domingo, 6 de maio de 2012

" SOMBRAS "


O cheiro das madressilvas inebriava o carro, ainda que a braçada acabada de colher estivesse no porta-bagagens.
Havia um sol meio envergonhado num céu com nuvens espalhadas, se bem que a sua luminosidade chegasse para "acender" o mar, entre o verde e o cinzento, a rebentar perto das falésias.

Deixei-me invadir pela paz de uma paisagem verde de pinheiro manso, mato rasteiro com urzes em floração, macela nunca plantada, tojo a esmo, tudo em doce preguiça, até ao alcantilado da serra, em recorte no horizonte.
Um equilíbrio perfeito, momentos de harmonia rara e plenitude, de um estado de graça que não sabia onde começava, nem de onde vinha, mas que me tomava, me fazia sentir a correr pelos campos, atrás dos tordos e tentilhões, como em menina, de cabelos em desalinho e coração "na boca" ...
Nunca são muitos os lampejos assim, de uma felicidade sonhada, que me povoam os dias, sendo que também nunca são necessários muitos "condimentos", para que seja transportada, e me deixe ir com ela.

Mas essa tarde conjugara-os !

As gaivotas planavam ao sabor da aragem, displicentemente, de asas bem esticadas ... tal como eu, apenas "deixando-se ir " ...
De quando em vez, concediam-se o direito de um poiso de descanso  no alto de um poste, tentando equilibrar-se nos golpes de vento mais fortes, que sopravam.
Embora bem altas, miravam o chão com aquele ar altaneiro de quem desconfia e dá pouca confiança, levantando ao primeiro movimento estranho, ou à aproximação de alguém.

Fernando Pessoa disse : " Quem quer pouco, tem tudo .... Quem não quer nada, é livre .... Quem não tem e não deseja ... Homem ... é igual aos deuses" !
A compreensão de todas as "maneiras" profundas do ser humano ... sempre presente na sabedoria do Mestre !!!

Pensava exactamente isto num destes dias, ao contemplar o meu "farrusco do fiambre", nos terraços lá de baixo.
Ele e qualquer gato, dormem o sono dos que não anseiam, não querem, não se angustiam, não sentem insatisfação ... Vivem apenas !
Os gatos são praticamente deuses em simbiose de alma com o Homem, com o ser com quem se dividem e que sempre reconhecem como "amigo" ... porque "dono", é estatuto que, estou certa, nenhum felino sabe o que é.
Nessa matéria, a sua inteligência e sensibilidade, estão a anos-luz das do entendimento humano, que sempre se julga ser dono de alguma/muita coisa, algumas/muitas almas, de alguns/muitos corações.
O Homem, teoricamente um ser "livre" ( porque inteligente ), nunca o é.
O "livre arbítrio" é um "bluff" que enfatiza, porque na essência sempre está condicionado por real "formatação" pessoal, material, familiar, social, ética, religiosa, espiritual mesmo.
Até aqueles que se julgam ideologicamente mais libertos, menos conservadores ou submetidos, mais provocadores, os mais alicerçados em convicções largamente "trabalhadas", os mais pragmáticos em princípios, filosofias de vida, trilhos de percurso ... até aqueles que visionam as realidades de uma forma mais objectiva e as conseguem despir de emoções, devem acreditar, que jamais alcançaram  ou alcançarão, esse "estado de graça" !...
A única liberdade que lhe é conferida é a do "SONHO".
Através dele, estende as pontes que lhe são permitidas entre si e os deuses ... e "aqueles" ninguém lhos desvenda, ninguém lhos alcança ... ninguém lhos "censura" ou comanda ... Ainda !... 

O Homem vive com grilhetas nos pés, é escravo da Vida, arrastando pesadas correntes à volta do coração.
Não possui "sensor" de obstáculos, o que lhe daria imenso jeito, quer na marcha-atrás, quer no progresso de caminho.  Por isso "existe", com peias constantes, perde-se com frequência no trajecto e esfola a alma até sangrar ... vezes demais !
E dorme com a intranquilidade da insegurança, da apreensão e do medo, dorme com as cicatrizes da destruição pelo inalcançado, do sonho pela metade, do desejo irrealizado, da insatisfação e da frustração que o consomem ...

Não tem de facto a "sabedoria" dos gatos ... nunca vai ter !...

