domingo, 28 de abril de 2013

" RELENDO ... "



Reler  Manuel  da  Fonseca  levou-me  Alentejo  fora,  até  àquele  casarão.
Aquele casarão que ficava no largo principal da vila, local de passagem dos veraneantes que quisessem seguir até Vila Viçosa, Alandroal, ou  simplesmente até ao alto da Serra, de seu nome "d'Ossa", tão fresca quanto a água nos cântaros de barro, onde se mantinha, tapada com um testo de madeira, ou um simples pires de loiça, quase sempre já "gatado" ...

O casarão era a casa dos meus avós, com paredes de meio metro de espessura, com tectos altos, chão  de tijoleira de barro, e janelas com portadas de madeira por dentro, mantendo a semi-obscuridade, garante da frescura, na canícula dos Verões alentejanos.
As janelas e as portas eram guarnecidas pelo azul-cobalto, das molduras típicas.
Havia todo um terreiro lateral à habitação, o quintal, que abria para o Largo, através de um portão grande, zincado, pintado a vermelho escuro.
Com chão de terra batida, acomodava, quando parados, os carros de muares dos hóspedes.
Isto, porque a casa dos meus avós era uma estalagem, aberta a hóspedes, que normalmente se faziam transportar à época, em carros puxados a "bestas".
Estas eram desatreladas, os carros ficavam adormecidos, no "descarregador", inclinados, com os varais pousados no chão ...
Faziam por isso, as minhas delícias, e dos meus primos, já que neles seguia, em viagens imaginárias, aos tirantes de mulas e burricos, por estradas inventadas, acomodada nos assentos do cocheiro, revestidos quase sempre, a pele, ou com mantas de Reguengos.

No quintal havia um poço, com rochas no fundo, onde as avencas cresciam, e onde o meu avô mantinha os pirolitos fresquinhos, dentro de um cesto, que fazia subir e descer à hora do almoço.
A água do poço, tirada com o caldeiro, dava de beber aos animais, que na cocheira, a "Quadra", como se chamava, repousavam da viagem, e onde nas manjedouras, a palha puxada do palheiro com a forquilha, lhes matava a fome.

O palheiro ... Lembro o palheiro de brincadeiras intermináveis, de saltos e cambalhotas.
Lembro do carregar das gorpelhas de palha, "torres" douradas enredadas, nos carros que as transportavam.
Lembro que a palha descia pela "manga", e era espalhada pelas manjedouras, frente à cabeça das "bestas".
As galinhas e os patos, que ciscavam soltos, colocavam os ovos "a salvo", no calor da palha.
E por isso, a criançada, em gozo de férias, tinha por incumbência recolhê-los, na cestinha que a avó nos enfiava no braço.

No palheiro, o meu avô, quando estava de "boa catadura", deixava pernoitar gratuitamente os malteses, que perambulavam pelas estradas, como pardais à solta, sem eira nem beira.
Figuras errantes, sem chão ou grilhetas que os prendessem a nada nem a ninguém, os malteses, na minha cabeça de criança, eram a perfeita imagem de liberdade, e só me lembravam as borboletas que volteiam de corola em corola.
A "Quadra" acoitava-os, e era vulgar, lá pela meia-noite, o meu avô abalar-se até eles, para verificar se não haveria "beatas" acesas, que lhe pusessem fogo ao palheiro, já que era o vinho que quase sempre os aquecia por dentro, e lhes apagava os desgostos das mentes ...

O largo da vila era de terra batida.
Dividia-se ao meio pela estrada, por onde à hora do almoço e ao fim do dia, passava a camioneta  "da carreira", que vinha de Évora, e trazia alguns, poucos passageiros.
Sempre corríamos em bando, a acenar-lhe !...
A estrada era ladeada por árvores frondosas, de folha perene, cuja sombra era uma bênção no Verão.
Por debaixo delas, no pavimento de terra, fazíamos as três covinhas alinhadas, do jogo do berlinde, com os calcanhares das botas ;  negociávamos os nossos "tesouros" de arco-íris, cautelosamente saídos de um saquinho de pano, exibíamos orgulhosamente o nosso "abafador" invencível, brincávamos de roda, à Cabra-Cega, à Linda-Falua, às Estátuas ... e claro, ao "agarra", que terminava quase sempre, com joelhos esfolados e sangrantes ...

E depois havia a vila, e depois havia o campo ...
O campo de horizontes perdidos, de searas que resmalhavam no roçar das espigas maduras.
Havia o pintalgado do vermelho das papoilas, do branco, do amarelo e do roxo, que são as cores das flores do Alentejo !

E havia as gentes ...
As mulheres,  geralmente  de escuro, embiocadas num lenço de cabeça, atrás dos postigos, ou sentadas pela tardinha, em cadeirinhas baixas, de fundos de buínho, junto das portas ... Os homens, pelas soleiras ou nos bancos da praça, junto à fonte, chapéu inclinado adiante, para sombrear os olhos, e queixo apoiado no cajado que lhes ajudava o andar já trôpego dos tempos, pareciam adormecidos no sossego  que pairava.
A "pirisca" do cigarro, era colocada atrás da orelha, para ser aproveitada até ao fim.  Quase sempre eram cigarrinhos enrolados pacientemente na mortalha, e que morriam no canto dos lábios, esquecidos ...

