quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

"A PRIMAVERA DO NOSSO DESCONTENTAMENTO"



Obriguei-me a vir escrever.
Vejam lá como as coisas andam !  Escrever sem rascunhar, ao sabor da irrelevância do momento, isto porque não faço ideia o que vou escrever, sobre o que vou escrever ... para que vou escrever !...

Sei que as mimosas já estão em flor.
As  mimosas, as  magnólias  e  as  cameleiras.  Estão  lindas  de  morrer !...
As mimosas, mais despretensiosas, bordejam as estradas, porque ninguém lhes pediu que nascessem ali, ou sequer as plantou ;  as magnólias e as cameleiras, com o seu "pedigree", estão num patamar "floralmente" acima .
Pronto, acabei de inventar um neologismo, em que aliás sou perita.
Para mim, não há barreiras à escrita, e se não encontro o "tal" vocábulo, que traduziria o que quero transmitir ... pois bem, invento-o !  Quem é que me impede?

O tempo atmosférico, está aquela  coisa de mandar os velhinhos para os anjinhos, de por as crianças de quarentena  sem  irem  às  escolas ( o  que  nos  intervalos  da  febre, elas  consideram  uma  bênção ) ... de nos obrigar a enfarpelar feito chouriços, a nós, os adultos, teoricamente mais resistentes, e que temos que tomar conta destas coisas ...

A minha gaivota ( hoje tenho a certeza que é ela, garbosa, que por aqui anda ), recuou da orla marítima, que mete medo até às gaivotas, abandonou os areais que as marés não deixaram, em praias totalmente descarnadas, e resolveu retomar os caminhos de terra, até melhores dias .

O país continua de borrasca, continua de Inverno carregado, apesar de haver gente esperançosa, que enxerga lá não sei onde, uma Primavera, que garante está p'ra chegar.
Os velhotes espreitam as résteas gratuitas de sol, quando ele, humildemente engana as nuvens encasteladas, e  jogam ao dominó nas mesas improvisadas de bancos de jardim, se há o mínimo de garantias de que não choverá nos próximos minutos...
Enquanto jogam, discutem os números das pedras do dominó, para esquecerem a ausência de dígitos na magra reforma que os esperará, ainda mais magra, a partir deste famigerado Fevereiro, que se avizinha a passadas largas !

Os menos velhotes,  que inerentemente deveriam estar mais lúcidos, porque o Alzeimer, a demência senil, ou a simples esclerose, ainda não deveriam tê-los atacado, parecem baratas tontas, a fazerem outras contas, com outros números, que não os das pedras dos dominós ...
"Vão-nos cortar quanto"?.... " Mas em Dezembro já retiraram xix ... e foi para quê"?  "E o desconto para a ADSE também subiu ... Vamos ficar em que escalão"?...

E a água, a luz, o gás, os transportes, as taxas moderadoras, os créditos existentes, e a comidinha de que desgraçadamente ainda não nos desabituámos, como o "cavalo do espanhol", subiram também ... e trememos por cada vez que abrimos as caixas do correio, que dantes nos surpreendiam com românticas cartas de amor, notícias felizes de alguém de quem tínhamos saudades, e que agora nos provocam úlceras de estômago, porque não há dia, em que as malfadadas não nos ofereçam uma conta p'ra pagar !...

E ninguém sabe nada, e ninguém percebe nada das fórmulas aplicadas ( nem dá p'ra saber, sequer ... tal a confusão, as notícias contraditórias, e a desinformação conveniente ) ...
E assim vamos vivendo, olhando a beleza da natureza, que mesmo madrasta, tem o espectáculo esmagador  dos castelos indomáveis do mar, tem o amarelo lindo das mimosas, o rosa campanular das magnólias, e as diversas cores das camélias ... e sonhamos ... sonhamos, porque o sonho ainda não mudou de escalão ... que estamos abençoados com uma qualquer Primavera de Praga, esquecendo o antes e o depois dessa Primavera !...

Anamar

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A MÁGICA TECLA DE " DELETE" ...



A natureza humana tem desígnios estranhos.
Mecanismos ditados, que independem da vontade, e até da consciencialização que tenhamos sobre eles.

Reflectia eu ontem, num daqueles períodos em que mergulho, ou porque estou em silêncio, ou porque há demasiado silêncio à minha volta, ou porque por nada em particular, ou porque por tudo em particular ... somos assaltados por pensamentos desconectados da realidade, mas que nos caem aos trambolhões pela mente abaixo, e que buscam respostas, normalmente lógicas ( essa, é sempre preocupação nossa ) ... Reflectia eu ontem, dizia, assim do nada, como é possível o ser humano ter uma adaptabilidade espantosa, a situações que pareceriam intransponíveis, e que por vezes são ultrapassadas sem grandes mazelas ou marcas.

