sexta-feira, 31 de agosto de 2012

" POEMA DE AMOR "



Ama quem te saiba ouvir e entender a tua linguagem ...

Ama quem saiba rir contigo, e quem saiba também secar-te as lágrimas quando caírem.

Ama quem saiba passar contigo tardes infindáveis, serões sem horas, a conversar de tudo, por tudo e por nada, e o nada é importante, e é tudo ... porque o conversaste ...

Ama quem se deixa embalar na mesma música que tu ...

Quem se emociona e saiba extasiar-se, só porque o sol vai adormecer no horizonte laranja, lá longe ...

Ama quem adore a beleza de todas as flores, mas aprecie a singeleza das silvestres, daquelas que nascem nas pedras, nos muros, nos troncos, e não foram semeadas por ninguém, e não são regadas  por ninguém, que não a Natureza, mãe de todas elas ...

Escolhe quem goste de dançar contigo na chuva , saiba perder-se na sua melopeia embaladora, e saiba escutar o mar pelas madrugadas, em todas as marés ...

Ama quem, como tu, ame todos os animais, tenha compaixão por todos eles, e lhes conheça o verdadeiro valor, dedicação e afecto ...

Ama quem deixe o sonho voar livre, junto com aquela gaivota que voa de asas esticadas, na brisa da tarde, até lá onde a vista não divisa mais ...

Ama quem gosta dos espaços sem horizontes que os limitem ;   mas também do alcantilado das serras, das falésias, das escarpas ... das pedras sem história, por terem uma história que não finda nunca ...

Ama quem saiba dar-te as mãos, entrelaçando forte os dedos, como se com isso quisesse mostrar-te que segura o Mundo para ti ...

E também quem saiba simplesmente silenciar contigo, perscrutando apenas as batidas de corações,  em  simultâneo ...

Fica com quem saiba sempre olhar a lua cheia, da tua varanda, e acredite que nela há olhos que se encontram, e corações que se juntam ...

Prende  só  quem  souber  que  estás  a  prendê-lo  com  o  teu  olhar  ( porque  o  lê  e  o  conhece ) ...
... e não  com  amarras  ou  algemas !...

E guarda dentro de ti, quem souber os mistérios e os segredos do teu corpo, porque os tem guardados dentro do seu ... Mais ninguém !!!

Ama quem gosta de brincar na areia, como criança outra vez, e quem fica feliz e te ache linda, só porque o vento ousa despentear o teu cabelo, e isso te faz lembrar as mãos sábias que muitas vezes já o despentearam ...

Ama quem saiba estreitar-te ao peito, e o peito seja quente, da fogueira que o incendeia, só porque tu estás perto !   E quem deixe repousar a tua cabeça cansada, no seu regaço doce, como barco em porto de abrigo ...

Ama  quem  saiba sonhar  longe, ainda  que sejam sonhos infantis e pouco prováveis ... mas sonha !...
Ama quem acredita que esses sonhos deixarão de ser sonhos, e um dia, já velhinhos, vão transformar-se em realidades à luz da lareira acesa ...

Não precisas sonhar o belo, o sublime, o irreal, o utópico, o que é mentira ... porque isso passa, e as perfeições  e  as obras de arte, só existem, mortas, nos museus, em telas pintadas ou estátuas esculpidas ...

Mas não esqueças ... ama ... sobretudo ama, quem tenha força, coragem, determinação, para sempre, em qualquer momento, lutar por ti, sofrer por ti, querer o teu ser junto de si, e que jamais seja capaz de esquecer ou abandonar os sonhos sonhados e partilhados um dia, lá atrás, pelos dois !!!...



Anamar

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

" A ESTRELA CADENTE "



A noite estava completamente escura.
No pico da encosta, lá, donde se divisa o Mundo, viam-se longe alguma luzes das últimas casas da aldeia, via-se a luz do farol, que varria sincopadamente e em ritmo certo, 360º de espaço à sua volta ( por certo era uma luz aconchegante e tranquilizadora, para quem vinha dos lados do mar ), e viam-se as constelações no céu de breu.
Era o privilégio e a maravilha que sempre a extasiavam, quando subia ao cimo daquele cume, onde só ali havia escuridão suficiente para ver, admirar e "contar" as estrelas.

Quando era miúda, nas férias passadas na aldeia, era vulgar o avô levá-la a passear após o jantar, quando já corria aquela fresca abençoada, na canícula do Alentejo.
Sempre iam até ao campo, e subiam àquele pico, que afinal era logo ali.
A iluminação precária e pobre da povoação, desaparecia totalmente logo no virar da primeira esquina, e a escuridão espalhava-se e envolvia tudo em seu redor.

Os grilos e as cigarras "desgarravam" sem se cansar ; os chocalhos dos rebanhos, que no Verão não recolhem aos estábulos, soavam de quando em quando nos pastos, e a voz sincopada do avô, uma voz calma, doce e sapiente, sem pressas, contava-lhe histórias ...
Histórias não daquelas que se lêem nos livros, de fadas, coelhinhos e lobos ferozes ... mas histórias de vidas, histórias de gente, histórias reais, em linguagem infantil, que não esquecera até hoje.

Havia uma cumplicidade imensa entre os dois, uma partilha de saberes e de emoções.
Ambos ensinavam, e ambos aprendiam um do outro, porque os adultos ensinam, mas aprendem sempre muito com as crianças.

Se mais não tivesse sido ( e foi muito mais ), o repositório destas memórias e deste afecto que se partilharam, perdurava quase cinquenta anos depois ( e por certo, por toda a vida que ela ainda vivesse ) ;
ficara indelével, gravado, ajudara à sua formação como pessoa, como um adulto íntegro.
A transmissão dessa sabedoria, que nenhum livro, nenhum filme, jamais conseguem fazer, é afinal a memória dum povo, é a sabedoria das gerações, é a experiência de vidas, é  o  legado  das  tradições,  é  a  história da  Humanidade que  passa  através dos séculos ...

A primeira "estrela" que descobriam no céu, era Vénus, que o avô lhe dissera chamar-se a "estrela do boeiro".
Vénus era um planeta "mascarado" de estrela, e por isso não "piscava", como pisca a luz das estrelas "à séria".
Era do "boieiro", porque subia no céu ao cair do dia, exactamente quando o gado recolhia aos estábulos.
"O sol vai dormir, quando Vénus se levanta" - dizia-lhe o avô.

Depois era a brincadeira de qual dos dois descobria primeiro, no céu escuro, a Estrela Polar, a última estrela da cauda da  Ursa Menor ; e a Ursa Menor  era encontrada a partir da Ursa Maior, um "quadrado" desenhado por quatro estrelas, e bem mais fácil de encontrar.
Multiplicando por cinco a distância entre as "guardas" ( duas das estrelas dos vértices desse quadrado ), íamos então encontrar a Ursa Menor, e daí à Estrela Polar, era um pulinho ...
Lá estava ela, bem mais brilhante que as outras, mais visível ... parecia maior !
O avô explicara-lhe que o tamanho com que as viam, tinha a ver com a distância a que elas se encontravam de nós, e contava-lhe que naquele preciso momento, poderiam estar a ver a luz de estrelas que já haviam morrido há muito, luz que levara muito, muito tempo a chegar à Terra ...

Isso era um mistério insondável e mágico para a menina ...
Como era possível ver-se uma luz que brilhara numa estrela que já não existia, se ela só veria a luz do farol, se o faroleiro não se esquecesse de o ligar ??!!...

O avô contara-lhe também, como muitas e muitas gerações se haviam orientado pela Estrela Polar, que sempre indicava a direcção do norte.
Daí, à bússola e aos pontos cardeais, era outro pulinho de pardal ...
E as histórias continuavam ...

-"Avô, e só existem estas constelações?  Porque eu não vejo mais "desenhos" feitos no céu !!! - inquiria Isabelinha.

E aí, vinha o hemisfério norte e o hemisfério sul ( as duas meias laranjas ), a cassiopeia, o orion, o cruzeiro do sul ... e daí vinham os pólos, e o equador, e a forma da Terra e de como ela se movia e rodava em torno do Sol, a estrela que todos os dias nos aquece, e que, quando ela também morresse, a Terra  morreria  junto !
Contou-lhe dos dias e das noites, e como a essa hora, em terras distantes, as pessoas estavam a começar o seu dia ...
E contou-lhe também, que há muitos anos atrás, um senhor chamado Galileu ( um cientista que estudava muitas coisas ), fora condenado e preso, por ter afirmado que a Terra girava em torno do sol, o que nessa época da História, foi considerado uma blasfémia e uma heresia, porque o que os Homens viam diariamente, era o Sol a levantar-se e a pôr-se ; portanto, quem "andava" era o Sol e não a Terra, e Galileu não passaria de um trapaceiro, e de um impostor aldrabão ...

- "Como os homens eram ignorantes, avô !! ....
E  a  forma  da Terra, como descobriram que era uma "bola" ??

Veio então a história do horizonte. O avô chamava a atenção de Isabel, de como, do alto daquele cume onde se sentavam, a menina podia ver uma linha curva e não recta, a limitar tudo o que os rodeava, tal qual como na praia, olhando o mar, lá ao fundo ...
Apanhava do chão uma pedrinha esférica, e mostrava-lhe como afinal era lógica a conclusão !...

Nas noites em que a lua cheia se pavoneava no firmamento, obviamente que as "fases" eram questionadas.
Até hoje se lembrava como o avô lhas ensinara tão intuitivamente, arranjando uma laranja, uma uva e a luz de uma vela ... que ele dizia fazer de conta serem a Terra, a Lua e o Sol, respectivamente.
E contara-lhe um segredo :  "Olha, Isabelinha, para saberes sempre em que quarto está a lua, lembra-te que ela é "mentirosa" !...   Quando desenha um "C" no céu, está em quarto decrescente, e quando forma um "D", está em quarto crescente ...   Assim, nunca te enganas !..."

- "Avô, e aquelas manchas que a gente consegue ver tão bem na Lua ... o que são ??"

