segunda-feira, 30 de setembro de 2013

" NEVOEIRO "



A Sandra lançou-se do terceiro andar da escada do prédio onde vivia, p'ra morrer no patamar cá em baixo, às oito da noite ... noite escura já ...
Era jovem, sozinha, perdera pai e mãe.  Não tinha ninguém.  Vivia com quatro gatos e uma periquita branca.
Estudara, conhecera  vida folgada.  Licenciara-se em Direito.
Após o falecimento dos seus, entrara em depressão.  Diagnosticaram-lhe bipolaridade, foi impedida, pela Ordem, de exercer actividade, e reformaram-na por invalidez, com uma pensão, de que metade ia para a renda  do  andar  miserável,  que  habitava, aqui,  na  minha  cidade ... paredes  meias  com  o  meu  chão e o meu ar ...

A  Sandra já não tinha água nem luz em casa, por incumprimento nos pagamentos.  Não tinha dinheiro para alimentar os  seus bichos, talvez os únicos companheiros até ao fim ...
Naquele dia,  tentou uma vez mais que a ajudassem, na loja de animais.  Recusaram, por falta de pagamento de dívida anterior.
Subiu ao seu terceiro andar, e jogou-se do alto, como um trapezista no circo ... só que sem rede ...
As suas últimas palavras, foram para o primeiro vizinho que dela se abeirou : "Trate dos meus gatos " !...
E  partiu ...

A Madalena vive sozinha com oito gatos, um cão, e tenta ajudar outros animais em desgraça, nas ruas. .
É jovem também.  Tem trabalho, modesto.
Foi fiadora de alguém que não pagou, numa dívida de cerca de dois mil euros.  A Madalena tem o vencimento em parte, penhorado, e não tem cerca de dois mil euros.
Já teve que deixar a casa onde vivia, para outra  mais modesta ainda.  Deixará de ter frigorífico, e outros "necessários", de início ... mas "lá se arranjará", diz.
Deitou mão a alguns trabalhos de bricolage, que tenta vender pela Internet, porque "não irá desistir" ... também diz.
A Madalena tem mais de trinta anos, e uns olhos grandes, tristes, mas inocentes, das crianças que ainda acreditam ...

A Carla é mãe solteira, do Rodrigo, que tem três anos.
Tem uma doença óssea, incapacitante. Não trabalha, já faz tempo.  Sobrevive, vá-se lá saber como ...
A Carla tem vergonha de pedir.  Tem "muita vergonha" de expor a sua situação, mas o Rodrigo pede-lhe leite e bolachas ... e ela não tem ...
E chora.  Chora muito, porque se perder o filho para uma instituição, então não lhe "valerá a pena, viver" !...

Enquanto isso, enquanto Portugal se nos desfila assim, à frente dos olhos, neste atoleiro de miséria e de infortúnio, nestas vidas gretadas de desertos silenciosos, o país foi a eleições, e eu, não sei se devo sequer festejar os resultados ...
Sinto que esta terra, morreu há muito ...
Sinto que as Sandras, as Madalenas e as Carlas, proliferam por aí, nos becos esconsos, nas casas de miséria, sujas e tristes, com prateleiras vazias, com bolsos vazios, com estômagos vazios, com gelo nas almas ...
Sei que são dedos apontados, silenciosamente, a  todos  nós, que  ainda  vamos  estando  deste  lado, que ainda  vamos  tendo  a  água  só  pelo  queixo ... mercê  da sorte, dos desígnios dos destinos, das vidas ....
Até quando ??!!...

Sei tanta gente a viver no limite, a sobreviver no limiar da maior e sinistra angústia ... um só dia de cada vez, porque a força e a coragem não chegam para mais ...

Sei de humanos a apodrecerem diariamente, porque a esperança e a luz no olhar, se apagaram faz tempo ...

Sei de velhos que desejam partir o quanto antes, porque esgotaram a capacidade de resistência, as pensões de miséria não chegam para a farmácia, e não podem ser tropeços na vida dos seus ... quando os têm ...

Sei de crianças que comem diariamente o que lhes é dado nas escolas ... e pouco mais ...

E de mães, peritas em malabarismos culinários, para tornarem principescos, repastos de desgraça ...

Enfim, sei de tudo isto.   Sabemos de tudo isto !!!...

