sábado, 31 de março de 2012

" A VISITA "


O meu " pequeno príncipe" esta noite aterrou-me na almofada.

Com os seus olhos doces de menino grande, trazia na mão uma rosa amarela, da cor do sol.
Conversou longamente comigo, com cuidados de não me tirar do sono, e sussurrou tantas coisas aos meus ouvidos, que embora continuasse dormindo, acredito ter acordado.

Coisas de menino ... coisas de príncipe ...

Vinha do país do sonho, do asteróide do amor ( que eu julgo na verdade já só existir num asteróide ).
Trazia consigo uma rosa dos jardins que plantara, mas contou-me dos miosótis azuis que lhe povoavam a vida.
Como todas as crianças, o rosto era iluminado, os olhos riam, as palavras bailavam-lhe nos lábios como diabinhos à solta, e as histórias saltavam-lhe da boca, à medida que o coração se lhe abria.
Sim, porque o "pequeno príncipe", ao contrário de nós, não tinha cadeado no coração ... o que aliás eu achei profundamente estranho !

Falou-me da beleza das histórias nas primeiras páginas, e de como elas também levam os príncipes pelo mundo da fantasia.
Disse-me como era feliz, por brincar de roda com as raposas, os gansos e os estorninhos, e como a alegria lhe inundava a alma, quando de manhã, de regador na mão, tinha mais madressilvas a despontar pela relva !

O meu príncipe não era exigente.
Pequenas coisas enchiam o seu reinado.
Coisas de "criança - príncipe de asteróide" ... e não coisas de Homens ...

As crianças sorriem todos os dias, basta que o sol nasça, que a lua enfeite o escuro pelas noites, ou que o grande arco de todas as cores, desenhe no céu um trampolim de salto ...
Claro que a chuva ou até mesmo o orvalho, nos musgos das montanhas, também as fazem rir em gargalhadas, rebolando-se neles displicentemente ...

Os Homens são demasiado sérios.  Carregam pesos que não suportam, nas costas e no peito, e julgam que podem ... Mas não !...  E por isso sempre choram ... choram muito !...
Também não têm tempo para os jardins de rosas e miosótis.
Correm o tempo todo, sempre de olhos fechados, e por isso vêem pouco à sua volta !
Sempre de cadeado nos corações, nunca deixam que os primeiros raios de sol, em cada manhã, lhos aqueçam !...

Os Homens já não acreditam em muitas coisas.  Não acreditam mesmo em quase nada !...

Não acreditam em recomeços, em estradas largas com horizontes, em marés que vão, mas que voltam de novo.
Não têm mais esperança sequer, que por cada Primavera, os pássaros cheguem, ou que as tamareiras voltem a ter frutos, primeiro verdes, depois laranja, de maduros ...
Não sabem mais ouvir histórias ...
Esqueceram todas as que lhes contaram à cabeceira, quando crianças ... e histórias novas, não fazem o seu estilo !...
Os Homens já não sabem onde ficaram as crianças que outrora foram, e não querem voltar a sê-lo outra vez !...

Os Homens têm medo, muito medo ... coisa que o "meu príncipe" não sabe bem o que é !
Afinal, ele tem Amigos, e com os amigos a gente divide o riso e o choro.
O medo não deixa que os Homens caminhem, para-lhes os movimentos.
O medo não deixa os Homens serem felizes, porque sempre desconfiam que o não serão ...
E faz com que fique escuro no seu planeta, tão escuro que não enxergam sequer, como é bonita a aurora que se espreguiça no firmamento, ou como o seu jardim se engrinaldaria de alegre, com uma simples palavra ou carícia !...

Contei-lhe da minha gaivota ... o que não o surpreendeu.  Afinal, como ele, eu "cativara-a", e "sempre se é responsável pelo que se cativa " - lembrou-me !
Falou-me de como as rosas sempre o esperam para lhe contarem as novidades, de como a raposa o espreita na curva do caminho ... descontando por cada batida do seu coração, cada instante que está sem ele !  E como já fica esfuziante de felicidade, só por saber que ele virá, ou pelo menos por saber que ele está lá, que ele existe e a ama ...

Os Homens não entendem nada destas coisas, de batidas de corações, de risos e gargalhadas, só porque se tem AMIGOS ou se sente AMOR ...

E o "meu príncipe" foi ficando.
Eu ouvia-o e não o ouvia.  Eu, não o ouvia, mas sentia-o !...

E a Rita sentou-se ao lado dele, na minha almofada.
Essa, é bicho ... e bicho entende lindamente coisas de crianças, e mais ainda, de "crianças - príncipes sábios" !...
A Rita percebia tudo, porque também ela às vezes não me entende.  Afinal, eu pertenço ao tal mundo dos Homens, seres esquisitos, feios e doentios!...
Esses são os dias em que ela chega em silêncio, muito séria, sorrateiramente, fica perdida a olhar-me, com os bigodes franzidos, e com um ponto de interrogação em cada olho.
Deita-se coladinha a mim, como se quisesse aquecer-me o coração, visto que ela o sente absolutamente gelado ... E abana a cabeça quando as lágrimas  me descem, como quem diz :  "Vá-se lá entender esta gente " !!!...

A Rita não fala como o "meu príncipe",  mesmo na calada das madrugadas.  Não fala, mas conhece !...

Também ela é sábia, também ela é mágica, também ela sabe miríades de coisas ... mesmo não tendo jardins  de rosas e miosótis azuis, não dançando danças de roda ...

... mesmo não vivendo nem no país do sonho, nem no asteróide do Amor !!!...

Anamar

sábado, 24 de março de 2012

" O FIM DO RECREIO "



Ontem um dia de sol, absolutamente primaveril.  Hoje um dia de chuva absolutamente imprevisível !

O tempo, como a Vida.
Altos, baixos ... sempre imprevisibilidades.

Hoje não estou para amar !
Nos fins de semana sobra-me tempo, e sobrando-me tempo, penso demais.  Seria desejável, se não fosse em excesso.  Os excessos nunca são úteis.

A certeza de não ter certezas, desgasta-me. O que é facto é que não ter certezas de nada, é uma das características do existir.
Tenho a mania das arrumações e da organização, talvez da sistematização ... ( defeito de fabrico ... ), e não me sentir "arrumada", deixa-me uma inquietude demasiado "desassossegada".  Mal gostosa !...
Só me sinto tranquila, se encarar, resolver, decidir ... arrumar ...  na prateleira, na gaveta, na cabeça, no coração ...
Tudo quanto fica a pairar, tudo quanto fica suspenso, tudo para que não tenho resposta, alguma resposta, seja lá qual for, não faz parte da minha índole.