Por vezes, só os zumbidos de algum abelhão, ou de uma varejeira impertinente, quebravam o silêncio parado ali.
As ondas de calor junto ao solo, distinguiam-se no ar, com nitidez, e para amenizar, regava-se a rua, até que a fresca descia.
Só então, as andorinhas que faziam ninho nos beirais da Câmara, desciam em bandos rasantes, num bailado de prima-dona, e chilreios ensurdecedores.

Era Alentejo ... era a minha infância !...
Lembro bem !!!



 Anamar

" TERGIVERSANDO " ...


Postei ontem que tive um "acesso", um "surto", uma insanidade notória, uma maluqueira incontrolável ... e resolvi viajar, resolvi ir embora, voltar costas, tentar esquecer isto por aqui, numa operação de cosmética à minha vida ( pura cosmética , simplesmente ), numa manobra de faz de conta, numa brincadeirinha em que a menina acredita ser uma das princesas da Disney ...
Assim ... absurdamente, infantilmente, com a ingenuidade de quem acredita, não acreditando na verdade, numa  ânsia  absurda  de  que  com  isso,  conseguisse  mesmo  ir  embora  de  mim  própria,  isso  sim !...

Óbvio que eu adoro viajar.  Isso é indiscutível.
Mais do que todos os luxos imagináveis da vida, para mim, uma viagem é, por todas as razões, uma espécie de lavagem à alma, uma espécie de transmutação de mim própria em qualquer outro eu, uma anestesia a toda a insatisfação com que permanentemente vivo.

É um parêntesis nos meus dias ;  é exactamente a brincadeira em que se entra, em que nos travestimos livremente do que quisermos, em que tanto somos heróis como vilões, bonitos como feios, fadas como demónios ... assim ... num passe de mágica !
Como as crianças fazem, nos seus jogos oníricos.

Uma viagem, é para mim efectivamente, um sonho meu enquanto adulta ;  um sonho que inicio sem querer pensar que acaba, que vai terminar, como todos os sonhos ;  sem querer  consciencializar quanto tem de fugaz esse lapso de tempo, em que o  forço , exactamente a parar, a suspender-se ... como se eu fosse mágica e o pudesse manipular.

Mas também, não vale a pena fingir que não percebo que esta viagem, esta mais ainda que muitas outras, é uma fuga minha "para a frente", como "soi dizer-se".
É um fingir que acredito que se curam cancros com pensos rápidos, fingir que a felicidade é um dos prémios do euromilhões que pode sempre calhar, fingir que a salvação nacional só passa pela nossa vontade !

É a ilusão que se vive, quando na tela do cinema se projecta um enredo no qual mergulhamos, porque nos dá paz, nos faz sentir bem, nos aliena ... e nós gostamos ... e nós deixamos !...

Eu sei que é isso tudo, apenas isso tudo, e também sei que vou encontrar à chegada, a mesma que eu sou, e que simplesmente ficou em "marinada" temporal ...
Sei que vou voltar a vestir o casaco incómodo da minha vida, que deixei dependurado no cabide, atrás da porta, ao partir ...

E tudo inalterado,  seguramente !...
Só que já será dia outra vez, a noite terminou, e o sonho sonhado, também !...

Mas pelo menos ... FUI !...

Anamar

quinta-feira, 25 de abril de 2013

" SEMPRE 25 DE ABRIL " !



Uma semente ficou
na floreira do jardim
Continua a dar-me cravos,
e molhinhos de alecrim ...
São cravos do nosso sonho
sonhado naquele dia,
são sinais de um homem novo,
são a vontade de um povo,
foram um rumo, e um guia !

E os sonhos que Abril abriu
pelas madrugadas fora,
foram paridos na dor,
foram vividos no amor,
estão vivos até agora !
Nas algemas da desgraça
ninguém mais nos vai  prender,
enquanto o coração sonhar,
tiver fé, e acreditar
na força do nosso crer !

São cravos que a alvorada
entregou na nossa mão,
rostos erguidos de gente
com coragem, resistente,
e que sabe dizer  NÃO !...

E por isso, Portugal
que acordaste à claridade,
não adormeças teu chão !
Vem p'ra rua, vem dançar,
faz ouvir a tua voz ...
Lança ao vento a liberdade,
acorda toda a cidade,
como o eco de um trovão !!!

Anamar

terça-feira, 23 de abril de 2013

" DEU - ME A LOUCA" !!!!



Decididamente, deu-me "a louca" !

O Mundo está a preto e branco, o país está mais a preto que branco, as pessoas sofrem, angustiam-se e não dormem, com tanta escuridão à sua volta ... eu, decidi ( em total insanidade, e sem que fosse prudente fazê-lo ... ) marcar uma viagem.