Há muito tempo que não escrevo. Há tempo demasiado. Tempo suficiente para me matar por dentro, porque não escrever, é "auto-racionar-me" o oxigénio.
Hoje mesmo teci aqui uma série de banalidades, numa sequência de conclusões demasiado óbvias, superficiais, desinteressantes de irrelevância e insatisfação.
Vários factores me estão a "secar" por dentro, por forma a esterilizar-me o encadeado de ideias, a tolher-me a torrente de emoções que habitualmente me domina, funcionando como mordaça colocada na alma e na vontade, por sentir que "vale pouco a pena" ...

Este espaço, apesar de público ( porque nunca o restringi ), na verdade é semi-público, pelo simples facto de por vontade própria, terem acesso a ele, apenas aqueles que achei merecedores disso mesmo, merecedores de "tocarem" a minha intimidade, e a quem facultei o endereço.
Aqueles que por um acaso nele toparam ( e sempre pasmo por ver quantos o fazem, dos cantos mais recônditos do Mundo ) ... não passou disso mesmo ... mero acaso.

Este espaço, como o refiro em preâmbulo ou nota de apresentação, é privilegiadamente intimista, é um falar de mim para mim, muito mais que para outrém.
Não tem veleidades de ser espaço cultural, tribuna de opinião de nenhuma ordem, cátedra de veiculação de conhecimentos, divulgação de ideias ou filosofias de vida.
Não tem a prosápia de pretender "catequisar" ninguém, alardear superioridades balofas, ou ser "fazedor" de correntes de conduta, ou formas de ser e estar.

Sempre reconheci a minha pequenez, tenho perfeita noção que o magistério já o exerci em local próprio especializado, e não mais, não tenho formação académica em Letras, sou uma auto-didacta da escrita, culturalmente sou o que sou, nunca entendi dar lições de nada a ninguém ... nem pretendo !
Não considero ter certezas de Vida, nem me espaldo ou "redutibilizo" nas minhas convicções.
Não sou "autista" nas posições que assumo. Habituei-me a questionar-me contínua e persistentemente, como exercício saudável, no dia a dia.

Por isso sempre vocacionei este meu canto, como subtil meio de alívio de "pressão interior", local de reflexão, de "paragem", de "poiso".
Por isso nele me exponho, demasiado, talvez ... tão só, coerentemente como sei viver, sem máscaras, subterfúgios, retoques, excesso de defesas, quiçá com muita imprudência !...

Apenas, não gosto de me "sentir" ou saber abusivamente devassada ou violada, com intencionalidade objectiva, por quem não reconheço com direito de me "bater à porta", ou sequer saber o nome da "minha rua" ...
Porque na "minha casa" só recebo quem quero, quem gosto, quem convido ... em suma, quem tenho como amigo, quem julgo "bem vindo" ... e não mais !

É incómoda a sensação tendenciosa de ser espreitada por detrás do pano, ser escutada por detrás da porta, em surdina, ser olhada de viés, por quem não tem "rosto", por quem cirurgicamente "esquarteja", por curiosidade pessoal inescrupulosa e doentia, não tem nome, não tem coragem, não tem frontalidade, é cobarde ...
...embora eu não perca de vista que " Não só quem nos odeia ou nos inveja, nos limita e oprime.  Quem nos ama não menos nos limita" .... ( F. Pessoa )

E por isso reflecti seriamente, em correr as "persianas", fechar as vidraças ... encerrar para "balanço" ... mudar de "terra" !!!...

Não se perderia grande coisa, estou convicta.
Eu, perderia ... seguramente !

Mas também concluí que talvez não tenha o direito de o fazer, por todos quantos me acompanham e têm acompanhado desde 2008, nas escritas mais e menos felizes, tradutoras de momentos reais mais e menos positivos, da minha vida.
Não devo talvez fazê-lo, a todos quantos me expressam incentivo, reconhecimento, admiração, estímulo e apoio, no que acham na verdade valer-me a pena ...  a tradução por palavras, sem barreiras, quase sempre fiéis, da partilha das minhas fraquezas, alegrias, preocupações, dúvidas, ansiedades, desassossegos ... enfim, dos meus estados de alma.
Não quero por isso defraudar os meus companheiros e amigos de percurso, presentes desse lado, "visíveis" em muitas horas menos boas, e a quem sempre me sinto grata, mesmo quando não me fazem eco, ou não concordam comigo.

Assim, penso ir continuando por aqui, procurando de facto racionalizar as questões, não me deixando fragilizar, susceptibilizar ou sequer influenciar ... porque "SOMBRAS" só existem, se permitirmos que o sol as crie, e o meu SOL é forte demais para perder "brilho",  a criar sombras pelos caminhos !!!...


Anamar