sábado, 30 de junho de 2012

" INEVITÁVEL "...


" Tudo o que não tem remédio, remediado está ", diz a voz do povo.

É bem verdade !
Quando sentimos que nada mais passa por nós na resolução do que quer que seja, apenas há que encarar, interiorizar a impotência, tentarmos por-nos de novo em pé e seguir adiante.
Perante uma dificuldade, deveremos simplesmente parar e pensar se esgotámos ou não, tudo o que dependia do nosso empenhamento para a solucionar.
Se sim, a inevitabilidade está instalada, ou seja, dali para a frente, o rumo dos acontecimentos não será mais, ónus nosso.

Perante a contrariedade, há pelo menos uma sensação de alívio, de trabalho feito, de cumprimento tentado.
E tudo isso, sendo aparentemente pouco, cria em nós capacidades de resistência face aos reveses, e artilha-nos psicologicamente para os encarar e os viver, sobrevivendo-lhes ...

O "viver" treina-se diariamente, resulta de quedas e recuperações, resulta de fracassos e vitórias, resulta de perdas e ganhos.  É necessário é que o cômputo seja positivo, o balanço proveitoso ... e isso depende, para lá de muita outra coisa, de um trabalho pessoal de mentalização, de esforço e aposta em nós mesmos, de valorização pessoal e de uma fé nas nossas próprias capacidades e valores.

Acho que atingi já uma fase da vida, em que entre muitas desvantagens inerentes, pelo menos me proporciona um "know-how", um estatuto que tende a ser equilibrante, um "savoir-faire" que me obriga a encarar e a relativizar tudo e todos.

Por outro lado, as aprendizagens acumuladas terão que forçosamente dar frutos.
E aquilo que seria um drama, talvez já o não seja, e aquilo que me matava, talvez já tenha antídotos dentro de mim, inoculados pela própria Vida.

Os seres vivos, todos, mesmo os considerados irracionais, mesmo as plantas e os microorganismos, estão "monitorizados" é o termo, para todo o tipo de situações, às quais, por sobrevivência, têm que ter capacidade de resposta.
Todos estão munidos de artifícios naturais, condições de adaptabilidade, mimetizações, defesas ... as mais variadas, para que não sucumbam às "intempéries" da existência.

Ao Homem, ocupando que está o topo da pirâmide, acrescem-lhe responsabilidades, são-lhe exigidas respostas de inteligência, racionalidade, pragmatismo, clarividência .

Não é fácil !  Nunca é fácil nem simples !...

Eu, e se calhar qualquer pessoa, sou de altos e baixos, ou seja, perante este "discurso" exaustivo de racionalismo, até parece que arregaço as mangas e avanço com toda a determinação, força e ânimo, para o que se me depara ...

Nada disso !

Esforço-me para isso, devo reconhecer, sinto em mim mais alguma robustez mental e anímica para partir à luta, mas penso que isso se deve mais a alguma / muita "endurance" e carapaça que a Vida me obrigou a criar, do que propriamente a uma inteligente modificação de personalidade ou forma de ser e estar.
Essa, com muitas mazelas e cicatrizes,  é intrinsecamente a que morrerá comigo, tenho a certeza !

Só que, até quem é atirado à água sem saber nadar, tenta fazê-lo, não é verdade ??!!

Por outro lado, penso que o desencanto, o cansaço, a perda do que costumo chamar de ingenuidade, que é aquela forma "naïve", ainda incólume, doce, crédula ( por não magoada ), com que começamos as nossas caminhadas, foi esmorecendo, vai-se diluindo dolorosamente por cada aprendizagem negativa por que passamos, e o ser humano vai ficando pior, amargo, ( se calhar só tristemente realista, isso sim ... ), desinveste, começa a escolher solidões a companhias e afectos, em que já não acredita muito, e constata que afinal, como diz a minha mãe nos seus sábios noventa e um anos ... " A Vida é uma ilusão ...  Quando somos novos é que julgamos que não " !!!...

E dessa forma e com essa convicção, creio que continuaremos até ao fim, porque a "idade dos milagres" já lá vai há muito, e porque na verdade, inevitavelmente, como eu afirmava lá atrás ... " tudo o que não tem remédio, remediado estará " !!!...

Anamar

quinta-feira, 28 de junho de 2012

" OS HERMÉTICOS DESÍGNIOS ..."


Costuma dizer-se que só não há remédio para a morte. 
Que para tudo o resto sempre se pode dar um jeito, sempre se pode encontrar uma saída ou solução, mais ou menos difícil de alcançar ...

Hoje, entendo que não !

Há efectivamente becos nas vidas, que são vias estreitas de marcha atrás, nas quais não existe sequer espaço útil, para fazer qualquer inversão de marcha.
São aquelas vielas em que o sentido é único, e só nos sobra, largar o carro e voltar a pé ...
São caminhos ínvios, que devem ter a dureza e o sofrimento que Cristo experimentou, ao carregar a cruz até Gólgota.
Ele fê-lo como último sacrifício pela humanidade, pela salvação do Homem.
Há quem lhe siga a Via Sacra aqui na Terra, também, como se de uma predestinação se trate, uma inevitabilidade que não há forças que possam reverter.

Parecem missões, ou então, armadilhas ditadas por destinos sem lógica.
São desencadeadas por pavores, manipulações emocionais que actuam cirurgicamente em terrenos que se sabem vulneráveis ;  são subreptícias formas de persuasão, imposição, arquitectadas chantagens psicológicas, exercidas sobre estruturas sem defesa.

É uma espécie de luta desigual, e portanto, injusta.
É como se açoitássemos alguém que tenha uma incapacidade física de reacção, como resposta ... é como se pisássemos quem já está no chão ...
É desumano, é imoral, raia a malvadez e a safadeza.

Aproveitam-se e apela-se muitas vezes, miseravelmente, a valores, princípios ( sociais, familiares, éticos ou outros ), à integridade moral ...
Exploram-se muitas vezes as culpabilidades e os fantasmas irrazoáveis que as pessoas carregam, razões de vida que objectivamente não poderiam nem deveriam carregar !
São formas maquiavélicas, sádicas e inescrupulosas de se alcançarem desígnios, de se explorarem infelicidades, de se instalarem culpas, em benefício próprio ... julga-se !...
Escarafuncham-se feridas que ainda doem, acordam-se fantasmas, sonega-se a paz, para vulnerabilizar o alvo a atingir.
É verdadeiro terrorismo mental e emocional, mais ainda, quando orquestrado com uma intencionalidade e uma má fé bem estudadas.

Conheço de perto situações como as que descrevo, e sei dos malefícios, dos danos irreversíveis, das infelicidades espalhadas, por quem não se coíbe de as infundir a qualquer preço, e utilizando quaisquer métodos, naquilo que julga ser ou vir a ser, um benefício pessoal.
Instalada a insegurança, a angústia e a culpabilidade, pensa-se que a "presa" está na mão ...

Só que nesta vida, ninguém está nunca na mão de ninguém, porque há uma coisa, que faça-se o que se fizer, sempre fica intocada ... que é a "compra" de um coração, ou a transacção de uma alma ...
E os sentimentos também não são vendáveis, pela simples razão que não têm preço ... embora, tristemente, também haja quem não se inquiete com isso!!!...

Por isso hoje estou ciente, que para lá da morte, há de facto destruições sem remédio, mas que "virando o santo contra a esmola", acredito que apenas consigam semear ódios, raivas, indiferenças, mágoas inultrapassáveis, direccionadas contra quem as tenta usar em vantagem pessoal, ou como alimento do seu próprio desequilíbrio, ou da sua incurável loucura !!!...

Anamar

quarta-feira, 27 de junho de 2012

" AS NOSSAS COMPLEXIDADES "

A vida é só uma, dizem ;  pelo menos uma de cada vez.

Terá o ser humano direito de a maltratar?
A resposta óbvia parece ser não, aliás deverá ser este, o tratamento que deve dispensar-se a tudo quanto é precioso, singular, único.
No entanto, masoquistamente nem sempre assim fazemos.  Não só não o fazemos, como permitimos aparente e passivamente, que no-lo façam.
E bolas, é tudo tão curto, tão precário, que deveríamos desvelar cada dia, cada hora, cada minuto, porque são de facto irrepetíveis ... E não o consciencializamos, nunca o consciencializamos !

O mau trato psicológico é uma qualquer forma de mau trato, não inferior, talvez superior, ao mau trato físico, que é mais visível e objectivo.
E aquele, é infligido segundo entendimento meu, por duas ordens de razões :  ou conscientemente, portanto por omissão ou desvalorização pessoal assumida, ou sentimo-lo mas ignoramo-lo, encolhendo os ombros, fazendo de conta, deixando seguir.

Ambas as razões são muito graves, se bem que do meu ponto de vista, uma resulta da outra.

Um indivíduo que tenha uma baixa auto-estima, se tenha em pouca conta, enquanto pessoa, tem tendência a deixar-se tratar mal, ou porque irracionalmente acha que o merece ( e como que se auto-pune ), ou porque toma esse estado de flagelação como uma espécie de determinismo da vida, contra o qual não consegue lutar.
Esse indivíduo põe-se de facto "a jeito", e por isso são normalmente repetidas,  situações e experiências absolutamente recorrentes e similares.
Parece "esbarrar" ou "escolher a dedo", como "soi dizer-se", a repetência das vivências e dos sofrimentos.
Parece que isso acaba por ser uma sua segunda pele, integra a sua personalidade, passa a fazer parte do seu perfil psicológico.
A vida desse indivíduo passa a contemplar uma vitimização, e uma necessidade masoquista de sofrimento, que serão do domínio do subconsciente, mas que talvez, patologicamente o equilibrem.

Agora ... porquê ? Por que quererá alguém sofrer ou ser infeliz, mesmo que não tenha uma noção clara da situação ?

A minha interpretação é que essa pessoa necessita, de alguma forma, chamar a atenção do Mundo, se calhar a atenção até do seu lado inteligente e racional, sobre si própria, "acarinhar-se" de algum modo, "mimar-se" ...
São pessoas extremamente sensíveis, extremamente carentes, pessoas sofridas, pessoas de pouco pragmatismo, pessoas que dependem de uma vida mais espiritual e afectiva, e não propriamente de um equilíbrio material.  São pessoas para quem os bens materiais são meros complementos  dos emocionais, afectivos, de coração ... e não o contrário.
Têm uma maturidade emocional precária, ou mal direccionada, são "Peter Pans" da Vida ...

A segunda razão pela qual alguém sente e aceita um mau trato psicológico, adormecidamente, ou aparentemente adormecidamente ( porque não reage consentâneamente em proporção ), pode dever-se a uma impotência de capacidade, na ruptura de afectos.
É aquela pessoa que tem à sua frente uma história de sonho, com contornos maquiavélicos, e não quer lê-la com objectividade.
Apenas "lê" o que lhe interessa e o que precisa para respirar, para viver, para "se" fazer de conta que está feliz.
Esse indivíduo é "manipulado" por contextos e conjunturas exteriores a si próprio, conhece-os, analisa-os, escalpeliza-os, enjeita-os, mas não lhes reage ... não é capaz de o fazer.
Kafka foi mestre na abordagem deste processo.

Esse indivíduo está apanhado numa "teia", que foi sendo urdida pelas circunstâncias da vida, mansamente, fio a fio à sua volta, linha a linha em seu redor ;   e essa doce protecção é tão perfeita, tão bem articulada, que é ele próprio que se culpabiliza por lá ter caído ;  é ele que se martiriza por inépcia, incapacidade atempada de reacção, dependência emocional, falta de amor próprio e auto-valorização, por se ter permitido chegar tão longe ...

