terça-feira, 31 de dezembro de 2013

" UMA SIMPLES ROTAÇÃO "...



O último dia de 2013 amanheceu cinzento e chuvoso, como aliás tem sido o tempo, neste Dezembro manhoso e castigador.
Cá estamos a encerrar o último capítulo da saga tradicionalmente vivida nesta altura : a passagem de ano.  A mudança do ano velho que nos deixa, para o ano novo que se  inicia, e de que não sabemos nada.

As pessoas saúdam-se com alguma euforia, com os tradicionais votos de "Bom Ano" !

O que será "Bom Ano", e porquê esta euforia ???

Reli o post que no ano passado ( já passaram trezentos e sessenta e cinco dias, portanto ), escrevi a propósito, também no dia de hoje, e juro-vos, fui tentada a fazer "copy-paste" do mesmo, porque se o fizesse, tudo encaixaria na perfeição, para o ano que agora parte.
Nada se alterou substancialmente, ou melhor, tudo quanto era negativo e assolava a nossa gente, se agravou e agravou-se dramaticamente ...
As vidas pioraram, o desemprego é uma chaga que não fecha, a miséria das famílias acentuou-se, as pessoas jogadas nas ruas, também, a precariedade fez disparar a emigração, os desajustes sociais são cada vez mais gritantes, o desespero e o cansaço têm levado gente demais, a atingir situações limite.
A  insatisfação  grassa,  o desânimo  também, a  tristeza  generalizada  ( ao  invés  dos  slogans governamentais ), instalou-se, e sente-se efectivamente um espírito desistente, entre todos.
Uma espécie de coisa consumada, uma qualquer maré alterosa e desgovernada, contra a qual já não adianta erguermo-nos.
O povo português está anestesiadamente conformado, parece-me.
O povo português está sem força anímica, porque sem esperança, ou  fé  na  reversibilidade  do  estrago feito ... Bem ao contrário, aliás !

Entretanto, o Algarve, a Estrela e não só, têm os hotéis lotados, têm ceias de réveillon a duzentos e muitos euros por pessoa ... que se esgotaram, e ainda que se quisesse, hoje, já não se conseguiria o lugar e o entretenimento, para meras escassas horas .
E são sempre os mesmos, que têm esses privilégios !

Acho que as pessoas se atordoam, brincam de serem felizes entre as dez da noite e a madrugada, num divertimento "plastificado" muitas vezes, creio, forçado, socialmente adequado à ocasião, ao evento e ao tipo de "sucesso", que normalmente essas pessoas sempre exibem, na vida ...
E depois amanhã, junto com o vestido de festa, despem também essa alegria postiça, retomam muitas vezes a infelicidade e o vazio que são as suas vidas,  tantas vezes sem muito mais significado, além da futilidade, do "faz de conta", da "peça teatral" que encenam, e exibem diariamente.
Penso que há gente demais, cujo registo é exactamente este ...

E depois há os outros.
Os que fazem as contas, ou não, e ainda conseguem engendrar uma festinha modesta e particular, em casa, rodeados de amigos, com a genuinidade do afecto, de amizades muitas vezes de largos anos, transversais a vidas partilhadas, em histórias que se foram cruzando, neste nosso caminhar ...
Apostaria, que estarão autenticamente mais felizes, no intimismo de uma lareira acesa, de um bom vinho, de algumas vitualhas na mesa, e gargalhadas e alegria espontâneas.
Os votos trocados são seguramente mais sinceros, o carinho circula pelas veias de todos, porque aquelas pessoas, são, por qualquer razão, pertença umas das outras !!!

Já tive passagens de ano exactamente assim, e recordo-as com profunda saudade ...

E depois há ainda, os que numa espécie de exorcismo, parecem querer  auto-punir-se, não sei bem de quê ( o ser humano, gosta de se vitimizar de quando em vez, saboreia um toque de masoquismo, numa chamada de atenção, que visa suprir desequilíbrios emocionais e afectivos ).
Esses, desligam telefones, dizem que tomam, ou tomam mesmo, um comprimido para dormir, e mimetizando um "sem abrigo" cinco estrelas, vão para a cama quentinha e confortável, antes que os minutos se escoem rápido, e a  meia  noite  chegue  depressa  demais, e  os  apanhe ainda  antes  da "função" estar em acção, o que seria chato !...

Amanhã acordam azedos, defraudados, magoados com a vida, e muito, muito infelizes.
E dizem para si próprios " Merda ... tudo exactamente igual !... "
E reiniciam o caminho de sempre, só que agora amanhecem num ano novo / velho...

Afinal, a Terra fizera apenas uma rotação sobre si mesma !!!...

Anamar

domingo, 29 de dezembro de 2013

" A DEPRESSÃO DAS FESTAS "



Cada vez se ouve dizer mais : "se me apanho em Janeiro, nem acredito" ! ou "estou morta que passe esta época " !... ou ainda, em jeito de alívio : "este, já passou" !...
Normalmente são mais mulheres que homens, que o dizem.
Chama-se a isto, a "Depressão das Festas", e é um fenómeno que se tem acentuado de ano para ano, particularmente nos últimos tempos.

Quando eu era criança, não lembrava "ao careca", que houvesse alguém a "rejeitar" o Natal ou a Passagem de Ano.  Ao contrário, o Natal que era sempre uma festa simples e despretensiosa, pelo menos no meu estrato social ( a dita e desaparecida "classe média" ), era uma festa de Amor.
Amor real, verdadeiro, privilegiado.  Sentia-se a alegria da reunião, sentia-se a partilha do afecto, no seio da família.
Havia poucos presentes, é verdade, havia uma roupita que se estreava, ou uns sapatos que se ganhavam, alguns chocolates para as crianças.  Os adultos não tinham presentes, tanto quanto me lembro.
Mas a noite era feliz, plena de momentos inesquecíveis ...

