quinta-feira, 31 de outubro de 2013

" ELE HÁ COISAS !... "



O sol resolveu aparecer.  Nunca o  S.Martinho nos falta ... e estamos quase lá.

Acordei, relancei os ohos pelo quarto.  Prateleiras plenas de livros, gavetas plenas de coisas.  As que prestam e as que já não.  As que ainda se justificam, e as que nem por isso.

Lembrei a arrecadação, transformada em depósito de antiguidades.  Antiguidades no mau sentido.
Desde uma arca cheia de papéis e cadernos, com os primeiros rabiscos das minhas filhas, os primeiros desenhos nos colégios, em classes infantis remotas, a livros escolares ultrapassados, a testes realizados  por elas  e  creio  mesmo  que  ainda  por  mim,  quando  aluna ( !!! ) ... tudo lá está com uma intenção meritória, em que acreditei piamente :  passar calmas tardes, a rever registo por registo, redacção por redacção, desenho por desenho ... ( dos tempos em que as pessoas eram maiores que as casas e as árvores, os sóis tinham olhos e boca, e junto às figuras se escrevia "mamã" e "papá", como legenda do desenhado ... )

As gaiolas ferrugentas, dos canários e periquitos, da época em que pretendi transformar uma varanda, em viveiro romântico de passarinhos, de todas as cores imaginárias, para que com os trinados e chilreios, me fizessem sonhar que o meu sétimo andar era um qualquer recanto de uma mata frondosa, onde talvez eu gostasse de viver ...  E para que as minhas filhas assistissem à nidificação, acasalamento e nascimento de mais canários e mais periquitos, e aprendessem a amar e a respeitar a Natureza, deslumbrando-se com os seus ciclos ... também lá estão ... sem préstimo !

A mala de porão, cheia até ao topo, de bonecos e peluches, que lhes atravessaram a infância, as loicinhas e os pin-pons, os legos, os alfabetos e os cubos com letras e números, motivadores das primeiras palavras e contas, que eu jurara abrir um dia, para os netos que viessem ...
E esses netos, já têm todos, de seis anos para cima, e o recheio da mala continua adormecido e inviolado ...

Também lá estão as colecções de borrachinhas, com as mais variadas e engraçadas formas, as cassetes de música dos doze, treze anos, cujos intérpretes já se perderam no tempo, não falando dos vinis de trinta e três rotações, com as canções de roda, da escolinha, que não voltaram a animar o gira-discos, também ele já ultrapassado ...

Os VHS de viagens, registando momentos felizes,  eventos familiares, do tempo em que ainda havia família no sentido estrito do termo, testemunhos de risos e gargalhadas, mas também de "àpartes", que hoje nos fazem sorrir ...
Rostos que ainda existem, bem diferentes, bem marcados pela vida, bem menos iluminados pela esperança ... e rostos que já partiram, já nos deixaram, e que só estão num lugarzinho dentro do peito de cada um de nós ... também repousam por aqui, através dos anos ...

Enfim, não pararia de lembrar, de revisionar todo o espólio insano acumulado, guardado religiosamente, por isto e por aquilo, de que não conseguimos separar-nos afectivamente, e cujo valor se prende quase só afinal, a um desejo louco e inconsciente, de não soltarmos o passado, de podermos lá regressar a qualquer preço, de fazermos rodar o tempo e rodarmos com ele ...
Prende-se quase só, ao saudosismo efémero da juventude que ficou ... não nos iludamos !!!...

Resolvi  levantar-me.

Arrepiei-me ao pensar, que quando um dia eu partir também, alguém terá mesmo de desprender tudo isto, soltar definitivamente todo este repositório de memórias.
Mas  talvez  seja  então mais fácil, porque já serão memórias mais distantes, com menor significância ou valor ...

Ele há coisas !...
Que raio de forma enviesada de começar o dia !!!...