Esse indivíduo  está preso, está acoado, está enredado, e quando vê com clareza que não pode, que não deve continuar naquele emaranhado, já não adianta esbracejar, rebelar-se até contra si próprio, contra o que considera erradamente a sua "má sorte" ...

É na "teia" que tem ainda assim o alimento, mesmo precário, de que precisa para viver, é na teia que adormece e repousa baloiçando-se entre as ramagens, é à teia, que em certos dias chegam os escassos raios de sol que o iluminam.
Sair dela, aos seus olhos, seria morrer ...
Esse, é o tal que tenta então .ignorar, que encolhe os ombros, que faz de conta, que deixa seguir ...
Esse, é o tal que se auto-flagela, e auto-inflige um mau trato psicológico tremendo, injusto, extremamente gravoso, porque se alicerça na sua fragilidade emocional ... 
E o emocional e o psicológico, são os campos menos "domáveis" e controláveis em qualquer ser humano !...

Bom, este tema é por demais "quente" e passível de reflexão, parece-me.
Gostaria de lhe suscitar a discussão.

Muitas pessoas lêem os meus escritos, que eu sei, mas frustra-me que muito poucas ou nenhumas venham à liça, opinar, rebater, enfim, entrar no que considero uma dialéctica saudável, assaz importante para abertura de espíritos e clareza de ideias.
Sinto-me quase sempre a falar sozinha.
Perco-me nas minhas ideias feitas, nas exposições visionadas e fundamentadas unilateralmente, quando afinal todos sabemos que qualquer assunto ou tema, tem sempre tantas formas de abordagem, tantas "verdades", igualmente válidas e defensáveis, quantas as pessoas e os olhos que o lêem, e eu lamento não ter de facto o que seria para mim, esse importante e estimulante "feed-back" !!!...

Anamar

segunda-feira, 25 de junho de 2012

" A MAIS BONITA FLOR DE HIBISCO "


 Afinal fiquei louca de todo !

Irrecuperavelmente insana, resolvi viajar durante alguns dias.
Este maldito espírito de cigana de vida, acho que o herdei do meu pai, que como já tenho dito, era viajante de profissão ... nómada de coração !
Estes "bichos carpinteiros" que nunca me largam, começaram a avolumar-se, a perturbar-me os neurónios, e depois, sabem como é ...   Como diz um amigo meu, "passou-se-me um pano vermelho" pela frente, e pronto, arrisquei a maluqueira de ir gastar o dinheiro que me faz falta ...

Mas também, eu sei lá se cá estou numa próxima ... e "candeia que vai à frente, alumia duas vezes" !!...

Vou como sempre à procura do sol, daquele sol que se tem feito regatear em Portugal, num tempo "nem carne nem peixe" ... pelo menos aqui por Lisboa.
Vou em busca de paz e de silêncio ... do marulhar da água em rebentação mansa nas areias brancas, do sussurro do vento nos coqueiros, do mar turqueza e do céu sempre azul, dos cheiros doces, dos corpos nus, da mornidão envolvente de uma natureza generosa e pujante ...

Vou ...  Vou porque sou viciada em, de repente, me tornar anónima no meio de muita gente.
Sou viciada em suspender a minha vida entre parêntesis, pendurando o destino durante uns tempos, para o ver melhor, de fora para dentro.

Vou para pensar ... vou para sentir ... vou para "ME" sentir, nas horas de silêncio, que são quase todas, e nos passeios aos nasceres e aos pores de sol, na babugem salgada a afagar-me os pés ... do outro lado do Mundo.

Vou impregnar-me da luz da lua cheia no coqueiral, sobre um mar escuro, apenas incendiado pela poalha estelar.

Preciso ir, porque comecei a respirar mal por aqui, comecei a sossobrar a um cansaço de alma, que tenho que curar, preciso curar ... e o mar lava, expurga, pacifica ...

Voltarei ... talvez mais retemperada de forças, determinação de vida, mais certezas, espero.

Até lá, deixo-vos como sempre, a minha herança . 
As minhas flores ( as que gostam mais, e as que gostam menos de mim ), a Rita, que levo no coração, sempre compungida pela solidão a que a voto ...  a minha gaivota, que agora já em estância balnear, teima em não me ligar nenhuma ...  e o meu "farrusco do fiambre" ... o gato preto de olhões doces, que me namora do terraço das traseiras.

Estes são os meus tesouros, porque são eles que dividem comigo as horas, as boas e as menos boas, são eles os espectadores das minhas dúvidas, angústias e alegrias.
São espectadores das minhas euforias em horas felizes, e só não me enxugam as lágrimas ( porque não sabem ), quando despencam ainda que eu não queira ...

Cuidem bem deles todos, por mim, por favor.

Prometo trazer-vos como gratidão, na corola da mais bonita flor de hibisco que encontrar ... uma Anamar renascida ... gostaria !!!...

Anamar

domingo, 24 de junho de 2012

" UMA FLOR QUE JAMAIS MORRERRÁ "



Início de Julho ...

Por tradição, na minha escola, os professores da noite sempre confraternizaram num jantar de fim de ano, que era simultâneamente um "até breve", e uma homenagem aos que se haviam aposentado nesse ano lectivo.
Quem o criou apelidou-o de "Jantar da Begónia", porque para lá de um cartãozinho de felicitações assinado por todos, sempre era oferecida com imenso carinho, aos que mudavam de "equipa", uma begónia, aquela flor linda, em floração espectacular nesta altura do ano, que se veste de muitas e variadas cores.

Era uma confraternização particular e muito nossa, dos professores do ensino nocturno, porque a realidade de uma escola à noite, pouco tem a ver com a realidade mais incaracterística, do dia.
À noite há menos alunos, menos turmas, portanto, menos professores ;  depois, desde logo são alunos numa faixa etária e com interesses completamente diversos dos dos estudantes "profissionais", chamemos-lhes assim, ou seja, dos miúdos em escolaridade normal.
São na generalidade pessoas que trabalham, muitos com famílias constituídas, que frequentam a noite quase só como única hipótese de adquirir algum grau académico, que lhes permita ascensão na vida profissional.
Estudam com um sacrifício acrescido, depois de um dia de trabalho, com todas as dificuldades inerentes.

A relação professor-aluno é consequentemente intensa, porque afinal são pessoas mais próximas em idade, em maturidade, em posturas, em linguagem, em interesses.
Criam-se laços absolutamente estreitos de amizade, companheirismo, cumplicidade ... quase familiares.
Por sua vez o corpo docente, reduzido em número, forja também entre si uma unidade forte, alicerçada em partilha, em permuta, em entreajuda, divisão de tarefas, troca de alegrias e tristezas.
Essas, sendo de um, acabam por ser se todos ...

Leccionei à noite durante vinte anos, digamos que mais de metade da minha carreira.
Quando ingressei na noite, habituada que estava aos ritmos diurnos, fi-lo algo apreensiva, e fi-lo por razões de ordem familiar, que acabaram por me "empurrar" para essa alternativa.
De facto, o meu pai acabara de acamar, era necessária disponibilidade para o tratar e apoiar durante o dia, e sendo filha única, essa foi a forma que encontrei de o poder fazer.

E surpreendentemente, esses anos vieram a constituir a recordação mais gratificante, mais doce, mais preenchedora, que tive ao longo da minha actividade profissional.
A "minha gente", como sempre considerei os colegas que rapidamente se tornaram amigos indeléveis, é o espólio mais rico e emocionante da minha profissão.

A "Festa da Begónia", para lá de um jantar perdido nas horas, tinha sempre um espaço lúdico ou cultural a animá-la, e encerrava com as homenagens aos "begoniandos", com a entrega da begónia, do cartão de felicitações, e com a distribuição das palmas e dos beijinhos, o tirar de fotografias e mais fotografias, tudo misturado com alguma "inveja", dos que ainda não haviam atingido esse patamar, e de certa forma o ansiavam, e ... tenho a certeza ... já de algum saudosismo,  nostalgia e aperto no coração, dos que de "begoniandos" passavam a "begoniados" nessa noite ...

Os anos foram passando, fomos vendo ir amigos atrás de amigos ...  a Celeste, o Sobral, o Rutílio, o Álvaro, o Arlindo, o Moisés, a Emília, o Henrique, a Ester, a Helena Cavaco Silva, a Helena Carneiro, a Evelyse, a Conceição, a Maria José, a Ema, a Ana Frade, a Fátima, a Graciete, a Teresa Sobreira, o Sampaio, o Tavares, a Joaquina, a Patrocínio, o Noronha, a Isabel Lagoa, a Fernanda Coelho e o Calisto ...  e tantos mais a quem pediria perdão se me lessem, por os não nomear, apenas porque a memória também me acompanha inevitavelmente o BI ... ( só que em proporção inversa, claro ), e não por desconsideração ou falta de afecto.

No ano seguinte todos eram de novo convocados a comparecer, para que ao menos nessa noite se distribuíssem abraços, carinhos, risos, se trocassem novidades ( começava já a falar-se dos netos, obviamente ... ), para que se partilhassem as alegrias mas também as amarguras, se contassem as apreensões e as incertezas, as dificuldades e já as saudades ... porque a Escola, queiramos ou não, ficou em todos, entranhada no sangue, tenho a certeza.

Começou a haver "desertores", porque a Vida é a Vida, o tempo é o tempo, e a sua implacabilidade, isso mesmo ... implacável !!!...
Ia-se sabendo deste e daquele, por alguns.  De outros, nem isso !
O tempo começava a fazer os seus "estragos" ... a poeira começava a fazer perder as pessoas umas das outras ...

Chegámos a mais um Julho, quase.

A maioria da equipa "sénior" já se desagregou ;  neste momento, à noite, na minha escola, dizem-me que haverá duas ou três pessoas dos que existiam, ainda só há dois anos atrás ...

Espantosa a "sangria" que ocorreu na Educação, neste país, em tão curto espaço de tempo !!!...

Como tal, estou a sentir que a  inevitabilidade do tempo e das suas marcas deixadas nas existências do ser humano, está a dar sinais.
Não tenho notícias ainda, de que esteja previsto o tradicional evento anual, e afinal estamos a beirar o mês de Julho.
Ficarei extremamente triste, se de facto se confirmar o meu cepticismo actual, porque então isso vai significar que as pessoas começam a "depor as armas", e começam a deixar com algum indiferentismo que a manipulação da vida se instale, que a acomodação do dia a dia as insensibilize, as afaste, lhes passe borrachas nas memórias, mas sobretudo nos corações ...

E isso dói-me, acreditem !

Seria mais uma das últimas amarras afectivas, que injustamente iria ser cortada, deixando os barcos à deriva, perdidos, fora do molhe ... seria deixar morrer à míngua de água, uma qualquer begónia por aí !!!...

Anamar

quarta-feira, 20 de junho de 2012

" É ASSIM, OU NÃO É ?? "



O início de um romance, é sempre um romance ...

E um romance é um "mix" de ficção, criatividade, sonho, que nos transporta a patamares quase sempre irreais e que sempre vemos com alguma desfocagem.
Mas não há melhor período da vida do comum dos mortais, que a fase do romance.