E os temas nunca terminavam, e variavam de noite para noite.
Sempre a partir de palavras adequadas à sua idade, sempre de uma forma bem simples, aprendeu muito do que não esqueceu pela vida fora ...
Histórias da vida no campo, das sementeiras, das colheitas, das mondas, da ceifa ... das estações do ano ...
Histórias da gente pobre da sua terra, quando a pobreza era muita, e a açorda de pão "dormido", quase só o  que  havia  para  pôr  na  mesa !...
Histórias das chuvas, das geadas e das neves, que há muitos anos atrás, contava o avô, num Inverno muito rigoroso, pintaram de branco a sua aldeia !...
Histórias dos meninos que não podiam estudar, porque os pais não tinham dinheiro que o permitisse, e mal aprendiam a ler, a escrever e a contar, abandonavam a escola, porque havia que ajudar no sustento da casa, trabalhando muitas vezes acima do que uma criança poderia fazer ...
Contava-lhe que na escola escreviam numa ardósia, que era uma pedra de lousa, com um giz branco ...
Contava-lhe que a sacola da escola, era feita em casa, de burel, um tecido bem resistente, para que durasse para todas as crianças da família, sem se estragar ...
E que eram poucos os meninos que tinham calçado, e por isso, a maior parte andava descalça, até nos Invernos mais gelados !
E quando lhes era comprado um par de botas, na feira, estas eram cardadas, e levavam "protectores" nas biqueiras, para que não se estragassem facilmente ...
E depois havia também que explicar o que eram "cardas", e o que eram "protectores", porque felizmente Isabel nunca os vira !...

Passadas mais de cinco décadas, Isabel ficaria ali, uma outra vez, no cume da encosta, lá donde se divisa o Mundo ... certamente até de manhã ... e ainda assim não lembraria a globalidade de todo o tesouro inestimável, que por certo, sem se aperceber, na sua pouca / muita cultura, o avô lhe transmitiu em menina ...

Deu por si meio adormentada nessas memórias, deu por si a ver as luzes distantes e pobres do casario da aldeia ( não havia mudado grande coisa ), e deu por si a ver o varrimento da luz do farol, que não se havia cansado até então ...
Mas deu também por si, inconscientemente, ao olhar o céu e ao ver uma estrela cadente ( aquelas que o avô lhe  dissera que tinham  sempre  muita  pressa  de  caminhar ), a  pedir,  como  em  menina,  três desejos ...   " porque se os pedires, a estrelinha, na sua corrida pelo céu, vai depressa buscar-tos " - dizia-lhe ele ...

Que saudade desse tempo, que saudade da figura do ancião que tanto amou, sempre venerou, e nunca esqueceu ...  que saudade de si, em menina !...
Hoje, na sua vida, na sua realidade, na mulher que ela era, pensou que lhe bastaria pedir UM só desejo ... se a estrela cadente fosse capaz de lho trazer !!!...

Anamar

terça-feira, 28 de agosto de 2012

" QUANTO TEMPO ?... "




Estes inícios de dia são o meu "luxo" diário .
Este pedaço de tempo, em que no café habitual, na mesa do cantinho, onde normalmente tenho sossego, posso escrever, ler, utilizar o portátil, ouvir sempre a indispensável música ( para estrategicamente abafar o som ambiente ) ... é o meu "recreio" !

Em primeiro lugar, ainda é manhã, e "vejo" o dia com olhos auspiciosos, até com alguma euforia. Quase sempre nem percebo bem porquê.  É engraçado, mas parece que recebo sempre cada manhã, como se me esperasse algo bom, como se recebe um hóspede desejado.
Tenho algum entusiasmo dentro de mim, como se fosse viver ao longo desse dia, alguma coisa boa e feliz ... como se fosse iniciar algum capítulo de vida ... e os inícios do que quer que seja, são normalmente assim !...
Por isso, este é o meu melhor período das vinte e quatro horas disponíveis, nesta "tranche" !...

À medida que o dia avança, eu avanço com ele, e como ele vai caindo, eu também vou caindo com ele.
A minha "curva" de humor é consequentemente descendente, e por isso, quando ele atinge o ocaso, eu também me fecho por dentro.
Aliás, é um período que me apavora ...
O lusco-fusco, o pôr-do-sol, a despedida da luz, a transição entre o dia e a noite, representam-me uma espécie de período de passagem entre vida e morte, uma espécie de despedida de qualquer coisa, se calhar uma despedida das esperanças acalentadas, tão só !
Não consigo explicar melhor, mas esse é o espírito que me domina.  São momentos de desânimo, de um cansaço abismal, de uma sensação de solidão e abandono, atrozes.

É também uma hora em que me confino ao meu quarto, terminadas as tarefas do dia.
No meu quarto existe tudo o que me faz falta.  Podia mesmo "habitar" exclusivamente aqui.  Tenho uma cama onde muitas vezes me deito, não porque tenha sono, mas porque não sinto razão para estar em pé.  Tenho o computador, tenho a televisão, tenho música, tenho um sofá de leitura ... e tenho uma janela virada ao pôr-do-sol em Sintra, lá longe !...
Já contei que me "roubaram" o Palácio da Pena, que divisava claramente do alto do meu sétimo andar, ao construirem há uns anos, um edifício ( mais um ), perturbador da paisagem.

Caminhamos para uma época do ano que me "remexe" particularmente.
O Outono, com a diminuição do tempo de exposição solar, o despir da Natureza para o sono que se avizinha, as noites demasiado longas, dias demasiado curtos e normalmente cinzentos e escuros, e de acordo com a previsibilidade, a perspectiva de que por um destes dias a chuva comece a espreitar, deixa-me ainda mais angustiada, mais indiferente ao que me circunda, menos reactiva perante as realidades.
Como se sabe, esta época do "cair da folha", assim chamada, propicia a depressão, potencia o desânimo, estimula o isolamento entre as pessoas.
Na Natureza tudo se recolhe. "Varre-se a casa", renova-se o velho, para que na estação seguinte, comecem "em surdina", a gerar-se os borbotos que na Primavera dispararão em folhas e flores ; os troncos estão por isso despidos.
As folhas naturalmente amarelecem, como o cabelo embranquece, no nosso próprio Outono também ... e caem arrastadas pelo vento, que começará a soprar.
Muitos animais recolhem-se para o longo sono invernil, outros emigram, em busca do sol e de amenidades necessárias à vida.
Instala-se uma letargia natural, que parece "suspender" a vida por uns tempos ...

E eu também sinto a minha, não suspensa, mas inerte ... sem estímulo, sem objectivo, comatosa ...
Tudo o que me magoa se agiganta e desproporciona, em relação à ausência de força anímica, de esperança e coragem, que sinto dentro de mim.
São dias em que acordo já "anoitecida" ... são dias sem horizontes, são dias de túneis sem luz .  São dias de um vazio que dói fisicamente ...

Este tema não traz nada de novo que toda a gente não conheça já, de que eu própria não tenha já falado, provavelmente vezes sem conta, porque efectivamente é recorrente dentro de mim, povoa-me a mente, perturba-me o espírito.

Hoje fui indo, deixando-me levar nesta torrente de palavras, nesta enxurrada de emoções, e deixei-me escorrer, como uma levada incontida ... sei lá porquê ?!...
Porque é assim ... porque raramente programo ... porque escrevo em aleatoriedade total ... porque este é o avesso do "direito" que exibo para os outros, é a contra-capa de um livro, cuja capa raramente se vê, ou poucos conhecem, é a "coroa" de uma "cara" da moeda que escondo, porque ninguém a tem que conhecer, ou sequer suportar ...

As células sociais são cada vez mais estanques, mais insensíveis, mais imbiocadas em si mesmas ;  o indiferentismo, o anonimato, o desconhecimento, proliferam entre as pessoas, sobretudo nas grandes metrópoles.
A ausência de valores ancestrais, está posta em causa, mais que nunca ;  os próprios laços familiares e afectivos estão feridos, como sabemos, mercê de muitos e variados vectores ;  a disponibilidade dos corações e dos espíritos, é curta, porque como costumamos dizer, "cada um tem a sua vida", numa estrutura social autista e egocêntrica, do "salve-se quem puder" !!!...

E esta é a triste, mas real verdade, é o quadro despido de artificialismos, é a realidade nua, crua, mas objectiva.
Todos a conhecemos, mas felizmente, talvez por defesa, não pensamos muito nela, senão, pergunto-me, por quanto tempo, em juízo perfeito, mente sã e crítica, suportaríamos viver assim ???!!!...

Anamar

domingo, 26 de agosto de 2012

" AS CICATRIZES DA ALMA "



Hoje é um daqueles dias em que precisava escrever e não consigo ...

Acordei assim já, às nove da manhã.  Obriguei-me a ficar na cama, no dorme não dorme, e acabei por levantar-me às dez e muito.
Lembro que o estado de espírito que me acompanhou toda a noite, foi depressivo, magoado, cansado, desistente.
Senti isso ao levantar-me por uma ou duas vezes a meio da noite, inventando leite, inventando água, indo ver como estava o céu, pela janela da cozinha, tentando adivinhar se a metereologia acertara, prevendo para hoje um dia cheio de sol ...

Lembro que sonhei com o meu pai, e é incrível como nos sonhos conseguimos ver com clareza o rosto das pessoas que já nos deixaram há muito, e quando bem acordados, por esforço que façamos, há rostos, até de vivos, que não visualizamos, por mais que nos concentremos e esforcemos.

Estranho mecanismo este, dos níveis de consciência ou não, dos humanos.
Não sei !  Não sei sequer se a explicação dos sonhos é devidamente conhecida.
Normalmente dizemos que levamos para os sonhos as preocupações da vida real, que nos assaltam, como uma espécie de prolongamento onírico da realidade consciente.
O que é facto, é que por vezes, muitas, desencavamos situações, pessoas, seres que não obedecem a nenhuma lógica, naquele "timing" da vida ; 
outras ainda, passamos "filmes" desconexos e estapafúrdios, que umas vezes nos animam, outras nos "lixam" as noites.
Parece que há noites em que os "diabos" estão verdadeiramente endemoninhados lá onde quer que  estejam, outras em que parecem querer confortar-nos, permitindo-nos matar saudades, rever, reviver tantas coisas a que de facto já não temos acesso, porque o tempo passou, simplesmente ...