Anamar

sábado, 19 de outubro de 2013

" RED OCTOBER "



Tenho um "parti pris" com as boninas.
Decidi para mim,  que as boninas são uma espécie de miosótis, tipo campainhas dependuradas em fileira pelos galhos.
Depois,  disseram-me  que  boninas  eram  uma  criação  poética,  simplesmente .
Garantiram-me  mais  tarde, que  no  pórtico  axial  dos  Jerónimos, existem  por  lá  umas  quantas, "plantadas"  no  calcário  de  lióz.
E a Wikipédia, afiança que elas são uma sorte de margaridas ...
Eu  sabia  que  era  tema  tão  polémico,  que  de  facto, eu  só  podia  mesmo  ter  um  "parti pris" em relação a elas ...

Entretanto, a tarde apagou a luz mais cedo, graças ao cinzento plúmbeo,  uniforme e respeitável que cobriu tudo, impedindo-nos de sequer termos horizonte.
Logo hoje, que é noite de lua cheia !...
Estou em crer que com a crise instalada, nem a lua resiste, e faz como nós quereríamos fazer : sumiu !...

Pelos nossos olhos, a borrasca social desfila, amedrontadora, à semelhança da borrasca que brame lá fora, duma Natureza incomplacente, que despeja rios de água dos céus, e ventos tão desgovernados e destruidores, como os tempos que vivemos.

A incidência de situações dramáticas de vidas, a incidência de denúncias públicas de fraudes e corrupção, o desvendar de injustiças sociais na distribuição de bens e regalias, no igual acesso a oportunidades, a ausência de escrúpulos na prestação cívica e de cidadania, os privilégios gritantes de alguns ... a exclusão social de tantos ... avolumam-se ...
Avolumam-se a ponto de nos retirarem até, a pouca saúde de que se vai dispondo.  Mesmo a saúde do corpo, porque a da mente, menos obediente a vontades, prudências e lógicas, sempre nos desautoriza, e claudica inapelavelmente.
A tristeza sente-se no ar que se respira, e nos rostos carregados que olhamos ;  o desnorte desorienta-nos as vidas, por cada dia ;  o medo, ou melhor, o pavor de animal acossado, atormenta-nos o espírito ...
Os que ainda esperam, fazem ouvir os seus gritos da revolta, da raiva, e da fome, por este Portugal fora, em eco de desespero, em estertor de moribundo ...
Neste Outubro vermelho, ainda há quem acredite !...

Mas o cansaço toma-nos conta, e gera a indiferença álgida, de quem luta com forças desproporcionadas, a forças titânicas que nos transmitem a impotência do não valer a pena, da desistência e da desesperança ...
E é um lusco-fusco na alma, de candeias apagadas, é um anoitecer de corações que não encontram mais alegria ... sequer justificação de vida !

E vai-se andando, em filas de penitência não devida, cumprindo penas não merecidas, arrastando grilhetas nos pés, com o peso do imobilismo da alma que sangra, e com a insensibilidade duma pústula que gangrenou de tal forma, que já quase nem dói ...

E a alvorada que nunca mais chega !!!

E o frio do Inverno a aquietar-nos os últimos lampejos da energia que se nos escoa, nas madrugadas sem fim ...
E o mar, e o temporal incessantes, a açoitarem o Mundo lá fora ...
E a lua que se esconde, no nosso céu negro, que não abre  ...

E até as boninas, que sejam lá o que forem, não florescem mais aos meus olhos, apesar do "parti pris" que tenho com elas !!!...



Anamar

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

" ESTE BARRO DE QUE EU SOU IMPERFEITAMENTE FEITA ..."



O dia pôs-se, com o sol  já depois de ter passado a linha do horizonte, a alaranjar ainda um céu escurecido, como ficam as salas, quando as chamas da lareira se abatem.
Tudo o resto passou a sombras, em negro esfíngico, contra esse fogo sem convicção.

"A viagem é o viajante, e vemos aquilo que somos" ... dizia sabiamente, Pessoa.

Tive um amigo que me dizia em tempos, eu ser severamente subjectiva naquilo que afirmo, a ponto de poder-se sempre duvidar do que "leio".
É verdade.  Se calhar como muita gente, uns mais, outros menos, reconheço em mim as qualidades do mágico.
Saco do pincel e da caixa das tintas, e o quadro não é o que lá está, mas o que vejo.  E o que vejo, é visto sempre com os olhos da alma e do coração, e os outros, pouco préstimo me têm.
Acho mesmo que se fosse cega, conseguiria inventar imagens e cenários inexistentes.  Bastaria voltar-me para dentro,  e espreitar pela fresta entreaberta.