Refiro-me a questões objectivas, e outras nem tanto, refiro-me a questões materiais e questões emocionais.

A minha vida já é razoavelmente longa, e como tal, já passei por muitas coisas, já experienciei muitas situações, já senti muitos embates, que poderia chamar de traumatizantes, pela sua carga negativa em várias vertentes.
Tive uma vida para trás, dividida com muitas realidades diferentes, com locais diferentes, com pessoas diferentes. Cruzei vida, afinal, com muitas outras vidas ! 
E se me dissessem então, que eu sairia semi-incólume de tudo isso ... mais, se me dissessem que quando penso hoje, nessas realidades que vivi e experienciei, quase ponho em dúvida que elas tivessem existido.
Eu diria que era impossível, ou, a ser possível, então não posso estar de posse da minha sanidade mental !

Eu vivi em espaços que amei, que "nasceram" de mim, que guardam até hoje, em cada recanto, apontamentos ou marcas minhas e só minhas, que se relacionam com períodos até temporalmente longos da minha vida, períodos divididos com a minha família, onde as minhas filhas cresceram, brincaram, onde havia rituais inerentes a essas vivências ...
Contudo, olhando para trás, detecto um cordão umbilical totalmente cortado, lembranças que parecem pertencer a um filme a preto e branco, desfocado, distante e estranho ... nublado, e que me parece meramente uma reprise de ruim qualidade, e em que a protagonista nem sequer sou eu,

Não sinto, como talvez fosse espectável, nenhum "buraco" no peito, daquilo que apelidamos de saudade, nenhuma angústia pelo definitivo do nunca mais aceder a essas vivências, nenhum desespero por pensar : "bolas, tudo o que foi meu, não o é mais, mesmo as mais gratas e gostosas recordações, parecem  não  me afectar de todo ... Será  que  eu  vivi  mesmo,  tudo  aquilo ... ou  sonhei " ?...

Como se se desencadeasse em mim, um mecanismo de "deletar" algo que provavelmente me molestaria, um mecanismo de defesa da mente, e do coração ..

E vivo bem, sem ...

Este sentimento referente a realidades materiais, estende-se ao domínio do emocional e do afectivo.
A sabedoria popular costuma dizer, que "só faz falta quem está presente", ou que " quem não aparece, esquece " !
E sei por experiência própria, que a distância temporal, funciona de facto, como uma esponja que primeiro dilui um pouco, uma dor que tarda em nos deixar, para depois, chegarmos mesmo a por em causa efectiva, aqueles afectos ...
Parecia que sucumbiríamos à provação do afastamento traumatizante de alguém que foi fundamental nas nossas vidas ... mas depois ... depois, o desábito de termos esse alguém presente junto de nós, leva-nos a ir resistindo, a ir suportanto, a habituarmo-nos a novas realidades, e novos esquemas de vida ... e depois, um dia, acordamos e percebemos que a "película" não parece credível, que talvez não tenha sido bem assim, e que tudo aquilo que julgámos viver, se enleia numa manhã de nevoeiro cerrado !...

Estou certa, que se trata de facto de um subterfúgio do inconsciente sobre o consciente, como panaceia de maiores males.
O ser humano não quer "reviver" tudo outra vez, não quer magoar-se dolorosamente outra vez, não quer nem lembrar, que alguma coisa daquilo existiu.
Foi um sonho daqueles que esquecemos mal abrimos os olhos, foi outro alguém que atravessou aquela estrada ... Não eu !!!...

E por isso, uma vez mais, a sabedoria popular prima pela clarividência : "Quem não aparece, esquece" ou "Só nos faz falta, quem se faz presente "...
Os outros, são personagens das calendas gregas, que talvez não convenha acordar do "sono" profundo onde estão !!!...

Anamar

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

" UMA VIDA SUSPENSA "



O estado mais próximo do que eu considero ser uma hibernação, é a minha vida actual.
Com uma só diferença : durante a hibernação, e mercê dela, os animais perdem peso, que advém do consumo da gordura acumulada para o efeito, antes desse período letárgico.

E eu, ao contrário, mercê da minha "hibernação" actual, acho que acumulo gordura desgraçadamente, como compensação desta vida suspensa, que vivencio...

Efectivamente, venho a sentir-me de há já algum razoável tempo a esta parte, como o urso polar, que na época adequada ( e nisso a Natureza é absolutamente sábia, porque lhe prepara as condições para esse período ), recolhe à toca ... e adormece.
Desliga o comutador, faz o clique de apagar as "luzes" ... não está p'ra nada nem ninguém, e simplesmente fica num estado catatónico que me agrada bastante.