Hoje mais um domingo, na minha e em todas as vidas ...

Hoje estou cansada por tantos domingos que já vivi, por quantos terei ainda que viver ...
Hoje parece que arrasto grilhetas nos pés.   Tenho a sensação que se as lágrimas descessem de enxurrada, vencendo este dique de comportas fechadas cavado do coração à garganta, talvez aliviasse.
Mas não consigo ...  Não verto uma lágrima há que tempos.  Estou seca nos olhos, não no coração !
Esse, chora, chora, queixa-se, abana-me, como quem diz :  " estou aqui ... vê se me tratas melhor " !...

E é uma sensação de impotência, de não valer a pena, um desacreditar em tudo e todos, crescente ;  é uma mágoa, uma espécie de luto estranho, que parece sempre estar semeado dentro de mim, e germina em permanência.
Não tem sequer períodos de pousio.  E se os tem, os tais intervalos felizes em que cada vez acredito e aposto menos, são efémeros, curtos e inevitavelmente adivinham e abrem caminho ao que vem depois, que é a "factura" sempre incomensuravelmente pesada, que me derruba !

Falei em "luto" ...  de facto penso que na vida se fazem muitas formas de luto.
Lutos de pessoas, lutos de locais, lutos de memórias, lutos de afectos.
A supressão ou a privação de algo que nos foi significativo ou querido, de forma natural ou não, desencadeia forçosamente um luto na alma e no coração.

E as pessoas fazem tanto mais lutos, quanto mais sentem amarguras por isto e por aquilo, que é como quem diz, quanto mais sensíveis são, quanto menos resistências anímicas possuem, quanto menos traquejo de vida têm, quanto maior ingenuidade as caracteriza, e por isso menor capacidade de se defenderem perante as circunstâncias.

E cada luto nunca é inócuo.  Cada luto, por ser uma experiência traumatizante, sempre nos deixa "de menos", ou seja, nunca ficamos os mesmos depois dela nos atingir.
Por ser uma chaga aberta, implica a consequente cicatrização, e cicatriz após cicatriz, o nosso "eu" sofre mutações profundas, irreversíveis, muitas delas devastadoras, quase todas aliás, tanto maiores quanto mais envolvência tiverem implicado do melhor de nós, de muito de nós, de tudo o que pudemos e não pudemos investir ... e mais, do que investimos de coração, sem armas de defesa, porque as não tivemos !

É quase monstruoso, diria, o aproveitamento em benefício pessoal, da boa fé, da entrega, da confiança de alguém ...  É uma "traição" moral, uma "fraude" emocional, uma dor sem tamanho, porque a sentimos como um logro, uma injustiça, dos quais  não tivemos inteligência para nos subtrair ...

E não deixa de ser curioso que não tenhamos aprendido, ou tenhamos aprendido muito pouco, por cada "tornado" que nos deita por terra.  
É ilógico, não faz sentido, em tese não deveria / poderia ser assim.
Deveríamos crescer, maturar, ou pelo menos ganhar "armas", de experiência para experiência ...
Mas não, ou pelo menos, EU, não !...

Por isso costumo concluir que a minha inteligência emocional deixa muito a desejar, está infantilizada, ou a minha memória é curta demais ... porque até os alunos com menores capacidades, acabam por aprender, nem que seja simplesmente por repetência !...
"Casa roubada, trancas na porta" ... "gato escaldado, de água fria tem medo "... "à primeira todos caem, à segunda só os burros "... e tantos, tantos dizeres populares, que todos conhecemos, e por o serem, são imbuídos da sabedoria dos tempos, e todos apontam no mesmo sentido !...

Assim, acredito já não ter conserto possível ...
A racionalidade, na realidade parece não querer nada comigo !!!
Morrerei seguramente assim ...
Até lá, vou coleccionando as tais cicatrizes, que masoquistamente pareço gostar de ostentar, e que nenhuma "plástica" ( como já tenho dito ), conseguirá jamais apagar !!!...


Anamar

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

" A CASA DE MADEIRA "


Aquela casa fora o sonho da vida de Marta.
Uma casa simples, quase uma cabana, em madeira por dentro e por fora, aproveitando a tanta que existia por ali.
Térrea, um quarto, e uma sala ampla, essa sim, que privilegiara em tamanho.
Era virada ao sol poente ; escassos metros apenas, a separavam do mar, aquele mar que era um mar de brincar, porque nunca batia, sempre só brincava no areal.
Aproveitava a frescura concedida pela sombra do coqueiral, uns palmos de relva à frente, onde cabiam duas espreguiçadeiras, uma rede para horas de sonhos e recordações, e nada mais, além do que a Natureza generosa oferecia ... e era muito ... era demais !...

Tinha como companheiros os cães vadios que viviam pela praia, e eram amigos fiéis nas caminhadas diárias ;  tinha a garça que aos primeiros alvores do dia, debicava na rebentação, e tinha a família de "carpinteiros" que fizeram ninho num tronco de coqueiro já moribundo.
Marta era muitas vezes despertada para o dia que começava, pelo seu ritmo cadenciado, a picarem a madeira envelhecida.
Muitas madrugadas eram eles que a situavam no tempo e no espaço, naquele meio tempo em que ainda não sabemos bem que estamos vivos.

Porque muitas noites sonhava que estava em Portugal, sonhava que vivia a vida que deixara, sonhava com os que haviam partido de muitas formas, e também com os que lá estavam, e nunca esquecia.
Era o recuo no tempo permitido pelo sono, pelo entorpecimento e pela magia que ele tem, de nos transportar onde quer ... "Pena que não seja onde nós queremos" - pensava Marta muitas vezes.
Se isso fosse possível, quantas viagens no tempo e na vida, ela faria, quantas histórias, quantas vidas, quantos amores, quantos locais ela revisitaria ??!!...

A casa em Portugal estava fechada ... ( Portugal já não tinha mais para lhe contar, já não havia mais sonhos cabíveis nessa realidade ;  esgotara-os todos, até à exaustão, vivera todos os possíveis ;  e quando as esperanças, os desejos e  as  paixões começaram  a  ceder, deixando  lugar  apenas  a  mágoa,  desilusão,  vazio e recordações  -  essas sim, quase todas doces ... mas recordações, apenas ), decidiu cerrar janelas e porta, e partir, acreditando ir encontrar pelo menos paz, numa vida que seria o avesso total da que vivera até então.

Sonhou ter uma vida despojada, no meio da Natureza, num lugar que tivesse o sol, o mar e o céu, que sempre adorou e havia procurado ao longo dos tempos, nas viagens que ia fazendo ;
um lugar que tivesse os cheiros, as flores e os frutos que rebentavam sem pedir licença, que tivesse todos os pássaros do Mundo, que tivesse os sons do silêncio, e a areia branca e doce para pisar, e se envolver, como em lençóis de cetim ...

Consigo transportou o que achou realmente importante : os livros mais determinantes na sua vida, a música, sem a qual não viveria, papel e caneta ( porque continuava fiel aos registos à antiga ), o computador, como porta aberta ao Mundo, como veículo de ligação aos seus, lá longe, como arquivo do que ia escrevendo, aleatoriamente, sempre aleatoriamente como o fizera toda a vida, o mínimo indispensável de roupa e objectos pessoais com valor afectivo ( calções, t-shirts, "pareos" e trajes de praia, chapéu e chinelos, era mais do que suficiente ), e depois, um monte imenso de fotografias particularmente significativas, com registos de momentos, de vivências, de acontecimentos relevantes na sua existência ... e uma arca pesadíssima ( porque pesava o Mundo ), de recordações, as mais insondáveis, das mais remotas às mais recentes, das que a faziam sorrir sozinha, e das que a faziam chorar também sozinha ...

E nada mais ...

Fizera questão que o recheio da casa fosse o mais simples possível também.
Um estrado em madeira, rés-vés ao chão, com um colchão e uma rede mosquiteira por cima, era a cama ; os móveis eram artesanalmente construídos em madeira, com troncos e alvenaria ; jarras com flores, que não eram mais que garrafas trazidas pelas marés, e catadas na praia ;  estantes de livros feitas com tijolos e prateleiras em madeiras velhas e pouco trabalhadas ( algumas, antigas viajantes dos mares ) ,  tecidos manufacturados na região, a alindar das janelas às cobertas, dos tapetes no chão às almofadas espalhadas em desalinho ...  conchas, búzios, pinturas dos artistas locais, aqui e ali ;  alguns esboços feitos por si, de rostos que pertenciam à sua história, e da paisagem que desfrutava da sua rede no coqueiral ...

Sentia-se  rica ...   Rica  e  abençoada,  sem  dúvida  muito  abençoada !...

Aquele dia, era um "daqueles" ...

Marta tinha alguns rituais que precisava cumprir, que lhe estavam sob a pele, dentro do coração e do espírito.  Rituais só seus, que só ela entendia os seus "como" e "porquês" ...

Nesses dias vestia-se como para uma festa ;  alindava o rosto, perfumava o corpo e a alma.
Espalhava velas pela sala, a esmo, tornando-a à sua luz mortiça, intimista e mágica ...
Punha a mesa com dois pratos frente a frente, dois copos, frente a frente, uma garrafa de bom vinho tinto  ( comprado expressamente para o momento, já que o do seu Alentejo estava lá tão longe ... ),  a taça das azeitonas ... metia no forno as tostinhas de fatias finas de pão, chouriço e queijo, a gratinar ... e colocava Énya na aparelhagem, baixo e docemente ...

Numa bandeja, dois cálices e uma garrafa de Amarula, bem fresca, abria a refeição.
No pequeno frigorífico, a mousse de maracujá que preparara na véspera, aguardava.
Duas ou três flores de hibisco ( as flores de um dia ), ladeavam os pratos.

Sentava-se então, como quem espera ...