Sempre sou de radicalismos.
Quando quero, quero muito ... só sei querer a cem por cento ... ou então não quero nada.
Custo a fazer concessões à Vida, não sei "negociar", não sou política ... decididamente !
E a Vida não é assim que se faz, as regras do jogo não são seguramente essas.  A diplomacia nunca foi o meu forte, a contemporização também não ...
Para mim, ou é preto ou é branco ; as cores difusas do comprometimento ... as cinzas da paleta, não pintam as minhas telas.  Hoje o céu está uniformemente cinzento ...

E dizem-me que não é assim.  Dizem-me que sempre o copo estará meio cheio ou meio vazio, depende de como o olhemos, e que nem tudo é branco totalmente, nem tudo é preto totalmente.
Quero acreditar, mas lá no fundo, não acredito mesmo !
A maior parte dos meus dias, é efectivamente ou de chuva, ou de sol primaveril, e o meu "copo" ou está pleno a transbordar, ou está vazio de dar dó !
Hoje, está vazio !!!

Não aceito o "talvez" no meu vocabulário ... custo a aceitá-lo pacificamente.
Porque o "talvez", precisa de tempo para se tornar "sim" ou "não" ... e tempo é o que eu já não tenho muito.

E cada pedacinho de tempo que é e deixa de o ser, não é mais do que uma parcela da soma que me concederam.
E de repente, estou a fazer vertiginosamente contas de subtrair e jamais de somar.
Todos os dias se encarregam de me lembrar que convém despachar-me, na busca do "sim" ou do "não" de vida.  Porque cada dia, a qualidade da mesma, também é o resultado de contas de "menos" e nunca contas de "mais".

E um dia acordamos de supetão, e o espelho, que sempre tem a capacidade de nos ler o rosto e a alma, vai mostrar-nos claramente que acabou o tempo "regulamentar", e batota não se pode fazer ...

Deixámos para trás as últimas árvores do caminho, deixámos para trás os últimos riachos onde sempre nos poderíamos refrescar, deixámos para trás a cauda do último cometa, que como cometa, é volátil na passagem, e por isso já foi ... e à frente, o trilho pedregoso que se desenha, não tem horizonte lá ao fundo, não tem paisagem merecedora a ladeá-lo, e o céu por cima, é cinzento uniforme, como o de hoje.

E aí a história é implacável.
É mesmo a história do copo inapelavelmente vazio, é mesmo a história da história que se esgotou, sem retorno.
Foi o toque da campainha do fim do recreio.
Foi o correr da cortina da boca de cena, sem que os actores retornem ao palco, porque foi simplesmente o último acto da peça !!!..

Anamar   

sexta-feira, 23 de março de 2012

" QUEM DIRIA ! "

 
As coisas que eu descubro sobre mim !!...

Há cerca de oito anos que não cozinhava em casa.
Anteriormente até me elogiavam a confecção dos alimentos, fossem iguarias de primeiro e segundo prato, fosse doçaria.
Não gostava, mas lá me ajeitava ( com sucesso, ao que parece ).  Nunca provei o que fazia.  Sempre pelo cheiro, "tirava" do tempero.

A minha avó era excelente cozinheira, toda a vida ouvi dizer.  Das duas filhas que teve, a minha tia foi também exímia cozinheira ( lembro bem ), a minha mãe, um desastre.
Não gostava, fazia-o contrariada, não alinhava em sofisticações.  Para ela, os alimentos eram tão simplesmente isso mesmo, alimento do corpo, necessário diariamente.
O meu pai nunca foi pessoa de apreciar nada muito elaborado, e como tal, o que sempre se confeccionava em casa, "dava p'ro gasto" ... coisas simples, muito simples mesmo.
Casei e obviamente fazia parte das "prendas domésticas" à altura, também ser cozinheira.
E fi-lo durante anos e anos, durante uma vida.
Também não gostava.  Costumava dizer que o tempo mais mal aplicado que dispendia diariamente, era o que passava junto ao fogão.  Mas nada a fazer !...
Mesmo durante férias ou fins de semana, quando saíamos da casa-mãe e íamos para os espaços alternativos que detínhamos, esperava-me uma cozinha, e ... emoção das emoções ... "outros" tachos e "outras" panelas ...
Destino ??... O mesmo !... (rsrsrs)

Licenciei-me em Química.
Química é experimentação, química é laboratório, química é "cozinhado" científico também.
E cozinha é laboratório obviamente ;  é tentativa, é sucesso ou insucesso ... de preferência sucesso, senão lá vamos todos ter que comer pizzas ( rsrsrs) !
Um dos anseios que sempre tive, consequentemente, era um dia poder deixar de cozinhar.  Achei que seria conquista máxima a alcançar, ver-me livre da "bateria" malfadada.

E assim aconteceu.

Quando fiquei só, a minha boca a única a degustar os pitéus, e tendo descoberto perto de minha casa um espaço de restauração, caseirinho, módico, agradável, resolvi : " Parou ! Cozinhar, ainda por cima só para mim ... não ! "
Iniciou-se então uma nova vida, culinariamente falando ( e não só ).
O almoço passou a ser também ver gente, conviver ( até porque a esse restaurantezinho,  muitas colegas de trabalho iam almoçar também ) ... desanuviar ... não ter trabalho !
Os meus jantares tornaram-se extremamente simples ;   Qualquer sopa, queijo fresco, tostas e uma compota o compunham, e mesmo a sopa, trazia-a para casa, diariamente diferente, diariamente fresca, da D. Zita.

E assim decorreram como vos disse, sete, oito anos.

A minha cozinha tornou-se "sala de estar", sempre impecavelmente arrumada.  A placa de gás e o exaustor tiveram que ser trocados porque estavam velhos e meio estragados, e adquiri outros mais atraentes, embora assumissem o estatuto de peças decorativas.
O frigorífico também avariou ( cá para mim, porque estava demasiado vazio ... um "deserto" de géneros ... rsrsrs ), e comprei outro novo, mais "maneirinho", mais jeitoso para as minhas necessidades.  Enfim, tudo absolutamente limpo por não servir, tudo organizado sempre, em qualquer dia, a qualquer hora !!!

O requinte de malvadez era de tal ordem, que quando os meus pequeninos vinham passar o dia ou o fim de semana comigo, era necessário repor uma base alimentar para o evento, e as refeições principais eram tomadas por nós ... obviamente na D. Zita !
Tenho uma amiga que brincava comigo, quando eu lhe contava da "pobreza" franciscana que se vivia na minha cozinha :  "Está bem ... vou lanchar contigo ! Tu dás o chá ... eu levo o resto" !!! rsrsrs

Bons tempos !!!....