Por isso é que normalmente sou outonal, sou castanha, ocre e vermelha, sem remédio ...

Por que será que tenho que falar recorrentemente do céu, do mar, dos bandos de pássaros, da chuva miudinha, ou do céu limpo ?
Por que preciso de sentir a terra entre os dedos, a brisa no cabelo, a maresia nas narinas ?
Por que falo só de sentir, de sentir, e morrer de sentir ?!...
Por que preciso viver embriagada por música, acalentada por sonhos, embalada por desejos ... empanturrar-me de emoções, de sentimentos, de quereres, tudo numa dimensão  de valer a pena ... suicida, improvável, onírica ... e depois morrer na sarjeta do cansaço, da dor ( também ela doentiamente avassaladora e mortal ),  de  um  sofrimento  incontido,  maior  que  eu,  que  ameaça  rebentar-me  o coração  a  qualquer  instante,  porque  não  cabe  nele,  e  o  dilacera ?!...

Tudo em mim é  excessivo, tudo em mim é gigante, tudo em mim tem dimensões de eternidade, tudo em mim é incontido, extravasante ... e contudo, frágil !...
E como avalanche incontrolável, que rompe portas e comportas, salta muros e arranca árvores, eu transbordo-me a cada momento, eu mato-me e reconstruo-me, eu apago-me e redesenho-me ...

Tão depresa vislumbro a plenitude da perfeição e do êxtase, como o meu horizonte se esvazia, e o nada cava um buraco frio e negro no meu ser ...

Como o mar, rebentando na areia, faz e desfaz, rodeia e contorna, traz e arrasta ... eu morro e renasço, eu caio e escalo, eu destruo e reergo ... eu chego e parto de mim, dia e noite !...

E é um cansaço ... esta viagem alucinada e louca de turbulência ... sem destino ou nexo, sem conserto ou arranjo !!!...

Anamar

sábado, 12 de outubro de 2013

" ISTO SOU EU A PENSAR ... "



" Um Universo não é mais o mesmo, se lhe faltar uma só das suas partículas "


A morte liberta, tenho a certeza !

Ontem, quando entrei naquele espaço exíguo, escuro, sujo e malcheiroso, que a dona deixou há quinze dias, tive a certeza disso.
Uma penumbra pesada, um abandono do que ficou e permanece exactamente nos mesmos sítios, com os mesmos cheiros, como se tivesse sido dito : " Vou ali, já volto ... "

O frigorífico que não se esvaziou, a roupa que não se pendurou, a que ficou suja na cadeira, as flores que não se regaram ... as janelas que não se abriram, como se quisesse vedar-se ao sol, a entrada ...
Não se gastou o shampô até ao fim, o sal no saleiro também não, aposto que ficaram cabelos na banheira ... e o cheiro da morte pairava por lá.
Era um lugar pesado, silencioso, sozinho.
Tinha a cor de um fim de dia sem esperança, tal qual aquela escuridão que se abatia já, naquele meio de tarde de um Verão, esse sim, que parecia não querer partir.

Aquela casa não tinha horizonte, não tinha luz, não tinha perspectiva.
Não tinha histórias, nem gargalhadas, nem crianças, nem luas cheias, no céu.
Aquela casa só tinha silêncios, escuridão e peso ...  Aquela casa pesava toneladas, que é uma medida dos Homens, pesava infinitos, que é uma medida dos deuses.

Era seguramente uma casa de passagem ... Claro que era !
Percebia-se perfeitamente que ali, fazia tempo que a vida se estava a ausentar devagarinho, pé ante pé, sem estardalhaço, p'ra não assustar ninguém.
Havia  uma  noite  persistente,  instalada, de  fora  para  dentro,  mas  sobretudo  dentro,  que  atacava  a alma  mal  se  transpunha  a  soleira, ( como a humidade sobe aos ossos, no Inverno, e os musgos cobrem os troncos ), que oprimia o peito e amedrontava a voz, que sufocava e atormentava o coração.
Havia uma espécie de susto, mal disfarçado, que se sentia, e o recolhimento estranho das capelas, que nos faz caminhar levezinho, roçagantemente, como os gatos ... exactamente como os gatos, que se insinuam sem se anunciarem ...