Preciso respirar.  É-me  quase  vital  p'ra  não  sufocar,  partir,  ir  embora .
Por pouco tempo, é certo, mas inventando para mim, que é muito.
Basta que seja outro ar, outro céu e outro mar, para que eu já me sinta num conto de fadas, num qualquer paraíso perdido, com o condão de me deixar arquivado numa prateleira distante, tudo, tudo, o que é a minha realidade descolorida, de uma Europa e de um Mundo  "de gaita"  !

Não se vê nenhuma "luz" nos tempos próximos.
Acho  mesmo, que  já nem será para a minha geração, poder-se voltar a viver com alguma descontracção, ou pelo menos voltar-se a "respirar" até ao fundo, de novo.
Estamos, e continuaremos a estar, num arame sem rede.  Vivemos sobressaltos constantes.
Deitamo-nos hoje, com a insegurança do acordar de amanhã.  As nossas noites são assoladas por pesadelos.
E se, surge uma doença ?   E se, surgem obras no condomínio ?   E se, temos um acidente a que tenhamos que responder economicamente ?   E se, um filho derrapa  além da conta ?
E se,  e se,  e se ???

Nunca vivi a "tapar buracos", que é como quem diz, a esticar a manta do palhaço, como diz um amigo meu.
P'ra tapar a cabeça, destapam-se os pés, e para tapar os pés, falta na cabeça, porque sempre é curta ;   não dá para repousarmos tranquilamente, que não arrisquemos constipar-nos.

Tento acalmar-me às vezes, a pensar que à minha volta, "grosso modo", o cidadão comum que me rodeia, vive um pouco da mesma forma.
E ouve-se dizer : "desde que dê para o mês " !  "é assim : este mês faz-se isto, e aquilo espera para o próximo" !...
Deus do céu !  As gerações actuais, porque têm idades diferentes, resistências diferentes, e até formas de pensar diferentes,  têm uma flexibilidade maior, uma adaptabilidade a estes esquemas, mais folgada.
Eu, venho do tempo do "pé de meia", da "segurança" para o dia de amanhã, para a doença futura, para a velhice próxima.
Eu, venho do tempo de que o passo teria que acompanhar a perna, e nada de megalomanias, de deslumbres ou malabarismos desavisados.  Nada de aventuras suicidas, nada de "desvios" permitidos ...
E pronto ;  esse era o espírito dos meus pais, e o espírito sempre existente, enquanto  "fui gerida" economicamente, em lar matrimonial.

Depois ... bom, depois bagunçou-se tudo !
O Mundo "embananou-se" quase logo  ( eu acho até, que havia uma qualquer conspiração astral, programada contra mim ... rsrsrs ) !
E como sem ovos não se fazem omeletes, nem das cartolas, os coelhos saem assim sem mais nem menos ( porque deram em ficar espertos ), eu, "embananei-me"  também !
Eu, e mais quase dez milhões de portugueses, que eu sei !

Claro que há quem esteja a dar-se muito bem nisto tudo.
Como há sempre quem se dê muito bem, e seja muito sagaz no mexer dos cordelinhos certos, em qualquer altura.
E normalmente são sempre os mesmos !...
E isso é que me dá uma raiva desgraçada !  Porque há efectivamente gente, cujos horizontes são privilegiados, e com uma capacidade, eu diria inata e singular, para da "merda fazer ouro" ...
E são de novo, sempre os mesmos !!!...

Eu não fui "fadada" com essas capacidades.
Nem ninguém com escrúpulos, ausência de jeitinho para  expedientes,  ou  outros  esquemas  pouco transparentes,  o  consegue ...
E por isso, olhem ... já não sei o preferível ...

Depois, desgraçadamente, na minha época, também se acabaram os "tios do Brasil", figura vetusta, parda e sovina, que "abrilhantava" com os "níqueis" aferrolhados, as famílias, em gerações passadas.
O "tio do Brasil", era o frequente benfeitor, quando partia, e enchia os cofres dos que por cá ficavam.
Dava sempre jeito, um qualquer desses "tios", que nunca víramos, não conhecíamos, nem lembrávamos ... mas que fiel ao sangue a correr nas veias, não nos renegava a herança choruda, no dia do ajuste final !...
Pois nem esse  bendito "tio", eu desencantei ... bolas !!!
Por mais que esquadrinhasse a árvore genealógica, ninguém, dos meus, se demoveu a ir para Terras de Vera Cruz, em busca de outros horizontes.
Oh gentinha !... Mania dos alentejanos, ao contrário de portugueses mais aventureiros e inconformados de outras  zonas  do  país,  se  agarrarem  ao  torrão  natal,  num  saudosismo  e  masoquismo  idiotas !...
Passar miséria, talvez, mas nunca deixar o seu chão e os seus, também !...

Sei é que me deu  "a louca" !...