No Natal passado tomei uma decisão.
Este ano, pela primeira vez depois de bastantes anos, o almoço de Natal, seria familiarmente na casa-mãe, como antigamente.  Seria eu que congregaria à roda da minha mesa, as quatro gerações ainda existentes ...  Da minha mãe com os seus noventa anos ... ao Frederico com os seus quatro anos.

E assim fiz.

Escuso de vos dizer que também comprei uma máquina de lavar loiça ( também se havia avariado ... rsrsrs ), e escuso também de vos dizer que, como imaginarão, da "água ao sal" tive que reabastecer a minha cozinha "fantasma".

Dei então por mim a reaprender a cozinhar.
Dei por mim cheia de dúvidas "metaculinárias", como nos meus primeiros tempos de casada :  "Como fazia eu ...isto ... ou aquilo"??!!   "Eu cozinhava carne assim, esparguete assado ... e era bom !...  Como era ?  O que levava ??"...
E aos poucos, do "baú das memórias", começaram a levantar-se "edifícios comestíveis", tacteando, perguntando à minha mãe também, fazendo ...

E cheguei à conclusão que neste momento estou a reabituar-me à coisa ... experimento, invento, misturo ... ( "há-de dar alguma coisa ... veremos !" )
Não estou propriamente no laboratório, de novo em experimentação científica ...
Estou aliás mais p'ra bruxa frente ao panelão fervente ( sim, porque gato, no décor já existe ... não é preto, mas compõe ... rsrsrs ) e ... espanto dos espantos, em cozinhados "de bonecas", quantidades small ... parece coisa de brincar, estou a explorar, estou a recrear, estou a gostar ... apetece-me, imaginem ...

Enfim, estou pela primeira vez, creio, a conviver "pacificamente" com a minha cozinha !!!...
Realmente ...  As coisas que eu vou descobrindo sobre mim !!!...  

Anamar

quinta-feira, 22 de março de 2012

" CADA LOCAL, UMA MARCA "


Queria ser viajante do Mundo.  Sim, porque viajante dos sonhos, já sou há muito !

O meu pai foi viajante, viajante do burro à camioneta da carreira, da carruagem ao comboio que deitava fumo pela chaminé, e fazia "hu-hu" ... "pouca-terra" ... "pouca terra" ...
O meu pai foi viajante na época em que se faziam assaltos nas estradas, pelas madrugadas.  O cocheiro tinha que parar por emboscada, nessas estradas do Alentejo, que era ainda mais, de planícies sem fim.
E os pertences, sonegados.  Nada a fazer !

Hoje temos o Mundo todo aos nossos pés, com uma segurança quase total, com uma disponibilidade quase total, a oferecer-se em espanto, aos nossos olhos.
É um crime os nossos bolsos não o comportarem.  É um crime não se poder aterrar, para levantar a seguir, quase logo a seguir, de mala feita em perenidade ...
Porque o Mundo é imenso e os cantos e recantos, as cores e os cheiros, sempre estão lá à nossa espera ... e o tempo é curto.

O sol ou a chuva, os nevoeiros de golas altas ou a nudez dos corpos escaldantes, continuam nos mesmos lugares, à espera do nosso "flash" visual ;  porque as melhores fotografias são as que ficam nos olhos e na alma, e não as que se guardam nas gavetas, nos vídeos, nos DVDs, nas mesas das nossas salas, a quilómetros e quilómetros de distância.
Aquelas, espantosamente nunca perdem as cores, nunca esbatem os tons ;  os sorrisos nunca ficam amarelos, as neves nunca degelam nos picos, as flores nunca perdem o cheiro, nem sequer o mar silencia nas areias ;
as vacas nunca calam os chocalhos, nos picos dos Picos da Europa, nas pradarias junto aos lagos ... o gelado comido à ganância nas ruas de Estocolmo, também não derrete antes do tempo ...
O coração deixa fugir, vai deixando desgraçadamente fugir algumas / muitas coisas de então, mas se fizermos muita, muita força, conseguimos voltar a perscrutar, com nitidez bem aceitável e resolução razoável, muito do tanto que os dias tentam levar-nos, para o mundo das sombras.

E a viagem do viajante faz-se de novo com a sua cabeça, com a continuação do que sonhou e foi só interrompido, com a memória dos registos que nunca serão apagados, com a liberdade que lhe é facultada pelas avenidas, pelas praças, pelo silêncio das catedrais, pelo repicar dos sinos esse mundo afora, pelos rostos de gente que se cruzou e não mais o fará, na sua vida ...  Enfim, pela sua história escrita e largada avulsa, pedacinho a pedacinho, aqui e ali.

Mas para se ser viajante é preciso ganhar por inteiro a palavra liberdade, e perder por inteiro a palavra saudade.
Ganhar a liberdade, que a aventura, a ânsia da descoberta, a vontade do saber nos transmitem ...
Perder a saudade que acontece bater-nos, só pelo facto de que lá é lá, e cá é cá ... e sempre o nosso "chão", num chamamento silencioso, nos  acelera às vezes, as batidas do coração !

Já fiz algumas viagens, ou melhor ... já fui a alguns lugares,  desses longes que nos acenam.
Todos me ficaram !...
Todos têm uma marca, um rótulo, uma tatuagem.  Se pensar em todos eles, há seguramente uma palavra, uma frase, uma ideia, uma imagem que os traduz ...
Assim sem grandes esforços, sem exageros, poderei dizer que a todos, está associada alguma coisa que se salvou, que ficou, que impregnou e que passou tão para debaixo da pele, tão para dentro de mim, que tenho a certeza, sempre mas sempre ( a menos que a Vida me apanhe em alguma curva mais desonesta do caminho ), completará a minha memória, o recheio da minha sacola de viandante ...

Luanda é a argila vermelha, a "boca da fornalha" ... as acácias em flor.  Mas também traineiras, com pencas de gaivotas rodopiantes, sobre o peixe fresco, na baía.

Caldelas, mais atrás, em menina,  pais em lazer de termas, "recupera-me" do "baú", os brinquedos de madeira, com que se faziam as tardes no Hotel.
Recupera-me as vacas barrosãs em manada, pela estrada, em busca da fonte para se dessedentarem.  Recupera-me as latadas de sombra abençoada, para passeios intermináveis, o cântico gorgolejante dos regatos, e os "barquinhos", feitos não de papel ( como são os barquinhos dos meninos nos riachos ), mas tão simplesmente das folhas das hortênsias que ladeavam os caminhos, e que me emocionavam as "regatas" ...

Caraíbas sempre são sol imenso, mar turqueza, areia branca e fina, e uma vida espreguiçada a render, a render ...
São cheiros adocicados e mornos, na exuberãncia das cores de tudo o que existe.
Bob Marley  e o "reggae" ... corpos bamboleantes e suados em ritmo ininterrupto, os pores-de-sol de fogo, e o cheiro da "erva" pelo espaço, noite adiante.
E uma vida que parece  correr mansa, porque corre despreocupada. Hoje é o hoje ... amanhã se verá !...  A despreocupação de quem pouco tem, e por isso, pouco ... se perder.
"Devagar, devagarinho ... parado ..." o registo de quem não se afoba, senão para sobreviver.