E lá fora, o nevoeiro  agiganta-se e fecha-nos  a vista, limita o horizonte, entristece-nos o coração, ao sonegar-nos o azul do céu, que pelo menos é esperançoso ... e grátis ...

Igualzinho  ao  nevoeiro  que  temos  aqui  dentro,  nesta  impotência  atroz,  de  continuarmos  teimosamente  a  acreditar  que  vale  a  pena !!!...


Anamar

domingo, 29 de setembro de 2013

" DEMASIADO TARDE "



É tarde ...

Cada vez é mais tarde.  O Outono já chegou, e não tarda que o tempo de partir, nos visite.
Os dias azuis já foram.  O sol vem a correr, com pressa, e nem o pássaro já canta, no castanheiro junto à nossa janela

Sabes, custo a lembrar como era o tempo do riso ... o tempo em que eu colhia esperança nas ramadas das madressilvas, pelas veredas

Até  a voz do mar, que deixava algodão doce no areal agora deserto, ficou severa e tenebrosa.
Açoita-me a alma, em vez de me acariciar o corpo

E tu, perdeste o caminho de casa, esqueceste as minhas estradas, os montes e os vales ... não bebes mais nas minhas fontes
A minha nudez oferecida pelas madrugadas, vive solteira na margem deste rio ... e queima ... ainda queima !

Mas fica cada vez mais tarde ...

Um destes dias, quando acordarmos, um de nós foi indo ... ao cantar do galo, no dealbar do novo dia ...

Ter-nos-emos perdido, meu amor !

Anamar

sábado, 28 de setembro de 2013

" NAVEGO À BOLINA "

 

Dia de Inverno , ou melhor, de um Outono zangado.
Sê-lo-ia integralmente, se esquecermos a temperatura, que continua para roupas leves, e a chuva que também não insiste, ainda.

Atravesso um dos períodos mais escurecidos da minha vida, da maior insatisfação que alguma vez já experimentei.  Insatisfação e indiferença, beirando a raia  de um amorfismo e cansaço, preocupantes.
Arrasto-me diariamente, acordando e dormindo, acordando e dormindo, sem uma só motivação que me faça abrir os olhos.
Plano por cima das coisas, que aliás não encontro, e por isso não agarro ;  vegeto numa dormência patológica, num arrastar de dias que me começam tarde, e que nesta altura do ano, acabam cedo.
Nada mos justifica, nada faz com que eles me valham a pena.
Sinto-me anestesiada perante a vida, que já não me entusiasma, encanta, deslumbra ou emociona.
Quase deixei de escrever.  Aliás, acho fazê-lo, irrelevante, desnecessário, entediante.
Passei a achar que na verdade, nada tenho a acrescentar a tanto de que já falei, e até para mim mesma, o que tenho a dizer, levo o dia a fazê-lo, numa dialéctica muda, em que o diapasão é o meu peito ... e nada mais.

"Seca", é o termo que me define !
O que seca não tem vida. Eu, não vivo, a bem dizer !...
Farta ...  estou farta !
Farta de romper dias iguais, de silêncios constantes, das solidões dos claustros das abadias.
No meu mundo, ouvem-se os meus passos, ouve-se a minha raiva, pressente-se o meu desespero, apalpa-se o meu cansaço ...
E depois, sou eu e eu ... quem mais ?...

Sonhos ?  Não, já os alienei faz tempo, ou melhor, fugiram de mim para paragens de Primaveras radiosas ...
As metas, as que existiram e as que eu inventei, já foram cortadas há muito, quase sempre longe dos melhores tempos, nos lugares de trás.  Ou simplesmente me deixei ficar a ver os outros ir ...
Foi assim !...

As velas do meu veleiro, recolhi-as.
Não há vento que o empurre.  Navego à bolina, no vaivém das ondas passantes.
Tenho comigo a incerteza do alto mar.
Perdi bússola, esqueci norte, e como estamos num Outono zangado, nem o sol nem as luas me visitam !
As estrelas também dormem, e só a cerração se baixa e me envolve, por pena ... p'ra me dar guarida e berço ...
O cais ... os cais da vida, ficaram tão longe, mas tão longe, que deles, a neblina não se compadece ... nem de mim, figura errante, recortada no nada .
Apenas a maresia se faz presente, cáustica, corrosiva ... ácida !
O gargalhar manso dos salpicos, nos cascos curtidos pelos tempos, é melopeia ... não é bem canção !
E uma gaivota, só uma - esculpida no indefinido, no abandono e no vazio -  não me deixou viajar sozinha ...
E comigo, tenho a ausência de esperança de um navegador à bolina, e a certeza de não chegar a lugar nenhum mais !...