No Homem este estado associa-se à esquizofrenia ... mas palavrões àparte, parece-me muito abençoado, que quando a vida fica igual ao dia de hoje, por exemplo ... nós possamos recolher-nos, e fechar para "balanço".

Convém  dizer,  que  o  dia  de  hoje está  atmosfericamente  indescritível !
Todo o céu está por igual, cinzento tempestuoso, o vento desabrido e gélido, açoita para cima de nós uma chuva forte e ininterrupta, não há uma única frestazinha lá fora que nos anime, não há aves nos céus ( nem as gaivotas tão habituadas às intempéries marinhas, por aqui aparecem ), os animais sem abrigo bramem,  perante um desconforto tão impiedoso !...
São cinco da tarde e a noite aproxima-se a passos largos.

A minha vida está exactamente assim.
Não enxergo nada, mas mesmo nada, que me leve a deitar a cabeça de fora, que é como quem diz, que me motive a viver cada dia.
Tudo igual, tudo cinzento, tudo de borrasca, tudo cansativo ... tudo sem a mínima graça !
Dou por mim, diariamente, a sentir que o período mais feliz, confortável, e de maior fruição nos meus dias, é aquele que começa, no momento em que também eu, embora não sendo ursa ( tanto quanto sei ... apesar de às vezes duvidar ... ), entro na toca, desligo do mundo, esqueço essas trivialidades chatas que tanto maçam o ser humano, e "hiberno"... se desligar, é hibernar, de facto ...

E em cada dia que passa, mergulho nesta catalepsia, mais e mais cedo.
Passo a explicar : cinco da tarde, corro cortinas, porque entretanto anoiteceu acentuadamente ;  daí até às oito da noite, pairo, com mais ou menos paciência pelo computador, pela escrita ( quando se justifica ... o que está sintomaticamente a rarear ), ou leio um pouco, com os pés devidamente confortáveis, na abençoada escalfeta, que em boa hora adquiri, porque a verba para pagar à EDP, diminui na razão inversa do gasto da energia necessária a aquecer-me, neste Inverno tão frio ...

Às oito da noite, faço uma ponte com o Mundo, através do telejornal, que "grosso modo" me consegue deixar mais mal disposta, inquieta, penalizada, angustiada ... quiçá aflita, com as notícias que veicula.
Terminado o dito, inicio a preparação da toca, que é como quem diz, abro a cama com os adoráveis, macios, fofos e quentes, lençóis térmicos.
Faço então o saco da água quente, e aqueço a maior caneca que tenho, com leite, que ao longo do serão, será bebido aos poucos, passando portanto de quente, a natural ...
Visa ele substituir, na maior parte das vezes, o jantar que não me apeteceu comer, e simultaneamente  propiciar a conciliação ( dizem ) do sono.

O silêncio impera no meu quarto, os gatos já estão disciplinados de que acabou a hora do recreio, a televisão aos pés da cama passa só o que me interessa, e eu tapo-me até ao pescoço, tipo tartaruga debaixo da carapaça.

E este ritual está a acontecer, de dia para dia, cada vez mais cedo. Tem dias / noites em que dou por mim, a transpor a "porta do paraíso", às nove da noite ...

Claro que o dia seguinte, que se me inicia às onze da manhã ( ! ), é curto, convenientemente curto, para que eu não consciencialize por demais, esta preocupante indiferença perante a vida.
Quanto mais durmo, menos estou acordada logicamente, menos penso neste arrastar de dias, nesta solidão sem nada que me alicie, me sacuda ou me empurre.
Hoje, nada de diferente tenho de ontem ... nada de diferente espero de amanhã ...
Tenho portanto, uma vida suspensa !...

Quem me conhece minimamente, sabe que este marasmo, este arrastar, esta indiferença, me mata aos poucos.
Isto, porque p'ra que eu me sinta viva, tenho que ter um objectivo traçado, uma luta iniciada, obstáculos a vencer, projectos com que sonhar, esperanças a prometerem-se-me ... e sentir adrenalina nas veias, suficiente para me colorir a realidade.
Daí que, o cinzentismo da alma, à semelhança do cinzentismo deste céu que tenho especado bem frente à minha janela, é um estertor de um ser que preferiu adormecer, hibernar, recolher-se, como o lobo, ou o urso, ao covil, quando os tempos são adversos ...

Pode viver-se assim ?
Chama-se a isto ... "viver-se" ?
Que desfecho  tem  um  trilho tão sinuoso, enviesado e sem horizonte, que justifique o cansaço de o percorrer ?...

Se alguém souber ... que me responda !

Anamar

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

" A VIDA QUASE HÁ CEM ANOS ..."