De facto Marta esperava, esperava que as recordações descessem, a envolvessem, a aquecessem no coração gelado, apesar do calor que se sentia ...
Nessas noites recuava no tempo e na vida ... nessas noites voltava lá atrás, escancarava o baú das memórias, chamava à sala os mortos-vivos que nunca a tinham abandonado, e dançava livre e alucinadamente com eles, entre uma ópera de Mozart e os acordes de "Amarantine" ... entre Vangelis e Sting ...

Cá fora a noite descera, há muito.
O mar prateava à luz de uma imensa lua cheia, que atravessava a folhagem  despenteada dos coqueiros ;  os insectos e as aves que nunca se calam dia e noite, faziam coro com o beijar da maré rasa na areia ...

Se alguém passasse à beira-mar, veria o vulto de uma mulher vestida de branco, de cabelos soltos, descalça, a dançar, louca, aparentemente louca ...

Dizia-se que nessas noites, na casa de madeira do coqueiral, onde vivia aquela enigmática mulher portuguesa, desciam espíritos ausentes e distantes ...
E havia mesmo quem garantisse, que os vira a dançar com ela, à luz das velas, das estrelas e da lua !!!...



Anamar 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

" O PRIMEIRO PASSO "

 

Mónica estava sentada no banco improvisado, no alto da arriba, sobranceiro ao mar.
Dali via o céu, via o agitar constante das ondas, via o areal, algumas aves planando na brisa, contra um céu laranja-salmonado, divino ... e via o sol a descer, a descer devagarzinho, rumo ao ocaso.

Via, mas não via ...

Mónica sentia-se inerte, morta, anestesiada.  Os seus olhos olhavam apenas, não mais ;  perdiam-se longe, e com eles arrastavam o seu pensamento.
O olhar, por assim dizer, opacizara-se, e o sangue, poderia afiançar, interrompera o percurso.
A única sensação que tinha bem nítida, era um aperto de profundo mau estar no peito, lá no lugar onde garentem estar o coração, que se estendia à garganta e a fazia sentir com um nó, que lhe dificultava a respiração !
Aliás, a Mónica, naquele momento, faltava o ar e faltava o chão.
De repente, haviam-lho tirado, como a um tapete de debaixo dos pés.
As mãos também lhas haviam soltado, largando-a num equilíbrio instável de vida.
Parecia estar numa travessia sobre um abismo, procurando tão somente sobreviver ... alcançar a outra margem, atingir um qualquer lugar seguro !

De repente, as coisas à sua volta pareciam desenquadradas,  retiradas de contexto,  como fotografias a que tivessem tirado as molduras.
Pareciam sem sentido, sem lógica, sem razão ... pareciam desarticuladas, como que arrancadas dos lugares certos, e misturadas "contra-natura", como peças de um puzzle, que depois de armado, caíra ao chão ...
Dir-se-ia que alguém tinha andado a divertir-se, a baralhar todas as pedras de um dominó já jogado ...

Esta catalepsia que a parara no tempo e no espaçp, cheirava à solidão e ao abandono de uma antecâmara de morte, porque afinal há muitas formas de se matar e de se morrer ...
À sua frente tinha o tal caos, entre o que aconteceu e o que virá a acontecer, em que não se entendia, e onde não se sabia mexer.
À sua frente tinha o antes e o depois, tinha a bonança e a tempestade, tinha a luz e a escuridão, e pronto, estava tonta no rodopio alucinado da sua cabeça, como se tivesse sido jogada no rápido de um rio, ou derrubada pela rebentação sucessiva de mar forte ... como se os miolos se guerreassem e a fizessem sentir perdidamente ébria !...

Mónica estava numa estrada sem direcção, sem sinais, sem mapa ... sem GPS ... Tanto lhe fazia ir adiante ou recuar ; tanto lhe fazia procurar caminho, ou deixar-se petrificar ali  mesmo, para todo o sempre ;  a indiferença, uma indiferença total a tudo, mantinha-a ausente.

Havia feito um interregno de vida ... sentia ...
E o pior é que não encontrava forças, nem para se debater, nem para se rebelar, nem para se indignar, nem tão pouco para chorar ...  Estava seca por dentro !...

Cada caminhada começa com um passo, cada castelo começa com uma pedra ...
Mónica sabia-o.  E sabia também que hoje era o primeiro passo, de uma caminhada para a qual estava sem força  e  sem ânimo ...

Não entendia por que estava naquele trilho, não percebia por que chegara àquela encruzilhada, àquele caminho labiríntico e escuro, como as veredas nas matas, que deixamos de reconhecer depois de as percorrer, tão parecidas se tornam !...

Havia luz, muita luz no início da marcha, que ela lembrava-se bem !
Era uma estrada, estreita é verdade, de terra batida como são as estradas no meio do campo, tinha pedras como todas têm também, mas ficava no topo de uma ravina, com a vegetação rasteira bem florida a ladeá-la, com os pinhais de pinheiro manso marítimo, em fundo, algumas mimosas douradas de aroma inebriante, com muito sol, céu sempre azul, com brisa fresca no rosto, desalinhando-lhe os cabelos, como gostava.
E mar, muito mar cá em baixo, no seu vai-vém, no arrendado imaculado da espuma com que se desfazia nos rochedos, com as aves que sempre pertencem ao mar, ali por cima, em voos dormentes, sem pressas, como quem se extasia, tal como ela, com o mundo cá por baixo !...

Mónica  fora  forjada em  terras sem mar,  mas  também sem horizontes ;  terras de grandes planícies a perder de vista, terras de solidão, abandono e silêncios.
Ela própria tinha esse mesmo espírito de solidão, de isolamento e de silêncio !
Cultivava o ensimesmamento, a introversão, o intimismo.
Não falava muito de si.  Preferia sentir apenas, e "conversava" consigo mesma, todos os minutos dos dias e das noites também.

Contudo a sua alma e o seu coração eram rebeldes, soltos, saltavam as cercas, rompiam as correntes, e Mónica tornava-se mulher de grandes espaços, de espaços sem limites, sem horizontes, sem "sentidos proibidos", sem muros ...
Ela achava que era uma espécie de compensação que não se explica, a completar o seu "Eu", como pessoa.

E por tudo isso, Mónica morreria em encruzilhadas, em caminhos labirínticos e escuros, em percursos delimitados e sem saída ... em estradas sem direcção ...

E por tudo isso, buscava o mar por companhia, a amplidão dos espaços largos, o céu por aconchego, os campos para berço.
A liberdade sentida, aliás como tudo o que sempre sentia na vida, era por excesso, era por arrebatamento, era em "TODO" ... tinha que a embriagar, para valer ...
Era a resposta do seu ser ao confinamento, ao pequeno, ao curto ...   Nunca podia ser por metade !...

E por tudo isso se sentara  naquele banco  improvisado,  no alto daquela arriba, sobranceiro ao mar, naquele pôr-de-sol em céu laranja-salmonado ...

Percebia que naquele momento, tinha que dar outra vez na sua vida, um primeiro passo, antes que anoitecesse, o mar adormecesse, e as luas e as estrelas subissem no céu ...

... porque ela sabia bem que cada caminhada começa sempre com um primeiro passo ... cada castelo, com uma primeira pedra !!!...



Anamar

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

" QUANDO A NOITE É COMPANHIA "


A minha noite terminou às quatro.
Às cinco ainda eu rebolava na cama, na remota esperança de conciliar o sono, que mostrava claramente ter-se ausentado em definitivo.

Na luz coada do meu quarto, aquela que passa pelas frinchas das persianas que há muito optei por sempre deixar abertas, mantive-me quieta, atenta, olhando e sentindo a noite que passava ...

Aprendi a amar a noite, a saber escutá-la, perscrutá-la, sentir o seu pulsar.
A noite tem os seus sons, tem a sua paz e o seu silêncio audível, que se vai desvanecendo à medida que a madrugada sobe e o dia se aproxima.
Não há dúvida que a noite tem uma magia, a magia do aparente "adormecimento de vida", que apura todas as sensações, todas as emoções, aclara o discernimento e o espírito.
Na madrugada potenciam-se todas as formas de sentir, de pensar, de reflectir.  Fica tudo mais claro, mais objectivo, mais real, mais verdadeiro.

E depois há a solidão da noite ... uma solidão compartilhada com muita outra gente, que não sabemos, mas sentimos.
Gente que perambula pela casa, gente que lê, gente que ouve música, gente que vê televisão, gente que chora ... gente que procura nas letras o encontro consigo mesmo !

 E paira uma quietude quase religiosa, que não queremos desrespeitar ... paira o silêncio recolhido dos claustros das catedrais, que é silêncio, mas é som, é cor, é luz, é vida própria, sacralizada, que sabemos que não podemos perturbar, sequer tocar, violar ... porque estragamos !
E por isso fica assim este mistério silencioso, gostoso, de interioridade, de intimismo, de encontro ...
Fica esta frescura de corpo e de alma, este desnudar do nosso "eu", como se a noite fosse um espelho límpido e claro, onde toda a genuinidade, toda a real dimensão do ser humano, se reflectisse com nitidez, sem mentira, e onde não cabe nenhum artificialismo, nenhum "faz de conta", nenhum "estar" e "ser" convencionado.
A noite é nudez total, é verdade absoluta ...  Somos nós, confrontados connosco mesmos.

A resistência do ser humano, embora limitada, tem uma dimensão surpreendente !
Sempre pensamos que não suportamos isto ou aquilo, que isto ou aquilo é que definitivamente não superaremos, e acabamos ultrapassando, mesmo o inultrapassável !
Acho que não é mais que um mecanismo inato de sobrevivência.
Acho que é uma defesa, desencadeada à revelia do nosso consciente.
Todos afinal estamos artilhados com "armas" desconhecidas, as quais, de uma forma natural ou forçada, somos obrigados a esgrimir.

Viver em cada dia, é um brutal desafio que apela à inteligência, à sagacidade, à determinação, à capacidade lutadora e ao esforço disciplinado, que formos capazes de imprimir às nossas vivências e desempenhos.
O desejo ou a necessidade de superação deve prevalecer, a esperança tem que ser "regada" para que floresça, o acreditar deve ser "trabalhado", para não sossobrarmos.
E depois, são as regras primárias de mera sobrevivência, automatizadas, instituídas, comuns ao reino animal, que afloram exactamente para isso, para que se ultrapassem as sucessivas metas, para que se pulem obstáculos, para que simplesmente se sobreviva na "selva" !!!