Deve ser doce morrer no mar, assim, num dia de Outono zangado ...
Esfumar-se no cinzento fantasmagórico do desconhecido, como nos braços de um amante dedicado ...
Dissolver-se na lentidão dos silêncios das memórias, que ficaram ...
Adormecer  nos  esgares  de  todos  os  fantasmas,  das  histórias  vividas ...
Ou simplesmente errar, languidamente, vagueando pelas notas impressas pelo coração enquanto ainda bate, pelo sopro do vento enquanto ainda açoita as escarpas, pelos pingos da chuva a tamborilar, largados de infinitos ...

Deve ser doce ...

Anamar

terça-feira, 24 de setembro de 2013

" SONHO "



         " SONHO "


Quero partir contigo, amor,
Soltar âncora, abrir velas,
Pelas ruas e travessas,
pelas pracinhas ... sem pressas,
pelos becos e vielas

Quero olhar contigo, amor,
os craveiros pelas sacadas,
co'as sardinheiras floridas
e com os gatos ronceiros,
poetas das madrugadas ...
ver as roupas coloridas
largadas pelos estendais ...
Quero ouvir contigo, amor,
os canários das gaiolas,
desgarrando p'los quintais !...

Quero dar-te a mão e seguir
junto ao rio, em passo lento ...
quero embarcar na canoa,
quero contigo ver Lisboa,
prender no cabelo, o vento !

Contigo andar pela serra,
quero beber o cheiro da terra,
embriagar-me de sol ...
Deitar-te amor, no meu leito,
beijar-te bem ao meu jeito ...
olhar a luz do farol
a varrer a penedia,
até que a noite seja dia
e desperte a claridade ...
P'ra enfim, dormires no meu peito,
num amor mais que perfeito,
sem ter pressa, nem idade !

Quero dar-te o meu corpo, amor ...
porque a alma já levaste ...
Já que são a minha sina,
que eles sejam mote e rima,
dos versos que semeaste !...

Quero dar-te o riso e o abraço,
o meu colo, o ombro e o passo
lado a lado com o teu ...
Quero andar contigo a estrada,
naufragar nesta enseada,
Quero ser "nós" ... e não ser "eu" !!!...

Anamar

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

" HISTÓRIAS DESTE MUNDO E DO OUTRO " ( a propósito da primeira cremação a que assisti )



Ali logo à passagem, estavam dois anjos.
Não daqueles anjos das igrejas. Esses,  tínhamos dispensado de virem !
Mas ainda assim, eram dois querubins de caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas.
Nisso,  eles  eram  anjos  normais, iguais  aos  outros  todos,  embora  se  pudesse pensar,  serem  de  contrafacção ...

Mas não !...

Um, estava ali para lhe dar a mão.  O outro, para lhe carregar a rima pesada dos livros.
Eram duas crianças, que vieram receber aquele menino que se vestia de ancião !
Mas eu sei que ele era um menino ...  Senão, por que leria ele tantas histórias ?  Senão, por que faria questão de se fazer acompanhar de uma pasta tão pesada de livros ?!...

Percebi que aquilo ali, era um palco, porque de repente, houve uma cortina pesada que tombou, à passagem do menino.
Obviamente estávamos numa peça teatral.  Do lado de cá, estavam os espectadores, que eram muitos e continuavam sem arredar pé.
Não percebi por que tinham rostos tão fechados, mesmo estando uma linda tarde de sol ...
Do outro lado, eram os bastidores.  Lá, ninguém podia aceder, depois do pano corrido, depois da peça terminada ...
E  na  verdade,  quando  o  menino  cruzou  aquela  passagem, a dramatização acabou,  porque  o  pano fechou-se !

Nós bem espreitávamos ...  Bem esgueirámos os pescoços, a tentar perceber, onde é que ficava a cancela do jardim.  Porque eu sei que para lá, ia haver relva, flores, aromas, montanhas, pássaros sem pressa, água corrente a cantar ...
E borboletas, muitas borboletas que eu sei ... andavam por lá, também ...
E havia de haver sol, outra vez ... por que não ??