Qualquer ser vivo parece ter sido fadado, para viver um ou mais romances.
É interessantíssimo ver os rituais de conquista e de acasalamento de muitas espécies do reino animal, e os artifícios com que a Natureza reveste esse período e dota os seus intervenientes.
O objectivo é óbvia e primordialmente a garantia da preservação das espécies, ou seja, da procriação, embora eu me interrogue se mesmo nesses seres considerados irracionais, o afecto estará completamente banido ...

No Homem, é um "estado de graça", são tempos doces, emocionalmente exacerbados, com a adrenalina e as hormonas em picos ...
São tempos sem peias, limites, barreiras, em que se respira romance, se vive do romance ... quase se morre pelo romance ...
Tudo é privilegiado aos nossos olhos.
As cores explodem numa Primavera em plenitude, os sons são acordes melódicos aos nossos ouvidos, os cheiros impregnam-nos os sentidos, os dias de sol são um afago para a alma e os de chuva, um embalo para o coração !
Os minutos de espera são horas intermináveis, o reencontro um presente dos céus, o afastamento, um buraco cavado bem dentro de nós.
O ser humano desenvolve toda uma panóplia de posturas e desempenhos, com a vivência de uma adolescência instalada em qualquer idade.
Tudo vale a pena, para tudo se dá um jeito, tem-se, mas quer-se sempre mais.  Tornamo-nos por vezes, ridícula mas espantosamente, seres de eleição, só porque se vive um romance !!
Tudo é encantatório, tudo é de menos para o tanto que estamos a viver ;  alguma deturpação e favorecimento do objecto amado, é inerente ao sonho que sonhamos ...
Vive-se "pendurado" de um olhar, de uma frase, de uma carícia, de um telefonema, de uma mensagem ...
Pega-se dez vezes no telefone, só para ter a certeza que afinal a dita não entrou ...
As pulsações aceleram se o silêncio do outro lado se arrasta para lá do espectável .
A ansiedade toma-nos, se simplesmente sentirmos perigar esse estado "miraculoso" !
Alindamo-nos só porque passa a valer "mais a pena", norteamos os nossos gostos e interesses, pelos gostos e interesses do outro ...  "adivinhamos" o que o outro ainda nem sequer sonhou, e sorrimos e trauteamos "aquela" música, sem sequer darmos por isso ...
Um local, uma flor, um pôr-de-sol, têm o rosto da personagem do nosso romance.
As cumplicidades cinzelam-se para todo o sempre, e juraríamos que esse "sempre" existe, e não é pura ficção !!!...

Apenas, como todos os êxtases, o "sempre" é efectivamente ficção, porque nas existências nada perdura e tudo é mutável ...
Apenas, como em todos os sonhos,  há sempre um acordar com a tomada de consciência da realidade.

E de escaldante, o romance começa a amornar.
É como se saíssemos da dimensão 3D de um filme, em que os efeitos especiais deixam de ser tão especiais assim ;
em que estendemos as mãos para apanhar as borboletas que vinham ter connosco voando pela sala, e elas, afinal, já não descolaram do écran.
O fascínio começa a assumir dimensões reais, e as personagens descem dos pedestais, e ficam simplesmente com a dimensão humana.  E os humanos afinal são gente comum, com insuficiências, omissões, falhas ... nem sempre sorriem, nem sempre estão presentes, nem sempre relembram o abecedário das palavras açucaradas, que se gastavam até à exaustão.

É um pouco como a Cinderela, que de princesa voltou à andrajosa criada, no fim do baile do príncipe, mal soaram as badaladas da meia-noite, e o sonho foi desfeito !

E as pessoas começam então a reequacionar muitos factores ;  começa-se a usar metro e balança para aferir posturas e sentimentos.
Começa a analisar-se, do valer ou do não valer a pena  pôr em causa estruturas criadas, conjunturas existentes...
Começa a olhar-se para a tela tão nossa conhecida, e as cores já desbotaram um pouco, tendendo a sumir na poeira do tempo ...
Começa a racionalizar-se o que não o era ... não o poderia ser !!!
O risco já se calcula.  Já não nos jogamos da falésia, acreditando seguramente sempre encontrar um chão atapetado à nossa espera, lá em baixo ...
A inocência começa a perder-se, a ingenuidade também, e se calhar o encanto, com elas ...

E pronto !

O sol desce no ocaso, começa a escurecer ... a noite anuncia-se porque já não é Primavera, e o Inverno já se instalou outra vez nas nossas vidas !!!...

Anamar 

terça-feira, 19 de junho de 2012

" A DIFÍCIL TAREFA "

Tomar decisões é das coisas mais complicadas na vida, penso.
E no entanto, muitos se degladiam para deterem o poder decisório, inclusive de muitos destinos que não só os próprios.

Esse, o papal dos políticos diariamente, dos líderes, dos chefes de grupos sejam de que natureza forem, dos xamãs de clãs ou tribos ...
Os próprios animais, sempre têm à frente do seu colectivo, os indivíduos "alfa", que determinam aspectos muitas vezes vitais para os grupos, em termos de território, de caça, de migrações, até de acasalamento.
Para se ser um indivíduo "alfa", seja em que contexto for, é necessário ter um carisma próprio, é necessário ser um elemento de referência, é necessário impor-se à comunidade, reunindo consensos sobre determinação, segurança, capacidade de decidir ( por vezes em situações limite, passíveis em caso de erro, de serem penalizantes para quem ou para os que o seguem ).

É necessário saber pautar-se com transparência e verdade nas escolhas que faz.
Deverá tratar-se de alguém com responsabilidades obviamente acrescidas, com perfil ( pelo menos em tese ) exemplar, irrepreensível nos posicionamentos, na coerência e bom senso que demonstra, na clarividência do que decide, e com uma segurança tal, que consiga transmiti-la, por difíceis que sejam as questões ...
Alguém com uma personalidade forte, combativo, ideologicamente assertivo.

Por outro lado, decidir, significa logo à cabeça, aceitar e conviver com fracassos e sucessos, com boas ou más escolhas, com as inerentes consequências para si e para os outros.
Decidir é uma escolha que não deverá ser feita pela força ou sob restrição de liberdade, mas sim pela persuasão, pela inteligência, pelo poder convicto de uma argumentação consistente e credível, como justa e sustentável, com lucidez e objectividade.

Um líder decisório deverá, em todas as circunstâncias, manter equilíbrio emocional ( e por isso penso que deverá ser uma personalidade com forte pregmatismo, distanciamento e até frieza em relação às questões ), não ser especulativo nem alarmista ( porque transmitiria uma insegurança não desejável ), e depois, mais importante ainda, do meu ponto de vista, ter a humildade de, perante uma má decisão, saber aceitar o ónus da mesma, carregar sobre os ombros as consequências inerentes, e seguramente apostar numa próxima melhoria.
Escolher implica também perder, como digo, e perdendo, ter o espírito olímpico na pureza do seu significado, ter o "fair play" necessário, e sempre manter uma postura digna e respeitosa para com quem de imediato apontará um dedo acusatório, nem que esse dedo seja a sua própria consciência !

Eu jamais poderia ser líder, fosse em que campo fosse!
É uma capacidade nata ... Ou se tem ou não, e isso revela-se, de uma forma interessante e clara, quase sempre desde tenra idade.
Claro que será depois treinável e passível de aperfeiçoamento, mas na essência, deve fazer parte do perfil psicológico de um indivíduo.
São características indiscutivelmente personalísticas, que já nascem ou não, connosco.

De facto não reconheço em mim qualquer traço, sequer aproximado, do que seria um líder carismático, capaz de mobilizar massas, arregimentar seguidores, sensibilizar opiniões.
E no entanto, a minha postura na vida parece transmitir uma realidade diferente, para os que comigo convivem, o que não deixa de ser curioso, me intriga e me espanta.

Analisando a questão ( muitas vezes me interrogo a propósito e sobre ela reflicto ), penso que é exactamente por insegurança, timidez e defesa, que transmito força, segurança, e desenho um perfil de aparente liderança.
Parece algo incoerente, paradoxal ou contraditório ... mas é de facto assim !!!

Reconheço ser frontal, reconheço ter alguma coragem "suicida" por vezes, dou a cara em muitas circunstâncias com inerentes e onerosas consequências ( raiando uma utopia romântica ou inconsciência pura ), procuro ser coerente, não sou diplomata se defendo um valor ou princípio em que acredito.
Tudo isso já tem feito de mim, em algumas ocasiões, bandeira ou estandarte de causas, ideias e opiniões.

Mas depois sou um ser visceralmente emocional e sanguíneo, e portanto nunca me é fácil separar o racional e necessário, do irracional mas intuitivo.
Em causa própria, normalmente decido por cansaço ou desgaste de uma situação, que assumindo uma fasquia insustentável, me precipita a decisão.
Até lá, "empurro com a barriga", como "soi dizer-se", por dúvida e pavor de fazer escolhas e tomar decisões de forma errónea.

A meu favor sei ter aquilo que talvez possa classificar de uma qualidade :  uma vez escolhido o caminho, tomada a decisão, arquivo o assunto, e raramente ( arriscaria a dizer "nunca" ), volto a reequacionar a questão, ou a martirizar-me com ela.
Bem ou mal, encerro-a, viro a página, dobro a esquina !
É como se deixasse de me molestar e de me atormentar a alma ;  e é de alívio quase sempre, a sensação que experimento em consequência.

Bom, quer em termos globais, quer estritamente em termos pessoais, ter que decidir é mesmo do pior que há !!!...
Chegar a uma encruzilhada e convictamente saber que caminho seguir, sem ficar a olhar para trás ... é "obra" ... e apanágio de alguns poucos "eleitos", estou certa !

Na minha vida, quase sempre eu sou mais de circular em rotunda ... percebem ??!!...

Anamar

domingo, 17 de junho de 2012

" NUNCA "

Há um ano atrás estava a dois dias da minha viagem até às Ilhas Maurícias.
Recordo com alguma nostalgia essa época.  Não é a primeira vez que trago aqui este tema, que de relevante não tem nada, é provocador como já tenho sobejamente dito, e que tenho rebuço em abordar.
Felizmente não parece parar por aqui alguém, que há tempos atrás, se insurgia com o que talvez tenha achado ser insensibilidade minha, face à crise instalada ...  Mas também não se trata disso !

Apenas, penso que tenho dentro de mim um espírito viajeiro inquieto e imparável.  Um espírito e uma necessidade de mudança incontroláveis.
Desde miúda me habituei a ouvir a minha mãe acusar-me de que eu me saturo rapidamente de tudo na minha vida, de que a estagnação, o imobilismo, o repetitivo, a ausência de novidade, desafio ou emoção, me perturbam e me mexem.
Eu também sinto notoriamente essa instabilidade em mim.

Estas formas de ser e sentir revelam, creio, uma imaturidade emocional, uma utopia desajustada, um desejo absurdo de aventura, não cabíveis na idade que tenho, nem na razoabilidade que deveria ter, e que pareço de facto não possuir ...

A vida comum, aquela que se tem e que as pessoas vivem, aquela que se "vive simplesmente", como a minha filha me diz, é incompleta demais para o meu "eu" interior, insatisfatória demais para o que preciso "beber" diariamente ... triste demais como combustível de alma.
Eu de facto sou um turbilhão de emoções que eu própria não entendo nem controlo, penso que nunca irei entender enquanto viver. Sou uma utópica de destino e sou uma insatisfeita de sonhos ...