A Europa civilizada faz-me aportar a Estocolmo, leva-me aos cumes dos "igloos", nas terras dos samis, na gelada Lapónia, junto de glaciares que não se mexem, e leva-me aos gelados divinais, a substituirem almoços de arenque ou salmão fumado, que não "desciam" de nenhuma forma ...
Também me transporta à imponência e grandiosidade da ancestral Praga, e na Ponte Carlos, o pedido de sorte a Santo Nepomuceno, padroeiro da cidade ( tocando-lhe a estátua ) ... ao relógio astronómico frente à casa dos cristais da Bavária, e à feira de "bric-a-brac" na pracinha.

A Europa civilizada leva-me ao mundo de outro mundo dos fiordes, entre falésias abruptas ... leva-me aos abetos, aos pinheiros das florestas de coníferas, montanha acima.
Mas também às pradarias salpicadas de boninas, de mirtilos, de framboesas, de musgos e líquenes ... de toda uma multicor flora selvagem, e à presença sentida por perto, dos ursos polares, dos alces, dos veados, do lobo e da raposa do Ártico, na Noruega inesquecível !...

A Europa civilizada encaminha-me de novo à irrepreensível e sonhadora Viena, numa Áustria de Danúbio a correr lânguido, de concertos ao ar livre, com Strauss a dançar dentro de nós ...
Aos "edelweisses" de Salzburg, desenhada contra os picos do Tirol, da música de todos os corações, com sonatas de Mozart a enfunarem-nos a alma ...

E Peste, vista do alto de Buda, na Budapeste que não me sai da memória !
A Budapeste das águas em que se espelha, das dez pontes que enleiam, por sobre o Danúbio, as duas margens, fazendo uma só cidade, um só povo, uma só maravilha !...

Copenhaga tem o rosto do almoço saboreado rés-vés ao canal, e o cosmopolitismo de uma cidade com uma profusão e uma miscigenação de gentes, de cores, de línguas ... uma promiscuidade de civilizações !...

O Brasil sabe a Rio, sabe a Baía de Todos os Santos, com Jorge Amado por ali ;  sabe ao bondinho do Cristo Redentor, amarinhando quase até ao céu ;  sabe à Rocinha, paredes meias com o luxo e com a assimetria da injustiça social.
Tal como Natal sabe a dunas de areias incertas, a águas esmeralda, a "buggies" correndo soltos, de cabelo ao vento ...

E Tailândia sabe a misticismo, a recolhimento de templos, com paz que não se explica mas se sente.
O despojamento, o voto de pobreza, a meditação dos monges nos locais sagrados, inóspitos, empoleirados, de que só se divisam as cúpulas douradas no meio da vegetação, fazem-nos reequacionar a Vida, os valores e os princípios ocidentais.
Nada a ver !...
Tailândia, "terra de homens livres", sempre me traz à memória o silêncio daquela madrugada sobre o rio Kok, a acender-se no fogo dos laranjas no nascer do sol, nas águas repentinamente iluminadas, com os trinados dos primeiros pássaros acabados de despertar, e a brisa fresca duma manhã que me colheu sonhadora e meio adormecida, na varanda do meu quarto, bem no alto do hotel ...

E Óbidos ... leva-me uma e mil vezes, ao chouriço, ao queijo e ao pão caseiro, frente a um tinto de excelência, com remate a ginginha, uma e outra vez ...  Como o Gerês me traz a Caniçada, a bordar as terras do Agrinho ... como a Estrela me traz a "Casa do Burro" e aquela lareira cutucada pela noite fora ... e Monsanto me traz uma noite de gelo, em cama aquecida por corpos ... e Marvão, claro, Marvão sempre será o castelo, as águias, o gato preto e a noite de breu ....  Sempre será a varanda sobre o telhado, o corpo semi-despido, numa madrugada ardente, de um Alentejo igualmente abrasador ...

E Geia, entre serras, sempre será lareira até horas perdidas, sempre será Piódão, e uma paz de descoberta e ausência de horas e pressas ... sempre será os jantares no João Brandão ...

Bali ... apenas a Ilha dos Deuses, a Ilha das Flores ... a Ilha dos Amores ...
Não se passa por Bali sem lá viver uma grande paixão ... diz a lenda ...  Será??!!

Bom, recuso continuar ...

Os mecanismos humanos são estranhos, herméticos, inexplicáveis !!!...

Por que será que cada local é um "rosto" e não outro, cada vivência uma determinada "marca" e não outra, cada sítio um cheiro, uma cor, o timbre de uma voz??!!...

São essas marcas indeléveis, que não me desgrudam dos olhos, do coração e da alma, que me fazem eterna viajante do Mundo, mesmo que não saia do meu canto de sempre, mesmo que só tenha os telhados e o casario sem expressão, frente à minha janela ... e apenas a minha gaivota voe tão longe e tão livre, como os sonhos e as memórias que me povoam !!!...

Anamar

domingo, 18 de março de 2012

" NUNCA SERÁ TARDE " !


" Separei-me ... não sei se em definitivo "

Esta frase foi-me largada ontem no FB, depois de uma "amiga" ter posto no seu mural o seguinte texto : "Tudo tem um tempo certo. O tempo de virar uma página, depende da determinação em se querer muito, recomeçar"...
Comentei-o, escrevendo :  "Parece tão óbvio ... difícil é chegar lá, às vezes "!
Seguiu-se um silêncio, tendo surgido depois, a frase supra-citada.  Essa frase foi para mim, longe que estava da questão em si, uma espécie de pedrada lançada na água.

Coloquei amiga entre aspas ... repararam ...
É que a pessoa em causa, não faz exactamente parte do elenco das mulheres que considero amigas, amigas. Esse é constituído por quatro, supimpas, o que me torna verdadeiramente sortuda.
Também, não posso dizer que a mulher em causa é simplesmente conhecida, porque privei com ela, com alguma regularidade, em alguns dos melhores anos da minha vida e também em alguns dos mais aterradores para mim.

Bom, nessa altura, a Isabel, chamemos-lhe assim, vivia um casamento aparentemente sólido, com dois filhos adolescentes, estudantes, detinha uma vida profissional segura e de muito bom nível, e era já então ( e já passaram talvez cinco ou seis anos ), uma mulher de sucesso, nos seus cinquenta ou cinquenta e muito poucos anos.

