas marés, ou sobe aos céus, no inconformismo das asas da gaivota, que vive na aragem.
Esse, é o único que acredita, sempre acredita ... porque é sonho, e o sonho nunca pára, nunca morre, não se deixa prender ...
Esse, é o que vê o sol mesmo nos dias de nuvens carregadas, é o que sempre espera a chegada de uma maré promissora qualquer, é o que sabe que sempre vai aonde quiser, sem limites ou horizontes, esse, é o que se sabe potro desencabrestado, solto na pradaria, poeira de estrada dançada  no vento ...
Esse, é o que habita o coração inconformado e corajoso de Fernão Capelo ...

De facto, apenas ainda não desisti da minha capacidade de sonhar.
A insatisfação, a ânsia de mudança, a deliberada vontade de virar a mesa, a provocação latente do  desafio, a energia súbita que sinto para bater o pé à vida, a necessidade de me extremar, o fugaz acreditar na mudança do meu eu, não passam de meros momentos de compensação, em que a águia que há em mim ( como diz o espectacular vídeo que aqui coloco ), abre as asas, e voa dos píncaros aonde consegue por vezes subir.
São contudo voos curtos, inseguros, incipientes, muito precários, suicidas quase sempre, como os voos que Fernão Capelo Gaivota exercitou na ânsia, perseverança e na sua fé, de alcançar o que parecia inalcançável, de atingir a real dimensão da  "LIBERDADE" ... a que reside no pensamento, no coração e na alma ... porque são esses os lugares, que nada, nem ninguém tolhe.

E o tempo passa, e eu não passo com ele, para realizações objectivas, para o reencontro comigo mesma.
Fico no desejo, na vontade, no sonho que sai da concha e sobrevoa o oceano à sua frente ...
No sonho, que leva a águia a encarar o sol e a saber que o mundo é dela , e lá, tem o seu lugar ...

Só que eu não subo nos céus  mais e mais alto, nem saio do terreiro onde as galinhas ciscam, embora olhe o firmamento com um olhar triste e comprido !...

Eu, fico sempre por aqui mesmo, e cada vez acredito mais, que ficarei até ao fim, porque eu sou uma pessoa enviesada, torta e mal acabada ... Eu sou uma perdedora da Vida !!!...



Anamar

sábado, 24 de novembro de 2012

" COM, OU SEM TEMPO ... "



Costumo dizer que não me arrependo de nada que fiz na Vida.
Costumo dizer que se regressasse lá atrás, repetiria senão tudo, quase tudo de novo ...

Reconheço que algumas coisas sofreram erros de "timing", outras, erros de "casting", inerências ao que é a própria Vida, em que estamos em simultâneo a vivê-la e a reflecti-la, sem distanciamento para maturar com a devida análise cuidada, os episódios de que ao mesmo tempo, somos actores e espectadores .
Esse, o problema !

Todos sabemos que para fazermos a avaliação do que quer que seja, essa avaliação carece de distância, cabeça fria, e afastamento da envolvência emocional.
Ora se na vida pensamos e agimos ao minuto, obviamente que são cometidos erros infinitos.
Sem podermos debruçar-nos sobre os acontecimentos de uma forma desapaixonada, não conseguimos decidir muitas vezes acertadamente, não conseguimos muitas vezes discernir o melhor e o pior, não conseguimos sequer tocar as trombetas de "reunir tropas", no sentido até de nos defendermos da melhor forma possível.
Por isso é que a Vida é muito uma tômbola, ou uma mesa de jogo, de fichas vermelhas, brancas ou pretas, que umas vezes "fazem jogo", outras provocam desastres de consequências imprevisíveis ...

Digo que não me arrependo de nada do que fiz, porque, como já aqui o referi muitas vezes, tendo embora um cômputo se calhar mais sofrido que feliz, a minha vida pauta-se efectivamente por côr.
Se quisesse retratá-la numa tela, ela receberia pinceladas de tinta, jogadas a esmo, como num quadro abstracto e maluco, que iriam dos tons fortes, bem marcantes, aos tons soft e serenos, dos pastéis, nas fases de águas mansas.