Parece que nada do que vivo chega, para que eu o classifique de VIDA ;  parece que, se isto o é ... não lhe encontro significado, razão ou lógica.
Sinto que o ser humano  terá sido largado aqui, se calhar para fazer a aprendizagem de encontrar alguma significância para a sua existência, e que é exactamente isso que eu não consigo descortinar.
Parece-me tão absurda e tão sem sentido esta existência, tão sem objectivo que não o de caminhar não se sabe para onde, nem porquê, nem até quando ... que como dizia um amigo meu, sinto sermos apenas meros ensaios de proveta !...

Os animais são mais felizes seguramente ...
Um cão vive com uma esperança de vida que desconhece, um gato viverá uma quinzena de anos, talvez, e não o sabe ...  Há seres que existem apenas horas.  Parecem chegar, desempenhar a função para que chegam, e partem ...  Nunca saberão porquê !!

O ser humano questiona ...  EU questiono lógicas, razões de ser, motivos, explicações, que talvez nem existam ...
Eu procuro um sentido, um nicho de encaixe que se afigure óbvio, e não encontro ...  Se calhar não tinha que encontrar, por ser inexistente !

É uma simples aleatoriedade isto do viver ... tenho para mim !
Chegamos não se sabe de onde, nem porquê, passamos por cá uns tempos ( novamente aqueles que alguma aleatoriedade desconhecida, permite ) e partimos, muitas vezes quando já somos só tristes arremedos de seres humanos, farrapos de gente, esgares de pessoas, carregando para nada, nem para ninguém, nem para lugar nenhum, toda a "bagagem" de conhecimento, todo o recheio cultural, de valores, de emoções, afectos, de mais valias, que arregimentámos, quantas vezes a duras penas, neste nosso caminhar.

E pronto ... partimos em silêncio ... sem livro de reclamações ... sem sequer nos pronunciarmos, concordarmos ou não ...  sem "estrilho" !!!

Neste momento haverá quem me leia, e se sinta já incomodado e compungido comigo, e com o que achará ser a minha "pobreza" interior.
Sentirá pena do meu desnorte, provavelmente da minha solidão, talvez do fel que me pressente ... em suma, da minha "perdição".
Sobretudo, quem tiver como esperança, a promessa de uma vida compensatória do "lado de lá", depois desta passagem de penitência e expurgação, por aqui.
Porque o Homem agarra-se quantas e quantas vezes a essa fé e a esse crer, sem o discutir, o pôr em causa, como amarra de porto seguro, como âncora de barco em mar revolto ... como forma de aligeirar a carga a que é submetido, remédio amargo que se tem que tomar para que se atinja de novo a saúde ... penso.

E esses são felizes, tenho a certeza !!!

"Felizes os que acreditam, porque deles será o reino dos céus" - ainda sei, assim me impingiram em menina, nos tempos da catequese, das missas, das comunhões, das penitências - e eu não esqueci ...

Apenas, eu não creio ...
A minha formação científica prevalece-me sempre, domina-me, orienta a minha forma de pensar e me posicionar ... e portanto ... MEU, nunca será o reino dos céus !!!...

O pior, é que seguramente o da Terra também não !!!...

Anamar

sábado, 16 de junho de 2012

" AINDA ONTEM !... "

 
As minhas crianças estão a crescer !

A Vitória completou ontem 8 anos, o António nos seus quase 11, tem o perfil de um "gentleman" em ponto pequeno.
É o tipo de rapazinho calmo, "low profile", muito "na dele", com postura protectora dos irmãos.
É um miúdo muito interessado em tudo o que ouve, conhece, lê ... em tudo o que o rodeia.
Eu diria que tem um nível de conhecimentos, superior à mediania para a sua faixa etária.  Lê muito, aliás nunca adormece sem que um livro lhe "feche a pestana" ...
Desde cedo o António voa entre Portugal e a Suiça, onde reside o pai, entregue à tripulação de bordo dos aviões.  Fazem quase parte da sua rotina, estas viagens frequentes.
Por vezes permitem que voe na cabina dos comandantes, o que vai ao encontro da sua curiosidade, e o que lhe suscita desde já, o gosto pela aviação, a ausência total de medo, e a vontade já expressa de ter como profissão, um dia, os comandos de uma aeronave.

A Vitória parece ter nascido ontem e já é uma mulherzinha em ponto pequeno, também.
Talvez por ser mulher, e eu ter tido apenas filhas, o meu relacionamento com ela, flui fácil.
Vocacionada para o exercício físico, desde bem pequenina, é uma desportista nata e uma promissora ginasta.
Percebe-se que tem como referência o irmão mais velho.  Penso que se esforça para, escolarmente, não lhe ficar atrás.
É uma criança desinibida, conversadora, de fácil relacionamento com qualquer pessoa.
Não é raro que numa conversação, ultrapasse alguma timidez do irmão, e se apreste a dar respostas prontas, opiniões, esclarecimentos, a alguma pergunta que lhes seja dirigida.

Sempre que me chega às mãos um e-mail que lhes possa interessar, ou que eu julgue importante na sua formação, reencaminho-o para a mãe, a fim de que lho mostre.
Num destes dias enviei um pps sobre gatos.
O gato é um animal que eles particularmente conhecem.  A tia tem dois, eu tenho um, coisa que sempre os deixou "loucos", quando vêm a minha casa, e com ele querem forçosamente brincar.
Esses dias são dias de "terror" para a Rita, que habituada ao sossego de uma casa sem crianças, corre a enfiar-se no reduto onde se sente mais protegida, o que sempre os frustra, obviamente.

Neste momento eles próprios detêm uma gata persa, a Kuka, que muito mais que gata, é um verdadeiro boneco de peluche, o que os delicia no seu quotidiano.

Não resisto aqui a transcrever o e-mail com que a Vitória respondeu ao meu, e que me deixou embevecida, devo dizer ...

" Avó Margarida
Os gatos são muto preguiçosos. Passam horas a dormir. Quem me dera que fosse assim para os humanos. Quem me dera que não houvesse crise e fossemos como os gatos, mas pelos vistos não somos.
Adorei as fotografias que enviou, porque é verdade que eles são assim.
Beijinhos e tive satisfaz bem que é o máximo no teste de aferição de língua portuguesa.
Beijinhos
Vitória "


As minhas crianças estiveram comigo há dois dias atrás, o que, até por não ser muito frequente, sempre me gratifica e simultaneamente me enternece.
Como estou demasiado tempo sem os ver, ocupo uma posição privilegiada, para que não só aproveite de um comportamento de educação e obediência  - que advém do respeito que se tem com quem não se está frequentemente - como também estou em condições excelentes, para observar e analisar o seu crescimento, o seu desenvolvimento, as facetas da sua evolução .

E realmente, dou por mim a pensar que ainda "ontem" a mãe e a tia tinham aquelas idades, aquele tamanho ... aquelas "figurinhas" ... e ainda "ontem" era eu que vivia as ansiedades, as preocupações, as esperanças, as expectativas no futuro ... que ainda só espreitava !...

Ainda "ontem" !!!...

Anamar

quinta-feira, 14 de junho de 2012

" OS TRÊS F DA NOSSA SINA "


Realmente continuamos a ser um país de brandos costumes.
Os três "F" continuam a imperar.
Fátima, Futebol e Fado "alimentam" a maioria dos portugueses, têm um efeito terapêutico, até mesmo profiláctico, neste povo quase sempre cordato, quase sempre acomodado, quase sempre pouco reivindicativo.

O Governo pode estar relativamente tranquilo, Passos Coelho pode dormir com mais algum sossego, porque o "povo é sereno" !
Basta que para isso lhe seja servida uma boa dose de futebolada, um campeonato "à maneira", com as "estrelinhas" todas a brilhar no firmamento, com um Paulo Bento que deve continuar a achar que o balneário está tranquilo, e eis o pessoal a saltar, a gritar, a ensandecer, num fenómeno social espantoso, numa alienação colectiva de que estamos mesmo a precisar !

Qual crise, qual desemprego, quais greves, quais secretas, qual Grécia, qual resgate espanhol, qual falta de dinheiro já no meio do mês ... se a bola bateu na trave dez vezes, se o golo esteve nos pés do Cristiano outras tantas, se pelo menos durante hora e meia o país encerra "para obras" !!!
Ajeitam-se as vidas, os horários ... o trânsito "cessa" na Segunda Circular, na IC19 somos donos da estrada ... e a malta em qualquer canto, em qualquer tasca ou em confraternizações caseiras ( porque isto de sofrer em grupo sempre é menos traumatizante que sofrer sozinho ), com uns caracóis e umas "bejecas" está feliz, alucina a discutir os fora de jogo, os apitos do árbitro, o que não foi e podia ter sido !!!...

E sentam-se para se levantarem trinta segundos depois, roem o que sobrou das unhas, gesticulam intensamente e gritam pelos jogadores, e soltam palavrões e impropérios contra os juízes do jogo ;
as bandeirinhas, que as crianças também já mobilizadas agitam mesmo nas salas, frente aos écrans das televisões, não param ... Grita-se  " Portugal ... Portugal " !  Como se isso pudesse ecoar lá no campo, e pronto ... o pessoal todo unido à volta do verde e vermelho duma bandeira, com um desígnio único ... torcer pelo que nem se sabe muito bem o que é, mas que é este estranho orgulho bairrista de se ser português, de, de pequeninos nos agigantarmos, e até "os comermos" todos !!!
Grandes ao menos em qualquer coisa ... carago !!!...

Abençoado Euro 2012, porque enquanto durar ( e esperemos que não tenhamos que arrumar prematuramente as malas ), Portugal vai continuar anestesiado, com uma embriaguês colectiva que o fará sorrir, conseguir cantar em uníssono, e sentir uma solidariedade e uma unidade tais, que nos tornarão tão "bonzinhos", que nem do Governo a gente vai conseguir falar mal, nos tempos mais próximos !

Fátima foi há dias ...

Aí a vertente era outra.  Era mais a vertente dolorosa e frágil do Homem, que imperava.
Lá estavam os mesmos, com os terços, os cânticos, as velas, os joelhos esmurrados pelo martírio das promessas, as lágrimas escorrentes pelos rostos em penitência, em submissão, em contrição, em súplica !

Lá estavam os que pediam milagres de saúde, de empregos, de ajuda para a prestação da casa, já atrasada no Banco p'ra lá de tempo.
As "vivendinhas" em cera, entre  €3,5 e  €5, isso testemunhavam !...
Já não bastava o tradicional negócio macabro das velas de alturas humanas, das pernas, dos braços, das cabeças em cera !!!...

Aí,  é a crise que induz o aumento do "clientelismo".
Fragilizando as pessoas, vulnerabilizando-as, deixa-as inseguras, desesperadas, redu-las à pequenez da dimensão humana,  e obviamente o apelo ao divino maximiza-se.
O milagre e a protecção dos céus surge como a solução possível, como a derradeira e única ajuda, para alguém que se sente completamente perdido.
Explora-se a ignorância, o obscurantismo, a incultura, o fanatismo, mesmo o fundamentalismo das classes mais desfavorecidas, e por isso mais desprotegidas do povo.

Desígnios diferentes ... rituais massificantes iguais !!!...

Depois, todos os meses têm um 13 no calendário ... e a crise parece estar para durar, o que fará render a coisa !!!

Resta-nos o Fado ...