De tudo o que então pude auscultar nessa época, e da minha própria análise, Isabel sempre fora uma mulher emancipada, segura, de figura agradável, moderna, despretensiosa, afável nos relacionamentos, pragmática também !
O marido, um indivíduo mais novo que ela ( alguns anos, julgo ), bonacheirão, bem disposto, um permanente brincalhão, um "bon vivant", um relações públicas nato, no negócio de restauração que detinham - com imenso bom gosto, requinte, intimista, de qualidade ... reconhecido.
Efectivamente, pareciam reunidas as condições para que aquele casal fosse tudo, menos problemático.

Apesar de nos termos afastado, mercê de alterações na minha vida pessoal, sempre ambos pertenceram à minha lista de "amigos", ao alcance de um e-mail, e obviamente, agora que reactivei o FB ... ao alcance do mesmo.
Ontem Isabel "entrou", como vos disse, e largou-me aquela frase, que para lá de tudo o que possa significar, me pareceu um grito de "help"...

As mulheres "entendem-se" às vezes por meias palavras, porque os sentires são comuns, a forma de estar e ver a vida, também idêntica, porque o coração e a alma de todas, são obviamente femininos.
Umas com mais "força" que outras, algumas com maior pragmatismo no encarar das vissicitudes da vida que outras, algumas com menos resistência anímica que outras.
As diferenças advêm substancialmente e quase só, das diversas personalidades, porque na essência, serão seguramente mais as semelhanças, ditadas pelo género, estou convicta.

Da situação em si, de lamentar ou não ( penso que será sempre de lamentar), só Isabel poderá ter a dimensão do verdadeiro estrago.
Infelizmente é mais comum que o desejável, e todos o sabemos, e também não foi por isso que aqui vim escrever alguma coisa, mas sim pela reflexão que a mesma me provocou uma vez mais.

Nos tempos actuais, a incidência de divórcios de pessoas na faixa etária de Isabel, é manifestamente elevada ;  tem crescido exponencialmente nas últimas décadas, quase sempre ou em grande percentagem é desencadeada pela mulher, e remete-nos para as razões que a determinam.

Eu própria, a minha história, será em quase tudo, encaixável neste "figurino".

Trata-se normalmente de relações longas, com a existência de filhos, com vidas que embora aparentemente estáveis, sem sobressaltos e invejáveis muitas vezes do ponto de vista material, deixaram de fazer sentido, emocional e afectivamente, enquanto vida a dois.
Foram ligações que se arrastaram, com a anulação de ambos os cônjuges ( mas seguramente muito mais da mulher, devido ao seu perfil psicológico ), que se foram mantendo, quase sempre na procura da manutenção de uma estabilidade possível dos filhos do casal, das suas seguranças pessoal, material, afectiva e espiritual, se possível.
Este desiderato muitas vezes não é alcançado, pelo desgaste, pelo desânimo, pelo fosso que se cava entre as pessoas, pela indiferença doída que se instala, pelo vazio, até pela animosidade progressiva e notoriamente crescente, que se desencadeia.

Mas ainda assim, a duras penas, sobretudo a mãe, abdica da sua própria vida de mulher inteira, e em sofrimento silencioso, vai carregando uma espécie de "cruz", que a maternidade ( uma lei biológica inevitável ditada pela Vida ), lhe impõe.
Os homens, até pelas inerentes exigências sociais e profissionais, têm mais possibilidade de "defesa".
Tradicionalmente, nas pessoas da minha geração, não foram seguramente eles que asseguraram o dia a dia multifacetado e complexo, das crianças e dos adolescentes.
Mantêm portanto mais facilmente, um "estatuto", uma vida "fora de portas", preenchedores de todas as vertentes que a sociedade lhes determina e permite, profissional, social e até emocional, compreendidos, tolerados e aceites pelos desígnios machistas que ainda nos norteiam.

Por essa razão, o homem vive mais acomodado aos cinzentismos da relação, deixa arrastar um "stato quo" desinteressante e desmotivador, mas ainda assim, cómodo ( porque sem grandes atribulações ) ;  adapta-se a uma ausência de colorido afectivo ( até porque facilmente o compensa, frequentemente de uma forma extra-conjugal ) ;  aceita uma falta de exigência de qualidade de vida, enquanto parte interessada no relacionamento.

E os tempos vão passando, e as coisas vão-se arrastando, e as pessoas vão "morrendo" aos poucos ... até ao dia ...

Aquele dia em que, com filhos crescidos, já fora de casa, adultos, com as suas próprias vidas estabelecidas, independentes e autónomas ... aquele dia em que o "cordão umbilical" que vinha afrouxando, afrouxando, se corta finalmente ...

E a mulher então acorda !!!...

E acorda normalmente ( por vezes do nada e por razão nenhuma em especial, que não a de sentir dentro de si um  imenso "sismo", que a faz por em causa, equacionar e rever toda a sua existência ), e pergunta-se se vai continuar a pseudo-viver o resto dos seus dias ( e já passou entretanto cerca de dois terços da sua vida ) naquelas cinzas de fogueira há muito extinta, se vai continuar a anular-se naquele marasmo injusto e desumano, se vai arrastar-se num "faz de conta" sem volta ... se está disposta, em nome do nada que se mantém, a hipotecar para sempre os desejos, os sonhos, as vontades, a liberdade ansiada, a Vida que ainda detém, e sente pulsar dentro de si ...
Enfim, pergunta-se se tudo aquilo representa ainda alguma coisa, ou se já não faz nenhum sentido ...

E é então nesse dia, que com a coragem, a força, a determinação, a capacidade de sofrimento, o acreditar ... que coerente e honestamente, põe um basta no estado de coisas que a mantiveram em hibernação há longos e longos anos, a adormeceram, a robotizaram e quase a insensibilizaram ... e coloca o ponto final que estava faltando nessa história, com demasiadas reticências em fim de frase !...

E aí temos nós, mulheres de cinquenta ou mais de cinquenta anos, dispostas a ainda terem futuro, que enjeitam continuar com os olhos lá atrás, que não abdicam das suas emoções, dos seus sonhos, das suas esperanças, dos seus anseios ...
Mulheres dispostas a "virar a banca", que não se permitem mais serem trucidadas pelo "bulldozer" que lhes foi a Vida, que recusam serem espectadoras passivas da mesma ... que não se envergonham de repegar o futuro ( o que lhes restar ), outra vez pelos cornos ...
Que não se coibem de ostentar, se calhar com uma pontinha de orgulho, de novo, uma faceta "naïve", romântica, adolescente ...

... pela única razão de que estão dispostas a recomeçar ... ou tão simplesmente, a COMEÇAR uma vez mais !!!...