E pensei : "Perdido por um, perdido por mil !  Qualquer dia, bato a caçuleta e vou-me embora ...
Qualquer dia, o "lar" está à minha espera ...
Qualquer dia, o cancro, o Alzheimer, a esclerose não sei das quantas, as cataratas nos olhos e a surdez nos ouvidos, esperam-me ao virar da esquina.
As artroses, as pernas que ficam madraças,  as últimas mais-valias físicas e mentais, vão à vida ...
Qualquer dia, qualquer dia, qualquer dia ...
Quase já ... me transformo num "esgar humano", num "simulacro de pessoa", numa "sombra passante"  ... numa tontinha, a quem, à mesa, têm  que  por  o  guardanapo  no  pescoço  e  os  talheres  na  mão ;  numa incontinente  de  líquidos  e  gases,  nos  locais  inapropriados  ( para vergonha, dos que se haviam habituado a  verem-me  como  "invencível",  como  "gente",  como  "gigante",  quase ... )

Qualquer dia, ninguém  mais me quer escutar, porque baralho as conversas, não oiço os diálogos, fico porca na higiene, e chantageio emocionalmente tudo e todos  ( como é apanágio de um "velho" que se preze ) ...

Qualquer dia "embico" nos próprios pés, refino a tão "requintada" maneira de ser que já tenho, apuro a "raiva" de vida, que já sinto ... e lixo a vida a todos os que me rodeiam ...

Então ... se qualquer dia é isso tudo, que se vai passar ... que se   "f.... a taça" !!!
Tenho todo o direito  que  me "dê a louca" !!!...


Anamar

segunda-feira, 15 de abril de 2013

" IL TROVATORE "



Baixei a  S.Carlos, naquele domingo, pelas quatro da tarde.
Lisboa, estava tão adormecida quanto o dia.
Um dia de meio de um Abril incumpridor, que há muito deveria estar a festejar a Primavera, e ainda não lhe vira a cor !

A carruagem parou finalmente ... uma caleche azul portentosa.  Dei uns trocos ao cocheiro, alguns mil réis, peguei a sombrinha, calcei as luvas pretas de doze botões, que tirara, porque afinal também não estava frio, e encontrei-me na calçada.
Havia algum movimento, apenas junto ao Teatro, porque os passantes no Chiado, eram avulsos
Uma tira estreita de água e monte, avistava-se entre dois prédios de cinco andares.
No Tejo, uma vela de  barco da Trafaria, fugia airosamente à bolina, e uma galera toda em pano, trazida pela aragem, passava envaidecida.
De resto, apenas algumas tipoias de praça, circulavam pelo Chiado e pelo Loreto.

À passagem, ainda olhei para o Grémio Literário.  Quem sabe estava por ali o Ega ?!...
Mas não ... Aquele malandro deveria estar ainda a dormir, depois de mais uma noite de esbórnia, talvez lá por Sintra.
Afinal, o Lawrence's costumava prendê-los, a ele e a Carlos, naquelas longas reflexões e filosofices, madrugada adiante, sobre a política tão atormentada, dos tempos que se viviam ...

Em S.Carlos, esperava-me "Il Trovatore".
Certamente a élite intelectual de Lisboa, não perderia a Trilogia de Verdi, que corria, na temporada.
Como sempre, eu afrontava as damas da sociedade, e espicaçava-lhes a curiosidade e uma pitadinha de inveja, atrevendo-me a escutar Verdi, sozinha, no camarote recatado, que Carlos mantinha reservado para mim.
Os binóculos e o leque, encontravam-se obviamente, na bolsinha de mão.
Com o   meu vestido de cauda de "côrte", decotado, de seda da cor do trigo, duas rosas amarelas e uma espiga  nas  tranças,  que  me  compunham  o  rosto  ruborizado,  não  passava  contudo,  desapercebida !

S.Carlos estava um "mimo" !
As cortinas pesadas, "marron", com pendentes dourados, os florões trabalhados em talha, as pinturas nos tectos e nas paredes, os lustres e a profusão de apliques fabulosos, com abundantes pingentes em cristal, eram inigualáveis.
O  camarote real, frente ao palco, encimado pela coroa régia, rodeava-se dos restantes, adamascados em rosa  velho. As efígies de compositores, nas paredes,  os baixo-relevos de um bom gosto indiscutível, as estatuetas da "Virtude" e do "Costume",  ladeando o palco , o relógio adormecido nas horas ... tudo era perfeito !
Nas frisas, os cavalheiros, de colete branco, camisa frequentemente adornada com pregadeira a rigor, sob o paletot , os sapatos irrepreensivelmente envernizados, luvas e bengala de cana da Índia, encastoada, davam um toque "raffiné", quando regressavam do "fumoir", nos intervalos . Era vulgar trazerem o seu monóculo devidamente assestado, para a "função".
As damas da sociedade, como convinha, ostentavam delicada saúde, com um quebranto nos olhos pisados, uma  infinita  languidez  em  toda  a  sua  pessoa,  e  um  ar  sonhador  de  romance,  e  de  lírio  meio  murcho ...

Ainda faltava um pedaço para que o pano subisse ... e contemplando a sala, absorta, relembrei as últimas conversas tidas com Carlos, a propósito do país ... a propósito de Lisboa.
"Um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse pela barra fora, o rei, a família real, a cambada dos ministros, dos políticos, dos deputados, dos intrigantes ....
Porque, suprimida a cambada, o país ficava desatravancado, e podiam começar a governar, os homens do saber e do progresso, porque estes, não são maus ... estes, são umas cavalgaduras " !... - dissera-me, preocupado com o estado da Nação.