A ida àquela casa foi demasiado perturbadora !
E se, claramente já o percebia antes, deixei-me tomar por duas reflexões inequívocas.
Claramente vi, como a ausência de "janelas" na existência, como a incapacidade de adaptabilidade e aceitação da mesma, como a ânsia de busca de paz ... empurra as almas exaustas, a procurar em desespero,  além das paredes do sofrimento, além dos muros da solidão, além dos portões da tristeza, além das algemas da indiferença ... uma hipotética saída, uma qualquer aparente escapatória, uma solução ... algures, onde haja uma cancela que pareça abrir-se, e as convide a passar ...
E ao decidir-se atravessá-la, nada, absolutamente nada nos detém já, do lado de cá ...
Nada mesmo, tenho a certeza !...

Por outro lado,  aquele espaço conscientizou-me duramente,  para a pequenez da realidade humana, na dimensão e na importância, e a sua irrelevância, face à continuidade, quando afinal, sempre  nos  julgamos sumamente especiais e únicos, quando temos a prosápia de nos sentirmos centros de universos, pedras insubstituíveis, entidades determinantes, quando nos "vemos" pequenos deuses na nossa ínfima realidade ... e nisso acreditamos, e isso defendemos acerrimamente, como se fosse importante e verdadeiro !...

Pobres de nós !!!

Como  qualquer  grão da poeira que cobria tudo naquela casa, temos a insignificância do nada, a dimensão do mais absoluto nada ...
E cá fora, tudo coexiste com a indiferença que já existia, anonimamente, insensivelmente ... como sempre o foi, afinal !
De facto, somos todos, demasiado NADA, para que o Universo pare, se perturbe, se abale no seu equilíbrio precário, ou sequer, para que uma nuvem passante, deite uma lágima cá para baixo ... de compreensão ... pelo menos, de compreensão !...

Ao chegar à rua, só tive uma urgência, absoluta e imperativa :  olhar o sol, que ainda não se havia posto !!!...

Anamar

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

" DIA MUNDIAL DOS CORREIOS "

 

" Sempre que me perco de ti nas palavras, procuro encontrar-te nos sonhos e nas ideias "...

" Um dia, as cartas serão História, lidas, contadas e relembradas ... ainda que quem as escreveu, não esteja mais aqui "


Olhei a preceito aquela arquinha de folha, encarrapitada no armário da estante, de portas fechadas, com cadernos e mais cadernos em cima.
Uma espécie de baú do tesouro, de tesouros esquecidos, e amarelados pelo transcurso dos dias ...

Esquecera há muito o seu conteúdo.

Um pouco de tudo, um pouco de nada real, muito de Vida ... poeira dos tempos, acumulada em estratos, na memória, como as camadas rochosas lá das falésias se acumulam nos milénios !
E do pouco do tudo real da vida vivida, os maços de cartas trocadas, enlaçadas por fitas de seda, ou por cordéis de ocasião, dormiam há muito, embalando num sono de gerações, palavras ditas, juras seladas, sonhos revelados, ideias  acalentadas, emoções divididas, afectos partilhados ... segredos escondidos ...

Pessoas que foram ...
As que já partiram, e aquelas que foram e já não são, embora parem por aqui.

As fotos a sépia, desfocadas, apagadas, esbatidas, de  destrocas de amores terminados ... de novo, nas minhas mãos ...
Os dias revisitados, quando se percebe pela letra miudinha da tinta permanente, que aquele dia de Março, fora chuvoso, cinzento e triste ...
A devassa aos corações, quando estes se escancaram ( de novo por entre a caligrafia quase infantil ), e jorram despudoradamente amores incontidos, ingénuos, esperançosos, com a força e a pujança de uma vida não conhecida, só sonhada, só adivinhada ... talvez desejada ... no nosso então, futuro ...
Saudades a escorrerem pelos cantos da arca, violando os envelopes cuidadosamente abertos ...
Promessas que voejam, como traças dos tempos, por entre as folhas envelhecidas, soltando aqui e ali, pétalas secas, ou poemas largados ... ou manchas de uma ou outra lágrima traidora ...
Emoções desbragadas, com o ímpeto e o impulso, que só a juventude lhes confere ...
Sonhos sonhados, cobrando juros muito baixos, porque éramos então, fortalezas inexpugnáveis, e inabaláveis, sequer ...