A minha mãe nasceu em 1921, numa pequena vila, perdida no Alto Alentejo.
Era a filha do meio de cinco irmãos, duas raparigas e três rapazes.
Nessa altura, as pessoas oriundas de famílias modestas, e no Alentejo interior, viviam mal.
Ainda assim, os meus avós não subsistiam a partir da terra, porque os que trabalhavam para os latifundiários ( meia dúzia de famílias abastadas e detentoras das propriedades ), e que não detinham nada seu, a não ser a jorna quando trabalhavam, tinham uma vida de verdadeira escravidão.
O trabalho era de sol a sol, não existiam leis laborais que o regulassem, menos ainda, sindicatos ou reivindicações.
Um pai de família dava-se por muito feliz, se trabalhasse para algum lavrador, e conseguisse com isso, garantir na mesa, o pão dormido da açorda e o azeite na almotolia !
Os Invernos eram extremamente rigorosos, e havia meses e meses, em que as terras alagadas, não permitiam sequer, que nelas se entrasse .

Era o tempo da fome ...

Muitas crianças iam para a cama, com umas sopas de leite no estômago, porque o pão fazia-se em casa, para toda a semana, e o leite sempre vinha de alguma cabra, ovelha, ou vaca, que criassem, e que, com meia dúzia de "bicos" na capoeira, para os dias festivos, lhes compunham a mesa.

Existia na vila, um convento de freiras, que acolhia meninas órfãs, e que durante todo o ano, por iniciativa da mulher do Presidente da Câmara de então, garantia alimentação diária aos velhinhos do asilo - a "sopa dos pobres".
Pois bem, aí recorriam também os trabalhadores, que no período rigoroso do Inverno, por falta de trabalho,  não tinham do que viver.
E havia depois, como diz a minha mãe, a "pobreza envergonhada", de quem precisava e não pedia ... Mais dramátiva, portanto !

Os meus avós não viviam da terra, como disse.
O meu avô era sapateiro, e foi entretanto mobilizado para a guerra.
Fez a Grande Guerra de 14-18, e quando partiu, já cá deixara, a mulher e um filho.
Em condições precárias, a minha avó, foi então "servir", numa das casas ricas da terra, para garantir o seu próprio sustento, o da criança de meses, e ajudar a mãe que ficara viúva com trinta e um anos, e três meninas para criar.

Na Guerra, o meu avô,  incorporado nas tropas aliadas, esteve à morte, devido a um bombardeamento alemão, já então com armas químicas.
O "gás mostarda ou iperita ", tinha efeitos tremendos nas vias respiratórias, quando inalado, e queimava em profundidade o corpo.
E os alemães usavam-no !...
Salvou-se por mero golpe de sorte ; ainda recebeu a Extrema Unção, na eminência de morrer.
Ficou contudo, com sequelas para o resto da vida.
Isso ocorreu numa noite de passagem de ano, e desde então, ( ele que não era católico ), guardou um qualquer sentimento de gratidão e de respeito particular, por essa noite, enquanto viveu ...

Considerado um ferido de Guerra, muito grave, foi desmobilizado, e regressou a Portugal, com uma saúde tão precária e uma debilidade tão devastadora, que esteve à beira de uma tuberculose.

Decidiu então virar-se para o comércio, porque a saúde já não lhe permitia continuar com a sua profissão de origem.
Abriu um espaço polivalente, que era simultaneamente pensão de hóspedes, mercearia e cavalariça para recolha e guarda dos animais, e de quem viajava nos carros de canudo, ou nos carros de varais, pela planície adiante.
Ainda me lembro de ver lá alojados os "tendeiros", que eram feirantes de terra em terra, os ciganos que  negociavam pelas feiras, cavalos, mulas, e burros, e que se movimentavam, como nómadas que são, com toda a família e os animais, assentando acampamentos nos campos, onde lhes aprouvesse.
Às vezes, em noites tempestuosas, o meu avô dava graciosamente guarida, no palheiro ou na cavalariça, aos errantes, sem eira nem beira, que percorriam, como pedintes, as estradas do Alentejo.
Eram chamados de "frausteiros" ( que suponho ser uma adulteração popular, de forasteiros ).
A minha avó, às escondidas do marido, sempre lhes levava um prato de sopa, para aliviarem um pouco, a fome ...

Eram tempos muito difíceis, efectivamente !...

Depois do meu primeiro tio, nasceram mais quatro crianças, como também já disse.  Abaixo da minha mãe, vinham portanto dois rapazes.
A casa dos meus avós era de permanente labuta.  Havia alguma ou algumas "criadas", como se chamavam, mas as duas filhas raparigas, trabalhavam lado a lado, e em iguais condições que elas.
A minha avó era a cozinheira ( de mão cheia, ao que parece ), mas todo o restante trabalho, desde servirem à mesa, prepararem os quartos dos hóspedes, tratarem da casa, com todas as inerências que se conhecem, passavam pelas mãos das criadas e das filhas.
Todas as semanas se amassava o pão, e anualmente se faziam matanças de porcos, e se preparavam os enchidos ...