Enquanto isso, Lisboa está um marasmo !
"Aqui,  importa-se tudo.  Leis, ideias, filosofias, teorias, assuntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias ... tudo nos vem em caixotes, pelo paquete !
A civilização custa-nos caríssima, e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas "...
"Vive-se em meio de uma choldra ignóbil !
Predomina uma visão de estrangeirado, de quem só valoriza as civilizações que julga superiores. Principalmente os políticos, que são mesquinhos, ignorantes ou corruptos !...
Enfim  ...  um  país  que  se  dissolve,  Maria  ... Incapaz  de  se  regenerar" !!!...

Interessante esta dissertação de Carlos.
Lúcida, sempre lúcida.
Era forjada nos longos serões de cavaqueio, passados no Ramalhete, depois do avô se recostar ( após o seu whist indispensável, na mesa de pano verde, junto à chaminé, onde agora a chama dos carvões escarlates, não brilhava.  Afinal, era Abril, não esqueçamos !... )
Serões onde não faltava, claro, o Ega, o Craft ( um "doido" a conhecer ), o Cruges ( um geniozinho adoidado ), o Taveira sempre muito correcto, o Marquês de Souselas ... todos em cavaqueira prolixa, à volta de um St. Emilion ou dum Porto, puxando o lume ao charuto .

Pena que tais serões não incluíssem senhoras, presentes ...  Isso seria um desaforo seguramente !
Contudo a curiosidade, o interesse, o gosto por essas tertúlias, em que também se tocava Mendelsshon ou Chopin, aguçava-me o apetite desde há muito, e incendiava-me arroubos contra a discriminação social, como se as mulheres, não fossem também cabeças pensantes, e tivessem apenas como "obrigações", os bordados, o piano, as recepções, quais  bibelots decorativos, de "pose" irrepreensível ...
Tudo demasiado entediante !...
Maçante, o perambular pela luz difusa dos palacetes, cultivando a palidez nacarada nos rostos e cólos !!!...

E assim foi !
Despertei deste torpor, quando o Conde de Luna  lamentava,  que a sua amada Leonora preferia as serenatas de um certo trovador ... que ninguém sabia verdadeiramente quem era ...
E a música de Verdi, transportou-me então, em sonho, até ao final do quarto e último acto !...

No regresso, ainda passei pela Brasileira.
Tinha um encontro marcado, anos depois, com Pessoa ... e ele não faltou !
Nas madeiras, nos tectos trabalhados, nos espelhos e nas telas sobre as paredes adamascadas ... nos grandes lustres suspensos, e mesmo nos balcões ... ele escrevinhava por lá ...

Juro que o vi, e trocámos algumas  "impressões" literárias ...
Proseámos um pouco, e ele confidenciou-me que ... virados os séculos, o país continuava exactamente a mesma ignomínia !!!...
Afinal, tinha acabado de escrever o seu "Nevoeiro" ...

Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quere.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ansia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!






Anamar       

quinta-feira, 11 de abril de 2013

" A TORRE DE BABEL "



Cada história é feita de muitas histórias  e  cada história  conta muita histórias.

Seja o que for que contemos ou que escutemos, essa narração sempre terá muitas versões.
Primeiro, objectivamente,  será a história que queremos contar, ou que no-lo querem contar.
Contamos o mesmo episódo, inconscientemente até, de formas diferentes, consoante o ouvinte que temos do outro lado.
A este, enfatizamos isto, àquele omitimos aquilo ;  aqui, acrescentamos este pormenor com que a história melhoraria, além retiramos aquele outro, que possivelmente  tornaria  fastidiosa a narrativa.
Há coisas que alguns entendem, e outros ... nem pensar !

Historinhas dentro da história principal, estruturam-na, conformam-na, dão-lhe sentido, explicam-na.
Muitas vezes tornam-na mais perceptível pelo receptor, outras, tornam-na enjeitada pelo mesmo, por excesso de pormenores, maçantes e dispensáveis.

Frequentemente, acrescentamos-lhe o tal "ponto" de quem conta um "conto", embora estejamos convencidos, que não narramos mais nada, além da versão "verdadeira" ... a nossa.
Simplesmente, porque como achamos que foi exactamente aquela que vivemos, apossamo-nos da mesma, e passa a ser a "nossa história" !

Mas tudo é absolutamente subjectivo.
E o "filme" que juramos ter visto e sentido na nossa cabeça, ao mesmo tempo, na mesma sala de cinema, à mesma hora ... não foi nada do que o espectador que estava ao nosso lado, viu e sentiu.
Eu vi  "assim" ... ele viu "assado".
E para ele, a história que ele viu, é que é "a história" !...
Obviamente, será a partir dela que ele criará as suas versões, para posteriormente contar e recontar, claro que de forma diferente, por cada vez que a conta !...