"Uma vida muito rica " ... dizia-me alguém num destes dias ... "Por que não escreves as tuas memórias " ??...

Sorri ...

Primeiro ... coisa de memórias cheira-me a partida.  Cheira-me a preocupação de "marcação de território", não sei se me faço entender. 
Não no sentido em que os animais definem territórios, sobretudo em época de acasalamentos, em que há obviamente conflito de interesses.
Marcação de território, no sentido de deixarmos a nossa marca existencial, o sinal de que passámos por aqui, a nossa "dedada" na própria Vida !

Segundo ... coisa de memórias implica que alguém, teoricamente acessaria a essas memórias, já que elas não seriam logicamente escritas, para guardar propriamente numa gaveta !
E eu sei lá se importaria a esse alguém, se importaria aos distantes e mesmo aos mais chegados, depararem-se com uma figura que teve estas ou aquelas experiências, que os não acrescem nem os diminuem ?!
Sei lá se lhes importaria, saberem que uma qualquer "eminência parda", teve uma vida de montanha russa enquanto por cá andou, foi meio louca, alucinada, "outsider" ?!...
Se conflituou ou "agitou" o definido como pessoal / social / familiarmente correcto ?!
Ou, se ao contrário, foi "enquadrada", viveu dentro do espectável, do figurino, nunca constituíu incómodo, ou pedrada nos charcos de todos os que a rodearam, porque obedeceu aos parâmetros dos registos da "normalidade" instituída ?!

Por isso eu já determinei, que até as memórias materiais que existem da minha vida, os "tais" conteúdos das "tais" arquinhas reais, de que também muito já aqui falei, me acompanhem um dia, quando for .
Porque são "marcas" sentidas apenas por mim, só fazem / fizeram sentido apenas a mim, só têm significância, história, calor, cheiro, lágrimas ou sorrisos, no meu coração e em mais nenhum outro, porque nenhum outro ( porque as não vivenciou ), conseguiria jamais alcançar a sua dimensão !

E depois, a Vida não dá tempo ... tempo para nada !
Aliás, levamos a vida a adiar coisas ... para quando tivermos tempo ... é espantoso !!!...

Guardei em malas, na arrecadação, quilos e quilos de cadernos com rabiscos, com desenhos, com a incipiência da aprendizagem das primeiras letras das minhas filhas ... porque seguramente, um dia, quando tivesse tempo, me iria sentar junto delas, e repassar uma a uma, cada folha, cada teste, cada caderno, e relembrar "aquelas" histórias ...

Guardei em malas, na arrecadação, brinquedos e brinquedos, bonecas e peluches, legos e jogos, das minhas filhas ... porque um dia, quando tivesse tempo, os meus netos brincariam com eles de novo ...
Os meus netos vão caminhando, um deles já é pré-adolescente ... e nada saíu das malas ... porque NUNCA há tempo ... não dá para o trabalho, buscar o empoeirado dos anos ...

Guardei em prateleiras e armários, em minha casa, todo o material de uma vida profissional.
As fichas de trabalho , a preparação escrita das matérias, os testes elaborados, os livros, os dossiers, os slides, os acetatos ... a mala que diariamente me acompanhava ... para um dia, quando tivesse tempo, os ordenasse, arquivasse o importante, ou eliminasse o que não tivesse já valor relevante.
Tudo continua nos mesmos espaços, tal e qual ;  tudo continua em desordem, em conflito, o conflito de então ... E tempo ... eu tenho de sobra !...