Era a Missa do Galo, pela mão da avó de xaile e lenço, no gelo da noite alentejana, era a lareira, acesa sempre com o maior madeiro que o meu avô reservava todo o ano, para o efeito, eram as iguarias que nos esperavam ( e que eram feitas pelos que ficavam em casa, a minha mãe e as tias, velhas ou novas ), o lombo, os enchidos e o entrecosto, fritos no lume do chão, as filhós, as fatias douradas, as azevias, os sonhos, os mexericos, a pinhoada, o arroz doce ... tudo acompanhado pelo bom tinto da região, e os cânticos ao Menino Jesus, entoados em uníssono, por todos ...

"Oh meu Menino Jesus, da lapa do coração, dai-me da Vossa merendinha, que a minha mãe não tem pão ..."
"O Menino chora chora, porque anda descalcinho, dá-lhe tu as meiazinhas, que eu Lhe dou os sapatinhos..."
"Nossa Senhora lavava, e S. José estendia, e o Menino chorava com o frio que fazia ..."

Todos, seguramente terão lembrado, e lembram, enquanto viverem, essa festa inesquecível ... e ninguém se deprimia !
As pessoas não ambicionavam mais, não sonhavam mais alto, não tinham frivolidades, não desvirtuavam o espírito de união, partilha, dádiva e amor ...
As pessoas eram felizes !

A Passagem do Ano, também não apoquentava ninguém.
Quando eu era adolescente, a passagem do ano era sinónimo de um bailarico, na Sociedade Filarmónica Harmonia, a mais bem frequentada da terra.
As raparigas da minha família, tinham por companhia e como responsável, uma das tias, que por não ter tido filhos, tinha uma pachorra incrível para nos aturar.
A minha mãe nunca ia, mas não era preciso, obviamente.  Estávamos todas bem entregues !

Era uma emoção só, aquele baile, aguardado a semana inteira.
A sala tinha um palco, onde tocava um conjunto musical ao vivo, o conjunto "Planície", lembro bem !
As cadeiras distribuiam-se em cercadura em torno do salão.  As meninas "comprometidas", ou seja, as que tinham namorado oficial, nunca se sentavam na fila da frente, já que não seria de bom tom, dançar com mais ninguém, além do namorado.
As "disponíveis", aguardavam os acordes da música, sentadas nas cadeiras da frente, com o coração aos pulinhos.

Ao fundo do salão, existia uma sala mais pequena, onde os homens se juntavam.  A chamada "sala de fumo", exactamente porque aí podiam fumar.
As mulheres e as raparigas, não !  Não se fumava na altura, ainda ...
Não esqueçamos que estávamos no Alentejo interior, conservador e castrador ...

Quando a música começava, como numa montra, as meninas eram escolhidas para dançarem, pelos rapazes, que se aprestavam a avançar pela sala, na sua direcção, "catrapiscadas" que o haviam sido já, do fundo da sala de fumo.
Proferia-se a célebre frase : " A  menina dança ??? "
E se a rapariga declinava o convite, ou seja, dava uma "tampa", o que não era de bom tom, tal, era vexatório para o "macho" interessado !

Dançava-se em pares, classicamente.  Não havia os ritmos actuais das discotecas, em que ninguém dança com ninguém ; é tudo  "à molhada" e fé em Deus !
E dançava-se com os corpos algo afastados,  e com rostos que por vezes, tentavam "colar-se", só tentavam ... porque se o "entusiasmo" os aproximava ( e acontecia muitas vezes ), lá estava o olhar fiscalizador da tia responsável, a chamar a jovem a entrar na linha ...

Eram bailes, sem dúvida, potenciadores de uma iniciação sexual.
A liberdade dos jovens então, coibia-os de experienciarem qualquer outro tipo de aproximação.
Os namoros eram controlados pela família, sair-se só com o namorado, não acontecia ...
Existia sempre alguém, que era obrigado a fazer o frete de ser o famigerado "pau de cabeleira", ou seja, uma presença incómoda, para os que ansiavam estar sozinhos.
Normalmente uma irmã mais nova, que o namorado convencia, com um qualquer regalo, a ir dar uma voltinha, regressando ao ponto de encontro, passado determinado tempo, e dando assim, alguma liberdade e privacidade ao par romântico ...
Mas nada de mais acontecia, além de um beijo mais caloroso, de um estreitar e de uma fugidia troca de calor dos corpos, ou de uma comprometedora percepção das respostas dos mesmos, à excitação do momento ...

Tempos aqueles !!!...

Não havia portanto,  também angústias, insatisfações, traumas, balanços ( os benditos balanços traumatizantes da vida, porque nos projectam sempre  a  magoadas recordações do passado, e ansiedades do futuro ) , atribulações existenciais, com dúvidas, medos, inseguranças e incertezas, que nos "matam", na actualidade !

A vida, parece-me, corria mansa.
Não se tinha muito.  Tinha-se o necessário, que era por isso, o suficiente !!!...

O ser humano era mais feliz, tenho a certeza !  Tal como em quase tudo, é o ser humano que cria as suas próprias condições adversas de vida, e a sua própria infelicidade.
É  ele  que  estraga, que  destrói, que  mata ... e  "morre"  às  suas  mãos !!!