E no fim da cadeia narrativa ... se calhar o que fora preto, já está branco de neve !

Depois há também a subjectividade de que o narrador da história a vai imbuir, de acordo com o seu próprio estado de espírito, do momento.
A mesma história fá-lo-á sorrir ou irá magoá-lo, aparecer-lhe-á iluminada de sol, ou escura de tempestade, consoante ele próprio o esteja por dentro, e consequentemente, consoante seja a sua receptividade à mesma, no momento.
E nem sequer é porque ele o queira, conscientemente. É porque a "vê" assim, inteiramente à sua revelia.

E dependendo disso mesmo, ele a passará adiante, dentro desses parâmetros, querendo ou não ...

Ou seja, a história não existe mais de "per si", mas apenas tem vida, pela mão, ou melhor, pelas palavras do "contador" da mesma.
Como tal, a sua adulteração é inevitável.
Mas posso perguntar : " Que adulteração " ?
Porque a verdadeira história, ninguém sabe qual é !
Não será a que eu vi, a que o outro viu, nem sequer a que o "realizador" concebeu, até porque, se calhar, nenhuma  é  real ... embora  muitos  estejam  convictos,  que  possuem o  conhecimento  da  veracidade  do enredo ...

E assim, nunca ninguém se irá entender neste Mundo !
Sempre discutiremos o que foi, como foi, se foi, quem está certo, quem está errado, o valor da minha verdade, o valor da tua verdade, da verdade individual ou da colectiva ...
Por isso é tão difícil entender, valorizar, julgar, porque à partida é difícil interpretar, e consequentemente mais difícil ainda, decidir ou tomar qualquer posição, com isenção ...
... porque isenção, é outra coisa que não existe, na verdade !!

No filme "A vida de Pi", inquirido, Pi teve que narrar duas histórias diferentes, do seu percurso, aos mesmos ouvintes.
Pediu-lhes então que escolhessem a que lhes interessava, a que achassem convincente;  porque a real, a vivida por si, se  mostrou inverosímil aos olhos e aos ouvidos de quem a escutou.
Não era aquela que eles "queriam" ouvir, afinal !!!...

Já imaginaram  -  nos mais de sete bilhões de seres humanos que ocupam o planeta Terra, pressupondo que cada  um  terá  a  sua  história,  feita  de  muitas  histórias  e  contada  por  tantas  outras  -  como  é  que  alguma  vez  ou  algum  dia,  nos  poderemos  entender ???!!...

Como  numa  verdadeira  Torre  de  Babel ... "jamais" !!... diria  o  outro !!!...

Anamar

quarta-feira, 10 de abril de 2013

" PASSAGEM "



É um tempo de passagem
o meu tempo de viagem,
tudo o que a Vida me dá ...
É o que é e não é,
uma verdade e mentira,
um sonho partido ao meio ...
é estrada entre cá e lá !...

É caminho de chegada
e é caminho de partida.
Não é um lugar de estar,
Não é lugar de ficar ...
Não é um lugar de tempo,
porque há pressa de passar ...
E porque é urgente chegar,
não é tempo de lamento !...

Não estende as suas raízes,
Não tem escoras, não faz ninho ...
Só me traz mágoa e tormento ...
Não é de lugar nenhum
e é de todos os lugares ...
Tem urgência de partir, mal acaba de chegar ...
Não tem alma ou coração,
pois ninguém segura o vento !...

Nestes meus dias cansados,
queria unir as duas margens,
queria deitar e sonhar...
Indiferente, a água corre,
debaixo daquela ponte ...
E o sol,  lá no horizonte
também já se vai deitar !...

E tu chegas, e tu vais ...
tão breve quanto a aragem despenteia o meu cabelo ...
Não ouves o meu lamento,
foges de mim, como o vento !...

Meu amor, não partas já ...
Deixa eu inda acreditar,
que o meu tempo de viagem,
este tempo de passagem,
existiu p'ra te encontrar !...

Anamar

sábado, 6 de abril de 2013

" BELEZA PURA " - palavras para quê ?

Hoje, sem nenhum preâmbulo, além de vos convidar a relaxar sonhando ... contemplem estas maravilhosas imagens ...

Nem tudo tem que ser a preto e branco, aqui, neste meu espaço


Anamar


quarta-feira, 3 de abril de 2013

" DEVANEIOS "



Gosto de escrever, de fotografar e de viajar.
Aqui estão as três actividades ou "hobbies", que mais gozo me dão, fazer.

Com a primeira, imprimo as emoções, que são sensações já trabalhadas.
Extravaso, tricotando ideias, misturando convicções, buscando respostas para dúvidas, desenhando no papel, o imaterial que está dentro de mim, trazendo à luz, o que faz parte do domínio da escuridão da alma.