E eu sei ainda, que o menino ia ser feliz de novo.
Com o vento que ele amava,  com todos os amiguinhos que o esperavam, e que já  brincavam no jardim, fazia tempo, a dançar de roda, e com as histórias sem fim, dos livros sem fim, que levou consigo ... aquele menino não precisava de nada mais ...

Era um sortudo !!!...

Apenas, aquele jardim, no alto daquela colina, deixava que ele olhasse, com a curiosidade da criança que espreita pelo buraco da fechadura. E essa era a única coisa triste, que amargurava o menino.
Na paz e na alegria das brincadeiras intermináveis e soltas, podia ver a angústia, o cansaço, o sonho perdido, e a escuridão, de tudo o que ficara antes da cortina que atravessara ... e tinha pena !...

E o tempo foi  passando, e não havia dias, nem horas, nem noites ... nem mesmo tempo, do lado de lá ...

Por isso, o menino-ancião, que agora também tinha caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas, carregado de livros e histórias no coração, passou a ter uma tarefa destinada :  ia sempre àquela passagem, buscar, também ele,  pela mão, todos os que iam chegando.
E para os tranquilizar, logo ali  lhes contava uma das suas lindas histórias de ninar !...

Daquelas  histórias  que contou e recontou, quando ainda não era um menino de caracóis louros, bochechas rosadas e asinhas nas costas ... histórias essas, que já então, ele amava de paixão !!!...

Anamar

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

" REFLEXÕES EM DOURADO "



O sol já começou a pôr-se para a esquerda, lá ao fundo, no horizonte.
Significa que está mais baixo, e significa também, que vêm por aí os dias em que ele vai começar a hibernar, e a sombra a descer-me cedo, no quarto.
Daqui a dez dias, o Outono volta uma outra vez, para todos quantos, ao fim de um ano, por cá continuam para o recepcionarem, no ciclo repetido da Vida.

Para mim, o Outono é uma estação esmagadoramente bela e terrífica.

O ocre, o dourado, os vermelhos sanguíneos, ou os verdes fechados, aconchegantes e quentes com que se veste, criam um leito de paz, doçura e aconchego, no meu coração.
Inicia-se o tempo dos silêncios, o tempo da interioridade, o tempo da introversão, do adormecimento, da hibernação, da melancolia e de uma nostalgia profundas !
É  tempo de colheita, seguido de pousio.
Colher  o  que  se  semeou  e  estará  a  dar  frutos ... pousio,  de  descanso  e  reflexão,  para  o  eclodir estonteante  de  vida,  na  renovação  seguinte ...
Sempre assim, ano após ano, geração após geração ... vida após vida !...

A Natureza é perfeita.
Tem o ciclo de um ano para cumprir todas as metas e objectivos, do nascimento à morte.  E reinicia-se sempre, pujante, renovada, jovem !!!...

O Homem, não !
A sua vida equivale a um único, dos ciclos do Universo.
A Natureza sabe que depois da morte do Inverno, uma nova Primavera a espera.  Nada, para ela, finaliza !
Às lágrimas da estação fria, vão suceder-se sorrisos descarados, provocadores, confiantes, de uma outra Primavera.
Depois do luto que se abate, do desconforto e da escuridão, vai chegar outra vez o sol, a claridade, a alegria, o chilreio dos pássaros, o amor do ninho a reconstruir-se ...
O branco que tudo cobriu, abre cortinas, p'ra mostrar os verdes tenros e promissores, que já espreitam.
A vida pulula, inicialmente tímida, para se tornar exuberante, num passe de mágica.
O branco, o negro e o cinzento, completam-se generosamente, com toda a palete de cores. Os cheiros e os sons despertam, a energia renova-se ...
E tudo recomeça, de facto ... novinho em folha ... numa  festa sem restrições, numa orgia de sensações ... estonteante !!!...
E sempre assim será !!!...

O Outono que agora começa, acerta o passo com a minha vida.
É o terceiro estágio, entre o nascimento e a morte.   É exactamente esse, o estádio da vida, que atravesso.

Deveria ser um período de maturação, de calmaria, da paz que nos traz, a colheita do plantado ... sem demais sobressaltos, angústias ou incertezas.
Assim deveria ser, numa sequência normal de vivências.
Era justo que assim fosse ;  o ser humano merece usufruir essa fase da sua vida, saboreando o que realmente é de saborear, o que vale a pena degustar, com a sabedoria conferida pelo tempo, sem os arrobos e as inseguranças dos verdes anos, sem os percursos da maratona da média idade, em que os olhos estão no caminho e não nas margens do mesmo, sem a ansiedade da loucura do pico da montanha, a alcançar a qualquer custo, mas sim com a paz e a plenitude dos percursos longos e planos, de horizontes visíveis e abertos.