Por tais motivos, a minha mãe foi retirada da escola primária, a escassos dois meses de completar a terceira classe, porque havia que vir ajudar a criar os dois irmãos mais novos.
Apesar de ser uma aluna exemplar, e do interesse manifestado pela professora, de que ela continuasse, não houve qualquer sucesso, e talvez com oito ou nove anos, já ela era mãe substituta, porque a minha avó paria, mas não tinha condições objectivas para cuidar e criar as crianças !

Quando oiço a minha mãe contar memórias desses tempos, pasmo, de facto, e pergunto-me como viveriam os meninos de hoje, naquelas condições ...

Não existia luz eléctrica, nem água encanada.  Não existiam casas de banho ...
Os banhos eram tomados dentro de um alguidar de zinco, e a água era despejada sobre o corpo, com um jarro de esmalte.
As camas eram as tradicionais e bonitas camas de ferro, vendidas hoje, como antiguidades.
Tinham um estrado de arame, sobre o qual existia um enxergão de palha, e sobre este, um colchão feito de pedaços de trapos.
A palha do enxergão, era viveiro habitual e inesgotável de percevejos, parasitas que se alimentam do sangue obtido, pelas picadas no ser humano.
Tentavam debelá-los, ao que parece, com rodelas de cebola, ou petróleo ... mas infrutiferamente !

Nos quartos, existia um lavatório em loiça, com um balde por debaixo, para recolher a água, e um jarro ao lado, com essa mesma água..
Tanto quanto sei, em toda a pensão, existia um único bidé de esmalte, que circulava para os quartos, cujos hóspedes o reclamassem, e que não eram muitos ...
À cabeceira das camas, na mesinha de cabeceira, existia uma palmatória com uma vela, com a qual, o quarto era alumiado, e  uma garrafa de vidro com água, com um copo sobre o gargalo.
A maior parte dos cobertores, se assim se poderá chamar, era feita com bocados de tecidos, cosidos uns  aos outros, e havia ainda os cobertores de "papa", que era uma espécie de lã grossa, com pelo, alguns já com marcas das traças.
Remontam estes cobertores ao tempo do Marquês de Pombal, tendo existido, perto da Guarda, na aldeia de Macainhas, uma desenvolvida produção têxtil dos mesmos.
Hoje em dia, a última fábrica, na Serra da Estrela, fechou portas em Dezembro de 2012.
Eram feitos da lã da raça ovina churra, fiada especificamente para este fim, e eram imensamente pesados !
Como consequência, o peso da roupa sobre cada pessoa, jamais era proporcional ao aquecimento
produzido ...
Ainda nos quartos, existiam, para resolver as necessidades fisiológicas das pessoas, uns bacios  altos, de barro, com uma tampa em madeira.
Diariamente, eram os mesmos, colocados nas ruas, às portas das habitações, até que o Tio Rico ( assim se chamava a figura ... ), com um carro puxado por um boi, com uma canga de guizos a anunciar-se, os despejava, para dentro desse contentor.

O "destino" ... a minha mãe não sabe !   Talvez o campo, talvez adubasse terras ...

Os comensais fixos, na pensão, pagavam uma diária de 16$00, que incluía o quarto e as três principais refeições : pequeno almoço, com leite com café, e onde o queijo, a manteiga, os enchidos e o pão, se  faziam  presentes ;  o almoço, com sopa, prato de peixe, prato de carne, pão, vinho e fruta ... e o jantar,  de igual forma.

Havia quem apenas tomasse as refeições, e se deslocasse à Estalagem do sr. Barrancos ( como era conhecida ), devido aos pitéus da Sra. Brites, a  minha avó.
Incluiam-se  como tal,  figuras proeminentes da terra, destacadas para lá, a trabalho : o juíz em exercício, o escrivão do tribunal, alguns médicos, o delegado do Procurador da República, o Padre Serrão, e outras personagens com algum protagonismo ...

Ao tempo, não existiam sabonetes, gel de banho, shampôs e outros artigos de toillete.
Existia sim, para tudo, desde a lavagem criteriosa das tijoleiras de barro, da loiça, da roupa, e de tudo o resto, até mesmo às lavagens pessoais, exclusivamente o sabão azul e branco.

A iluminação caseira era feita por velas, como disse, por candeeiros de petróleo, ou candeias de azeite, espalhados pela casa.
Cozinhava-se em fogões de lenha  ( só mais tarde apareceram os de petróleo ), passava-se a roupa com ferros a carvão, por vezes difíceis de pegar, outras, queimando a roupa, porque algumas brasitas saíam para fora, ou com ferros que se aqueciam na chapa do fogão, simplesmente !