Escrevendo, abro-me, disseco-me, com os bisturis do sonho que não refreio, e que deixo fluir ;
avanço por mim adentro, cirurgicamente, na busca de cantos e recantos inalcançáveis ... alguns que nem suspeito que existem.
Na escrita me exponho, me questiono, às vezes numa conversa de surdos, porque não obtenho respostas de nenhum lado.
Com as palavras, dialogo com parceiros reais, umas vezes ... inexistentes, outras.
Com as letras, construo e desconstruo cenários inverosímeis ou só sonhados, por inviáveis ;
Brinco de caleidoscópio de alfabetos, e giro, giro as pecinhas, que aleatoriamente, no jogo de espelhos, como na vida, me devolvem o possível e o impossível, e me deixam brincar, sem reclamarem ...

Ao escrever, fotografo e viajo.
Faço a minha fotografia subjectiva, do objectivo, e do que invento ;  fotografo-me e fotografo os outros, e o tudo, que é o somatório dos retalhos, por aí perdidos.
A escrita é frequentemente a minha alucinação, porque é livre, não censurada, libertina.
E viaja.
Viaja sem fronteiras, sem barreiras ou moralismos.  Vai exactamente até onde eu quero ... até onde eu sinto.
Pode ser carrancuda, de cenho carregado, de sobrolho franzido ... ou pode ser brincalhona, infantil, desarmada, inconsequente, lúdica, como num jogo de roda.
Com ela, posso construir um zoo de homens enjaulados, e um mundo de bichos livres e coloridos ... É só eu querer !
Ela pode decidir por um sol prateado em vez de dourado, a iluminar um firmamento verde-esperança ... ou escolher um calendário só de Primavera, com o mar sempre manso e preguiçoso, a dormir na areia branca, com gaivotas, mas também com flamingos ... porque eu gosto !!!
Ou então, um céu negro de borrasca, com nuvens encasteladas e vento zangado e bravio ...
E com todas as corolas da Terra, a abrirem flores, sem cessarem ... com as cores que nenhum artista matizou ... Só porque eu gosto também !...

Enfim, com a escrita pincelo telas, crio histórias que existem e que não existem, e mergulho nelas, confundo-me com elas, e com elas mascaro a minha própria história ...

Quando fotografo, escrevo de outra maneira.
Quando fotografo, procuro com o olho da câmara, aquilo que os meus olhos nem sempre vêem.
Recorto do que vejo, só o que me "toca", e deixo o resto às escuras.
Quando fotografo, tenho o poder mágico do Aladino da Lanterna, tenho o poder divino de fazer e desfazer, num piscar de olhos, e num clique temporal.

E  invento como quero, também ...
Posso  tornar aquele canto de tonalidades mil, de sol e luz esfuziante, num lugar tão cinzento, escuro, frio  e nebuloso, como o meu coração poderá estar naquele momento.
Basta querer ...
E posso fazer ao contrário, e abrir de repente, aquela imagem penumbrenta, em luz e cor, à medida da minha loucura, e do meu prazer lúdico de ser Deus !!!

Depois, bem, depois é dar som e cheiro a tudo aquilo ...
E juro-vos ... não tem nenhuma dificuldade !
Todas as minhas fotografias têm calor, frio, sol, chuva, aromas doces de campos íntimos, perfume entontecido de mimosas ou glicínias,  chocalhos de ovelhas na pastorícia, e zumbidos de abelhas  e zângãos, a beijarem descaradamente os botões das roseiras bravas, recém-abertos ...
Todas têm o sopro da brisa que perpassa, o grasnido das gaivotas, o piado da coruja, e a batida das ondas, mansa ou agreste, nos rochedos lá  em baixo ...
Todas têm o afogueado dos rostos, e o suor dos corpos, as batidas descompassadas dos corações, as cumplicidades gravadas em sussurros ou silêncios, o frio das mãos geladas, entrelaçadas nos bolsos, e têm também os risos cristalinos da felicidade, ou mesmo o soluço das lágrimas, que correram teimosas ...

E têm voz ...

Têm palavras que foram ditas, e ficaram ... palavras perpetuadas, que se colaram à imagem, e fazem a história daquela fotografia "ad eternum" ...
Ou silêncios adivinhados ... que não desvendam o seu significado ...
E contam, por isso, histórias também ... Escrevem momentos ...

As viagens ...
Bom ... viagens é tudo o que faço, vinte e quatro horas por cada dia.
Viajo quando vou, e viajo quando fico...
E  faço  as  mesmas  viagens,  rescrevendo-as  e "pintando-as", das  mais variadas  formas, com  todas  as  nuances possíveis,  a  meu  belo  prazer !
Viajo acordada, sempre ... neste espírito inquieto, sôfrego, insatisfeito e meio desbaratinado, do meu "tudo" ou "nada" ...
Viajo na inconformação de me saber confinada a espaços, a pedaços de vida, curtos demais para a minha ânsia ...
Viajo, quando me transmuto constantemente em outras personagens que invento, porque as desejo muito ...
E viajo a dormir, à minha revelia, p'ra destinos que nem escolho.
Às vezes, queria aquele sonho em "suporte de papel" ou registo fotográfico, para o reler e o rever, até me esgotar ... para nele viajar uma e outra vez, até me exaurir ...
Outras, não !!!...