Seria  um caminhar à medida do seu passo, ao ritmo das suas pernas, com todo o tempo do mundo para olhar a paisagem, para desfrutar da cor e do cheiro, para parar na berma, numa pedra, sob a copa de uma árvore, e simplesmente deixar abrir o coração e a alma, ao aqui e agora ...
Seria escutar o canto das aves, ou o gorgolejar do ribeiro por entre as pedras ...
Seria estar desperto e bem acordado, para as emoções, os afectos e as partilhas ... por ser um tempo de disponibilidade, entrega e completude ...
Por ser na verdade, o ÚLTIMO tempo de qualidade de que dispomos ... porque o "Inverno" se avizinha rápido, e esse, já é o tempo do recolhimento total, do fechar de janelas, o tempo da imobilidade, do silêncio, da solidão e das perdas ...

Seria !!!...

 Porque esse é, afinal, o tempo da recordação de uma outra Primavera, que o ser humano, de facto, não voltará a ter !!!...

Anamar

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

" ESTE ESTRANHO DIA "



Hoje é aquele dia estranho ...

E por estranho que pareça, ano após ano, sempre sinto a mesma coisa, no dia de hoje.
O Homem é um animal de hábitos, o Homem interioriza o que repete.  E quando a repetição é de uma vida, as emoções instalam-se algures por aqui, e não há quem tire ...

Inicia-se mais um ano escolar.
Há quatro que me afastei da escola.
2009, foi o último ano da minha carreira, que abri e não fechei.
Iniciei-o, mal suspeitando que dois meses depois, estaria a encerrar portas, por razões de saúde.
Desde então, foi como se tivesse tomado um qualquer antídoto, que me imunizasse numa espécie de protecção quase irracional, contra mais de trinta e seis anos de ensino ... a minha vida !


Quem é, ou foi  professor, sabe bem que trinta e seis anos de ensino, correspondem a trinta e seis anos de vida, porque os tempos de entrega e dedicação, são nesta profissão, absolutamente integrais e absorventes. É seguramente maior, o cômputo horário passado na  e para a escola, do que o dispendido em casa, ou com a família.
Todos sabem isso, mesmo os que tentam escamoteá-lo.

Saí por razões de saúde, como disse, potenciadas e agudizadas, por todas as reformulações de má memória, implementadas pelos sucessivos  Ministérios, de uma forma arbitrária,  prepotente e cirúrgica , que não sossegaram  até que uma sangria de docentes, com ou sem condições de aposentação se iniciasse e se estendesse  até aos dias de hoje, numa liquidação liminar do Ensino Público.
Atropelo de medidas absurdas, de reformas arbitrárias, de leis idiotas, que burocratizaram inapelavelmente  a  docência,  reduzindo-lhe  qualidade,  retiraram  a  exequibilidade  da  concretização  e  avaliação  da  sua aplicabilidade,  criaram  conflitos  entre  os  pares ( estimulando, por sobrevivência, o pior que as pessoas tinham dentro de si ), descaracterizaram as escolas, que deixaram de ser as "nossas" escolas, e se tornaram impessoais e desumanizadas, quase locais de tortura !...

A insegurança e a incerteza dos futuros profissionais dos docentes, ano após ano, conferiram-lhes inerente cansaço,  desmotivação,   raiva,  tristeza,  desaposta ... estimularam-lhes  alguma  indiferença  ( porque  afinal, há  que  sobreviver ), e instalaram-lhes patologias das mais diversas naturezas.
O abandono desencadeado, e inevitável por parte de quem pôde, a qualquer preço, pegar uma bóia e saltar para a água, atingiu níveis inaceitáveis !

E aí temos nós, milhares e milhares de pessoas absolutamente válidas, experientes, sabedoras, dedicadas ... tristemente irradiadas por "moto próprio", indignamente tratadas socialmente, em condições economicamente débeis ( comparativamente a outros profissionais, em igualdade de competências ), a viverem o seu desencanto, a sua mágoa ... a sua saudade ... na busca do esquecimento, do apagar da vida, do virar da página, afinal !!!