Saudades ... saudades, tenho  sim, da simplicidade de então, do tempo em que esta quadra nos fazia rir, afastava a solidão e a tristeza, se teimassem instalar-se, e era desejada ansiosamente ao longo  de  todo  o ano !

Em suma, a doença moderna que mina mais e mais a espécie humana, a depressão, e que é consequência da vida e dos valores que o próprio Homem escolhe para si, não existia, menos ainda a aparente aberração dos tempos que correm :  a "Depressão das Festas" !!!...

Anamar

sábado, 28 de dezembro de 2013

" BATEM LEVE, LEVEMENTE ... "



Os dias parecem túneis mal iluminados.
O cinzento uniforme e tempestuoso, abate-se sobre tudo e sobre nós também.  Chove, há vento desabrido, neva nos locais habituais do país, deixando por todo o lado uma paisagem única ...
O desconforto chega-nos cá dentro.

As gaivotas recolheram ao interior, porque há tempestade no mar.  Fui acordada pelos grasnidos, das que pousam perto da minha janela.
Alguma delas será a "minha gaivota" ?
Sim, porque houve tempo em que eu tive uma gaivota ( que perambulava aqui por cima, e pousava junto de mim, mirando-me com aquele jeitinho de cabeça inclinada e olhinhos perspicazes ), e um farrusco que parava lá em baixo, no abandono dos terraços, e de que, do meu sétimo andar, eu só distinguia os olhões amendoados, na pelagem totalmente negra.

Eram companheiros meus, sem o saberem !
E era reconfortante, por estranho que pareça, quando chegava à janela, e procurava com os olhos, os encontrava, um em cima, outro em baixo a olharem-me também ...  Sempre  me  aflorava  um sorriso  ao rosto !
Era no tempo em que a Rita já estava no fim da linha, velhinha e doente, e havia demasiado silêncio na minha casa.
O silêncio persiste, e tem dias em que eu diria, que um frio de neve, penetra no meu espaço, intencionalmente restringido ao quarto e à cozinha, e a sua brancura, que estranhamente acho aconchegante, deixa-me nostálgica, entristece-me  a alma, emudece-me o coração .

Nunca vivi em locais de tradicionais nevões.
Contactei  com a neve, ao vivo, por escassas ocasiões ;  não aprecio mexer-lhe, sofrer-lhe o frio, brincar com ela.  Mas extasia-me e emociona-me olhá-la, simplesmente, por detrás de uma vidraça, através da lente duma câmara, ou no registo de uma fotografia.
Acho que essas imagens têm muito a ver comigo, com o meu "eu" interior, o meu estado de espírito, transmitem-me uma doce solidão, que afinal já existe dentro de mim, faz parte da minha forma de sentir e estar.
E uma paz, que eu gostaria também de vivenciar, e que a vida não me traz ...

As imagens apenas corporizam os sentimentos, e descrevem-nos,  mudos, com palavras não ditas, mas eloquentes !
As imagens têm pulsão cardíaca, têm cheiro, têm som, ou melhor, têm silêncio audível ...
As imagens envolvem ...  Aquele cobertor branco e macio, acaricia e aninha ...

Será  mesmo  assim, ou  eu, que  não sou  lá  muito  certa, sinto-o  assim ??!!
Será normal sentir isto, ou não passo de um ser estranho, no isolamento em que me posiciono, por dentro e por fora, no mundo que me rodeia ??!!
Não sei !...
Reconheço-me "sui generis", bicho raro, meio adoidada, e percebo também, que não me percebam, porque eu própria me sei desenraizada, não enquadrada, não muito ligada a esta terra, por aqui !
Ainda não descobri a que mundo deveria pertencer, mas sei que neste, me sinto incómoda, defraudada, desconfortável, desinserida ... não "pertença" !...

A neve é silenciosa, como eu o sou no meu âmago.
A neve é envolvente e aconchegante, é uma carícia da Natureza, por cada floco que tomba nas folhas que restam, das árvores despidas.
A neve é uma canção dolente, uma melopeia, talvez um mantra ...
É uma música de deuses, tem uma beleza etérea e diáfana, é uma tela que o Arquitecto pinta, com a mescla de todas as cores existentes no Universo : o branco !...

Branco de paz ...
Seguramente, esse é o sentimento real que ela me transmite ...  Mas também silêncio e solidão, como disse.
Três formas de sentir, que levam o Homem ao encontro de si próprio, conduzem-no ao seu equilíbrio pessoal, mergulham-no no seu espírito, sintonizam-no no reencontro da meditação, transportam-no a um patamar superior, de ascetismo transcendental e deificante, na busca imparável da perfeição, e no caminho da melhoria !!!...

Anamar

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

" NO RESCALDO ... "



Mais um Natal que já foi ... Metade da "odisseia" está resolvida !

Percebem ao que me refiro, com certeza...ou seja, à obrigatoriedade calendarizada, de se festejar algo a que chamam de Quadra Natalícia.
Abomino esta época, pelos seus rituais, pela imposição feita pela civilização judaico-cristã, em que quase todos fomos criados, e que estabelece um "figurino" a que até os mais resistentes se submetem.
Eu  entro  impositivamente  nos  moldes  tradicionais e convencionais, sempre  impositivamente,  como  digo, porque  tenho  uma  família ( pequena,  apesar  de  tudo ), conservadora, onde existem três crianças,  que vivenciam a época, através do que lhes é veiculado, quer em casa, quer no colégio que frequentam, de índole eminentemente católica.