O Fado,  é o que se vive todos os dias.
O Fado é aquela coisa que as pessoas carregam como um fardo, que por sinal também começa com "F", e que lixa com "F" quase toda a gente !
Fado é o que nos faz dizer com aquele fácies de quem cumpre pena, tão nosso conhecido : "Vamos indo "!...
É aquilo que nos faz trabalhar e nunca sermos ricos, ao contrário dos que o são sem trabalhar ...
É a corrupção frente ao nosso nariz,  são as injustiças sociais às quais já encolhemos os ombros ...
é o dinheiro que encolhe para a saúde, para a alimentação, para a escolaridade, para os transportes ... para um mínimo de dignidade de vida ...
Fado é o analfabetismo formal como destino, e a desinformação conveniente ... é o cansaço e a desmotivação ... é o determinismo cruel que se abate ... é o não valer a pena !
Fado são os subsídios que nos foram sonegados ( coisa que já assimilámos, obviamente ... ),  é o cinto que de mês a mês aperta um furo ... é a sangria dos jovens, e daqueles que habilitados e credenciados profissionalmente,  procuram numa emigração só comparável à que lembramos das "calendas gregas",  um futuro lá fora ...
Fado são os suicídios por desespero e ausência de saída, a aumentarem,  ou os antidepressivos a serem vendidos em massa nas nossas farmácias ... são os idosos, que engolindo o que lhes restava de algum  orgulho, já pedem esmola às portas dos supermercados ... e os sem-abrigo a lotarem as instituições de solidariedade social !...

Em suma ... Fado é o que retomaremos garantidamente, sempre que os outros "fait divers" deixarem de conseguir alienar-nos mais, ou pelo menos adormecer-nos ou distrair-nos um pouco,  e acordarmos finalmente para a  nossa  verdadeira realidade !!!...

Anamar

" A MALA DOS SONHOS "


Nunca mais voltei ao meu local de trabalho.

A pasta com os últimos livros, os últimos dossiers, os últimos papéis, as últimas esferográficas já secas, foi desfeita e as coisas arrumadas, há apenas alguns dias.
"Jazia", é o termo, nas costas de uma cadeira da minha sala de trabalho, desde o último dia que a utilizei ... Quase três anos atrás !!!...

Incrível!

Olhei para ela vezes sem conta, mas não consegui mexer-lhe, menos ainda esvaziá-la, como se se tratasse de uma daquelas peças tão invioláveis que não ousamos mexer-lhes, sequer soprar-lhes o pó dos tempos.
Mais que uma vez tive essa intenção ; avançava dois passos na sua direcção, mas algo me impedia de lhe mexer, apesar de, de acordo com o meu sentido estético e de arrumação, ser absolutamente inconcebível, o facto de ter uma mala pendurada numa cadeira da sala, "ad eternum".

Aquela mala parecia "queimar-me" as mãos.  Desfazê-la e arquivá-la, no meu subconsciente devia representar-me um desfazer e arquivar de uma parte da minha vida.  Daí a resistência a fazê-lo.

O ser humano é espantoso !  É um intrincado de mecanismos tão complexos, de códigos tão incompreensíveis e incoerentes por vezes, ou aparentemente incoerentes, que raramente se lhes encontra um fio condutor lógico.

Hoje tento lembrar-me se no último dia que ali a deixei, ou seja, no último dia que lhe utilizei o conteúdo, que é como quem diz, que fui para as aulas, tive consciência disso.  Penso que não.
Tratou-se de um período extremamente conturbado em termos de saúde, em que a partir de fins de Novembro de 2009 fiquei em casa com atestado médico, dia 31 de Dezembro entreguei o pedido de aposentação antecipada, e a 28 de Maio de 2010 ela foi-me concedida.

Foi um período algo tenebroso na minha vida, um período em que penso que não vivia, flutuava, planava por sobre as realidades, quando não dormia sob o efeito de medicamentos.
E talvez graças a eles e ao entorpecimento por eles provocado, não consciencializei que estava a bater a porta definitivamente.
E por isso, aquela viragem na minha vida não foi avaliada em consciência, creio.

À escola voltei uma única vez, no fim de 2010, para a habitual reunião geral, em que por tradição são homenageadas as pessoas que cessaram funções nesse ano.
Nem nesse dia me emocionei, ao receber as flores e o presente da praxe, nem sequer ao ler uma pequena dissertação alusiva à ocasião e que dirigi particularmente aos novos professores, àqueles que ali estavam tal como eu estive, trinta e seis anos antes, numa reunião idêntica, só que de abertura de ano escolar, com um sorriso no rosto, uma ansiedade gostosa no coração, e uma pressa de que tudo começasse rápido, para que extravasasse aquela vontade de me dar, de me disponibilizar, de amar, ajudar, e se possível orientar aqueles putos, tímidos uns, reguilas outros, curiosos quase todos ...

Tinha então vinte e três anos, usava mini-saia, já era mãe mas não parecia, e sentia-me a encarnar aqueles seres sentados à minha frente, como quando era eu que ocupava as carteiras então.
Carregava os livros, os dossiers, as cadernetas ... mas sobretudo um monte de sonhos e ilusões, um monte de expectativas e vontades, uma força imensa de ensinar mas também de aprender todos os dias, sempre !

Cumpri uma vida naquela escola, à excepção de um único ano, em que por força da lei, fui obrigada a ir à província.
Além da docência, fiz de tudo também.
Não vou repetir o que tem sido lembrado exaustivamente por tantos como eu, cujo sacerdócio foi o mesmo.
Também não vou lembrar, até porque me dói, todo o maquiavelismo utilizado a desmembrar uma das mais nobres profissões do mundo, tornando-a, como alguém escreveu, uma "doença terminal" ...
Guardo para todo o sempre o que me deixaram ... a amizade e companheirismo partilhados com tantos colegas com quem me cruzei, mas sobretudo a dádiva incondicional e inestimável, de tantas gerações de jovens que por mim passaram.

Para além disso, guardo uma mágoa sem tamanho, uma raiva pela impotência perante a subalternização miserável a que todos fomos votados, uma preocupação e uma frustração imensas, por observar os caminhos ínvios e sem volta, a que estão a remeter a educação neste país !!!

Nunca mais voltei ao meu local de trabalho ;  custei a desfazer a mala ...

Agora sei bem porquê ...
Lá dentro ainda estavam, já bolorentos claro, os sonhos, as ilusões, as expectativas, as vontades ... e todo o amor que nela transportava generosamente, no meu primeiro dia, como professora !...

Anamar

terça-feira, 12 de junho de 2012

" INEXORAVELMENTE "

A vida aproxima e afasta as pessoas.
Os acasos determinam quem nós conhecemos ;  o destino ... quem permanecerá.

Dificilmente amizades de infância ou até da adolescência perduram, mercê da mobilidade das pessoas hoje em dia.  Não é raro, aliás é o mais frequente, que as vidas se iniciem  num local, e terminem noutro, atravessando por vezes alguns outros pelo caminho.
Muitas vezes, regressando à origem, com aquela sensação de poder reencontrar o que ficou, ele já lá não está ; os espeços, as cores, os cheiros, tudo sumiu, tudo ficou estranho, as pessoas também, no vórtice do tempo.
E essa busca ilusória do reencontro, torna-se mesmo num acontecimento incómodo e doloroso.
Buscamo-nos, buscando os outros ... buscamos no presente o passado, e tal é obviamente impossível.
Nem nós somos aqueles, nem os outros também o são.
E fica uma coisa meio constrangedora e decepcionante, triste mesmo.

São quase singulares os casos em que se cresce e morre no mesmo sítio,  nos tempos actuais ; talvez esse privilégio ( será ? ) pertença já só aos nossos ancestrais ainda vivos, confinados às pequenas comunidades perdidas no recôndito das aldeias da nossa terra.
Aí as famílias viviam em casas grandes, partilhando-se sempre, mesmo que fossem crescendo.
Avós, pais, filhos e depois noras, genros e netos, congregavam-se em torno da casa-mãe.
Era o tempo das grandes mesas de Natal, das Páscoas em comunhão ... o tempo em que os velhos morriam entre as paredes que conheciam e que sempre foram suas, em que as pessoas se reuniam nas refeições, em que as pessoas conversavam à mesa, sem pressas ou afobações por demais.
Era o tempo em que nos cemitérios da vila ou da aldeia se detinham as campas familiares, e ficávamos com a certeza que também aí permaneceríamos juntos para todo o sempre, e que em romagens póstumas, íamos de campa em campa, e estavam ali todos, naquele chão sagrado, os que já haviam "desertado" ... a família, afinal, uma vez mais reunida !

A realidade do hoje nada tem a ver com nada disto.
Os amigos perdem-se, ou simplesmente afastam-se ( muitas vezes nem sabemos porquê, sempre atribuindo à vida "corrida" a responsabilidade disso mesmo ).
É vulgar encetarem-se relações de amizade, muitas vezes acidentais, já na fase descendente, em que as solidões que entretanto se instalaram, como que solidarizam as pessoas.
E mercê das circunstâncias e das realidades, essas relações são por vezes resistentes, e vão ficando, com altos e baixos, com proximidades e afastamentos, mas resistem.  Por vezes amizades que vêm da vida profissional, ou da simples proximidade de vizinhança, mostram-se mais sólidas e fortes mesmo, que as criadas pelos laços de sangue, que entretanto se diluíram lá para trás.

Com os amores, mais inexplicavelmente ainda, também o tempo dinamita até aquilo que juraríamos ser intocável, e que convictamente garantiríamos ser para sempre.

Mas o que é  "para sempre" ?

Cada vez mais, nada é para sempre ... nem as coisas, nem as ideias, nem as convicções, nem as posturas ... porque as pessoas também não são para sempre, como é óbvio ...
E é espantoso !...  Eu ainda  "pasmo"  como o tempo incrivelmente desfaz o feito, o que julgávamos solidamente feito ... o que juraríamos ser impossível morrer, sem que nos matasse primeiro !!!
Infantil, utópica, naïve ... romântica demais esta forma de sentir, para a idade e vivências que já tenho ... pois se até os rochedos das falésias são desgastados lenta e inexoravelmente pelos ventos e marés, dia após dia, ano após ano, numa implacável moldagem e destruição !!!...

Tal como eles, o ser humano sofre a erosão imparável do tempo, mas também, tal como  neles , no seu coração ficam as marcas deixadas, e ficam os estratos sobrepostos, camada sobre camada, cicatriz sobre cicatriz,  "fossilizando" as histórias de vida, ... desenhando para todo o sempre, a "geologia" de cada um  de nós !!!

Anamar

segunda-feira, 11 de junho de 2012

" A TEIA "


A linha é feita de muitas linhas.
A teia é feita de muitos fios.
São finos, são diáfanos, são etéreos, dissimulam-se ... são quase invisíveis ...

Na copa daquela árvore, ligando a folhagem, num bordado pacientemente tecido, beneficiando da exposição aos escassos raios solares que atravessavam a vegetação cerrada daquela mata, lá estava ela ... a teia !

Desafiadoramente perfeita, num projecto geométrico e matemático irrepreensível, simultaneamente delicada e resistente, aparentemente vulnerável mas invencível.
A teia é um local de "paz", é um reduto de silêncio perturbador.
É uma cortina de morte, entre espaços de vida. O cá e o lá ... o antes e o depois dela.

E depois há ela, e a aleatoriedade dos momentos.

Ela não é um canto de sereia de emoções e promessas ...  Ela não é uma luz acesa, em torno da qual "zanzam" em círculos, borboletas da noite, impotentes e estonteadas ...  Ela não é um pântano sem aviso, que brilha e desafia, ou uma rede de sesta entre troncos ...  Ela não é uma miragem de areia, duna após duna no deserto ...