E depois chegam dias como o de hoje !

Todos os anos há um dia igual a hoje ...
E queiramos ou não ( sei que não é seguramente exclusiva, esta sensação de desconforto e melancolia ), sente-se um remexer das entranhas, sente-se um subir da ansiedade no peito, um aperto na garganta, que não desce ... sente-se uma estranha afobação, uma espécie de premência horária, como se já fossem horas, como se já estivéssemos atrasados, como se nos esperassem ... alguém, algures ... e não pudéssemos faltar à chamada !
E bate uma saudade !...
Sim ... bate uma saudade !...

Já olhei com olhos distantes e nublados - distância de anos, distância de vida - a pasta dependurada ainda, na cadeira da sala, naquela última noite, e que eu nem adivinhava então ser a última, recheada com tudo o que continha, e que não desmanchei, porque me queima as mãos ... ou melhor, penso que me queima o coração ...
Juntamente com os dossiers, as borrachas, os lápis e as canetas, secas dos tempos, ela está pesada dos sonhos que foram, das esperanças alimentadas, dos afectos que por lá ficaram, das recordações que se recusam a morrer ...
Ela tem lá dentro, mais de metade de uma vida, a minha,  muito do melhor  de mim, todas as minhas vitórias, o meu esforço, as minhas tristezas, as alegrias e as frustrações também ... A realização pessoal que consegui alcançar.
E tem lá dentro, ainda, pedaços de muitas outras vidas, que o  destino determinou que haveriam de cruzar a minha ...
Com elas, desenhei o meu, compus a minha história, fiz-me a mulher que sou ... e a elas, por isso, sou profundamente grata, sou eternamente grata !!!...

Hoje, os meus três pequeninos rumaram de novo à escola.
A minha "turminha" de coração, nos seus 6, 9 e 12 anos, de uniforme vestido, mochila nas costas, muita alegria nos rostos, euforia, e entusiasmo, nos sonhos e espectativas que os norteiam ... como "bando de pardaia à solta" ... lá foi ...

Na fila de trás, bem cá atrás, a humilde "mestre escola" que eu fui, torce, para que os responsáveis deste País, se conscientizem da "matéria" delicada e sensível, que possuem nas suas mãos :  a  enorme, incontornável, e inalienável responsabilidade de serem os mentores sérios, do futuro destas gerações, e do futuro de um país, que  é  também o deles.

Em suma, de serem os norteadores de jovens que têm direito a um amanhã aqui,, no chão que os viu nascer, junto da sua gente que os ama, num Portugal que neles está a investir, e que neles revê a esperança de se agigantar outra vez !!!...

Anamar

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

" HAVERÁ UM TEMPO ... "



Alguém escreveu :  " Hoje voltou a aparecer uma folha de nespereira no meu quintal.  Não foi o Mirtilo, mas podia ser ...  - Mirtilo, o "gato ecológico",  que já me deixou "


Porque os afectos sempre nos deixam  folhas de nespereira no nosso quintal ...


      "HAVERÁ UM  TEMPO ... "


Haverá um tempo ...
a vida é feita de tempos
em que as horas lembram coisas,
em que os dias lembram sonhos,
em que os sorrisos nos rostos
se acendem, já só tristonhos,
porque morrem de saudade,
da ausência de vontade
de viverem sem sentido ...
Como um barco em alto mar,
vejo o sol a naufragar,
por de mim, já teres partido ...

E os dias ficarão longos ...
a noite nunca termina ...
Nesse tempo, ao acordar,
quando me erguer e olhar,
só verei a nablina
a descer lenta ... da serra,
trazendo-me os cheiros da terra
e o salgado da maresia ...
Porque tu és monte e mar,
fizeste-me acreditar
que o mundo me pertencia !...

Haverá também um tempo,
que o vento forte, ao soprar
vai trazer notícias tuas ...
sopra do lado do mar,
onde adormecem as luas ...
E quando a porta bater,
cansada da ventania,
a rosa morre no pé,
quando a noite vira o dia ...
E já só fica a lembrança,
naquele som pela sala,
naquela sombra que passa,
naquela dor que se cala ...
na garganta que emudece
os soluços, que se escapam,
no arrepio que estremece,
no abraço que apetece,
e que os dedos não agarram !!!...