Assim, este evento não é para mim, nem mais nem menos importante que qualquer outro, e tem o mérito, e é apenas  esse que lhe reconheço, de reunir quem se gosta e se quer bem.
Eu retirar-lhe-ia qualquer outra conotação, e reservar-me-ia o direito de o revivenciar, sempre, só  e quando, me desse na "bolha" .... não mais!
Escuso de dizer que toda a parafernália material alucinada, com ele relacionado, desde a loucura das doses industriais de comida, às doses loucas de presentes e mais presentes, indiscriminadamente reclamados por crianças que teriam já obrigação e alguma consciência, ( mercê da idade ), de não ignorarem a realidade que nos cerca ... eu enjeito, rejeito e contesto ...
Mas enfim !...

Este ano, a minha mãe, pela primeira vez na vida, não quis estar presente.
Com quase noventa e três anos, já lhe é penoso aguentar uma noite que se reclama de longa, aguentar a barulheira de três miúdos em completo desvario e ansiedade, pela chegada do presumível Pai Natal ( há um deles que ainda acredita ), aguentar a deslocação do conforto de casa, ainda para mais, neste ano, com a intempérie que se fez sentir ... enfim, aguentar o sair da sua rotina diária, de nove horas da noite em vale de lençóis, jantar bem leve, e sossego de cabeça.
Dizia-me ela : "Um dia vão mesmo passar sem mim ... ", e portanto, pragmaticamente, não achou nenhum despautério, não estar presente já este ano.
Eu entendo-a lindamente, e certamente um dia, quando ela tiver efectivamente partido, talvez nao sintamos tanto a sua ausência.
Afinal, verdadeiramente, e isto o que p'ra mim é o Natal, é a possibilidade de festejarmos a Vida, quer dos presentes, quer dos ausentes, porque eles nunca morrem nos nossos corações ...

A minha filha mais nova, numa das profissões de carácter humanitário, no ramo da saúde, esteve também de Banco, durante esta noite.
Orgulho-me muito disso, apesar de não a ter tido connosco, à mesa do jantar ... Não estava ... mas estava !
E deve ser muito gratificante, particularmente nessa noite, ajudar a chegar a este Mundo, um novo ser, que inicia, sem o saber, o seu percurso, por aqui !

Há pouco, contava-me a Larissa, que é ucraniana, que por tradição, na terra dela, na mesa da consoada, sempre é posto um prato, um talher, e um copo, a mais.
No prato, "esquecem" um pedaço dos bolos tradicionais, no copo, colocam um pouco do vinho que degustam, sendo que, tudo isto permanece na mesa ao longo das festas.
Sobre  as campas, deixam migalhinhas  do  pão  e dos bolos da ceia,  para  que  os  passarinhos  as encaminhem ...
"Corporizam" dessa forma, a memória dos que não estão mais entre nós !...

Enfim ... o que se sonha, o que se deseja, o que se concretiza, o que se recorda ... o que se espera ... ou o que já não !...
Tudo  isto  será  Natal !...
E  se  reduzirmos  o  seu  significado, ao  seu  REAL  significado ... tudo  isto  será AMOR !!!...


Reflectindo a propósito, remeto-me a um pequeno texto de Pessoa, que me chegou às mãos, como prefácio de um livro que me ofereceram :

"Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja ;
Nem sempre cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre "
                                                                                                             Fernando Pessoa

Anamar                                     

sábado, 21 de dezembro de 2013

A "TERRA"...



Costuma dizer-se, que quem nasceu em Lisboa, não tem terra .
Isto, porque a capital é um puzzle de peças, de todo o país.  Foi portanto trazida à cidade, uma multiculturalidade tão diversa, que penso que verdadeiramente sua, em tradições e costumes, é inexistente.

Estou a pensar na quadra que atravessamos, o Natal, que como exemplo, continua a levar as pessoas " à terra " para o passarem, porque lá encontram os seus, as suas raízes, tradições, as vivências que os terão acompanhado ao longo da vida.
A " terra" ... aquele torrão onde nasceram, que as viu crescer, onde se perceberam gente, um dia, e onde estão enterrados os que já partiram, onde as coisas e as memórias lhes fazem sentido.
Os cheiros são nossos, as cores são nossas, os sons também são nossos, e sempre se opera um milagre de uma tão grande fusão, que nos aquece por dentro !

Vêm os emigrantes, chegam os migrantes, busca-se um sentido de vida, apelativo a partilha, sobretudo, e muita cumplicidade ... porque há uma linguagem, uma qualquer corrente emocional e afectiva, comum a todos, que nunca nos deixam  indiferentes.
Essa, a razão de uma urgência na viagem, uma pressa de chegada, uma alegria interior que nos põe o coração aos pulinhos.
Há um entrosamento que não passa por religião, por evento social, pela exigência de calendário, pela hipocrisia que se vive na cidade grande, tão anónima, indiferente e "fria" !
A " terra ", a bendita terra, ainda guarda a ingenuidade, a pureza, e a autenticidade das coisas simples, para receber quem a busca.

Eu sou alentejana, logo, teoricamente, eu tenho " terra ".
Apenas, tristemente, nessa terra que agora me surge lá tão longe, resta-me um único familiar.
Todos os outros, são memórias, são fotografias, são vozes que ainda se escutam, são hábitos  que ainda se  recordam ... são  sítios,  apenas !
As casas estão lá, embora agora pareçam "fantasmas" nas nossas vidas.  Aquelas casas descaracterizadas, fecharam as portas que tantas vezes atravessámos, desde meninos, ao longo dos tempos;  imaginamo-las deserdadas de todo o recheio que tocávamos, inodoras dos petiscos da avó e das tias mais velhas ou mais novas, órfãs de todas as canções de Natal, partilhadas então à lareira, geladas, porque o calor dos corações já não pulsa naqueles espaços, e as alegrias já não têm veias para circularem ...