As ruas eram iluminadas com candeeiros de pé, os quais tinham um depósito, que diariamente era provido de petróleo, e assim se iluminavam.
Nas noites quentes do Verão alentejano, terminada a labuta diária, o local mais aprazível para as famílias se juntarem, era  as soleiras das portas, ou mesmo, os poiais das mesmas.
Para garantir a frescura, regava-se a rua previamente.
A água, claro, ou provinha do poço do quintal, ou era buscada diariamente, vezes sem conta, ao poço da Faia, que  ficava  na  estrada, já  fora  da vila, em  cântaros de  barro, à  cabeça  e  no  quadril ...
Muitas rendas do seu enxoval, e muitos livros, diz a minha mãe, ter feito e lido, à luz do candeeiro da rua ...

As roupas usadas, eram frequentemente de chita, ou de riscado.
Com a chita, confeccionavam-se blusas, saias, vestidos, sendo que  cada metro custava vinte e cinco  tostões ...
A roupa interior, as camisas de noite e as combinações ... eram feitas em casa, por quem sabia costurar, e eram exclusivamente de flanela.
O guarda-roupa era parco. Só o essencial, e uma roupita para os domingos, já estava bem!
O material escolar era transportado numa bolsa de flanela, feita em casa, e passava de irmão a irmão. Resumia-se ao livro, ao caderno, à tabuada, lápis e borracha, a ardósia e o ourelo para limpá-la.
As carteiras escolares tinham um tinteiro incorporado, e com uma caneta de aparo, aí molhada, escrevia-se a tinta ...

Bom, não me alongo mais.
Isto tudo, este "modus vivendi", é uma realidade tão longínqua, mas sobretudo tão irreal, que custamos a concebê-la .
Fui tentando descrevê-la, o mais fielmente possível, à medida que a minha mãe ma relatava.
A cada observação minha, a cada espanto meu, a minha mãe dizia-me : "Pois, filha ... mas era assim ! E tudo se criava !!!..."
É tudo tão surrealista, que nem a geração das minhas filhas ... que direi a dos meus netos ... o conseguirá conceber.
Olhando à nossa volta, pergunto-me, como os meninos dos Ipads, Iphones, computadores, telemóveis de última geração, toda a parafernália que nos rodeia, incluindo alimentação, hábitos caseiros, vestuário ... meninos que sabem que o Homem pisar a lua já nada tem de especial, que a concepção de crianças "in vitro", também não, que a clonagem e que a genética mudam o Mundo ...
Pergunto-me, que sentido tudo isto fará/faria, para eles???!!!

Seguramente,  achariam  tratar-se  de  um  filme  do  tempo  das  cavernas !!!...

Anamar 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

"QUEREM VER QUE A CULPA FOI DAS PASSAS ?..."





Querem ver que a culpa foi das passas?

2013 a ir-se, 2014 a chegar ... 

Aquele, cansado, decepcionado, desgastado, velho ...  
E pior, bode expiatório de tudo quanto foi desgraça acontecida.
Este, fresco como uma alface, com a pujança, a fé, a ingenuidade e também a inconsciência dos jovens, prometendo  isto e aquilo, acena garbosamente com outras intenções, outros dias menos enevoados, outras realidades que jura irão cumprir-se, o que dará lugar a festejos ...

Do velhinho eu despeço-me, sem já lhe guardar raivas ou rancores, com aquela complacência com a vetustez, dos nossos, chegados ...
Já lhe perdoei as indelicadezas, os sofrimentos, as angústias, e mesmo as raivas que me fez sentir, e que de mim fizeram, uma pessoa pior ...
Enfim, resignei-me a esquecer a intolerância, e a deixá-lo partir, com a certeza que ele não ficará no meu álbum de memórias !...

Deixou-me acreditar em muita coisa, p'ra me defraudar a seguir. E isso, com o meu mau feitio, de flor que não se deva cheirar ... não perdoo. Reservo, guardo, e às vezes, as marinadas acabam azedando, como se sabe, e fica tudo estragado !...


Na passagem do testemunho ... obviamente a meia noite de 2013, manda a tradição que nos despeçamos,  prometendo esquecer, e que recepcionemos com pompa e circunstância, esperança e fé !
O novo ano fica assim, de imediato, completamente sufocado  com uma enxurrada de pedidos, de desejos formulados, por cada mês, por cada uma das doze badaladas da meia noite, por cada passa que se vai comendo, ao soar dessas badaladas.

Obviamente que não há viandante que se preze, que, acabado de chegar, possa ter de imediato um bom desempenho, se lhe cai tudo em cima ! Só pode mesmo sufocar, ou fazer "orelhas moucas" !!!
Por isso, o ano, à medida que se desenrola, vai sempre "dando bota"... digo eu !...