Soltei três ou quatro, aleatórias, como aleatória  foi a existência ...

E  antes de relê-las, cheirei-as.  Uma e outra vez, profundamente, exaustivamente, muito lentamente ... como que à procura ...
E deixei-me embriagar pelo eflúvio que delas emanava, e que, como um elixir ou poção mágica, teve o poder de comigo seguir, numa viagem alada ... embora eu continuasse ali, estática, sentada no chão da sala, com a arquinha entre as pernas.

E viajei, viajei aos tempos em que o carteiro premia a campainha, aos tempos em que o peito sufocava, as batidas do coração aceleravam, a alma de menina se desgovernava pela fantasia ...
Aos tempos da ansiedade e da urgência da leitura das letras, do soletrar das frases, depositadas naquelas folhas de papel, dias atrás, contudo ainda quentes, fogosas e promissoras ...

E revi-me.  E revi todos, comigo !

Olhei o meu sorriso de então, olhei o meu ar doce e ruborescido, ainda não maculado pelos destinos, senti a minha bonomia,  transbordando de um coração ainda não machucado pela sina ... percebi como eu era credora, no viver ...

E estava tudo ali ...

Naquelas folhas, dentro daqueles envelopes selados a um escudo, gravados pelos tempos, contando histórias e mais histórias, que faziam a minha História ... naquela arquinha de folha, na doçura do silêncio e da paz, mergulhadas no pó dos tempos, preparadas para atravessarem gerações, rumo à eternidade, envoltas em laços de fita de seda, ou cordéis de ocasião !!!...





Anamar

sábado, 5 de outubro de 2013

" NÃO ADIANTA ... "



De novo hoje percebi, que não adianta ter o mais belo pôr-de-sol frente aos meus olhos ...
Não adianta ter o azul do mar zangado ou sereno,
O riacho de água fresca, gorgolejante, a sepentear-me aos pés,
A brisa mais acariciadora no meu rosto,
Um céu de veludo,  pintado de estrelas ...
A chuva abençoada, a inundar-me o corpo exausto da caminhada,
A maior e mais gloriosa lua cheia, iluminando o firmamento,
O recanto mais íntimo, prometedor e romântico, ao meu dispor ...
A obra de arte mais perfeita e conseguida, do artista
A mais bela casa para viver, seja palácio ou choupana,
A viagem mais desejada e sonhada, à face da Terra,
A música mais embaladora, mais doce e mais envolvente,
O espectáculo mais sumptuoso, preenchedor e gratificante,
O repasto mais cobiçado e invejável,
ou o mais simples prato de caracóis com uma cerveja geladinha ...

Hoje eu percebi, que não adianta ver aquele portentoso filme, de que todos falam ...
Procurar o miradouro empoleirado na colina, donde se desfruta "aquela vista" ...
Visitar aquela exposição que está na ribalta, de todos os roteiros culturais,
Dar aquele passeio de carro, espreguiçado e sem horas ...
Olhar a cascata, a serra, ou a planície sem limites ...
Ler o livro da actualidade,
Pensar muito, e criar teses, opiniões e conceitos ... defender pontos de vista ...
Colher as flores dos campos, os ramos das mimosas engrinaldadas, quando florescem ...
Cheirar as rosas dos roseirais, as lavandas dos canteiros, e ouvir os pássaros na ramaria ...
Prender entre os dedos as uvas maduras,
Saborear aquele bolo de laranja, acabadinho de sair do forno ...
Sorver as coisas simples da Vida ...

Não adianta rir ou chorar,
Não adianta fingir,
Enganar-me,
Esperar ...
Fazer de conta que respiro, e dormir acreditando que amanhã será um  "novo dia" !...

Hoje eu percebi, que não adianta obrigar-me a gostar do que não gosto,
Fingir-me interessada no que não me interessa,
Substituir a dor, com gargalhadas de alegria postiça, para apaziguar corações ...
Mascarar o desespero,  com uma falsa vontade de viver,
Fazer de conta que acredito ainda,
no que na verdade não me faz nenhum sentido !...