Este deverá ser o perfil do Homem, que dizem, ocupa o topo da pirâmide de todas as espécies ...

E com isto, são mais de seis da manhã.  Havia programado o despertador para as seis e meia, porque vou passar o meu dia na praia, para sair deste quarto, desta casa, desta terra, e carregar baterias junto ao mar !

Adoro chegar à praia quando está absolutamente vazia, porque aí, é a minha pequenez confrontada com a imensidão da Natureza ;  adoro sentir-me, como já aqui disse, "dona da praia", no sentido de me miscigenar, de me fundir, de mergulhar no mundo à minha volta !
Adoro respirar a brisa fresca que sempre corre a essa hora ;  adoro pisar rijo, na areia molhada da maré da noite ;  adoro ouvir o marulhar das ondas na rebentação, o grasnido estridente das gaivotas no areal, e o seu bater de asas, quando debandam e enchem o céu !

É quando sinto, que é uma benção, de facto, ter acordado mais um dia ( ainda que às quatro ), é quando me sinto criança outra vez, é quando me sinto uma resistente ou uma sobrevivente, apesar dos pesares ... é quando dou graças à VIDA, exactamente por isso ... por estar viva !!!...

Anamar 

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

SIMPLESMENTE ..."O AMOR" !



"Entre o que aconteceu e o que acontecerá, existe um caos.
Vive-se de memórias : de querer lembrá-las ou de querer esquecê-las...
Quando começam a faltar as palavras, alguma coisa morreu dentro de nós.
Tu procuras o último amor, porque andaste toda a vida a coleccionar pedaços de amor ... Mas na verdade, tu procuras é o primeiro amor e não o último !..."

             in " A casa das portas vermelhas " - Jorge Marques

Este excerto pertence a um livro que alguém me ofereceu, não inocentemente, tenho a certeza.  Uma oferta com a intencionalidade de uma mensagem nas entrelinhas.
A gente sempre percebe isso !
Aliás ao oferecerem-mo foi-me dito . " Tem muito a ver contigo, tem muito a ver connosco !..."

Na verdade estas palavras poderiam ter sido escritas por mim ...  Eu entendo-.as, eu pressinto-as, eu vivo-as .
De facto eu estou e estarei sempre no meio do remoinho do caos, no meio do olho do furacão , no vórtice da loucura.
Eu sou um ser de turbulência, em constante ser e não ser, em constante querer lembrar e esquecer, na busca de uma verdade que eu sei que existe, mas não sei onde.
Sou um ser de inquietação, em permanente busca, em permanente procura, e por isso me falta o tempo.
A jornada é longa, tão longa que nem lhe adivinho o fim, e receio não viver até lá !
Sou um ser de insatisfação ; preciso renovar o meu ar p'ra que não sufoque, preciso que o meu barco navegue por oceanos que não terminem, preciso encontrar a estrela polar que falta à minha noite, preciso que o horizonte não fique lá ao fundo ... aliás preciso que não haja sequer horizonte !...

"Viver de memórias ..."  triste isso, não??!!
Mas certamente concreto, real ;  uma verdade tão absoluta, que só os loucos pensam nela.
As pessoas normais recusam sabê-la, recusam desencavá-la do fundo das almas, porque todos, todos sabemos que ela encerra a maior e mais incontestável certeza do ser humano.
Mas sempre temos medo de a olhar de frente !

Apenas há dias em que assim como hoje, acordamos com o Mundo virado ao contrário ; e ainda na vigília do último sono, naquela fase em que se está e não está deste lado, já percebemos que não temos capacidade para o "alinhar" ...
Se bem que eu não sei o que é alinhar o Mundo ... Pelo menos alinhar o "Meu" mundo .  E é então que consciencializamos o "caos" entre o antes e o depois, e a incapacidade de viver nesse caos.
E é então que já acordamos a chorar, e a droga é que não pararemos de o fazer por todo o dia, e só talvez o negrume de uma nova madrugada consiga abater este aperto cá dentro, esta vontade libertadora de fechar as   portas  e partir ... partir rumo ao desconhecido ... partir, simplesmente ... se calhar apenas partir de "nós" ...

Eu  também procuro o último amor, o primeiro amor, o verdadeiro amor, a reunião de todos os amores possíveis ...
Pedaços de amor espalhados a esmo, dariam tanto jeito que se amalgamassem e criassem "AQUELE" amor.
Mas "AQUELE" amor é exactamente a expressão do não existir, e por isso é que o ser humano caminha, caminha sempre, até à exaustão, porque lá no fundo acredita mesmo, que numa volta de caminho ele está lá, ele aguarda ser descoberto ... acredita que na rebentação de uma qualquer maré, ele se espraiará aos seus pés ...

E se o descobrisse, seria um amor de muitos rostos, com muitos olhos, muitos corações, muitos lábios, muitas mãos, muitas palavras, muitas partilhas e cumplicidades, mas muito mais sussurros e juras ...
Era um amor com todas as loucuras do Mundo, com todos os desejos insaciáveis do Mundo, com sonhos sonhados e não sonhados, e todas as alegrias e também com todas as dores ...
Era um amor que por ser só inventado, reunia todas as utopias permitidas dos corações, todas as fantasias das mentes, todos os desvarios dos corpos ...
Era um amor que queimava porque era fogo e luz ao mesmo tempo, era chama e braseiro ateado, era um valer, podendo não valer, só porque o quisémos muito, o plantámos e germinou dentro de nós, dando as flores das braçadas colhidas pelos campos da Vida.
Era um amor-música, era um amor-templo, era um amor-ninho, um amor-âncora, um amor-amarra de cais ou fateixa de navio ... com a incoerência do não existir, acreditando-se que existe !...

E depois então, como primeiro / último amor, como verdade / mentira, como o tudo e o nada, vai valer a pena não o esquecer, mas recordá-lo sempre, porque a sua imensidão é a de uma onda alterosa sem controle ou dique que a contenha, é a de uma fogueira avassaladora que nada detém, é a de uma torrente que só estanca quando começarem a faltar-nos as palavras para a descrever ...

... porque aí sim ... "alguma coisa terá começado a morrer dentro de nós " !!!...


Anamar

domingo, 19 de agosto de 2012

" POEMA DESNECESSÁRIO "

 


A colónia de gaivotas à minha frente ... dezenas e dezenas, e mais as dezenas das suas imagens, devolvidas pelo espelho de água retido na areia, da maré da noite.

Um areal absoluta e completamente liso, de areia molhada, de um extremo ao outro da praia, virgem de marcas que não as das pegadas das próprias gaivotas imóveis, num repouso de quem parece querer prolongar a noite, ou tão simplesmente reunir energia, para o dia que ora começa.

Eu ... dona da praia !
Sabem o que é ser dona de uma praia?  Sabem o que é este silêncio, embalado apenas pelo quebrar das ondas ainda baixas, na areia?  Ninguém mais, apenas a brisa, mas essa não faz barulho !

O  sol assoma agora por detrás da falésia, manso, claro, doce, prenhe da luz da manhã, que é infinitamente mais branca e luminosa do que a luz com que nos ilumina dia afora.

 Este texto que aqui deixo é um poema desnecessário, é uma ode dispensável, à Vida, que já descrevi mil vezes, e que mil vezes é diferente, e que mil vezes por isso é incompleto, imperfeito, insatisfatório ...
Nem o maior poeta, nem o maior pintor, nem o maior fotógrafo, alguma vez traduziu ou traduzirá simplesmente ISTO !...

E "isto"  é o tudo que aqui respiro, vejo, oiço, cheiro, sinto, penso, sonho, sofro ... e "isto", é o espanto que a mão do Homem jamais alterará, vida após vida, vontade após vontade, crer após crer !
De facto, a Natureza ele jamais manipulará ;  esta perfeição e este equilíbrio, nenhum artista conseguiria compor !...

Não se escrevem poemas a quem os não lê, pela simples razão de que não têm destinatário.
A minha sina parece ser esta ... escrever palavras deixadas soltas, pontas de nós desatados ... pétalas largadas em vento que as leve, acordes musicais para ouvidos que não vibram com eles, frases de sentido desconhecido e incompreensível, emoções que não chegam a lado nenhum, porque ninguém as sente, palavras tão desnecessárias, que ninguém daria pela sua falta se elas não fossem escritas !...

E por isso, este poema só é necessário a mim própria, porque só eu o sinto correr nas veias, para cima e para baixo !!!...


Anamar

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

" SE EU MORRESSE AMANHÃ..."

 


Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que o céu estaria tão azul quanto hoje, por cima deste mar batido, que se desmancha em espuma na areia.

Os penedos da falésia, como equilibristas de arame sem rede, continuariam a ver as marés a subir e a descer todos os dias, de todos os anos, e haveria muitos Invernos e muitos Verões, para que o vento de tempestade os açoitasse, ou a brisa mansa os acariciasse ... ouvindo-lhes histórias de vidas ...

As gaivotas também poisariam no areal como malmequeres brancos a salpicar a areia plana, inviolada de pegadas ainda ...

O sol, estranhamente continuaria quente, a escaldar os corpos, excepto o meu que estaria gelado e indiferente.
Mania do Mundo seguir em frente,  e atirar-nos à cara a insignificância do nosso existir !...

As pessoas transformar-me-iam em alguém bem louvável de recordar ... algumas horas, de alguns dias, talvez de escassos meses ... porque aquela mesa de café ficaria vazia de mim, e porque todos se tornam "heróis" na vida, só porque tiveram a sorte de morrer ...
Horas, dias, meses ... nacos mais ou menos generosos com que o Homem "fatia" a eternidade.
A eternidade é a estrada de sentido único, que nem rotundas tem.
Se as tivesse, sempre dava para rodopiar, rodopiar e "empalear" a caminhada.
Mas não!
A eternidade está lá ao fundo, e sempre espera por todos ...

É certo que aquela camisa continuaria dependurada no estendal onde ficara, mas também quem me mandou lavá-la na véspera??!!...

Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que dos "meus", haveria quem soluçasse à luz do sol, mas também quem só soluçasse, na solidão mais recôndita de um quarto.
E também haveria quem quisesse, na hora, tomar a minha "boleia" ... que eu sei !

Os homens da minha vida, os meus amores, os meus afectos, espalhados pelo Mundo em cada pedaço que por lá fui perdendo, nem sequer saberiam se eu existia ainda, ou não !
O que se dá, dá-se com o coração, com o corpo e com a a alma, e não carece de retribuição ...

Havia um sítio, sim, onde eu ficaria para sempre e onde sempre me podiam encontrar ... Este mar imenso, que também ele copia a eternidade ... começa, mas não finda nunca !
Lá, naquele verde, azul, turquesa, cinzento, ou na mescla de todos os tons, conforme os olhos que o vejam, eu estarei, juro !
Darei guarida a todos os seres que me quiserem ;
Virei ao areal, zangada ou mansa, embalaria as gaivotas, as andorinhas do mar, os corvos marinhos, as fragatas, as garças da maré baixa ...
Mas também as conchas, as algas e os corais, e todos, mas todos mesmo, me poderiam escutar ... na melopeia embaladora de um búzio.
Bastaria pô-lo ao ouvido e saber ouvir ... não apenas escutar !...
Nele reconheceriam a minha história, sussurrada baixinho ...

Mas do alto das arribas, onde os rochedos se equilibram em malabarismos espantosos, também me poderiam ver ...  Basta que saibam olhar e que conheçam o código da linguagem do coração !
Aos nasceres e aos pôres-de-sol, lá estaria ... morta, homenageando a VIDA !

E nas noites de lua cheia, quando a poalha prateada acende o mar, e as sereias entoam cânticos de chamamento, os meus cabelos serão algas largadas na areia, por cada onda que vai e que volta ... e ao largo, os pescadores saber-me-iam, porque também eles são filhos do mar !!...

Se eu morresse amanhã, só queria que me colocassem nas mãos, o saco das letras, aquelas todas com que construo os meus castelos de sonhos, com que invento as minhas histórias de ninar, com que confesso os meus desejos mais ardentes que não realizei, e ficaram, juntos com a camisa, pendurados no estendal !!!...

Anamar

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

" AS CHUVAS DE AGOSTO "


As chuvas de Verão são amenidades trazidas dos céus, como bençãos, nas intempéries da Vida.

São como os amores também de Verão ... fortes, curtas e desafiadoras ...

Vêm mas não ficam.   Acariciam mas não acarinham.   Pacificam mas não instalam a paz.
São parêntesis que se abrem na canícula entorpecente ;  são oásis vislumbrados, que não passam de miragens ;  são as reticências no meio duma frase, para o leitor interpretar ;  são aquela palavra que se solta no ar, e que só os atentos captam ...

Convidam-nos a dançar nos seus acordes ;  aliciam-nos a que encharquemos o corpo e a alma, em danças alucinadas, inconsequentes e expurgadoras.
Atraem-nos  e  penetram-nos  sem  remédio, como  numa  noite  de  amor ...
Molham-nos, como o suor que escorre dos corpos na loucura indistinta de dois seres ...

As chuvas de Verão têm a doçura de um embalo, ou o afago duma mão que nos desalinha os cabelos ...
São quentes, embriagantes, como o trago de um licor que nos desce no peito, mas que nos faz festas na alma ...
São chuvas que esquecemos no momento seguinte, e só os charcos deixados na calçada, nos garantem que elas vieram mesmo.
São águas que nos despem e nos descalçam, para que chapinhemos numa dança de roda enlouquecida, que começa de súbito, e termina de súbito também ...

São chuvas fora de época, como há amores que também o são !
E esses, são sugados até às entranhas, são vividos sôfregamente até ao último fôlego, têm o sabor picante do desajustado ... têm o desafio do "provocador", têm o privilégio de espicaçar os sentidos, têm a clandestinidade do secreto !...

São mergulhos incontroláveis, do alto da falésia para as águas que parecem mansas, mas em que sempre acreditamos, que pelo caminho ganhamos asas, e continuamos a voar pelos céus.
São amores inteiros, porque já não há peias para eles ... e afinal a seguir ao Verão, o Outono chega rápido, e urge vivê-los e esgotá-los, antes que, como os riachos que rompem caminho de pedra em pedra, sequem ... sequem, porque na verdade ainda é Verão !...

Deixam na alma a paz, e no corpo o cansaço saboroso do caminheiro, o sossobrar do viajante após a jornada ... são o poisar da gaivota no areal, para o repouso merecido.
Têm na boca o "travo" agridoce do queijo misturado com compota de cereja, da pitada de sal numa sobremesa, do salgado no rebordo de um copo de "Margarita" ...

São tudo e são nada ;
São frescos e escaldam ;
São efémeros mas eternos ;
Invadem-nos o coração, mas inundam-nos de lágrimas ;
São verdades e mentiras ;
São apostas em jogo viciado !...

Tal qual as desejadas e odiadas chuvas de Agosto ... docemente enganadoras ... são a penumbra inesquecível de uma lenda, que atravessa as nossas Vidas !...

Anamar

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

" A VIDA "


A vida no seu percurso imparável !...

Dias maus, dias difíceis, dias de mágoas, dias em que as trevas da madrugada nunca abrem para um sol radioso ... Fica sempre noite !
E depois há aqueles, em que percebemos que afinal vale a pena estarmos cá, vale a pena dançarmos na chuva, para conhecermos o prazer do azul do céu.

E hoje é um desses, em que sinto que estar viva, só por si, já é uma bênção, e ser afortunada como sou, uma bênção maior ainda.

O ser humano, eu em particular, sempre lamenta isto ou aquilo ;  centra-se excessivamente em si mesmo, e ainda que tudo fosse perfeito à sua volta, sempre se queixaria de alguma coisa.
De facto, somos seres eminentemente imperfeitos e com insatisfação instalada, que acredito, estaremos em provação permanente, para consciencializarmos e distinguirmos o certo do errado, valorizarmos o tanto que detemos, discernirmos os reais valores que devem nortear os nossos destinos, e sermos gratos pela oportunidade que nos é concedida ... simplesmente de EXISTIR ...

E existir, é de facto alguma coisa de uma dimensão e de uma grandiosidade tal, com que somos bafejados, da qual frequentemente nos distraímos, numa postura errática, injusta e ingrata.

Existir é podermos acordar, extasiarmo-nos com as pequenas coisas que nos rodeiam ;  podermos sentir no coração emoções e sentimentos que não se descrevem ;  ter a liberdade de talhar diariamente os nossos caminhos, livremente, numa aprendizagem crescente no sentido de um aperfeiçoamento, de um enriquecimento, da compreensão, tolerância, disponibilidade, capacidade de perdão e compaixão, de uma melhoria integral, como  "GENTE" aqui largada, com todas as responsabilidades de o sermos.

E ser "GENTE", só por si, já é um privilégio que nunca nos perguntamos se merecemos ...

Ser  GENTE  é  sentir  a  emoção  de  partilhar  um nascer e  um  pôr-do-sol ;
é poder aspirar o aroma das flores ;  aquelas que despontam até no meio das pedras, e aquelas com que o Homem embeleza os seus espaços ;
é deixar-se encharcar pelas chuvadas, para depois perceber que o calor do astro-rei está lá,  para o envolver de novo ;
é tomar uma pomba nas mãos, e vê-la seguir pelo espaço, adquirida a liberdade ;
é extasiar-se pelo planar sonolento do condor, sobre os rochedos do Grand Canyon ;
é admirar a liberdade despudorada da gaivota, de asas estendidas por sobre a aragem ;
é escutar o som dos pássaros na alvorada, e das águas nos rochedos, em dias de mar zangado, ou o seu sussurrar em areias mansas ...
é olhar com ternura e respeito as mãos descarnadas de um velho, que tem Vida para contar ;
é sentir o milagre estampado no rosto de uma criança de riso fácil, atrás daquela borboleta "fujona" ;

Ser GENTE é esbanjar amor, é ter amigos, amores, amantes, gente nossa, e também os que nos sorriem sem sequer nos conhecerem ...
ser GENTE é também chorar, e muito, é cair para nos levantarmos a seguir, sabendo que se não o conseguirmos, haverá sempre uma mão lá estendida, para nos erguer ...
é acreditar que não somos capazes, e que não vale a pena ... mas no instante seguinte, percebermos que a Vida é "demasiado", para se desperdiçar !...

Ser GENTE, sobretudo, é aprender a viver !...

O meu "clã"  hoje aniversaria em dobro.
Mãe e filho mais velho, nascidos no mesmo dia, com vinte e oito anos de diferença !

Sempre me emociono a pensar como foi, o que é ... como será ?!   Os tais desígnios insondáveis, que são os caminhos do Homem ...

E o facto de ver aquela menininha loira, de caracóis, franzina, de "porcelana", com ar de boneca de brincar, a  beirar os  quarenta  anos, parece-me uma  história  mal contada, uma "treta" do correr desenfreado do tempo !...
Como pode ser, ter passado tanto, desde que ao porem-ma pela primeira vez nos braços, a olhei ... e foi luz, muita luz, claridade e sol, que lhe vi no rosto ??!!...
"Cláudia" o nome que lhe escolhi na hora ;  sem erro, sem dúvida, sem indecisão, porque "Cláudia" me transmite até hoje, isso mesmo ... um caminho de luz, um caminho em direcção ao sol e por isso, um caminho de paz !...

O António nasceu vinte e oito anos depois ;  o rosto, bem próximo do da mãe ;
o ar sereno e compenetrado de quase um pré-adolescente, lembra-me constantemente tudo aquilo que escrevi  neste  post :

A vida é "demasiado", para se desperdiçar, e todos os dias vale a pena ser vivida !!!...