Haverá um tempo, então,
em que as rosas que trouxeste,
morreram  na minha mão,
quando a gaivota voou
e levou-me o coração !...
Corri lesta ao roseiral,
p'ra outra rosa colher ...
Perdi-te na luz da lua ...
Não sei já, como é ser tua ...
Nada mais pude fazer !!!...

Anamar

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

" A GENTE QUE NÓS SOMOS "



O tempo continua insuportável.
A minha casa parece uma câmara de incineração, antecipada ...  E contra tudo o que gosto, me agrada e sempre defendo, resolvi ir à praia ... da Linha, e ao domingo !!!  :(
Um cúmulo de incoerências minhas, decididamente ... o que me relembra, que nunca se diga "nunca" !

As praias da  Linha, são,  como sabemos,   ponto de convergência de multidões, devido à proximidade e fácil acessibilidade, da Linha de  Cascais, e da Linha de Sintra também.
Fui ao domingo, porque em desespero de causa, recusei passar outro dia enfiada entre quatro paredes, na meia obscuridade das janelas fechadas, por via do calor, a esperar apenas o escoar das horas. 
Pelo menos, com um sol ofuscante  bem por cima da moleirinha, e no meio de milhares de pessoas que seguramente ali demandaram, consegui abstrair do que me rodeava, e com a minha música nos ouvidos, consigo ilhar-me, às vezes admiro-me, o quanto !!!

Bom, mas escolhi uma praia "de verdade", sem sombra de dúvida.  E aos domingos, é obviamente mais "de verdade" ainda ...
Passo a explicar : decidi-me por Carcavelos, grande areal, água mansa, uma brisa a favorecer.
Ao longe, nas costas do mar, com uma bordadura de palmeiras, abaixo da linha da Marginal ( onde os carros aceleram a qualquer hora ), brinca de praia tropical, de palmeiras e coqueiros.
É só fechar os olhos, e imaginar !

À hora a que cheguei, oito da manhã, a ausência de gente, e as areias apenas povoadas por gaivotas e pombos ainda adormentados, até colaboravam .
A minha raiva começou a aumentar, à medida que o pessoal,  invadindo o areal, desatou a ocupar todos os centímetros quadrados de areia, que pôde.  O bando das gaivotas bateu mar adiante, o que é sinónimo de que o seu  sossego terminou ... e o meu também, obviamente .

Mas dizia eu, que fui a uma praia "à séria".
De facto, trata-se de  uma praia democrática, multicultural, bem internacionalizada.
A "marabunta" compõe-se de autóctones,  em maioria  ( embora entre eles, se distinga claramente a presença de alentejanos e de tripeiros ... está a ver-se  porquê ... ), africanos ( em chusmas ), chineses, indianos, e significativa presença de cidadãos de leste ( e aí, só por adivinhação se concluiria da real nacionalidade, porque as "curvas" da língua são as mesmas ).

São famílias inteiras e acólitos, são crianças e criancinhas.
Gente "autêntica", que fala aos berros, não se furta ao vernaculismo da linguagem, e distribui tabefes e safanões pelas crianças, que como quaisquer crianças que se prezem, são malcriadas, insubordinadas e reivindicativas.

A praia é um local óptimo, para, na sombra abençoada do chapéu de sol, se falar horas no telemóvel.
Tem-se  todo o tempo do mundo, e essa é a melhor altura para se porem em dia, as novidades acumuladas, se "despachar" em matéria laboral, se contarem - para o nosso receptor, e já agora todos os receptores a meio metro de nós - as mágoas, as desgraças, as aventuras ... enfim, todos os acontecimentos que fariam manchetes interessantes, do Correio da Manhã do dia seguinte !...

Ali não há "mise-en-scènes",  nem  " faz de conta ", ora essa !...
Ali, o "povão" é povão real, mesmo !   Nada dessas figurinhas virtuais, estilizadas, dos "jet-sets" das badaladas praias algarvias, de noites brancas e festas absolutamente "inn", dos clubes onde convém aparecer.
Ali, não há silicones nas mamas, nem corpinhos bulímicos de sereias desfilantes.  Em suma, não há gente de plástico !
Ali, os machos exibem-se como a  Natureza os programou ...  Nada das depilações absurdas, que lhes revelam peitinhos e braços,  de verdadeiras damas ebúrneas !!!
Ali, desfila o músculo e a gordura, a celulite e a flacidez, as barrigas e os estômagos de cerveja, as peles pendentes e o encarquilhamento dos anos ... tudo ao vivo e a cores, sem "maquilhagens" ou disfarces ... a vida ao natural !!!