Nos tempos em que eu ainda fazia passagens de ano, mais ou menos felizes, as passas eram previamente contabilizadas, reservadas, e aguardavam que chegasse a hora adequada..
Depois, era aquela afobação, em que o ritmo das badaladas não dá, nem de perto nem de longe, para que se  mastiguem  as  passas,  se  façam  os  pedidos, e  se  felicitem  os  amigos ( tudo ao mesmo tempo ), a menos que as ditas, sejam simplesmente deglutidas, o que não me parece de bom tom ...
Passei então a fazer uma falcatrua, para simplficar a coisa : comia e mastigava as passas todas de uma vez só, e reduzia os pedidos, àqueles, sem os quais, isto ainda se torna uma desgraça maior.
A saúde, à cabeça, o amor em segunda preferência, e algum dinheiro, constituíam o meu cabaz, creio que pouco exigente, de desejos e anseios ...

E depois, é como uma chave fixa do euromilhões ...nuns anos somos mais premiados, noutros nem tanto ...

De  facto,  o  tempo,  tem  vezes  que  nos  magoa, e  outras  que  nos  cura ...
Tem vezes que nos afasta, e outras, que nos aproxima ...
Leva-nos a ignorar algumas coisas, mas a importarmo-nos com tantas mais ...
O tempo decepciona-nos impiedosamente , e leva-nos a perdoar essas decepções, miríades de vezes ..,.
E por isso lembramos as coisas, ou esquecemo-las, conforme o caminho ...
Tem dias  em  que  nos  mata, e faz desistir de  tudo...para  no seguinte, nos levar a uma persuasão sem limites, a não abdicar da luta ...
Faz-nos julgadores de gentes, momentos e  afectos ... ou inversamente, aceitadores incondicionais do que os mesmos têm para nos oferecer ...

Este ano, não tive "passagem", recusei réveillons, fiquei só, comigo mesma e com as minhas estórias ... as recentes, e as que já têm barbas ...
Constatei em desespero, que ao contrário do que supunha, não existiam passas, nesta casa ... Vinho, ainda se arranjava, passas é que não.
Conjecturei descer, para as comprar ... Mas para quê, se eu  não tinha amigos com quem as dividir, não tinha memórias a festejar, os únicos seres viventes ( os meus gatos ) já dormiam há muito ... e não me fazia nenhum sentido,  fazer os tais pedidos ??!!

E lembrei uma vez mais, o que para mim, é uma máxima : na verdade, o tempo tira-te hoje, o que te deu ontem  ... Sempre !

E é por isso que eu corro em contra-ciclo.  Para ter tempo ainda, de protelar para depois e depois, tudo o que eu sei que ele me vai tirar !
Queria  ser,  por  instantes  Alguém,  alguma  Coisa, Ninguém, sei  lá ... ( olhem que pretensão !!! ), uma peça do mecanismo do relógio ou da ampulheta que o regula, para brincar com ele.
Pará-lo, atrasá-lo, acelerá-lo, espreitá-lo à frente, re-olhá-lo atrás, apagá-lo, re-escrevê-lo ... saborear de novo o que me deixou  memória indelével no coração, cuspir para longe, o fel que me amargou tantos momentos ...

Reconheço agora, que afinal, esse poderia ser o único desejo a formular, na décima segunda badalada da meia noite, ano após ano, tempo após tempo ...

Só que, de facto ... eu não tinha passas, eu não tive passas !
  
Eu desconsiderei  intencionalmente, aquele momento místico, desvalorizei os segundos que leva a descolar o envelope da carta, cujo conteúdo não conhecemos, e que mesmo que nos armemos em fortes, sempre nos cola, por momentos, o estômago às costas, nos dá um nó no respirar, e nos acelera o ritmo do peito ... o reinício de  outra fatia desconhecida, do caminho que nos foi destinado ! 

Atrevi-me a medir forças com o tempo, como David contra Golias, desmistificando, indiferentizando, tentando insensibilizar e racionalizar, o que afinal talvez deva mesmo ser racionalizado, de facto :  o  romancear daquele lapso de tempo, em que as doze passas encerram um Mundo de sonhos, como se ele não fosse apenas e só, um lapso do tempo imparável, igual ao antes, ao depois, ao ontem, ao hoje, e certamente ao amanhã ...

Nada mais que Tempo !!!...

Anamar

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

" TRINTA MIL ..."




Não escrevo, faz tempo.
Direi mesmo que há um ano !  Encerrei os meus escritos no fim de 2013.
Janeiro de 2014 iniciou-se, a vida regressou ao ritmo normal, com um tempo atmosférico arrasador, não só no país, como em todo o norte da Europa, Canadá e Estados Unidos, com manifestações naturais e atmosféricas, nítida e assustadoramente indiciadoras de uma mudança clara do clima, que já se detecta com uma nitidez, que não deixa margem para dúvidas, e que assusta !