Anamar

quinta-feira, 15 de março de 2012

" E SEMPRE ASSIM SERÁ !... "



Há coisas que são e não são.
Coisas que foram e deixaram de o ser.
Coisas que existiam porque as sentíamos, e na volta do tempo voltaram também.  Não se sabe para onde.

Ontem foi o ontem, amanhã irá ser o amanhã. Por agora temos o hoje.  E no hoje, às vezes não se percebe, mas pressente-se ...

Estranho, o puzzle labiríntico de vielas no meio de vielas, de praças e de becos, tudo a começar não se sabe bem quando, e tudo previsivelmente a acabar também, não se sabe bem onde !

De repente a língua deixa de fazer sentido, porque passámos a ser estranhos dentro de nós mesmos.  E há uma imperfeição, uma incompreensão que é isso mesmo ... algo que deixa de entender-se, nos perturba, mas sabemos que já não é.
E o único denominador comum a tudo, é apenas o tempo, que faz com que as coisas voltem, nas voltas que ele dá.
Os olhares cruzam-se, mas não são os mesmos olhares. Os desejos afloram, mas já não são mais aqueles.
E os caminhos são às vezes caminhos só de ida, e as estradas desembocam em rotundas, e as rotundas são caminhos de volta atrás.

Quantas vezes nos tornamos apenas pessoas de "vésperas" !
Vésperas do que poderia ser, vésperas do que inventáramos, vésperas do que tínhamos a certeza, aconteceria.
No entanto, apenas véspera ....
e da véspera ao dia seguinte, medeiam horas demais ...

Somos muito actores de ante-estreia, e como o nome indica, a ante-estreia pode não chegar sequer à estreia !
E o Mundo fica ainda maior, ainda que já seja enorme e ainda que nós sejamos grãos de areia insignificantes.
E as multidões que nos cruzam, são muito mais anónimas, porque sendo multidões, passam por nós em praças a perder de vista !...

E tudo fica diferente ...

Até a cor do sol nos surpreende com outros tons.  Os tons dos nossos olhos ...
Até a cor do mar nos espanta, e o seu ruído também, porque já não são exactamente os tons do nosso coração !...

Uma coisa permanece, tenho a certeza ...  Os pássaros, que não nos defraudam nunca !...
Agora, hoje, ontem ...  Sempre aquela garça voeja de asas estendidas ...
Aquela, a "minha" gaivota, continua aqui por cima da rebentação mansa, a planar na brisa da tarde.
E também aqui se trata da "minha" gaivota ... porque se eu sou dona de alguma coisa, é das gaivotas soltas e livres, como eu julgo ser !...

E há dias em que acreditamos com a força toda, que não vamos deixar mudar o que é mutável, só porque foi nosso.
Mas o vento e a tempestade que leva as gaivotas para longe da costa, varre das soleiras, as folhas de Inverno ... E nas molduras das mesas, as fotografias a sépia, vão esbatendo as imagens.
Nas molduras das mesas e dentro de nós !...
O inevitável ... Há sempre o inevitável !...

Ainda que as flores amarelas sem nome, continuem a alindar os caminhos e nasçam nas pedras, com o seu cheiro a fruta madura ...  Salpiquem o mato, as carrasquinhas, os tojos ... mesmo a nudez absoluta das falésias ...
Ainda que o mar continue imenso e perdido no horizonte ...  ainda que espume de raiva, de dor ou de embalo - nunca sei - nos rochedos abruptos semeados aos nossos pés ...
Ainda que prendamos com grilhetas, ao nosso coração, tudo o que nos preenche, nos inunda e nos transborda, para que não corra o risco de se perder nos dias ( na ilusão de que as âncoras serão seguras, fortes e perenes ) ...  as mãos abrem, os olhos cansam ... o coração claudica e cede ... e deixa ir torrente abaixo, tudo o que albergava, feito barquinho de papel, que nunca alcançamos ...

E apenas o nosso olhar o segue, na brincadeira de o ver encalhar, soltar, avançar, em vertigem de rápidos de viagem, do caminho que se faz, embora nunca possamos segui-lo e menos ainda prendê-lo ...

... porque os barquinhos de papel dos meninos, como o sonho e o desejo dos Homens, navegam sem prisões e sem amarras, à revelia de estrelas, faróis ou bússolas ... porque são barquinhos de papel na correnteza desbragada, e sonhos, e desejos de corações e almas livres e soltas, como as gaivotas !...

E sempre assim será !!!...

Anamar

sábado, 10 de março de 2012

" QUANDO O TEMPO DEIXA DE O SER ..."



Se hoje os dias acabassem, e o tempo deixasse de ser tempo, como seria olhar tudo aqui à volta, que ia ficar, quando eu já estivesse na estação das horas??!!

Iria sentar-me calmamente no banco da gare, e começaria por rever as primeiras páginas do livro ...
Desfolhá-lo, ia ser lento, embora eu não tivesse toda a lentidão disponível para o fazer!
Ia perder-me primeiro, no tempo das tranças, dos joelhos esfolados, das letras a soletrarem-se e magicamente a criarem palavras.
De certeza ia escutar risos e gargalhadas ... exactamente os risos e as gargalhadas que as Primaveras sempre permitem.  E ia extasiar-me com o olhar lânguido e doce, de tantos quantos já não vejo há séculos.
E ia interrogá-los ...  Ia perguntar-lhes como é exactamente, quando o tempo deixa de ser tempo ??!!
Apenas, eles não me ouviriam, o que não deixava de ser estranho !!!
Entravam naquele palco, desfilavam naquela "passerelle" onírica, e seguiam, sempre lenta e imperturbavelmente, tão lentamente como os gansos nos lagos, ou como as tamareiras demoram a ter frutos ...

O bibe ia ficar no cabide, e o ontem seria um pouco adiante ...

As outras páginas já não eram tão coloridas ...  Parecia que as tintas estavam a rarear, ou que o pintor já não atinava tão bem com a tela.

Mas surgiam então outras personagens, e íamos ter mais bibes, mais tranças, mais canções de ninar, mais sonhos, mais esperanças, mais amor, mas também algum desencanto, algum cansaço ...

Acontecia por vezes, voltarmos as costas uns aos outros, e depois cada um derivava para seu caminho.
Às vezes os caminhos eram paralelos, outras, eram linhas oblíquas a abrir ângulo, e portanto essas, nem no infinito se encontrariam.
Mas também havia trilhos que se cruzavam, mesmo que só se intersectassem, para se descruzarem a seguir ...

Claro que isso era numas folhas à frente ...

Ainda gritávamos, chamávamos, barafustávamos ... mas que adiantava ??!!.... O tempo era de Verão, e no Verão, o silêncio da planície é total ... nem as papoilas acordam !!!