Ela está simplesmente lá, naquele cais de espera.
E depois há tudo o que acontece porque deve acontecer !

Tenho a certeza que é doce e embaladora, quase desejável ...  Tenho a certeza que não é um labirinto de cansaços e indecisões, mas é um berço, uns braços ou umas mãos, gávea de navio a baloiçar em maré mansa, um regaço, uma nuvem de algodão ... um charco de água no meio da aridez ... uma última nota ... talvez um último som !...

Mas a teia é para quem está ... não é para quem chega.
Ela estremece quando algumas asas a tocam.  Estremece capciosamente de prazer, e faz-se anunciar ...
Parece cais de aportar,  molhe de abrigo ... um farol norteador ... um voluptuoso véu de noiva ...
Mas na  verdade  torna-se uma tormenta, uma cratera  em actividade,  um tornado em girândula avassaladora !
A teia é um alçapão num trilho atapetado.  É uma falta de chão repentino.  É um fosso inesperado atrás de uma  moita de giestas.  É uma ravina ou desfiladeiro  a pique, no fim de um caminho  apenas  iluminado pelo luar ...   Ar rarefeito, no topo da montanha soberana !...
Na teia esbarra-se, tropeça-se, cai-se ...
Os tentáculos entorpecentes abraçam, acariciam ... a melopeia narcotizante inebria, o cântico lânguido adormece ...

A teia é um fim de linha ... um caminho sem volta !!!...

Anamar

domingo, 10 de junho de 2012

"ESTÓRIAS ??!!... QUE ESTÓRIAS ??!!..."


Hoje retomei a minha caminhada.
Ou simplesmente tomei-a hoje ... sei lá !

Sendo extremamente indisciplinada na vida, desde os aspectos físicos, aos psicológicos, aos de coração ... ( de facto toda eu sou uma "casa desarrumada" ), não consigo dizer se se tratou de algo pontual, ou se terei entrado nos "eixos" por algum tempo.
Sempre por "algum tempo" ...  Tudo comigo é por "algum tempo", estranhamente !
Sei que precisava "falar-me", respirar natureza, fundamentalmente sair de casa.  Neste momento as paredes desta casa são-me algo fóbico, que não me faz bem nenhum, que me abafa, me angustia, me arrasa.

Reencontrei a "minha" mata, com tudo no sítio, perfeito, florido, cheiroso ... deserto.
Uma das particularidades que sempre me agradam quando me sinto "encerrada para obras" ( como é o meu momento actual ), é poder caminhar, caminhar sem ver ou encontrar vivalma.
Ando um bocado farta de gente, de conversa, a maior parte das vezes circunstancial ;  farta de ter que afivelar este ou aquele semblante, só porque tenho a noção de que ninguém terá que descodificar se estou excelente, péssima ou assim assim !
Condicionalismos da vida social, condicionalismos de se viver numa mesma terra há 48 anos, na mesma casa há 38 ...

A meio do percurso, bem à minha moda, já pensava que o passeio estava a finalizar, e que a casa, aquela penumbra de fim de dia, aquele silêncio, aquele vazio, aquela solidão, estavam lá à minha espera.
Decidi que nada feito ... não ia confinar-me a esse "castigo", às cinco horas de uma tarde espectacular de sol, céu azul, uma brisa que condimentava na justa medida a força do astro-rei.

E como o "diabo foge da cruz" e quase em automatismo, meti-me no carro e vim ao Belas tomar um café.
Por aqui também há silêncio, apenas um silêncio emoldurado, como num quadro impecavelmente bem pintado, pelo verde da relva do golfe, ou dos pinheiros mansos aqui e ali, o branco das estevas, o ouro das urzes, o rosado das murtas, enfim, as pinceladas multicoloridas de tudo quanto é flor no mato rasteiro .
Por aqui joga-se golfe, pelas encostas doces deste tapete sonolento, um desporto que sempre me parece desafiadoramente repousante, intimista ... "cool" ...

A passarada privilegiada que por aqui habita, ostenta provocadora, uma liberdade estonteante ; os melros curiosos assomam as cabeças negras de bico amarelo, como se espreitassem de "tocaia" ... as andorinhas delicadas e dançarinas, ensaiam coreografias laboriosas, ora alto, ora baixo, recortadas no azul ... desenhadas no verde !...
Os patos bravos, rasam os lagos, mergulham, "catam" qualquer coisa ... e seguem displicentemente, nadando em marcha ordeira, bem comportados, até que voltam a mergulhar, a "catar" ... a seguir ...  E assim sempre!...
O sol, esse caminha em direcção ao ponto cardeal que lhe dará cama logo mais, mas entretanto, porque ainda vai alto, faz a gentileza de me envolver totalmente, na mesa em que me encontro, de chávena já vazia à frente, música calma nos ouvidos, telemóvel como única ponte com o mundo para lá deste oásis ...

Enfim, um domingo mais sem história, ou com muitas estórias ... a mais surpreendente das quais é, embora pareça estranho, o facto de continuar viva por aqui !...

Anamar

sábado, 9 de junho de 2012

" OS VEZO - um paraíso em qualquer lugar "


Os "VEZO"  são uma etnia indígena do sudoeste da Ilha de Madagáscar.

Nas minhas perambulações nocturnas pela TV, nas minhas "viagens" intermináveis no Travel Channel, "fui" até lá ;  deixei-me transportar pela aventura, pela curiosidade e pelo prazer de Jérôme Delafosse, o viandante de nacionalidade francesa, da Bretanha, com rosto de querubim e corpo grandão e desconjuntado, de turista de "pé descalço".

Os "VEZO" são povos nómadas, com uma precariedade de vida que aos nossos olhos ocidentais, parece insuportável, inaceitável, absurda.
Vivem ao sabor das tradições, do tempo, das marés, dos frutos e do peixe no mar.
Deslocam-se velejando em canoas rústicas e precárias, meramente em busca de condições favoráveis para subsistirem.  Famílias inteiras ... crianças de meses, vivendo da sorte por cada dia, geração após geração, século após século.
Montam tendas nas areias, junto ao mar, sob copas das árvores das costas desertas, abrigando-se dos ventos, cozinhando em fogueiras improvisadas, de madeiras perdidas ; as águas lavam e dão o "pão" de cada dia ;  o céu é a abóbada de protecção ...  de sonhos não, porque os "VEZO"  não os têm.
Não têm a noção do tempo, não têm preocupações de futuro ... Vivem cada dia de "per si", regidos exclusivamente pelas leis da Natureza, que implacavelmente as dita ...
Chegam a ser comoventes o desprendimento, a simplicidade, a alegria e a felicidade que transbordam, na liberdade que encarnam.

Liberdade é isso mesmo, creio.
Liberdade não tem definição, do meu ponto de vista.  É um estado de alma, é um estádio de vida, é uma opção, ou nem chega a sê-lo ...  É tão só um determinismo do destino.
Nasce-se com, ou sem ela, sobretudo na alma ...
Interrogo-me por que desígnio inatingível, se nasce aqui ou ali no planeta que dividimos ?  É-se isto ou aquillo ? Temos esta ou aquela  " formatação " de génese ??!!
A mesma  matéria, uma bio-diversidade alucinante, esmagadora, fascinante, inexplicável ...

Sempre invejamos o que não temos.  O ser humano sempre se sente incompleto, insatisfeito ... sempre anseia o que não detém.  Faz parte da nossa natureza, creio, ou pelo menos da minha, na eterna inquietação e turbulência interiores.

Os "VEZO" vivem a vida inteira integrados em paraísos terrestres, inteiramente graciosos ;  acordam e dormem com verdes exuberantes por sobre as cabeças, esbanjam nasceres e pores-de-sol ;  a chuva acaricia-os, o vento curte-lhes a pele canela.  Os cheiros já não lhes importam, talvez nem sequer os percebam !
Do salgado da maresia aos adocicados dos frutos do sul, nada os surpreende, nada os extasia ... é a sua realidade ...  Nada de novo !
Não exprimem emoções.  Pelo menos naquilo que constitui o nosso repositório de emoções.
Penso que talvez possam vivenciar o medo, por terem noção da sua vulnerabilidade ( enquanto seres desprotegidos ), o afecto, embora de uma forma absolutamente particular ( em especial pela valorização do núcleo familiar ou clã , realidade da qual nunca se desvinculam ), o temor e submissão sos deuses ( enquanto seres promotores dos seus destinos ; deuses que habitam o mar, lugar sagrado onde os espíritos se acolhem ) ... a alegria, sem dúvida, na partilha, nas gargalhadas e risos que semeiam ingénua e displicentemente ...

De resto, têm uma total aceitação permanente e indiscutida, do que desfrutam.
Se a pesca foi generosa, os deuses foram protectores ... se foi precária a apanha nessa noite, come-se menos, simplesmente.
As crianças talham as suas próprias canoas de brincar nas ondas, arpões incipientes para peixes "incipientes", na rebentação ... uma bola adquirida na "civilização" ... e mar, muito mar aos pés, para viver!

Aos meus olhos ( de utopia, com certeza ), os " VEZO " representam-me em particular na actual realidade social, antropológica e pessoal, um "éden" individual e colectivo, a paz global, a ausência de conflito interior, a ausência de questionação existencial destrutiva, da insatisfação permanente, da dúvida e insegurança exponencialmente projectadas, a ausência daquele medo que advém da ansiedade do ter, a pureza de valores e sentimentos, almas e consciências não corrompidas ... enfim, se calhar o que eu "realizo" no meu espírito ... o que talvez nem exista !!
Seguramente o convite,  ou a proposta despudorada, de uma "fuga" sem volta !!!...

                               
Anamar

sexta-feira, 8 de junho de 2012

" LOCAIS DE PASSAGEM "


NOTA : Esta história é baseada num caso verídico


Entrei naquele espaço meio atordoante, meio desesperado, meio sufocante.
Eu próprio também o estava.
A cada tentativa que fazia mais, o coração sempre me disparava no peito, porque a esperança é a última que morre, creio.

DIVA desaparecera na Serra.

Nunca se sabe por que um cão procura a liberdade ... tendo connosco tudo o que nos parece ser o bastante ...
Mas a liberdade é a liberdade, os cães são animais nobres, e a nobreza de um animal, como a nobreza de qualquer ser vivo, deverá exigir-lhe a sua busca, sempre ...

Por isso DIVA não tinha sido ingrata ... simplesmente procurara a sua própria liberdade naquele dia.
A minha "via sacra" começou então ; o anseio de voltar a ter o seu convívio, a esperança de a retomar, era tudo o que me dava força para alucinadamente ter percorrido todos os caminhos prováveis e improváveis, ter solicitado todas as ajudas, ter movido todos os meios ao meu alcance, para que DIVA fosse recuperada.
Nesse dia era apenas uma tentativa mais, talvez a última, de que por um golpe do destino, ela pudesse ocupar alguma das boxes daquele canil, sinal de que estava viva, existia, tinha sido encontrada.

Mas os canis - quem já os visitou, sabe bem - são locais de agonia, de uma agonia atroz, corredores de morte.
Não daquela morte que o Homem cumpre por determinação dos seus pares ( senhores e donos do que acham ser justiça ), mas locais de condenação de seres indefesos que a esperam ( não porque tenham cometido um crime, ou tenham lesado a sociedade ), mas porque o Homem, por leis absurdas, arbitrárias e monstruosas, assim o decide.
São celas de espera ... locais de passagem, simplesmente.