Guardei  numa caixa, as cartas trocadas durante o tempo que namorei com o meu ex-marido ( porque na altura se escrevia ... AINDA ! ), as cartas e os aerogramas trocados  com os meus pais, quando, após casar, vivi dois anos em Luanda ... porque um dia, desataria aqueles laços de fita, e voltaria a lê-los ... quando tivesse tempo !...
A caixa continua fechada !...

Ilusão pura !!!

Tudo perde oportunidade, tudo fica efectivamente lá atrás, queiramos ou não ...
A nossa Vida perde oportunidade !...

Então para quê, nos rodearmos destes registos?   Então por que queremos inconscientemente,  imprimir a tal pégada, a tal impressão digital no Tempo ?

Porque o Homem sempre tem a sobranceria e a falta de humildade, de achar que valeu alguma coisa, e de achar que tem que deixar em perenidade, a sua marca, como se se apavorasse com o esquecimento, como se se assustasse com a constatação da sua tão pequena e efémera importância, da dimensão de grão de areia que ocupa, na realidade ...
O Homem não convive em paz, com a constatação de não ter sido nada nem ninguém, no Universo, de não ter de facto nenhuma importância no Mundo, nenhuma relevância no percurso do Tempo ... e isso mete-nos medo, isso retira-nos alguma razão,  força  ou  capacidade,  para  continuarmos  sempre  em  frente  nesta  caminhada ...

Portanto, com ou sem tempo, preferindo "não pensar no tempo que ainda tenho para viver, mas antes viver o tempo que ainda tenho para pensar" ( J.G.D. - escritor ),  irei continuar a vivê-lo cada vez mais criteriosa e exigentemente, cada vez mais enriquecidamente, cada vez mais gratificantemente ... e sobretudo, não deixarei de viver, tudo aquilo  de que pudesse vir a arrepender-me de não ter vivido !!!...

Anamar

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O REGRESSO À INFÂNCIA - " A GOTA DE ÁGUA "- Uma história para a Vitória ler ao Quico



Naquela manhã de Agosto, a Miquelina acabava de poisar na pocinha, que a maré preguiçosa deixara na areia.
O bando viera banhar-se e fazer a "toilette", no espelho que a água fizera na praia, ainda deserta.
Como todas as gaivotas, a Miquelina gostava de ter as penas bem limpas, penteadas e perfeitamente alinhadas.  Por isso, sempre desciam ao areal da maré baixa, a horas em que ninguém as importunava, porque a praia estava vazia.
Nem meninos traquinas, nem cães desatinados, e os pescadores da noite, seus amigos, também já estavam de partida, porque esta findara, e o sol já espreitava por detrás das falésias.
Sentia-se uma nortada fresca, nada que perturbasse, afinal !
Miquelina, depois de revisionar uma a uma as suas penas, com o bico treinado, enfunou-as e sacudiu-se, vaidosa, espreguiçando-se.

Foi aí que aquela gota de água se soltou, e às cambalhotas, meio entontecida e atordoada, sem perceber bem o que lhe estava a acontecer, veio parar ao charco que Miquelina tinha aos pés, ou melhor, às patas ...
Caíu atarantada, mas rapidamente se recompôs .  Olhou à volta, e viu que junto a si, tinha muitas, muitas outras gotas como ela, que o mar, ao recuar, ali deixara.

" E agora " ??? - pensou.

Ainda minutos antes estava aninhadinha debaixo da asa da Miquelina, e agora engrossava na areia, o caudal de muitas irmãs iguais a si.
De um lado tinha o sol que começava a aquecer com força, e do outro, o mar barulhento, que ela só via, quando a Miquelina  abria bem as asas, e planava na aragem lá no alto, bem por cima dele.


E afinal, quem era ela ??
Como poderia distinguir-se daquelas gotas todas iguais a si, que formavam o espelho em que as gaivotas sapateavam ??
Resolveu que deveria ter um nome.
"Mariluz" pareceu-lhe bem.  No fim das contas, ela era a mais pequena porção do mar imenso que gargalhava bem disposto ao seu lado, e luz era aquilo que mesmo pequena e insignificante, espalhava ao seu redor.
Por isso é que aquele charquinho, chegava a encandear quem dele se aproximasse.