Por outro lado, o "povão" é expressivo e exuberante.  O povo não se coíbe nas manifestações que exterioriza, não tem as preocupações do socialmente correcto, do adequado, da censura de classe ... as "frescurinhas" do bem parecer ... O "povão" tem direitos ... "que gaita" !  "Quem está mal, que se mude ... era o que faltava !! " ...
E ali, a praia é de todos, e muito mais, "sua" ...
Por instantes, tive um flash do "Pátio das Cantigas", do saudoso Vasco Santana ...
Por  instantes,  revi  Fellini,  na  Sicília ,  anos  vinte ....  Por  que  seria ???!!!...

Uma  constatação assaz interessante, que me surpreendeu pela incidência verdadeiramente perturbadora, foi a  progressiva  rentabilização que as pessoas inteligentes fazem,  dos metros quadrados da pele de que dispõem, na exibição de obras de arte espantosas, assim, gratuita e generosamente ...
Um contributo para a democrática "arte de rua" !!!

Sabe-se que nas ruas e avenidas, existem outdoors que devem custar os olhos da cara, a quem, neles,  pretenda publicitar  imagens, ideias, frases,  propaganda política emocionantemente criativa ... tudo isso ...
Ora se o ser humano dispõe de verdadeiros painéis de exposição, inteiramente à borla, por que não mostrar ao mundo, tatuagens comoventes, pictogramas criativos, mensagens emotivas ???
Há que aproveitar cada recanto, cada pedacinho mesmo recôndito, cada superfície devoluta dos corpos, para expor, expor, expor ... o dragão, a fénix, o peixinho, a ave planante, os amores todos que se foram,  em corações de cupidos trespassados, o escorpião, a borboleta, emaranhados arbóreos de floresta virgem, tudo, tudo ... generosamente, numa mostra gratuita ao mundo ... como aliás, deverá ser a cultura !!!

E como há imensos gordos ( está provado que a obesidade é actualmente, das mais graves pechas da humanidade ), os metros quadrados de pele, disponíveis, aumentam portanto, exponencialmente.
E porque a beleza de uma obra de arte deve ser usufruída indistintamente por todos, e há que veicular a cultura de um povo ... os corpos recobrem-se de "pinturas rupestres", de alto a baixo, ao alcance de qualquer olhar !...
Assim se vê bem, o espírito de mecenato da nossa gente !...

Também na morte, o ser humano é bem diverso !

Ontem fui a um funeral.
Tratava-se de alguém relativamente novo ainda.  Pertencendo a uma classe média-alta, e sendo administrador de uma multinacional,  inseria-se claramente num estrato social  economicamente elevado, com um círculo de relações consequentemente condicente.
Não me era muito próxima, a pessoa em causa.
Estive presente portanto, por cordialidade, por norma de convivência, apenas.  Ocupei por isso, uma posição confortável, de espectadora do circundante, sem que o envolvimento emocional me perturbasse.

Não havia lágrimas, não havia desespero, não havia drama.
Tudo muito civilizado, bem contido, correctamente enquadrado ...
Tudo muito "frio", muito apropriado, muito notícia da "Hola" ...
Tudo demasiadamente "cool" !...
Na verdade, nada  que  se  assemelhasse  a  um  funeral  "a  sério",  portanto ... ( pensava  eu ) !!!...
Mas  o  que  é  facto,  é  que  esta  também  é " a  gente  que  nós  somos " !!!...

Bom, e  já dissertei que chegasse, sobre ela, sobre  as personagens que nos cruzam, e que são a nossa própria  realidade.   
Penso que tudo isto é nacionalmente genético, é herança cultural, é especificidade de se ser português, de sermos este povo aqui, neste retalhinho de terra, entre o mar e a montanha ...

Tudo isto é muito " a nossa cara", o que transportamos nas veias, e o que contemos na alma, nesta Europa de sul, visceral e sanguínea, impulsiva e autêntica ...

Tudo isto é a genuinidade da nossa gente, do tal "povão", que mesmo espartilhado pelas condicionantes com que a sociedade o limita e castra, pelas  regras  que  lhe  impõe  e  dita  ... sempre  é  igual  a  si  próprio, sempre  é  autêntico  e  verdadeiro,  em  qualquer  lugar !!!...

Anamar