Não adianta julgar-me no meio de gente,
quando estou afinal, na mais absoluta solidão e silêncio ...

Sem partilha,
Sem amor,
Sem cumplicidade,
Sem entrega ...
Hoje eu percebi, que não faz sentido ...
Não adianta  ...
Terei morrido há muito, e não deram por isso !...

Anamar

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

" SINTO-ME GRATA "



Tem dias  assim : está tudo cinzento lá fora, o sol ouviu o Passos  e foi embora, há muito, antes que lhe cortassem a luz, por falta de pagamento.
Aqui dentro, não está muito melhor.
Não sei o que aconteceu, mas as paredes deste quarto afastaram-se umas das outras, e o espaço ficou gigantescamente maior.
Ficou uma divisão fantasmagórica , e eu fiquei pequenininha, meio  perdida, sem encontrar aquela, que mais ou menos costuma parar por aqui.
A única luz eléctrica que acendi ( não tenho santos a alumiar, e há que poupar na factura ), projecta sombras chinesas à minha volta.

Se as Finanças sabem, que a área deste apartamento está a aumentar, na razão directa do meu vazio e da minha solidão, carrega-me no IMI !!!.... Trigo limpo !...

Bom, mas tem dias assim !
Há quem parta, e há quem tenha vontade de partir ...
Há quem vá até ali à esquina, há quem vá por esse mundo fora ... e há quem vá p'ra outra galáxia !...
Tem muito a ver, com o tamanho das divisões, com o cinzento lá fora, ou com o vazio aqui dentro ... garanto-vos !!!

No meio deste desconforto de alma, só os meus gatos me entendem, e por isso, eu entendo, quem entende de gatos !

Eles são os companheiros  fiéis, mesmo que todas estas "anomalias" malucas, se verifiquem ...
Eles não arredam pé, mesmo que nós lhes pareçamos meio desconchavados de espírito, meio desmiolados de atitudes, meio pieguinhas de emoções ...
Eles nem refilam, se lhes esquivamos a "bucha", se um berro se nos escapa, se uma sapatada pretende corrigir-lhes os desvarios e os abusos ...
Eles sempre estão por perto ... "malgré" ...
Eles sempre  são compinchas, mesmo quando um pouco desparafusados !

O máximo que fazem, digo eu, é encolher os ombros, olhar-nos com a comiseração, de quem assiste a uma dona a "passar-se",  premiarem-nos com marradinhas e lambidelas, como quem diz : " Deixa lá ... eu entendo-te !  Este mundo dos humanos é mesmo muito louco !..."

Neste momento, tenho dois, como sabem.
Um, tem a inconsciência do puto desalvorado e reguila, absolutamente impertinente e desafiador.
Corre por cima de tudo, sempre acelerado, num  desvario total.
Não tem limites de velocidade.  A sua auto-estrada tem percursos voadores,  não conhece sentidos proibidos,  não tem escapatórias para derrapagens que levam tudo adiante,  enfim,  são emoções e adrenalina, absolutamente demolidoras !
Por essa razão, madrugada adiante, quando se testa ao sprint, verdadeiros terramotos me chegam da cozinha e da entrada ( zonas francas ) ... ao quarto !

Mas não consigo impor-lhe hierarquia ou estatuto de dona.  Não consigo meter-lhe naqueles neurónios-ventoinha ... quem na verdade, manda aqui.
Simplesmente, porque  tem os olhos da inocência e da ternura de um garotão, que olha p'ra mim com uma meiguice  que me desarma !
Assim, resta-me erguer uma voz tonitruante, exibir o ar mais convincente possível, e dizer-lhe em tom ameaçador : " Jonas, Jonas ... mau mau ! Estamos aqui, estamos a zangar-nos " !....

O outro.... bom, o outro, são p'raí seis ou sete quilos de gato, num tamanho  XL, envolvidos num "cobertor" farfalhudo e fofinho de pelo, e outros tantos quilos de ronceirice e doçura.
Saudavelmente insano, também ...  como convém.
O Chico tem um pacto com o "além", tenho a certeza. 
Esse, é o que rodopia em torno de um rabo que desgraçadamente sempre se lhe escapa,  à semelhança dos fantasminhas de  todas as sombras que se projectam no chão ...  Inclusive, a própria, que ele garante ser de outro gato-fantasma, aqui infiltrado, p'ra lhe atazanar o sistema !