E sentimo-nos repentinamente espoliados, roubados injustamente.  Parece que o justo, seria que tudo aquilo continuasse a ser nosso, tivesse sido nosso "ad eternum" , fosse pertença intocável ... as coisas, os sentimentos, as vivências, mas sobretudo as pessoas ... E que tudo o mais, não faz sentido !...

Já não vou portanto, à "terra" ...

Agora, como filhós de contrafacção, como rabanadas atamancadas pelo fabrico em série, sonhos, que muitas vezes, de tão enzeitados, viram pesadelos, azevias a fingir que são as " nossas ", roubadas no recheio de grão, e que eram feitas por aquelas mãos sábias, que se foram .
E mesmo o bolo-rei, que ainda tinha prenda e fava, e que lá não existia, começa agora aqui, a ser já enteado na mesa da consoada ... Ninguém lhe pega !...

Aqui, é frequente o bacalhau comprar-se já empratado, porque não há tempo para confecções ( as pessoas trabalham no próprio dia da consoada ), e também já não é com as couves, as batatas e os ovos, regado com o bom azeite alentejano ( o  que  já  não  garante,  obviamente,  a  almejada  "roupa velha"  no  dia seguinte ) ... mas sim um "rafiné" bacalhau "à qualquer coisa" ... ;
o perú chega-nos feito também, e com um bocadinho de jeito, até fatiado mesmo, porque é muito mais prático ser só aquecê-lo no forno, em cima da hora ;
os doces, serão três ou quatro, e não a prodigalidade que decorava aquelas mesas gulosas, de antanho.
Não incluem seguramente o arroz doce, bordado desmesuradamente  com canela, pela avó, nem a aletria, nem o leite-creme, que serão substituídos por algo menos "prosaico", e consequentemente mais criativo e "requintado" ...

O cheiro da caruma a crepitar não se ouve já, os fumos a saírem das chaminés na noite gelada, também não se vêem mais ...
O aquecimento central, de muitos apartamentos de hoje em dia, pretendem substituir as "nossas" cúmplices lareiras, são confortáveis, impecavelmente "clean", e adequados ao requinte da casa ...
Por isso tudo,  fica aquela coisa "desasada", desenxabida, insossa, do Natal das pessoas sem "terra" !!!...

Bom, mas depois há ( e são cada vez mais ), os que têm por tecto, as estrelas quando brilham, qualquer portada mais resguardada ( onde os deixem ficar ) como cama, os cartões e alguns cobertores com que se cobrem, os andrajos que nunca despem, e o gelo da noite que nunca perdoa ...
E  ... que pelo menos o sono misericordioso os invada, e os proteja de pensarem ou recordarem, a " terra ", e o Natal que um dia tiveram, ou não !!!...

Anamar

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

" CONFLITO DE INTERESSES "



Fiz anos, e ofereceram-me dois livros que me despertaram o interesse por lê-los, de imediato ( o que nem sempre acontece ).
Quando estou em casa, não tenho por hábito ( e devia ), sentar-me num sofá, calmamente, e passar algumas horas placidamente, a ler, como faz o comum dos mortais, sobretudo quando a vida lhe é tão desocupada quanto a minha, se calhar.
Tenho até um confortável sofá no quarto, um candeeiro de leitura à maneira, e demasiadas horas vazias ...
Mas ... tenho um espírito inquieto demais, para conseguir parar, concentrar-me e ler durante algum tempo, sem que o meu espírito indisciplinado, não se solte de mim , à minha revelia, e vá por aí fora, sei lá para onde ...
Tenho aquela coisa a que chamamos meio humoristicamente, "bichos carpinteiros", que deduzo serem os bichinhos que incessantemente atacam a madeira, e não param.
Isto, sou eu a deduzir !

Pois eu, padeço do mesmo, e por isso, a leitura de qualquer coisa, livro, revista, jornal, seja o que for, no remanso da casa, faz-me voltar atrás dezenas de vezes, para reenquadrar a ideia, para repegar a história, faz-me ir contar quantas páginas faltam para uma hipotética paragem ... enfim, um cansaço !!!
Sofro de desconcentração, deve ser ...

Resolvi então passar a ler, durante a minha ociosa hora do pequeno almoço, no café do costume, no lugar do costume, com o barulho do costume.
Parece que aí, a coisa resulta ... vá-se lá saber porquê !!!

Apenas, temos aqui, um verdadeiro conflito de interesses. Isto porque, é também a esta hora, neste "intermezzo" temporal, que escrevo a maior parte dos meus posts, aqui deste espaço, e portanto é óbvio que, se leio, não escrevo, se escrevo não leio, e isso tem-se notoriamente reflectido na minha fraca produção literária, nos últimos tempos.

Depois,  acho  também  que  ando  com  uma  escassez  de  assuntos,  com  uma  irrelevância   de  narrativa,  com  um  nada ,  sobre  que  nada  a  dizer ...
A minha criatividade, "puftt" !... Ou então, ao longo dos tempos, já falei de tudo por aqui, e, ou me repito com alguma genialidade, ou fico insuportavelmente maçante !...