Mariluz resolveu então tomar um banho de sol.  Não era o que os turistas todos faziam ??
Foi-se  deixando acariciar pelo calorzinho que lhe chegava ao coração  ( sim,  porque uma gota de água é tão pequenina, que quase é só coração ... ), e adormeceu ...
Acordou estremunhada, porque voltou a não perceber o que lhe estava a acontecer outra vez.
De facto, Mariluz sentia-se a subir, bem mais alto do que quando era transportada na asa da Miquelina.
Tão alto, tão alto, que pouco conseguia ver cá para baixo.
Mas não se sentia nada mal, porque baloiçava aconchegadinha, só que agora numa cama de algodão bem branquinha.
E deslizava ao sabor da aragem ...  Mais p'ra cá, mais p'ra lá ... e cá em baixo, bem pequenina, estava a praia onde adormecera.

Mariluz agora fazia parte de uma nuvem.
E uma nuvem, é uma coisa tão levezinha, tão levezinha, que o vento carrega p'ra onde quer ...
E por isso, Mariluz foi esbarrar no alto daquela penedia da serra ...
Não podia seguir em frente de forma nenhuma, a não ser que subisse no céu, e assim passasse por cima daquela montanha assustadora ...

Mas, " uffa ! ...  que frio " !!!
Quanto mais a nuvem subia, mais gelava ... sem cobertor que lhe valesse.
Foi, quando tiritava de frio e quase não conseguia mexer-se, que se sentiu a descer mansamente, de novo em direcção à terra, donde viera, só que descia bem embrulhada numa capinha, como uma pele de arminho, branquinha e fofa.
E foi descendo, descendo, até que poisou como uma borboleta, docemente, exactamente num ramo de azevinho, que já se enfeitava com as bagas vermelhas, para o Natal que se aproximava.
Mesmo ao seu lado estava poisado um pardalito enrufado, que inclinou a cabecinha, surpreendido, quando Mariluz poisou.

" Olá " - disse ela.
" Podes, por favor, dizer-me onde é que eu estou ?  É que eu sou a Mariluz, que vivia na asa da Miquelina, e estava numa praia linda a apanhar banhos de sol, quando de repente subi a uma nuvem.  E de lá, acabei caindo ... só que venho com outra roupa !...  Não estou a perceber nada " !!!...

O pardal olhou-a de novo, sorriu ( como os pardais sabem sorrir ), e disse-lhe :
" Agora estás numa mata de cedros, azevinhos, plátanos, pinheiros, abetos, tuías, e muitas outras plantas lindas.
Estão todas um pouco a dormir, porque é Inverno e está muito frio ;  e também há poucas flores, porque estas só vão acordar, quando o sol regressar, e for Primavera outra vez .
Tu ... tu não tens frio, porque és um floquinho de neve, e já te habituaste a ter esse casaco " !!!

Mariluz olhou à sua volta, e verificou que realmente  tudo estava vestido da sua cor, como numa festa em que todos tivessem combinado o traje a usar.

Rufino, o seu novo amigo, todos os dias passou a visitá-la, no galhinho onde ela se dependurara.
Contava-lhe do sol, dos passarinhos, dos esquilos, dos coelhos e das flores.
Falava-lhe da tal Primavera, e do Verão, em que o bosque ficava cheio de cores, de alegria dos trinados dos pássaros, que chegavam das terras do calor.
Falava-lhe dos bichinhos que ali moravam, e que começavam a sair das suas tocas, e das borboletas que sabiam dançar bailados, como ninguém ...

E  Mariluz vivia feliz, com todas essas histórias, junto às bagas vermelhas, com que o azevinho vaidoso, se adornava.