O Homem, neste momento, é cada vez mais o artesão da sua própria desgraça, e da antecipação da finitude do planeta que habita.
As catástrofes que estão a fazer-se sentir, mostram-nos um domínio descontrolado da Natureza, com uma dimensão não vista antes, com consequências apocalípticas imprevisíveis ...
Ventos fortíssimos, temperaturas anormalmente gélidas, ondas até dezasseis metros, varrem e engolem tudo o que lhes aparece pela frente !
Lembro o tsunami de má memória, em 2004, na Tailândia e não só, com cicatrizes irrecuperáveis na devastação deixada, material e humana, numa zona já tão desfavorecida da Terra ...

Por cá, num país que está roto por todos os lados, só nos faltava que também o clima, sempre tão generoso, se tornasse carrasco, e espalhasse ainda mais, a miséria que já nos assola e nos deixa a viver em condições extremas, maioritariamente.

Bom, o início  deste post, parece um comunicado da Protecção Civil, ou um relato noticioso da metereologia ...
Efectivamente, ando exactamente como o céu que nos amanhece cinzento-chumbo, uniforme e ameaçador, com borrasca à vista !
As gaivotas corroboram a previsão, pois recolheram definitivamente a terra.
Nem elas, campeãs das ondas e das praias, se atrevem a desafiar as condições tão adversas.  Volteiam ao sabor da aragem, oportunisticamente aproveitam os golpes de vento, e de asas esticadas, passeiam-se por aqui, bem perto da minha janela !
E não é raro acordar com os seus grasnidos, o que me informa de imediato, quais as condições atmosféricas que me esperam !...

E não escrevo, faz imenso tempo, como dizia ...
Sinto que não tenho nada, de que valha a pena falar.
Entretanto, este meu espaço, registou  trinta mil entradas de leitores, o que não deixa de me espantar.
Não é um "sítio" divulgado, tem características de abordagens pontuais, específicas, são crónicas do imediato na maior parte das vezes, tem este ou aquele assunto que me "mexe" de alguma forma, artigos mais ou menos intimistas, mas ... nada de novo !...

Contudo, creio que tendo iniciado este blogue em 2008, atingi em 2013, vinte mil, e ainda em 2013, trinta mil acessos, de alguém que perdeu o seu tempo, lendo irrelevâncias, coisas comuns, meras formas pessoais e muito particulares na focagem dos assuntos ...
Afinal, um olhar, simplesmente ... o meu ... que vale o que vale !...
E sinto-me tão pequenina e tão insignificante, quando penso que me atrevo a escrever, face a "monstros" da escrita, com publicações empolgantes, geniais e brilhantes !

Li  recentemente dois livros que me preencheram, como há muito não acontecia ...
Duas obras de arte, seria assim que os classificaria ... Aquilo, sim, é que é escrever !
Perante eles, os meus trinta mil leitores, mesmo que tivessem acedido uma única vez, já constituem para mim, um deslumbramento, uma gratidão, e uma empolgação dos diabos !!!...
De repente, sinto-me uma "estrelinha" aos meus próprios olhos, sinto-me qualquer "coisita" no universo da literatura, sinto que terei semeado alguma coisa, por aí ...
E como já fiz um filho, já plantei uma árvore, e já tenho doze volumes, da reprodução em suporte de papel deste meu blogue, cumpri os desígnios do Homem, ao passar pelo planeta ...
E como trinta mil  "qualquer coisa ", é um valor que mentalmente custo a conceber, até parece que fiz o jackpot do euro-milhões !!!...

Só que  tenho um profundo "contragosto" :  Eu, que sou uma mulher de diálogo, de dialéctica, de partilha de emoções, pareço falar sozinha, como se pregasse no deserto ... porque são pouquíssimos os comentários que recebo às minhas opiniões, e até parece que não falo para ninguém ...

Dará assim tanto trabalho às pessoas que acedem, exporem-se, convergirem, divergirem, opinarem, positiva ou negativamente, face ao que exponho ??!!
Como sabem, podem fazê-lo sob pseudónimo, ou mesmo, anonimamente.
Com isso, eu sentir-me-ia mais estimulada, incentivada, desafiada mesmo, a escrever mais, talvez melhor, a superar-me ... em suma, até mesmo a ver o mundo com outros olhos !!!

Mas ainda assim, comentando ou não, não posso deixar de agradecer a todos quantos vêm espreitar, quantos passam por aqui, voltem ou não !!!

O meu  "MUITO OBRIGADA" !!!


Anamar