A minha realidade diária, é despida de emoções, é repetitiva, e vítima de um entediante queimar de horas, mais ou menos iguais.
Sendo assim, imaginem o que eu não daria por uma boa história, uma boa ocorrência, um bom acontecimento, que colorisse o cinzento desta ausência de adrenalina !!!

Contudo, estamos noutro Natal .

E sobre o Natal, já se disse tudo, as pessoas já disseram tudo, eu já disse tudo.
Já falei sobre como abomino a época, como anseio, se calhar anormalmente, chegar a Janeiro, como odeio visceralmente ter que obedecer a "figurinos" hipócritas, em que, por mais planos que faça anualmente, de ser esse o ano em que furo o esquema e escapo ... ou sinto-me "vendida" ... nunca alcanço tal desiderato ...
E como nunca é de facto esse "o ano" ... sinto-me vendida mesmo, porque acabo por me embrenhar na roda  dentada  do  presentinho  a  este, a   esta  e àquele,  porque  tem  que   ser,  porque   sim  e   porque sim !...

E lá estou eu, e lá estão os portugueses todos, espantosamente, a correrem em romaria ou procissão, para as lojas, numa espécie de loucura colectiva, de alucinação de massas, a gastar, a gastar, a gastar o que não têm !!!
" É só uma coisinha " ... "não tem importância" ... "o que conta é a intenção" ...
Porra, até parece que a Troika partiu definitivamente no trenó do Pai Natal, que a senhora Lagarde não dá mais bitates por aqui, que a senhora Merckel foi pregar p'ra outra freguesia, e que de repente, nos conciliámos todos numa boa, ou nos anestesiámos num rodopio insano, contrariando o que juraríamos implementar justo este ano : não dar nada a ninguém, e um só presente por criança !
Porque, caraças, afinal a crise é brava, cair "na real" vai doer muito em Janeiro, e fazer de conta que esquecemos os cortes dolorosos nas pensões e vencimentos, o ainda maior estrangulamento de cintos, que já não têm por onde apertar, é apenas isso mesmo ... fazer de conta !

E a última vez em que eu achei graça a fazer de conta, foi quando fazia de conta que acreditava nas historinhas infantis das fadas e das bruxas ... há um ror de tempo !
E aí, não fazia mal nenhum eu acreditar !...

Mas o fenómeno "Natal", mobiliza mesmo, temos que convir.
Com o mesmo esbanjamento ou talvez não, com as mesmas atitudes perdulariamente inconscientes ou não, mergulhamos, empurrados por uma qualquer força inexplicável e materialmente absurda, e nem com crises aterradoras no país e no mundo, nem com a devastação a alastrar na sociedade, nem com as pessoas a serem atiradas diariamente, mais e mais, para as ruas, nem com crianças que chegam aos hospitais, doentes ... por fome, nem com filhos a viverem à custa das pensões dos pais ( que apenas já só sobrevivem ), nem com os velhotes a racionarem os medicamentos nas farmácias, nem com o desemprego a afundar e a desestruturar lares e famílias ... nem com tudo isto, conseguimos esquecer o folclore, o supérfluo, o "plastificado", o desnecessário, o excesso insano, o exagero absurdo, o consumismo desembestado, e valorizar o que deveria ser o verdadeiro, o autêntico, o genuíno espírito de Natal, e a essência dos seus reais valores !!!...

Realmente, não temos emenda possível !!!
Ou então, gerámos uma qualquer alteração biológica, um qualquer antídoto milagroso, inexpicável, que nos retirou os sentimentos, e nos robotizou simplesmente, para a Vida à nossa volta !!!...



Anamar

sábado, 7 de dezembro de 2013

" AQUELA HISTÓRIA "



Há mil histórias iguais, mas aquela história, era "aquela" história !...

Do outro lado da rua, sentado na calçada, com as pernas cruzadas e a cabeça entre as mãos, estava aquele jovem.
Não olhava nada, nem ninguém, não erguia sequer a cabeça à passagem dos transeuntes, que o ignoravam e seguiam apressados.
Era magro, pobremente vestido, e tinha uma mochila nas costas.
A seu lado, sobre a calçada, estavam algumas moedas, ( poucas ), a maioria, de cêntimos, e pelo menos uma tablete de chocolate ( não sei se teria mais ... ), vi depois.

Eu passava em frente, do outro lado.  Olhei, e pareceu-me alguém que estivesse a sentir-se mal, que não estivesse bem, e para não cair, talvez se tivesse sentado ali, naquele sítio.
À distância, só vi um jovem esquálido, com as mãos a cobrirem-lhe o rosto ... desalentado, talvez em todos os locais do mundo, menos naquele ... quem saberia ?...

Hesitei.  Fazer o quê ?  Continuar o meu caminho ?
Mas ... pode ser alguém a precisar de ajuda, de socorro, alguém subitamente doente ...
E resolvi atravessar a rua.

Ao chegar junto dele, percebi que afinal chorava.
E nem à minha aproximação, levantou a cabeça.
Quando lhe perguntei se estava a sentir-se bem, se não precisava de nada, ergueu os olhos para mim, e disse : " Não, minha senhora. Apenas estou humilhado, muito humilhado ...  De vez em quando, tem que se chorar para aliviar a pressão, senão, sai-se por aí a cometer uma desgraça " !...

Era brasileiro, talvez vinte e poucos anos.
Disse-me que lhe custava muito, esmolar, porque não era dinheiro que queria, mas sim um trabalho que pedia.  Ele queria um trabalho, porque o dinheiro, por muito que lhe dessem, gasta-se, e um trabalho garantir-lhe-ia a sobrevivência.
Estava há quatro meses em Portugal, onde demandara só com a mãe, em busca da "vida" que a sua terra lhes negara.
Era neto de portugueses, embora já não tivesse família por cá.
Viviam na rua, segundo ele, e era maltratado e humilhado frequentemente, por aqueles a quem pedia trabalho, ou a quem tentava vender as tabletes de chocolate.