E a Primavera acabou chegando.
Os dias começaram a ficar mais quentes, e o floquinho de neve começou a perceber que de novo, algo estranho se passava .
De repente, o ramito de azevinho onde vivera, já não era seguro, e ela sentia-se a deslizar pelo limbo das folhas, como num escorrega de menino ... até que ...
" Plim " !!! - despiu o casaco branquinho, e caíu no chão,  gota de água outra vez !

A  mata  realmente  tomava  outras  cores,  outros  cheiros,  outros  sons ...
A " festa do branco " terminara, e ela pasmava com os verdes, os amarelos e os lilazes, os vermelhos e os rosas, que formavam tufos à sua volta.
Não teve nem tempo para se despedir do Rufino, porque logo começou a caminhar, empurrada cada vez mais depressa, por entre as pedras, por entre os musgos e os líquenes.
A ela, juntavam-se de todos os lados, muitas outras gotas iguais a si, e rapidamente formaram um ribeirinho, primeiro fininho, depois mais forte e largo, que não parava nunca de correr ...

E Mariluz começou uma enorme viagem, nem ela sabia para onde ...

Sempre cantando por entre margens mais ou menos apertadas, à sombra de árvores frondosas, em campos planos ou aos solavancos, lá seguiam, como se tivessem um destino a cumprir ...

Passou por lavadeiras, que riam e conversavam enquanto lavavam a roupa, passou por meninos, que com os pezinhos na água, brincavam com barquinhos de papel, como se estivessem numa corrida ...
viu animais que nunca vira, a dessedentarem-se ...
viu os agricultores felizes, a levarem pedacinhos do riacho, para que as suas terras dessem flores e frutos ...
olhou as andorinhas, que pela tardinha, rasavam as águas para se refrescarem ...
passou pelas quintas, onde os rebanhos de ovelhas, os cavalos ou as vacas, pastavam com um jeito bem preguiçoso, e de quando em vez chegavam às margens do ribeiro ( que agora, de tão largo, se chamava " rio " ), e matavam a sede ...

Por cima de si, Mariluz tinha um céu muito azul, e um sol muito quentinho.
Seguia feliz, agora num caudal tão grande, que atravessou cidades com prédios muito altos, passou por debaixo de pontes, viu barcos enormes, que pareciam casas em cima da água, e que tornavam insignificantes os barquinhos de papel dos meninos, com que se cruzara lá atrás ...
Aqui e ali havia pessoas a tomarem banho e a refrescarem-se ;  havia casais de namorados, que simplesmente olhavam o correr das águas, e sonhavam ;  havia pescadores, que lançavam a linha e esperavam adormentados que o peixe picasse ...  e espanto dos espantos ... havia, planando nos céus, de novo, gaivotas preguiçosas, embalando-se na aragem !...

Quem sabe, Mariluz encontrava a Miquelina ?!...

E o tempo foi passando, os dias foram correndo, como corria também o destino daquela gota de água.

Até que, numa bela manhã, despertou com a voz forte e troante, de rebentação nos rochedos.
O seu caminho não era mais de calma e tranquilidade ;  sentia alguma turbulência no sobe e desce, no avanço e recuo, para que era empurrada.
Verdadeiramente, Mariluz não tinha mais um caminho ...
Fazia parte do que não tinha princípio ou fim, do que tanto era azul, como verde ... ou prateado ou turquesa ...ou escuro, se irritado.
Era "casa" de seres de cores inacreditáveis, de algas e corais, de conchas e búzios, de anémonas e até de sereias, como um imenso e mágico jardim, totalmente florido.
Tanto era doce, silencioso e se deitava languidamente na areia, como se desfazia em rendas brancas, quando zangado açoitava os rochedos ...

Mariluz percebeu que voltara ao MAR, donde saíra um dia, exactamente debaixo da asa da Miquelina !
E percebeu também, que iria começar tudo de novo ...
Talvez igual ... ou com novas histórias para contar !!!...


Anamar