E também aí, como nos humanos, cada ser tem a sua individualidade própria, a sua forma de ser, estar, de sentir ... de se rebelar ou não, de sentir raiva, medo, ou simplesmente impotência e desistência ...
Tenho absoluta certeza que atrás daquelas grades, naquela contagem decrescente, cada cão, cada gato, "sabe" exactamente que o seu destino foi aleatoriamente traçado, injustamente decidido pelos que deveriam ter sido os seus melhores amigos, os seus companheiros de percurso, e que pouco ou muito pouco, há já a fazer ...
E por isso também as suas posturas mostram claramente o seu carácter.

Os meus olhos bateram no azul-lilás glaciar do olhar daquele "husky", aparentemente distante, indiferente quase, deitado no chão da box que ocupava.
Penso  que "sorria" com  a  mesma  complacência  com que  Cristo  quando  na  hora da Sua  "passagem"   ( elevando o espírito ao Pai ), terá intercedido pelos Seus algozes : "Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem "!...  diz a Bíblia.

Os sons daquele "inferno" eram indescritíveis, aterradores ...
A movimentação dos animais em desespero, nos espaços exíguos que ocupavam, dantesca, irrazoável ...
Havia um uníssono pedido de socorro que ecoava, ribombava, fazia estremecer, como tempestade a aproximar-se ...
Havia um clamor angustiado e doído de abandono e de terror.
Havia uma dor pungente, que era impossível não nos assaltar o coração, fazendo-nos sentir pequeninos, medíocres, incapazes, fazendo-nos assumir vergonha até na alma ...
O ser humano no seu pior !!!...

A postura altiva daquele animal chamou-me a atenção.
Era inusitada, não era espectável, era superior.  Sem dúvida reveladora de um particular carácter.

A minha visita ao canil mostrara-se uma vez mais infrutífera.  DIVA também não estava por ali ...
Sentia-me atordoado, meio "adormecido", derrotado, meio "morto" por dentro.
Segui até ao fim dessa rua de jaulas.
Os cães em alvoroço ensurdecedor, saltavam o quanto podiam às grades, chamando, apelando, parecendo pedir clemência, analisando possivelmente o "facies" dos visitantes, como se cada um pudesse representar um possível salvador, um possível futuro, uma vida outra vez, uma derradeira "chance".
Cada pessoa, e eram sempre excessivamente poucas, não era mais que o limbo entre a Vida e a Morte, naquele mundo aterrador e fantasmagórico.

No regresso teria que passar de novo junto àquele cão que me fascinara, desafiara de certo modo ... me enternecera e me "tocara".
O meu coração havia acelerado ;  uma sensação estranha invadiu-me, uma "ordem" interior, martelava-me a cabeça.
Qualquer coisa que dentro de mim já se tornara distinta e irreversível, instalara-me um nó na garganta, comprimia-me o peito ...
Ele mantinha-se imóvel.  Apenas me olhava no azul cristal líquido das suas íris distantes, gélidas ...  Aparentemente impassível ... derrotado, não creio ...
Apenas "morrendo de pé", com a altivez e o orgulho das árvores, seguramente ...

Abeirei-me, olhei-o nos olhos e sussurrei-lhe ao ouvido :  "Se a DIVA não for encontrada, venho buscar-te na próxima semana" !...
( Estava marcado que esse animal seria abatido dentro de dias ).

A DIVA não mais fez parte da minha vida.
O destino decidira que seria assim.  Da  DIVA nunca mais tive rasto..
Apenas, também o destino decidira que as minhas lágrimas por ela, seriam secas pela partilha do amor que se iniciara nesse dia.
Assim é a vida ... Não se descreve, não se explica ... aceita-se e vive-se ...

ZEUS viveu comigo os anos que a saúde lhe permitiu.
Foi um dos maiores AMIGOS que tive o privilégio de possuir, um dos maiores companheiros, cúmplices ... um dos maiores, incondicionais e magnânimos afectos da minha vida., um dos seres mais "inteiros" que cruzaram o meu caminho !!

Deu-me um amor como só os animais sabem oferecer.
Uma grandeza de alma ( que eu sei que ele tinha ), num "rosto" e num coração de cão, que nenhum ser humano jamais alcançará !!!...

Anamar

quinta-feira, 7 de junho de 2012

" DIVAGAÇÃO "


Um domingo mais, de Inverno de "penetra", quase num Verão pelo calendário.
Tudo a desoras, tudo desencontrado, tudo às avessas.
O Mundo às avessas, a Vida às avessas ... as pessoas a fazerem o que não querem, a viverem o que não querem, a sonharem o que não têm.

Mas os sonhos são isso, não?
Os sonhos são exactamente o que se inventa, o que se desenha em écrans inexistentes, próprios para verdades inexistentes.
Os sonhos são fantasminhas que atordoam as noites, mas também atordoam os dias. E os dias são difíceis de partilhar com fantasmas, já que nas noites os nossos olhos estão fechados, e consequentemente a alma também, mas nos dias as pupilas deixam passar muito mais luz, e sempre teimamos em estar dispertos ...
E depois, os dias são compridos ...  Os dias valem duas noites pelo menos, e o fôlego falta, pois são verdadeiras montanhas a escalar.

E a soma dos dias faz semanas, e estas, meses ... e estes, anos ... e os anos, vidas.
E ao contrário dos dias, as vidas passam num instante e são cheias de contradições.  Zombam connosco.  Brincam de "baralhar e voltar a dar", e quando julgamos que já dominamos aquele jogo, é tudo mentira ... não conhecemos merda de jogo nenhum.

Sempre somos aprendizes desta história.
Sempre somos aprendizes de marionetas.
As marionetas são mexidas por cordéis entre dedos habilidosos.  Mas as marionetas são simplesmente mexidas.  Como bonecos, não têm vontades.
Têm vida, pela aleatoriedade da vontade de quem com eles brinca.
Ganham vidas de fingir, e fingimos que temos vidas !

E arrancamos gargalhadas em dias de sol.  Apenas ... o sol não brilha muito, porque agora parece ser Inverno outra vez.
E há o mar, aquele berço de ninar que sempre embala para cá e para lá ...
Mas o mar agora está muito longe, e só serve de berço a cinzas.  Mas para isso é preciso dormir em paz.  E quem tem pesadelos ainda não dorme em paz !

E há a serra, há as mimosas, as madressilvas, as margaridas silvestres, as tâmaras maduras ... ou há simplesmente o ruído das marés a bater nas rochas sonolentas, ou o grasnido das gaivotas e das andorinhas do mar aproveitadoras do vento distraído.

E depois o céu insiste em ficar cinzento, que é aquela cor que é e não é ... e que é muito pior que ficar negro ... e claro, muito pior que ficar azul límpido e trasparente, porque isso só acontece em dias em que a Vida brinca de Vida e não de Morte.  E esses, não são muitos ... aliás, são raros !...

As montanhas desenham limites que parecem limites, mas não são !
As montanhas são as portas do céu que se abrem em leque, ou em corolas de malmequeres a desfolharem o bem e o mal me quer ; ou ainda como pedras de dominós que se derrubam, com a facilidade de castelos de cartas a empurrarem-se ... ou farrapos de nuvens que deslancham, como claras em castelo ...
Mesmo assim, as montanhas são absolutamente fiéis, porque são perenes e verdadeiras.  Precisam milénios para fugirem e se esconderem de nós.  E nós não temos milénios para as ver ir !!!...
Por isso, os condores as habitam, os falcões as amam, as águias as buscam.
Pelas suas janelas corre a aragem fresca, e o Mundo espreita.
Quem atravessa as suas portas esbarra na liberdade do outro lado, e sufoca-se com a paz e o desprendimento.

O arco-íris, que é aquele trampolim com que os diabinhos se divertem, sempre surge quando as lágrimas se misturam com sorrisos.
E costuma aparecer lá por detrás das montanhas, quando o coração resolve adormecer no mar, e o céu pega fogo ...
É a hora em que a lua cheia acaba de se enfeitar, e decide vir ao salão de baile, escutar as óperas de Mozart, que tocam só para nós !
Os corais explodem então em mil cores esfuziantes, as anémonas sacodem vaidosas as "plumas" de pavão, e as conchas e os búzios vêm até à praia espreguiçar-se ...
Nos  templos, as  ladainhas  rodopiam nas abóbadas, sobem aos pináculos, passam  muito para lá dos torreões, violam os vitrais,  entontecem  nas rosáceas ... e  os salmos e os "glorificat" ecoam até  aos infinitos ...

Lá ... onde os sóis nascem e se põem, indiferentes !!!...



Anamar

quarta-feira, 6 de junho de 2012

" O RAPAZ DAS AMORAS "




Não se precisa do que não se conhece.
Sofre-se com o que se conhece, queríamos, podíamos ter e não temos ...

Ontem perdi estupidamente um casaco de malha de que gostava muito.
Estupidamente como afinal acontecem todas as perdas, e particularmente as que ocorrem por desatenção, falta de cuidado, ausência de concentração ... dispersão de espírito, da nossa parte.
O tal casaco foi pertença de uma das minhas filhas, creio, ou pelo menos, tanto quanto sei, ela ofereceu-o à avó, não sei se por "prenda" mesmo, se porque não o vestindo e pretendendo aliená-lo, entendesse que ele era adequado, e ficaria bem, no corpo da avó.
Contudo, sendo embora muito bonito, de uma malha de seda e um cair clássico impecável, não correspondeu ao entendimento estético da minha mãe.
Deixara-o portanto "adormecido" no roupeiro.

Aqui há uns tempos, não muitos ( creio que só tive o privilégio de o vestir talvez duas vezes ... tão curto o tempo que o detive ), a minha velhota resolveu sugerir-me que o trouxesse, para que o usasse ... "Uma pena estar ali enfiado" !...
Assim fiz, e achei-me sortuda por ter uma peça "nova" no meu guarda-roupa.
Ontem, pela tarde, indo para fora de casa talvez até à noite, e tendo-se instalado uma aragem meio desabrida, resolvi prevenir-me e levá-lo comigo, para o "que desse e viesse".
Coloquei-o entre as asas da mala, em tão má hora, e num daqueles gestos que fazemos quase mecanicamente sem que os consciencializemos, que terá caído sem que tivesse "gritado por socorro" !...

Essas posturas do ser humano, em que a cabeça se "despega" do corpo, sempre dão "bota".
As coisas tornam-se como que invisíveis, estão lá onde as colocámos, mas nós é que já lá não estamos ... e pronto ... fácil, fácil, deixam também de estar ...
Cresceu-me uma raiva imensa contra mim própria, pela incúria, desatenção, falta de previsibilidade ... tontice.

Contudo, perante alguma coisa que por mais que eu quisesse reverter não mais seria possível, pensei : " Não tinha que ser meu !  Por portas travessas veio ter-me às mãos, sem que tivesse estado inicialmente destinado a ser propriedade minha.  Aconteceu algo que foi absolutamente inalterável.  Nada a fazer !...
Neste momento, a sua história continua ... noutras mãos, alindando outro corpo ... abrindo certamente um sorriso noutro rosto " !!