Anamar 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

" QUANDO ... "



Deixamos de sofrer, quando deixamos de esperar ...
Deixamos de sofrer, quando deixamos de sonhar ...
Deixamos de sofrer, quando deixamos de acreditar ...
Deixamos de sofrer, quando paramos de lutar, e desistimos ...
... quando as lágrimas salgadas e as doces se misturam, e já não sabemos para onde correm umas, e para onde correm outras, e por que correm umas, e por que correm outras ...
... quando a noite se confunde com o dia dentro de nós, e não há por que acordar em cada madrugada, simplesmente porque parece não haver dia para viver !
E que nem sequer há madrugada !...

É então que uma letargia doce se instala, e nos adormece, nos insensibiliza, nos distancia ...
Uma espécie de analgésico de Vida !

É quando parece que nunca vivemos coisas que vivemos ;  é quando pensamos que nunca amámos quem amámos, porque simplesmente a distância de um passo, se transformou numa vida ...
É quando passamos a ter uma imagem já só vaga, daquele sol a pôr-se, daquela mata de flores rasteiras, do som daquelas vozes doces nos ouvidos ( que se impessoalizaram ), do calor daquelas mãos e daqueles corpos protectores e envolventes ... é quando juramos que nunca escutámos aquela música, e ouvi-la já não nos faz chorar nem nos desperta ódio ...

E é quando perguntamos se estaremos mesmo loucos, ou se tudo não terá acontecido  na verdade, apenas numa  outra vida  lá para trás.
Porque a luz desligou-se na sala, o filme parou na tela ( e não se pode fazer reprise ), a cena suspendeu-se antes de ter terminado o último acto, e ficámos meros espectadores do nada e do vazio !...

"Esperar", desespera porque angustia, porque aperta o coração, porque nos anseia ...
Esperar sem esperança, claro.  Aliás devia ser obrigatório "esperar-se" sempre com esperança ;  as duas palavras miscigenam-se, e uma devia sempre implicar a outra.
Porque a felicidade quase sempre é maior enquanto se espera, do que enquanto se realiza alguma coisa ...
Esse preâmbulo, esse prefácio, nessa página em branco que é o tempo doce da espera com esperança, cabe tudo o que lá quisermos escrever, abrange tudo o que o nosso coração e a mente, construírem ;
a antecipação do viver, é quase sempre melhor que o viver ... e dura seguramente mais !...

"Sonhar" defrauda-nos, porque os sonhos só se concretizam nos contos de fadas, com que nos adormeceram em pequeninos.
E fadas, duendes e criaturas simpáticas, só povoam mesmo essas histórias ... e é algo que a adultícia, ardilosamente sempre destrói !...

"Acreditar" é um masoquismo idiota com que o ser humano se engana diariamente, para fazer de conta que são a cores, as realidades que tão somente são cinzentas ( a tal cor que eu odeio, porque não se decide se pende mais para o lado do preto, se do branco ...  E eu odeio indecisões !... )

Mas depois, há a droga das coisas que inventámos de guardar, como o Pequeno Polegar (abandonado na floresta com os irmãos ), deixou as pedrinhas do rio, que lhes marcaria o caminho de volta ...
Como se os caminhos tivessem volta !!...

Há tudo aquilo que quisémos perpetuar para a nossa posteridade.
Precisamos ter a certeza, de que naquela tarde se trocaram aquelas palavras no guardanapo de papel, frente a uma mesa de café já frio, por esquecimento de o beber, por tanta coisa mais importante nos ter preenchido a mente ...
Precisamos ter a certeza que as mãos que se acariciaram, os olhares cúmplices e prometedores que se trocaram, os beijos que nos afloraram, incontroláveis, aos lábios ... não foram sonhos que inventámos ...

Depois, há os incontáveis raminhos de flores secas, apanhadas nas moitas e nas encostas despenteadas, das falésias de mar ao fundo ... e amor nos rochedos ...

Há os botões de rosa em profusão e religiosamente guardados.
Já não têm aroma, e nunca passaram de botões ...  Mas para nós, foram um roseiral secreto, de que só nós desvendámos os caminhos ...

E afinal, o guardado passa a ser intocável !...
Mexer-lhe, queima as mãos, olhá-lo cega os olhos, acariciá-lo, mata-nos por dentro ...
Porque tudo foi gravado a ferro e fogo, e o que se grava a ferro e fogo, normalmente é perene ... caminha para a Eternidade !... 
E a Eternidade é um sacrário, é um campo inviolável, improfanável !

E por tudo isto, quando paramos de "esperar", de "sonhar", de "acreditar" ... e pouco a pouco de lembrar ... paramos também de lutar, e desistimos ...

Desistimos de teimar ler aquele livro ao deitar, para adormecer.
Simplesmente porque as suas páginas vão ficando amarelecidas, e mesmo as letras vão sumindo, esmaecendo ... desaparecendo nos tempos ... e o discurso já não faz sentido !
Então aí, talvez tenhamos deixado de sofrer !!!...

 Anamar

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

" TARDE DEMAIS "



Uma tarde de praia absolutamente espectacular.  Sol quente, uma brisa acariciadora, que torna o calor do sol suportável.  Mar de maré vazia desde manhã, quando cheguei, e só há pouco começou a encher.

Estou "encarrapitada"  no alto de um dos rochedos que por aqui se espreguiçam, não vá a maré pregar-me alguma partida, e desta tribuna onde estou, tenho o privilégio de ter o mar aos meus pés, as ondas ponteadas aqui e ali, por surfistas ( já não está mais ninguém no banho ) e uma estrada de luz que se acende e torna este mar de azuis e verdes, absolutamente iluminado em prata !

São pouco mais de seis da tarde, o sol ainda vai alto, mas decidi que provavelmente vou ficar neste camarote, até que ele beije o horizonte lá ao fundo.
Afinal hoje ninguém me espera em casa ;  e entre anoitecer-me no meio de quatro paredes, ou por aqui ... não tenho dúvida !

As vantagens ou as desvantagens de viver só !...

Há pouco, falando ao telefone com um amigo, carpia-lhe as minhas mágoas ... sim, porque o ser humano sempre encontra espantosamente mágoas para carpir, ou não fosse por natureza um ser de insatisfação e incompletude.
Ele só me perguntou : " Diz-me uma coisa : tens saúde, não tens ?  Tens meios de subsistência, não tens ?  Então és simplesmente uma privilegiada !..."

As palavras bateram forte e feio, como se costuma dizer, tipo "pedrada no charco" !
Claro que eu sei exactamente isso, e sempre o refiro neste espaço, numa espécie de contrição continuada.
Claro que eu sei ser um privilégio estar aqui, sem horas, no alto dum penedo, absorvendo a brisa salgada da tarde, deixando-me envolver pelo calor ainda intenso do sol, ouvindo o vai-vém das ondas ... deixando-me embalar por elas ... e apenas viver !!

Quando reflicto sobre estas coisas considero-me, obviamente uma mal-agradecida, não reconhecida, injusta para com a Vida, e quase um crime, ainda assim achar que possa ter mágoas ...

Apenas, entre muitos, eu tenho um grave defeito : sempre faço depender de terceiros, de factores exógenos, de altos e baixos da existência, a minha felicidade, de tal forma que nunca a vivencio em plenitude.
Devia sim, procurá-la dentro de mim, deixá-la crescer no meu coração e na minha mente, independentemente e ao invés, dela sempre e só se concretizar de fora para dentro, na dependência de outras pessoas.
E as pessoas são gente, com todas as imperfeições, condicionalismos, indisponibilidades, incapacidades, impotências ...
E defraudam-me muitas vezes.  Certamente eu também as defraudarei em muitas outras.

Só que talvez elas tenham uma inteligência de Vida, uma maior capacidade de defesa, um pragmatismo e uma sabedoria na gestão dos sentimentos, que eu se calhar não vou aprender nunca !

É como se eu só respirasse até ao fundo, se só  respirassem comigo ;
é como se aquela paisagem à minha frente, só ficasse prodigamente colorida, e só fizesse sentido, se outros olhos a admirassem comigo ;
como se aquela música só ganhasse expressão, se representasse algo para mim e para alguém que eu ame ... como se a brisa que corre, só devesse desalinhar-me o cabelo, quando aninhada em braços de afecto ...

Parece que desvalorizo os momentos, as coisas, os cheiros, os sons, a luz e a cor, "de per si" ... parece que eu não sou suficiente para lhes dar significância, parece que eu sou "pouco" demais para ser "alguém" autónomo, um "ser", uma "individualidade" ... por o ser tão incompletamente ...

Isto é um desvio personalístico, é um profundo desequilíbrio emocional, é um erro crasso de "programação" do coração e da alma, ou tão só uma tremenda e irresolúvel carência afectiva ... mas ... não consigo alterar nada disto !...

E "criminosamente" vou deixando passar por mim, muito de VIDA ;
vou vivendo "de menos" muitas emoções, muitos momentos, enfim, vou desperdiçando muita "lotaria premiada" que me vai fugindo pelas mãos ... e um dia, tenho a certeza, vou acordar tarde demais !!!...

Anamar

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

" JÁ ... "



Uma leve neblina perpassa, como se fosse um nevoeiro com pés, por cima das rochas semeadas no areal.
O mar desassoreou espantosamente em três dias, este local.
O meu nicho preferido mudou de "design".  Custei a encontrá-lo, e ao encontrá-lo, verifiquei como o mar, nas sucessivas marés, deixou a descoberto mais rochedos, e como roubou pelo menos mais de meio metro de  areia em altura, a esta praia.
A força incontrolável e sem freio do vai-vem das ondas, na modelagem do que foi, já não é, mas poderá voltar a ser.

Na falésia, desenhados a régua e esquadro, os sucessivos estratos que a erosão definiu na costa, ao longo dos séculos, por certo.
Estratos sobrepostos como páginas de um livro escrito, com uma longa história, uma história imemorial, transversal a destinos e gerações ...

A memória das pedras ...  O que contariam, se pudessem contar, ao comum dos mortais, sobre o percurso dos Homens, sobre a memória do Tempo, sobre os caminhos das Vidas??!!
Sim,  há  homens  que  as sabem  ler,  lhes  conhecem  a  linguagem ...