Sol ... havia !  Havia sim !
Por entre as nuvens, no céu limpo ... ou mesmo em firmamentos de relâmpagos e trovões.  Sempre dávamos um jeito de o espreitar, e sempre tínhamos a capacidade de acreditar, que na página seguinte, tudo ia mudar a história.

O dia ainda ia a meio ...
O movimento era escasso.  Não havia passageiros em excesso naquele dia, naquela gare ... Nem todos traziam sob o braço, um livro, para queimar a espera, ou também nem todos estavam ainda interessados em saber, como era, quando o tempo deixa de ser tempo ...

Por isso, optaria de certeza, por passar página a página bem devagarzinho, a absorver o cheiro do papel envelhecido, a admirar a beleza das ilustrações, a devanear sobre o conteúdo de cada frase escrita ...

Aquela estação e aquele banco, estavam no meio dos verdes que já não eram esperança ;  mas também tinham na linha do horizonte, a penedia que despencava no mar.
E o mar sempre é alguma coisa que queremos "colar" a nós, para os dias mais desesperançosos e menos azuis ...  Só que eu já estava na estação das horas, e não podia dar-me ao luxo de o arrecadar, e levar dali !
Por isso optei por deixar vaguear os olhos até lá, ensonadamente, com a calma que ainda me era permitida ...

Espantosamente o livro cresceu, ganhou relevo ... As gravuras desenharam-se em 3D dali em diante, e foi a vez de caçar borboletas que me roçagavam o nariz, de apanhar cogumelos no bosque dos cedros, de dar migalhas à gaivota, que mercenariamente se deixou comprar pelas minhas promessas ...
Foi a vez de tentar juntar ramalhetes de flores silvestres, brancas, amarelas, róseas ... todas as que baloiçavam junto de mim, na aragem da tarde ...

Sim, porque a noite já vinha aí, os sinos dos campanários já se escutavam ao longe, e urgia juntar os minutos que ainda sobravam.

Virava as últimas folhas com alguma pressa, antes que a palavra "fim" me colhesse de surpresa, e me terminasse a espera antes da hora ...

Nesses restantes parágrafos, vos pergunto ...  esperava-me o fim da história, ou apenas o princípio de uma nova história ??!!...

Anamar

sexta-feira, 9 de março de 2012

" PENSAMENTOS À SOLTA - 7 Março - quarta-feira "


As cameleiras começavam a carregar as primeiras flores da época.
O tempo estava a ficar quente, o céu azulava sem quaisquer nuvens a perturbá-lo.  Os pássaros, em acasalamento prematuro, saltitavam no mato rasteiro, nos pinheiros a esmo, nas mimosas que se engrinaldavam.
Mais quinze dias  e o seu aroma espalhar-se-ia por ali. O mar ao fundo trazia  o seu marulhar, naquele por-de-sol de princípios de Março.

Havia uma harmonia tal, que se diria estarmos noutro mundo.
Num daqueles mundos com que sonharíamos um dia topar, pela simples razão de que só existem nos nossos sonhos ...

A perfeição ... haveria "perfeição", ou haveria simplesmente raros momentos fugazes, perfeitos ?...
Fugazes, demasiado fugazes seguramente ...

Quando o espírito humano repousa, porquê não o deixar repousar ?!
Quando a cabeça adormece numa pedra do caminho, por que não deixá-la ficar para sempre ?!
Quando uma sombra nos abençoa o corpo e a alma, por que não ficar nela dia após dia, noite após noite, pelo perder dos tempos ?!...
Quando à míngua encontramos uma fonte límpida, por que não podemos banhar-nos nas suas águas ?!

A lua imensa brilha no céu, incendeia dia na noite ;  a estrela de alva levanta-se, e deixa lugar a Vénus, quando o sol adormece de cansado.
A vida humana tem o significado dos momentos fugazes ... tem a duração das luas e dos sóis, é um tudo e é um nada ...
As ilusões são tão efémeras como os segundos a esvaírem-se nos ponteiros do tempo ; são tão fantasiosas, como o palhaço que esconde lágrimas na maquilhagem ...
São mesmo isso ... ilusões !...

Há um tempo de acreditar e um tempo de não acreditar, e o tempo maior é o tempo da velhice ...
Há lágrimas salgadas, mas também outras de sangue ...  Essas, quando escorrem, deixam mágoas que não saem.
E há cansaços ... cansaços que de tão cansados, nos tolhem os membros, mas muito mais a alma.
E essa não descansa com tónicos, com cânticos de pássaros, com cheiros de flores, com estrelas nos firmamentos ...
E depois há dor ... tanta dor, que corre o risco de se grudar no peito e se transformar em ferida escancarada e putrefacta.
Para essa também não há remédio ... nunca há remédio !...

E o que fomos, o que somos ... o que não seremos mais ...
Essa, a "assombração" das nossas existências ... Essa, a injustiça dos nossos seres !

E há viver, mas há muito mais morrer ... porque viver é uma das tais ilusões que nos perseguem ... e morrer é uma certeza dos dias !...
Porque de morte, se morre a cada momento, e a vida é uma escorrência de sentido único !

Alegria ??...  Só no olhar que se estende pelas mimosas, que de douradas, nos adoçam o coração ...
Paz ?? ...  Só a do mar, que é segura, e previsível, na melopeia do bater nas rochas, longa ... fielmente ... igual ... sem sobressaltos se a maré for mansa, e for dia de céu sem nuvens !...
Liberdade e esperança ...  Apenas as gaivotas as transportam nas asas, perdidas pelas aragens ...
Nós é que tontamente acreditamos que as detemos na concha das mãos ;  mas os golpes traiçoeiros de vento, sempre mostram que também não é bem assim !...

E vamos estando ... Acordando e adormecendo ... mesmo quebrado o encantamento !

E sempre as cameleiras vão começar a enfeitar-se pelos Marços da Vida, como senhoras vaidosas e ciosas de beleza, ao espelho ...
E sempre os pássaros, inconscientemente, pela lei biológica irão acasalar no mato rasteiro, entre os pinheiros mansos a esmo, e entre as mimosas de ramos baixos ...

E vamos estando ... e vamos ficando ...

Até quando ??!!...

Anamar

Nota :  O título aposto a este meu "desconchavado" post, foi-me sugerido por um amigo muito querido.
            Obrigada !

segunda-feira, 5 de março de 2012

" AS CORES DA PRIMAVERA "



A Primavera está a chegar ...
Absolutamente espantoso, como ainda ontem era  Natal e estamos a quinze dias de iniciarmos aquele período do ano, em que parece que num passe de mágica, tudo à nossa volta e nós mesmos, ganhamos cor !
Repentinamente e pela calada, o ar torna-se leve, o sol redefine o que vivia adormecido pela prostração e sono invernais, o "quadro" ganha vida, porque ganha uma alma nova outra vez !...