Deixou de me fazer falta.
Não se precisa do que já não é nosso !  Não se deve sofrer por já o não termos, embora o tivéssemos amado.
O ser humano um dia parte, e pouco ou nada leva.
O desapego é uma virtude.  Quanto menos temos, menos ansiamos, menos sentimos falta ... mais completos nos encontramos, menos infelizes, porque menos insatisfeitos !
Como referi num post anterior ... assim disse Pessoa !!!

Devíamos treinar a simplicidade, a ausência de ambição desmedida pelo material, a ausência de prolixidade em que sempre tendemos a submergir-nos.
Em suma, devíamos ser como o "menino das amoras", da história que uma amiga mais ou menos me contou ...

Pedro e Samuel eram dois meninos da mesma idade, que haviam nascido no mesmo dia e viviam realidades opostas.
Pedro vivia num mundo de sonho, de super-abundância, de ostentação, de excesso ... de facilidade.
Habitava uma casa maravilhosa, rodeada de jardins mais maravilhosos ainda, com relvados perfeitos a perder de vista, flores cuidadosamente dispostas em ornamentação estudada, com lagos pejados de peixes vermelhos.
Pedro tinha as melhores roupas, os melhores sapatos, os melhores brinquedos, uma alimentação privilegiada, empregados a rodearem-no.

Samuel era um menino muito pobre, solto nos campos, entregue a si mesmo, tendo como únicos tesouros, os pássaros, as plantas, o sol e o vento que lhe desalinhava os cabelos, nas brincadeiras livres.
Do topo das érvores onde amarinhava ( rasgando os pés descalços e esmurrando os joelhos ), tinha o Mundo ao seu dispor ...
Samuel não conhecia para lá dos horizontes da sua aldeia.  Conhecia de  cór o nascer e o por do sol, e as poças de água, de chapinhar em dias de chuvadas insistentes.
Tinha o ribeiro para os mergulhos nas tardes quentes, e como brinquedos, a sua flauta de cana e o pião de guita, que o sr. Chico da mercearia lhe oferecera, num dia de boa disposição.
Tinha as fisgas que construía para fingir que apanhava pássaros, brincava com as rãs nos charcos e metia-as nas calças, para pregar partidas matreiras às irmãs ;  era o maior a caçar os grilos e os gafanhotos, e também jogava com os berlindes que cerravam os pirolitos da loja do sr. Chico.
Bolas, tinha quantas queria ... das meias muito rotas lá de casa.
Samuel ainda não ia à escola ; comia as maçãs das árvores altas, as maçarocas do milho, que tomava à socapa dos milheirais da vizinhança, e assava numa fogueirinha ...
Comia uvas das latadas, o prato de sopa ao dormir e o leite que sobrava da venda ... quando sobrava ...
Ah, claro ... e as amoras selvagens que apanhava  nos caminhos, e que não eram de ninguém ...

Por sobre os muros dos jardins da mansão onde Pedro vivia, conheciam-se através de conversas trocadas.
Tinham vidas completamente diferentes, corações infantis iguaizinhos, olhos puros, a ingenuidade e a nobreza das crianças.
Pedro era um menino triste, sem sonhos, sem horizontes, sem vontades.
Samuel era um "potro" livre, que inventava de ser feliz, que se comprazia com o nada de que dispunha, e com as amoras silvestres que apanhava às mãos cheias.

No dia dos respectivos aniversários, Pedro quis que o seu amigo vivesse um dia surpreendentemente diferente.  Por isso convidou-o a passá-lo consigo, desfrutando da sua casa e dum lanche, na sua "gaiola dourada".

Tudo foi oferecido a Samuel, que extasiava incrédulo, curioso, com os olhinhos amendoados, arregalados, no rosto bem vermelho pela surpresa e emoção.
Comeu até fartar, de tudo o que conhecia, não conhecia, nunca vira ou sequer sonhara.
Brincou com brinquedos que jamais imaginara, ouviu outra música que não a dos pássaros, fez corridas de bicicleta, assistiu às séries infindáveis de desenhos animados que preenchiam o tédio das longas tardes de  Pedro.  Pasmou com as figurinhas lindas e coloridas, dos livros que povoavam o imaginário do menino ...
As bolas de jogar, estranhamente eram de borracha.  Não tinham a "sensibilidade" das suas, inventadas, de trapos ...
E os soldadinhos não tinham fisgas nas mãos, mas fusis e espadas ...
Não sujou os pés na terra, porque estava obviamente calçado com as únicas botas que possuía.
Não caçou pássaros, nem apanhou grilos ou gafanhotos ... menos  ainda rãs, porque na casa de Pedro não havia charcos.
Não ficaria bem subir às árvores do jardim, e por isso, os joelhos foram poupados.  A emoção, também !...

O dia chegou ao fim, e com ele chegou a hora de regresso de Samuel.
Cansado, eufórico, com o "João Pestana" a pesar-lhe nos olhinhos e o coração ainda aos saltos, o menino despediu-se do amigo.

Como última gentileza, os anfitriões procuraram saber da satisfação de Samuel pelo dia que passara na sua casa, inquirindo da sua alegria e sugerindo à criança que comesse  algo mais, antes de partir ;  alguma coisa que ainda fizesse gosto ...

O rapaz ficou repentinamente sério e circunspecto, como que analisando no seu interior, o que poderia faltar-lhe, no meio de tudo e de tanto.
Instado a responder, arqueou as sobrancelhas, elevou os ombros, e depois de uns minutos em silêncio, disse, timidamente baixinho :

" o que realmente me apetecia ainda ... eram só umas AMORAS " !!!...

Anamar

" O SER HUMANO "

PREÂMBULOTenho tido o meu computador avariado, razão pela qual há bastante tempo aqui não venho.    
Tenho, contudo, escrito alguma coisa, que recomeço aqui a publicar hoje.



Que coisa mais estranha ... Deixei de conseguir escrever !
Deixei de sentir dentro de mim razão de ser, para por no papel alguma coisa, porque pareço estar insensível ao que me rodeia, e era razão de exprimir emoções.
Desvalorizo sistematicamente todo e qualquer assunto, porque de repente, as coisas que me mexiam, eram gigantes e precisavam vazar, continuam a precisar vazar, mas esbarram por sistema em comportas que não abrem.
A "albufeira" vai lotando, lotando, o que me instala um sofrimento, um desconforto, uma falta de ar ... e um "dia é dia", como costuma dizer-se ...
Assim são as catástrofes naturais, quando a chuva é intensa e os lagos não comportam o excesso de caudal.

O computador entretanto avariou, embora ultimamente eu tenha deixado de ter uma relação muito saudável com ele.
Penso que saturei, ou me desinteressei, ou me incomoda, de alguma forma.
O ser humano é bem complicado ... eu sou bem complicada !

Hoje perdi a última esperança de fazer algumas férias lá fora, como todos os anos.
Normalmente as minhas viagens eram suportadas economicamente em grande parte, pelos subsídios e pelo acerto do IRS, que recebia exactamente agora no Verão.

Este ano, como sabemos, não só os subsídios não foram e não serão pagos, como o meu acerto do IRS é absolutamente ridículo.
À semelhança de um mail irónico que circula, simbolizando as "férias dos portugueses" ( assim se chama ) - em que se vê uma personagem em trajes de praia, sob um chapéu de sol e um copo de refresco na mão, frente a um televisor onde passam imagens de ilhas tropicais - também "viajo" todas as noites, compulsivamente, no Travel Channel.
E como invejo os realizadores desses programasa, que à conta de os produzirem, conhecem o Mundo inteiro !...

Não é justo que eu coloque aqui este estado de espírito ; aliás, é provocatório, descabido e egoísta.
Numa época em que o planeta se debate, mais que nunca, com todo o tipo de dificuldades  para sobreviver ... numa época em que as famílias se desdobram, inventam, lutam em desespero para subsistir ... numa época em que o comum dos mortais apenas quer saber se estará ainda empregado no dia seguinte, se terá dinheiro para manter a escolaridade dos filhos, "responder" às necessidades de saúde e alimentação sua e dos seus familiares ... em que os sem-abrigo aumentam exponencialmente sob o céu escuro ... em que os suicídios e depressões grassam, e nunca tantos portugueses recorreram ao psiquiatra ... numa época em que até o sol parece ter-se apagado por cima de Portugal ... em que até ele parece ter deixado de ser gratuito e generoso para todos, aqui no nosso cantinho ... bolas, falar em férias ... nesta época ... exactamente nesta "altura do campeonato", parece uma blasfémia, óbvio !
E é ... claro que é !!!...

Mas também é verdade que continuamos a ver assimetrias sociais gritantes ; continuamos a ver gente ( e são sempre os mesmos ), a "dar-se" muito bem na vida ; a manter os privilégios e os esquemas, à custa de muita coisa mal, ou não explicada ; continuamos a ver que as oportunidades afinal não são nem foram iguais para todos, que as arbitrariedades estão e continuarão instaladas, que não é quem trabalha honesta e transparentemente, que enriquece e deixa de ter sobressaltos de vida ... 
E isso faz-nos sentir um amargo de boca, uma revolta interior, uma raiva que amordaçamos, sempre amordaçamos ( porque os portugueses, de uma maneira geral, são "boa gente", pacífica, cordata e sofredora por excelência ) ...

No café de todos os dias, em que as pessoas se partilham momentos desses dias ... em que as pessoas não se conhecendo objectivamente, criam afinidades, criam laços, de certo modo, trocam escassas palavras de cumprimento e raramente de algo mais ... em que as pessoas por hábito, já sabem quem está "a faltar", e se questionam por que o será ... e até se inquietam, até inquirem " o que terá acontecido" aos ausentes ... chega a experimentar-se "alegria" se regressam, se os rostos voltam a fazer parte dos desígnios dos destinos ... que se cruzam, se descruzam, se dividem ...

Hoje regressou à bica do pequeno almoço, um utente do espaço, que "desaparecera" há cerca de dois meses, e que quando "sumiu", aparentava estar com problemas de saúde.
Um senhor beirando os oitenta anos, tipo inglês, distinto, discreto, extremamente correcto, um senhor bastante alto, seco de carnes, "low profile".
Não fui só eu a sentir a sua ausência, apesar de apenas trocarmos alguns diálogos de pura cordialidade.
O "doutor", como é tratado ( não sei do quê ... Eu "fazia-o" ex-militar ... general, brigadeiro ... nunca menos ... rsrsrs ), sempre me oferece, depois de o ler, o jornal desportivo diário, que compra . 
Reencaminha-o para a minha mãe, que nos seus noventa e um anos, como já tenho dito, sabe mais que muitos, sobre futebol e não só.
Sabe largamente do seu Sporting, que lhe dá dores de cabeça continuadas ( e para cujos insucessos sempre tem uma explicação justificadora ), e fica diariamente reconhecida, por ter acesso gracioso às "frescas", que a distraem pelas tardes ociosas.

E dei por mim, ao bater os olhos nele, a ter uma espécie de alívio, de tranquilização de alma, de alegria.
Porque afinal, o "senhor" não morrera, como eu já havia imaginado  ( embora tenha estado longamente doente ) ;  
E mesmo depauperado, voltou ao nosso convívio.

Parece exagero o que aqui escrevo. Pode parecer uma postura "atoleimada", descabida, até pretensiosa talvez, da minha parte.
Mas afianço-vos que senti tal qual assim, porque o "doutor" já é pertença minha, já há muito faz parte da minha realidade diária, de cada uma da vinte e quatro horas que me vão sendo disponibilizadas, na estrada que me é dada percorrer.

O ser humano é assim ... enquanto for HUMANO ... espero !!!...

Anamar