Mas quer escreva, fotografe ou viaje, levo na minha bagagem o sonho que me acompanha, levo na cabeça o chapéu que me protege das intempéries do destino,  nas mãos, as flores que vou colhendo nas bordas das estradas ... e no coração a ingenuidade da criança que nunca deixarei de ser !!!...


Anamar

segunda-feira, 1 de abril de 2013

" A FALAR ALTO ..."



Finda a Páscoa, Abril chegado, o sol espreita, muito reticente, já que ainda está muito por detrás das nuvens, e a metereologia não é animadora para os póximos dias.

Hoje, sinto em mim uma determinação, ganas, necessidade absoluta de, como numa qualquer expurgação, me deixar ungir pelas águas do Abril, que agora abriu.
É uma espécie de corte com o Inverno duro, profundo, depressivo, escuro,  e  desesperante,  como o que findou,  e me atirou, quase nos atirou  a  todos,  para  um  cansaço de alma, e uma desesperança tão penosa, quanto ele  o  foi.

As águas de Março fecham o Verão no Brasil, canta a saudosa Elis Regina ... Fecham o nosso Inverno ...
Seria desejável que o fizessem !

Estamos todos a precisar de dar uma boa sacudida de asas, como os passaritos ao saírem da poça de chuva onde se banharam,  saltarmos  para  o galho mais alto da cerejeira florida, lá donde se avista o Mundo, e acreditar que podemos voar, seja lá  isso  o que for.
Sinto hoje em mim,  uma ânsia de um qualquer fecho de ciclo, uma ânsia absoluta e imperiosa de um virar de página, um desejo de renovação e recomeço de mim mesma.
Como se eu pudesse ( quem sabe, posso ? ), fazer o meu próprio e urgente "reset".

É  verdade,  que  "empurro"  um  pouco  estes  pensamentos  p'ra  frente ...
É verdade, que estou a tentar impor-mos, não sei se com convicção que chegue ...
É  verdade, que me guerreio p'ra neles acreditar, porque como alguém sequioso no deserto, ou encontro água, ou morro ...
Como alguém que sufoca, ou oxigeno os pulmões ou sucumbo ...
E  na minha característica e habitual "bipolaridade", deixem-me ver o azul agora, porque logo à tarde, provavelmente já troveja dentro de mim ...
Eu conheço-me ...
Qualquer lampejo de sol me leva ao topo da montanha, qualquer pingo de chuva me submerge, qualquer golpe de vento me derruba ...

Neste momento, dentro de mim, é uma questão de sobrevivência.
Ou consigo fazer-me uma "faxina" na alma, ou já não me levanto. Ou consigo inventar que ainda há objectivos a cumprir, ou estaco por aqui mesmo ... Ou acredito que ainda posso ter vida pela frente, ou desisto, e mais vale parar de vez ...

Sinto, que esticar mais este adormecimento que são os meus dias totalmente desinteressantes, não é mais possível, sinto que fingir que este adormecimento em que vivo é sustentável ( quando sei que não o é, mas sim, destruidor ), é absolutamente falacioso ... Sinto que continuar apenas a fazer de conta que vivo, como uma marioneta a reboque dos ritmos que me vão empurrando adiante, só empurrando e eu deixando-me levar, só levar - sem agente ser sequer, do meu próprio destino - é de loucos !
Sinto que fazer de conta que existo ... só fazer de conta, porque afinal desempenho as funções vitais e outras, programadas para o comum dos mortais ... não é mais suportável !

Percepciono ter chegado a uma encruzilhada, não sinalizada, e tenho que decidir de uma forma determinante e urgente, que caminho escolho seguir ... porque tenho que tomar um.
Não dá mais p'ra ficar parada numa indiferença doentia, numa estagnação mórbida, numa anestesia de vida ... vendo-a como uma película a que assisto, como mera espectadora !
Não se pode fingir apenas, que se existe ...
Só nós somos agentes dos nossos próprios destinos ... ninguém mais.
E urge fazê-lo, porque a contagem decrescente está aí, segundo a segundo, na ampulheta do Tempo !...

Eu sou um  espanto ... vou ter que confessar !...

Passou talvez uma hora, pouco mais, desde que reflicto aqui no meu cantinho do café, "as usual" ...  e neste momento, já não sei bem se a tal determinação, as tais ganas e a tal necessidade absoluta de ... com que iniciei os meus escritos, ainda têm "pernas para andar" ...
É que acho que, como um balão de menino, furado, me fui esvaziando, esvaziando de mansinho ... e pronto ... agora, que são seis  da  tarde,  naquela  hora  "macaca"  em  que  o  sol  ( quando o houve ), se recolhe para dormir, eu sinto-me perdida, mas perdida mesmo ...
Perdida, de aperto no coração, a doer sem remédio, e sem rumo ou norte.
Só sei que tenho aqui no meio do peito, um buraco.
Juro que tenho ... e quem me ler só pode dizer que sou louca !

Era cómodo que o fosse ...  Mas  completamente,  porque  desta  forma,  não  está  a  dar ...  juro ...  não está  mesmo  a  dar !!!...

Anamar