E dizia-me : " Não é preciso isso, pois não ?...  Uma  pessoa  tem  que  chorar, para  aliviar  a  pressão interior "!...

Tentei dizer-lhe meia dúzia de "tretas" de circunstância, daquelas coisas que se dizem sem convicção, que não servem para nada, que nos constrangem, apertam o coração, e de que temos a perfeita noção da irrelevância.
De qualquer forma, o Douglas ( era o seu nome ), estava emocionado porque alguém parara perto, e se preocupara com ele.
Dizia que ninguém tinha um minuto sequer, para o ouvir ...
Olhou-me e perguntou : " Você é psicóloga "?
Sorri e retorqui-lhe : " Não ! Eu fui professora ... e sou mãe "!...
"Ah ... por isso você me "viu", e teve tempo para me escutar "!...

Era quase uma criança que eu tinha à minha frente.  Uma criança sem sonhos, sem esperança, sem fé ...
Uma criança derrotada, a quem tinham roubado, cedo demais, a inocência !...

Dei-lhe algum dinheiro.
O ser humano sempre tenta resolver tudo com dinheiro, não é ?
Dar-lhe-ia muito mais, se pudesse ... dar-lhe-ia um trabalho, dar-lhe-ia esperança, devolver-lhe-ia um sorriso ao rosto macerado pelo desespero, dar-lhe-ia colo e embalo ...

Assim, disse-lhe apenas : "Não desista, lute, não chore perto da sua mãe, mas sobretudo, NUNCA se deixe humilhar !  NUNCA aceite da parte de ninguém, um mau trato gratuito !  Nenhum ser humano merece isso !
Posso dar-lhe um beijo" ?

Ele deixou-se beijar na testa.
Perguntou o meu nome, e sorriu, por ser o mesmo de uma sua bisavó.
Esboçou uma expressão triste e magoada, e disse-me : " Posso dar-lhe também um beijo na testa ?"
"Claro Douglas, claro que sim, e sobretudo não esqueça  o que eu lhe disse hoje, aqui !  Boa sorte, e não desista nunca !
A juventude e o coração ninguém lhe pode roubar "!...

Acenei-lhe, e em jeito de agradecimento pelo que lhe dera, ainda me disse : " Fique com isto !" - e estendeu-me o chocolate, que tinha para vender...
"Não ... É seu "!...

Atravessei a rua de novo, agora em sentido contrário, sem olhar mais para trás.
Não consegui.
Fiquei esvaída de forças, senti-me a mais impotente das criaturas viventes, fiquei com o estômago embrulhado, fiquei com um aperto no peito, e uma escuridão atroz na alma ... que nem consigo descrever ...

Há  mil  histórias  iguais,  mas  aquela  história,  foi  "aquela"  história !!!...

Anamar

" O TEMPO CERTO "



Não gosto de frases feitas, embora reconheça que frases feitas são  feitas exactamente porque têm  fundamentos às vezes ancestrais, que as sustentam.
Parecem óbvias e evidentes essas frases.  Quando as lemos, sentimos que não nos acrescentam nada de novo.
Às vezes, apenas nos fazem reflectir em verdades tão óbvias, que já nem damos por elas ou as valorizamos, ou então, confirmam-nos que não estamos sozinhos, nesta postura ou maneira de pensar, na vida.

Uma das frases que por aí circulam, uma das tais frases que não nos subtraem nem adicionam nada, diz simplesmente que "cada coisa tem o seu tempo para acontecer " !

Esta afirmação parece deixar entregue a uma completa aleatoriedade temporal, qualquer acontecimento da nossa existência.
Esta afirmação, parece dizer-nos que podemos degladiar-nos aqui ou ali, insurgirmo-nos aqui ou ali, contra destinos, futuros indistintos ou vontades próprias.  Parece  desincentivar  lutas titânicas para contrariar um determinado percurso, que nunca nada acontecerá, antes de chegar a sua altura própria, a sua maturidade de acontecer, a conjugação de factores, que só então, naquele preciso momento, convergiram, para que isto ou aquilo, ocorresse, sempre à nossa revelia, contudo !

Esta conclusão transmite-me uma sensação insegura e alarmante, de um determinismo na vida, incontornável pelo agente da mesma.
Parece que, que rememos nós para onde remarmos, tudo só acontece, se tiver e quando tiver que acontecer, independentemente das nossas urgências ou vontades, das nossas capacidades para alterar o rumo das águas ...

Obviamente, este pensamento contraria a convicção dos mais pragmáticos e racionais, que advogam que o Homem é, o que ele fizer da sua vida .  É ele que delineia e decide o seu próprio "trilho", é ele que, com o seu livre arbítrio, sempre decide os rumos, faz as escolhas, marca o compasso.
É ele que decide para onde vai, por que vai e quando vai !...

Isto não deixa de ser engraçado, porque enquanto desenvolvo estes raciocínios, ou analiso estas reflexões, sinto não obstante, que nitidamente, na minha vida, tive, duma forma clara e sem erro, momentos em que, e só então, poderia ter ocorrido determinado acontecimento.  Nem antes, nem depois !
Antes, porque não estava capacitada para o assumir.  Depois, porque despropositadamente ele se transformaria em algo serôdio e "requentado", sem significado já de existir, sem eficácia ou gratificação !...