Aquilo que nos pesava parece começar a aligeirar, como as neves começam a dar lugar ao degelo ... como a Natureza começa a recobrir-se de um manto promissor, de verdes e de todas as tonalidades permitidas no espectro ...
O coração abre portadas, numa ânsia de faxina sazonal ... enfim, saímos da hibernação que nos tolheu além da conta !...

A vida do ser humano é feita de estações também.
Estações que se desenham diariamente à nossa frente, já que, "viver é a arte de começar de novo" !
E começar de novo, é saber gerir com inteligência as realidades, as dificuldades, as dúvidas, as desconfianças, os afectos e os desafectos, gestão essa que visa, ou visará encaminhar-nos para um patamar superior, em qualidade e perfeição .
Significa estabelecer pontes todos os dias, reconstruir paliçadas, contornar obstáculos ( como a água do rio no seu leito ), saber ou aprender a conviver com a incompletude inevitável que somos, com as frustrações com que topamos, com os obstáculos com que nos experimentam continuadamente.

As relações humanas, como diz uma metáfora que li e achei bem realista ( ainda que metáfora ), são como um passarinho que tenhamos entre as mãos : "se apertarmos demais ele morre, se abrirmos demais, ele foge"!
Ou como "soi dizer-se", em cada momento é um acto de sabedoria, "viver e deixar viver"!

Não é fácil convivermos muitas vezes, com situações marcantes que ensombraram as nossas vidas.
Não é fácil sermos seres de tanta "luz", que consigamos em "três penadas",  ultrapassar, perdoar, entender ... sobretudo entender o porquê ... e mais, termos capacidade para nos "reformatarmos", perante esse novo "figurino", por forma a que, como se diz, os danos colaterais sejam minimizados.
É importante percebermos que cada ser é uma individualidade diferente, com uma multiplicidade de sentimentos, de capacidades, de entendimentos sobre as realidades, e que como tal, sempre será difícil que alguém além de mim, sinta, analise e entenda alguma coisa, exactamente como eu ... pela simples razão de que ele é ele, e eu sou eu !...

Grande parte das frustrações que o ser humano carrega, advêm muito mais da inerência à sua própria personalidade, do que da imperfeição ou intencionalidade de outrem.
De facto, a maior parte das vezes em que saímos magoados de uma atitude, de um gesto, de uma "ofensa" que alguém nos fez, essa sensação de perda resulta muito mais da decepção que aquele ser nos infligiu ( transformando-se aos nossos olhos, como um "santo de pés de barro" ), e não tanto pela acção em si.
Foi antes a nossa fasquia de consideração sobre o outro, que colocámos alto demais, e não, quantas vezes, a gravidade da questão !...

O ser humano tem dificuldade em lidar e em aceitar que se enganou, nem que seja no "retrato" que tirou àquele indivíduo, ou no conceito em que o colocou, até porque de imediato está posta em causa a sua própria falta de perspicácia, justeza e correcção de análise, sobre essa personalidade ...
Por isso, tende a onerar, por vezes desproporcionadamente o seu semelhante.
Para convivermos bem com os outros, teremos portanto, primeiramente que encetar um trabalho de ponderação, aceitação crítica e empenho em melhoria, de nós mesmos, uma tentativa de reforço da nossa própria invulnerabilidade, e acréscimo das nossas auto-confiança e auto-estima, para que toda a magnanimidade e tolerância que consigamos reunir, nos levem a sentir o Mundo à nossa volta com maior leveza, a não o encararmos com a rudeza de algozes, a ver o que nos rodeia com maior colorido ... com as cores da renovação ... as cores da Primavera !!!...

Seguramente, não é de todo fácil !!!...
     

Anamar

sexta-feira, 2 de março de 2012

"DESENCONTROS"

Constato que não escrevo há quase uma semana.
Constato que escrevi bastante em Fevereiro ... a minha bipolaridade também na escrita !...

Hoje também não há assunto que me remeta ao papel, nesta sexta-feira enfarruscada como eu ; contudo, tenho um estrangulamento estranho dentro de mim, uma sensação que me faz aflorar inexplicavelmente, água aos olhos ... e começo a sentir-me farta uma vez mais, de mim própria, nos permanentes desencontros entre mim e mim ...

Em Fevereiro versei muitos temas objectivos, realistas, eventualmente com pertinência ou interesse.
Começo Março às avessas.
Começo Março novamente a "virar-me" para a concha, estranhamente nesta insatisfação defeituosa, na defeituosa forma que eu sou.
Efectivamente, mais do que desencontros e desacertos entre mim e a vida, sinto na pele inexplicáveis desencontros, entre a versão normal e a versão anormal do que experimento a cada momento.

Continuo a ser, um ser de um desequilíbrio total entre "cúmulos".
Aliás, os cúmulos desenharam, determinaram e "lixam" a minha vida em permanência.

Ao longo da mesma, sempre oscilei entre os tais extremos insalubres !...

Ser o cúmulo do acerto face ao cúmulo das posturas erráticas que assumo. Estar no cúmulo da felicidade e bem-estar, perante o maior "buraco" emocional em que mergulho ... Ser o irrazoável desvio das gentes normais, face ao desejo mórbido de conseguir viver em parâmetros comuns ...
Uma incoerência total, uma insatisfação constante, um coração "à nora", perdido por aí ...
Claro que tudo isto "embrulhado" em encomenda de infelicidade, com laço de fita de cansaço e sofrimento.

Bolas, pergunto-me ... Porquê tudo isto ?  Por que não sou igual à outra gente, que mesmo ao meu lado na mesa de café, conversa interessada e realizadamente, sobre receitas culinárias, acontecimentos caseiros e dos círculos próximos, a vida que se faz por cada dia, enfim, coisas comuns, de gente comum??!!

Por que sou um ser de incoerências ... aparentemente forte ... constantemente fraco ??!!...
Sou um "flop" como pessoa.
Qualquer coisa me põe nos píncaros, qualquer coisa me deixa no maior desconforto ...
Constituo, tenho que constituir forçosamente um "bluff", para muitos dos que me conhecem mais de perto !

Este discurso também é recorrente, já sabemos ...  Este discurso também não leva a nada, não me leva sequer a alterações substanciais, além da tomada de consciência, pela enésima vez, da verdadeira "patologia" da situação ...
Tudo bem, ou melhor, tudo mal, como costumo dizer.
Pelo menos não estou ainda inteiramente como a avestruz ... e no meio de tantos desencontros, tenho esperança que alguma vez consiga fazer o "encontro" de mim com uma pessoa real, menos utópica, menos sonhadora, menos exigente com a Vida ...

Em suma ... mais "pessoa", se calhar !!!...

Anamar