O Chico só tem um "senão".   Adora o meu sofá do quarto ... para afiar as unhas !!!
E não lhe interessam raspadores, de vários formatos.  É para o lado que dorme melhor !
Olha-me com ar de complacência, superioridade e pouco caso.  Como quem diz : "Perdoai-lhe senhor, porque esta fulana, coitada....parece não perceber quem tem à frente ! "..... ( rsrsrs )

Há dias assim ...
São os tais dias em que eu sei que estou viva, porque afinal, na verdade, não estou só.
Comigo, tenho a melhor companhia que podia ter ... o amor infalível, incondicional e desinteressado, destes "esgroviados" de serviço, a bombeirarem as minhas mágoas, as minhas dores, as minhas tristezas, ou mesmo a lamberem as minhas lágrimas  ...

...e por isso, a eles, num diálogo mudo, eu sinto que sou absolutamente GRATA !!!...



Anamar

terça-feira, 1 de outubro de 2013

" SERÁ QUE SOU ? "



Será que sou ?  Será que não sou ?
A  minha  mãe  garante  que  já  nasci  ... Tinha   dois  cabelos  brancos !!!  ( só  mesmo  mãe  para  ver  estas coisas !... )
A Fatinha diz que é bom ... tem-se desconto nos bilhetes .
A minha mãe entende-o como uma maldição ... mas faz-lhe permanente elegia !
O meu pai não devia  gostar.  Quando lhe disponibilizavam um lugar no combóio, ou um braço para atravessar uma passadeira, enjeitava sempre ... quase agastado.
Eu ... bem ... eu tenho pavor de ter que assumir um dia destes ...

Olho de soslaio, faço-me desentendida, não dou confiança aos ameaços, tento não passar cartão aos indícios, e armo-me em forte !
Vejo mal e oiço pior, mas ... quem não ?!
Receio cair, mas ando empoleirada em saltos razoavelmente altos.
Cabelos brancos ... nem tenho ideia do que sejam  :)
Colesterol, que é uma coisa que as pessoas adoram ter, ainda não nos compatibilizámos.
Dores nos ossos ?  Nem sei que sou vertebrada !!!...
Insónias ... Quando me visitam, são meras visitas de cortesia.  Uma coisa que os sonos inventam, para fazerem um "break" , simplesmente !

Adoro viajar sozinha, e quando o  faço, desatino de vez.
Como o menino que espeta o dedo pelo creme do bolo adentro, para o provar ... com o gostinho da travessura, à surrelfa, desbundo para o radical, e garantem-me ... desaconselhável ...
Do "parasailing" ao "rafting", do mergulho ao "slide", aos "radical parks", passando por outras variadas "emoções" que não vêm ao caso, e me colocam, no momento, um friozinho na barriga ... lá vou eu !!!

O que desafio ? ... Não sei ... só desconfio !!!...

Reconheço ter às vezes, a inconsciência de um puto reguila e provocador, como se quisesse desafiar os meus limites.
Tenho  a  cabeça da  adolescente, que se deixa possuir por sonhos e desejos, e segue na vida ao ritmo da montanha russa ...
As minhas emoções pincelam-me a existência, com todas as cores do arco-íris.  E por isso, danço na chuva, num dia de sol ...
Sinais de proibição ou "limite de" ... não fazem parte do meu código de percurso ...
Se tem montanha. ... Bom, há que escalar ! Deve ter-se uma vista supimpa lá de cima !...
E cerca ... tem cerca ?  Então pede que se pule, não ??!!...
Tento  comandar  um  corcel  sem  freio  ...  um  pouco  desvairadamente ...
E receio abrandar ... não quero distrair-me em limite de velocidade, e que me apanhem na curva !...
Possam pensar que eu estou a habituar-me ...
Salas de espera ... não, obrigada! Tenho pressa de seguir !... Muita estrada a percorrer ainda !...
Muito brinde a fazer à Vida ... também !

Será que já sou ?...   Será que não sou ?...

1 de Outubro - Dia Internacional do Idoso

Anamar