Há momentos claros e nítidos, em que largamos para trás, sem dor, ou com menos dor, isto ou aquilo, há momentos em que escolhemos caminhos diferentes, por esta ou aquela razão, às vezes sem divisarmos de imediato o porquê ... e não estaríamos preparados para o fazer, noutra qualquer outra ocasião.
Esses momentos advêm de um "clique" qualquer interior, não têm uma razão lógica, muitas vezes, para acontecerem, mas percebe-se que têm que ocorrer, justo naquele "timing", e não noutro !...

É quando percebemos, que embora queiramos muitas vezes dar um "jeitinho", ou um empurrãozinho no destino que trilhamos, fica imperioso e impõe-se-nos a tal aleatoriedade, o tal "tempo certo" de acontecer, o tal sinal dos tempos ... na  vida, no "eu" interior de cada um de nós, e que não há quem os contenha ou altere !!!...

Anamar

domingo, 1 de dezembro de 2013

" O IMPROVÁVEL ... "



As gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado, a falésia desenha-se fantasmagórica na linha do horizonte, lá longe, no entremeio da ramagem.  Está uma temperatura atmosférica demasiado baixa.

Contei-as ... uma, duas, três, em formação rectilínea, de asas esticadas frente à vidraça, que não convidava a que se entreabrisse.
Há de certeza tempestade no mar, porque elas voam determinadas, em busca de comida, e não em espreguiçamento lúdico, como gostam de fazer, aproveitando os golpes da aragem.
Chove, chove aquela chuva miudinha, que por indefinição, se torna irritante.
Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...

É Outono, mas lá fora, apenas algumas das árvores circundantes daquela casinha, com uma porta e duas janelas, de bordadura azul e cortinas de renda no postigo, começavam a amarelecer.
O verde ainda predominava por ali. Afinal, o terreno não regateava a água que escorria das encostas.

Da escrivaninha envelhecida e bichada, da casa dos avós, encostada ao parapeito da janela  ( para que o jarro antigo mantivesse bem vivas as flores frescas, que sempre fazia questão em colocar-lhe, mercê da luz que por ali penetrava ), e onde o candeeiro aceso,  sempre  dava  um  ar  acolhedor  e  intimista  àquela sala,  vista  de  fora ...
da escrivaninha envelhecida, dizia, podia ver a cancela atamancada de velha, com uma aldraba a pedir conserto, que rangia nas dobradiças, aos abanões implacáveis do vento, podia ver o caminho que se desenhava adiante, e lá longe, como disse, a falésia rochosa sobranceira às águas zangadas do Atlântico ... e não mais ...

Aquela casa fora a concretização dum sonho muito recuado, quando o cabelo ainda não lhe embranquecera, o xailinho de lã pelas costas ainda era dispensável, e os óculos de leitura, ainda não precisavam de andar ao peito.
Fora a busca de uma felicidade e de uma paz, que acreditara encontrar na simplicidade dum lugar de verduras não presumidas, de árvores espontâneas, de algumas flores ( não muitas ), com que resolvera brincar de jardim inventado, e de meia dúzia de gatos seus, meio a meio com a natureza.
Todos amigos, todos matreiros, todos espevitados, ronronantes e preguiçosos à lareira.
Um preto, dois amarelos, um "querubim" de olhos invejavelmente azuis ... e mais uns malhados, que surgiam do nada, na hora da janta, e que nos frios e intempéries de Inverno, como  hoje, apareciam  como  pedintes, a  fazer-se  ao  resguardo  do  conforto  do  lar ...

À volta daquela casa de brincar, havia o silêncio, aquela angústia doce de recordações nunca arquivadas, o chilreio franco das aves veranis, ou o piado das corujas lá longe, na serra.
No seu interior, havia silêncios cúmplices, de serões frente a bons braseiros, com mantinhas de lã nas pernas, e boas leituras partilhadas, mantidos na certeza de que outro coração, outra  mente,  outro  colo  e outros  braços,  estavam  de  aconchego,  sempre  presentes ...
Havia a verdade que só as madeiras velhas garantem, as loiças gatadas comprovam, as braçadas de flores campestres e secas, espalhadas pelos jarros,  em coroas dependuradas nas paredes, ou em cestas sobre os arcazes velhos, as fotografias a sépia, ou a preto e branco, despretensiosamente relembram ...
Havia a genuinidade do que é simples e autêntico ... afinal, como o amor que tão curto no tempo, ali foi vivido !...
Àquela casa, batiam-se palmas a anunciar a chegada, o carteiro trazia de quando em quando, notícias dos demasiado ausentes, porque as lembranças dos sempre presentes, já só existiam nos corações...
E já passara tanto tempo !...

Hoje, as gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado ... e nem a falésia se distingue lá longe.
Está frio, chove, há solidão, saudade, silêncio...demasiado silêncio ... a única herança sobrante !

Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...
E uma lágrima rolou, quando olhei uma outra vez, aquele papel amarelecido e velho, que os anos adormeceram, que ficara religiosamente sobre a escrivaninha bichada, e onde se escrevera em letra miúda, o epílogo daquela frase iniciada por mim, há que anos ... e interrompida pelo destino  ... " e no entanto eu amo-te  perdidamente  e  tenho  saudades  loucas  tuas,  perco-me  nos  meus  sonhos  contigo ... sempre !..."

" Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto, é realidade ".
Curta, esta nossa realidade ...  Nem sei se chegou a ser sonho !!!...

Anamar