Eu, só imagino a perenidade do que vai ficando, enquanto os Homens partem !
A memória das pedras mede-se em Tempo, mas o Homem só consegue medir a sua existência em dias ... e dias e Tempo, não são a mesma coisa ...

Aqui por cima uma gaivota voa, batendo as asas.  A brisa que corre não dá para simplesmente planar, como tanto gostam.
Ver o Mundo do céu, ver a pequenez do que se estende aqui por baixo, transportando liberdade nas asas ... coisa que os Homens não têm !
Voar, só o meu pensamento o faz.
Ele é livre ... o pensamento sempre é livre, o Homem não, embora tenha pavor de perder o que imagina ser liberdade ... Uma coisa que afinal não detém ! ...  Paradoxal !...

Uma vegetação escassa e rasteira trepa pelas escarpas, e floresce ... há tufos de flores amarelas espalhadas a esmo, adocicando a aridez da falésia.
A vida esbanja-se em todo o lado, e sempre é pródiga.  Existe, mesmo quando se esconde dos olhos, mas não dos sentidos.

Estou num período da minha vida ( que se iniciou na solidão de Samaná, e mercê de muitos factores, se prolonga ), de muita maturação, reflexão lúcida, definição das minhas verdades.
Neste momento penso que com alguma clareza, consigo discernir com mais equilíbrio, e com a paz que tento instalar no coração, o que quero e o que não quero da minha vida.
Consigo olhá-la olhos nos olhos, e perceber mas sobretudo aceitar, que ela não é mais do que um fluxo de água, que corre da nascente à foz ;  segue, já a mais de dois terços do percurso, eventualmente.
É imparável, não desviará o trilho que lhe está destinado, encontra e continuará a encontrar a inevitabilidade dos escolhos no caminho, e usando a sabedoria da água, terá que os contornar, porque nada nem ninguém tem força que vença os rochedos e as penedias ...

Como toda a gente que cruzamos, penso, já ri, já chorei, já fui amada e não amei, já amei e não me amaram, já escolhi e não me escolheram e o inverso também ...
Já tive sonhos, sacos de sonhos, que se transformaram em pequenas sacolas, com o transcorrer do tempo.
Já semeei esperança e esperança, no coração ... esperando que florisse, e algumas vezes a sementeira foi abençoada.
Já acreditei com as forças todas que tinha e não tinha ... e depois, às vezes, percebi que me havia enganado muito.
Já me senti perdida em dúvidas e na cerração dos nevoeiros, que faziam crer nada valer a pena ...
Já deitei muitas vezes a "toalha ao chão", porque achei que era o fim do torneio, mas depois vi que afinal me enganara, e que ainda conseguia pôr-me de novo em pé.
Outras vezes sossobrei, e entrei em túneis sombrios e compridos que pareciam não ter fim ; escuros, húmidos e gelados, e neles estive tempos, se calhar tempos demais, até que conseguisse distinguir uma pequena luz norteadora.
Já tive que reunir forças, que fui buscar a baús que nem sabia que existiam na minha alma.
Já cerrei os dentes e mordi os lábios, para conseguir avançar simplesmente mais um passo.
Já  deixei  de  enxergar caminhos, porque as lágrimas me turvavam a vista, ou apenas ... porque não os havia ...
Já tive ao meu lado quem mas enxugasse do rosto, quem me desse um ombro, um cólo ou uns braços de repouso, quando o cansaço me matava de desespero.
Já topei com encruzilhadas, muitas encruzilhadas, sem que tivesse bússola, norte, sem estrelas no céu que me guiassem ... e tive que escolher caminhos ...
Enfim, já vivi muito, muito ... outras vezes só vegetei adormecida, entorpecida por mágoas, cansaços, desilusões ... outras vezes nem sequer vivi ...

Em suma ... fui simplesmente normal, creio, como o são as pessoas comuns;  e talvez não queira ser nunca, mais que isso !

Afinal, somos todos matéria, chegámos da mesma forma, tivémos vivências iguais ( tenho a certeza ), experimentámos todos, todas as coisa que existiam por aqui,  soubémos melhor ou pior gerir e conduzir este nosso "bote", tentando abrigá-lo das tempestades ...

Vamos estando por cá, e amanhã partiremos, simplesmente com uma única bagagem :  as páginas que conseguimos escrever do nosso "livro", e aquilo que não esquecemos, de tudo quanto aprendemos nesta nossa Viagem !!!...

Anamar

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

" RÊVERIES "...

"É preciso amor para poder pulsar

  É preciso paz para poder sorrir

  É preciso chuva para florir ..."

As rosas de Sta. Teresinha daquele muro perdido na serra, estão ainda desfolhadas no meu carro.
Com as suas pétalas tentam deixar no espaço, o perfume particular e inebriante que carregam.
Estão no meu carro e estão à cabeceira da minha cama, para que as madrugadas possam florir nos meus sonhos.

Mas as madrugadas não dão mais flores,  porque a paz foi embora, e o sorriso, com ela ...
Acabaram secando, como secaram todas as rosas vermelhas, que o "Homem das Rosas" ofereceu à Maribel, no portão, onde, infatigável, ela o esperou o tempo que foi preciso ...
Secaram como secam os corações sem amor, como estiolam as pessoas sem esperança ...

E os sonhos também não são mais sonhos, porque agora mascararam-se de pesadelos, e eu tive que tornar-me amiga das personagens que os povoam. 
E essas personagens são grotescas, são escarninhas, são sádicas.
Vêm das profundezas do meu Inferno ( porque toda a gente tem um Inferno lá no porão das almas ).
Vêm e teimam em assombrar-me os sonos, e sempre teimam em carregar-me com elas ...

Breve, o sol vai esconder-se atrás daquele castelo de algodão ;  breve, os pôres-de-sol de fogo, e os azuis que se confundem entre céu e mar, vão partir, partir junto com as gaivotas e as andorinhas do mar.
Breve será Inverno outra vez !...

Vão restar os penedos e as rochas, perenes, fiéis e imutáveis.

E eu tenho que renascer para entender o carroussel que é a minha Vida, porque nesta, não estou "formatada" para o conseguir.
Nesta, pouco entendo, do que se calhar também não se explica, do que se calhar não tem entendimento mesmo !... 

"Circunda-te de rosas ... O mais é nada ! " ...diz o Mestre.

Só que as rosas sempre trazem espinhos, e as rosas murcham, mas os espinhos permanecem.
Os espinhos sempre ficam para a eternidade.
As rosas perfumam-nos as mãos e o coração ...  Apenas, o seu aroma é efémero, e a sua lembrança vai ficando ténue, distante, longínqua ... efémera também ...

E haverá um dia, que ao contemplá-las nos perguntamos de que roseira, de que muro, de que serra, em que dia, de que ano, de que Vida, elas vieram até nós.
Nos perguntamos que mãos no-las colheram, e porquê ?
E estava sol, ou chovia dentro de nós, nesse dia ?
E   que  palavras  nos  disseram quando as depositaram no nosso regaço ?...
E  com  que  voz ?  Também com a do coração, a do amor, a do carinho ??

Será que lembramos os sonhos que então sonhávamos, os desejos ardentes que nos possuíam, o amor que pulsava em dois corações que batiam a compasso ??
Será que lembramos o tamanho da fogueira que nos ardia no peito ??
Será que lembramos como era despertar por cada manhã e ter sol a inundar-nos a alma ??

Será que lembramos ???

"O mais é nada" !!!...

A injustiça implacável do transcurso do tempo !...
A fuga das memórias, que endiabradas sempre teimam em partir para outros destinos ...
O buraco deixado pela insensibilidade incontornável, instalada nas existências, que as esbate nas curvas dos caminhos, arrastadas pelos golpes de vento ...

Sem bebedeira de Vida, sem embriaguês de sentires, sem excesso de plenitude na alma ... a mim, o que sobra, de facto, é  NADA ...  nem  as  rosas  de   Sta. Teresinha  à   minha  cabeceira,  nas  noites  vazias !!!...

Fernando Pessoa

Navega, descobre tesouros,
mas não os tires do fundo do mar,
o lugar deles é lá.
Admira a Lua,
sonha com ela,
mas não queiras trazê-la para Terra.
Goza a luz do Sol,
deixa-te acariciar por ele.
O calor é para todos.
Sonha com as estrelas,
apenas sonha,
elas só podem brilhar no céu.
Não tentes deter o vento,
ele precisa correr por toda a parte,
ele tem pressa de chegar sabe-se lá onde.
As lágrimas?
Não as seques,
elas precisam correr na minha, na tua, em todas as faces.
O sorriso!
Esse deves segurar,
não o deixes ir embora, agarra-o!
Quem amas?
Guarda dentro de um porta jóias, tranca, perde a chave!
Quem amas é a maior jóia que possuis, a mais valiosa.
Não importa se a estação do ano muda,
se o século vira, conserva a vontade de viver,
não se chega a parte alguma sem ela.
Abre todas as janelas que encontrares e as portas também.
Persegue o sonho, mas não o deixes viver sozinho.
Alimenta a tua alma com amor, cura as tuas feridas com carinho.
Descobre-te todos os dias,
deixa-te levar pelas tuas vontades,
mas não enlouqueças por elas.
Procura!
Procura sempre o fim de uma história,
seja ela qual for.
Dá um sorriso àqueles que esqueceram como se faz isso.
Olha para o lado, há alguém que precisa de ti.
Abastece o teu coração de fé, não a percas nunca.
Mergulha de cabeça nos teus desejos e satisfá-los.
Agoniza de dor por um amigo,
só sairás dessa agonia se conseguires tirá-lo também.
Procura os teus caminhos, mas não magoes ninguém nessa procura.
Arrepende-te, volta atrás,
pede perdão!
Não te acostumes com o que não te faz feliz,
revolta-te quando julgares necessário.
Enche o teu coração de esperança, mas não deixes que ele se afogue nela.
Se achares que precisas de voltar atrás, volta!
Se perceberes que precisas seguir, segue!
Se estiver tudo errado, começa novamente.
Se estiver tudo certo, continua.
Se sentires saudades, mata-as.
Se perderes um amor, não te percas!
Se o achares, segura-o!
Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala.
“O mais é nada”.


Anamar