segunda-feira, 28 de abril de 2014

" PRAGMATISMO "



Cheguei a uma fase da vida em que já não faço concessões.
Sei o que quero.  E, ou tenho, ou não tenho.  Não faço mais, vida de brincar !

Durante mais de três décadas, nos recuados anos 70,  80  até  2000, assisti de cadeira, ao desfilar da vida  à minha frente, imbuída de um amorfismo que me chegava à alma.
Vivia numa espécie de determinismo, de acomodação, de inevitabilidade.  Não corria riscos, não ousava, não tentava nada, além do figurino compaginado para o que considerava ser, o meu destino.
Foram as décadas que conduziram as minhas filhas até à idade adulta, e enfim, a alguma emancipação.
Digo "alguma", porque acho que os filhos nunca se emancipam de vez, nunca cortam as pontes de ligação entre o cais e a embarcação, que lhes sugerem segurança, que lhes sugerem estarem espaldados  ou aconchegados, pelo menos afectivamente.  Às vezes, não só !

Depois, dei uma volta ao mundo, ao meu mundo, e reverti totalmente o que tinha.
O modelo antigo foi deixado sem sobressalto, dúvidas ou arrependimentos, e a minha vida passou a ter um sub-título : liberdade e independência.
Aprendi a dar poucas satisfações à minha volta, naquela espécie de urgência que sempre tinha de o fazer, a todos quantos me rodeavam, por hábito, submissão ou princípio.  Ou simplesmente porque fui educada assim !
Em termos práticos, passei a entrar, a sair, a ir, e a vir, sem justificativas, e apenas ao sabor da minha vontade ... passei  a  abrir a  porta e a  fechá-la,  às horas que me apetecia ... passei a saborear o que me deu na gana ...
Passei a fazer escolhas, aceitando aprioristicamente, as inerentes consequências.  Passei a jogar, jogos limpos e jogos viciados, e aprendi a identificar as cartas marcadas.
Pratiquei  as  "artes marciais" fundamentais para a luta diária, e também golpes de auto-defesa, mais ou menos elaborados.
Talvez  tenha  perdido  a  graça  da  ingenuidade de antes. Talvez  tenha  radicalizado e endurecido ... quem sabe ?!...
Enfim, comecei a aprender a gerir uma sociedade uni-pessoal,  com todos os riscos, sucessos e fracassos, onde verdadeiramente só os meus gatos me controlavam.

Passei períodos variáveis de felicidade.
Períodos em que a casa me abafava, em que a casa era uma masmorra onde parecia cumprir pena, e outros em que a casa passou a ser o ninho, o refúgio por que ansiava, o lugar onde me acolhia quando a borrasca zurzia cá fora, ou o buraco-trincheira onde me escondia do sol, quando  esse  então me incomodava !
Períodos mais negativos e sofridos, às vezes ... períodos de terapia equilibrante, outras.
Cíclicos ... sem dúvida cíclicos, flutuando entre os zero e os cem por cento de satisfação pessoal, extremada que sou !

Rainha e senhora na gestão do espaço e do tempo, alicercei-me em rotinas, confundi-me em hábitos, em ritmos de que não abdico muito. Sou pouco versátil !
São cómodos, exigem pouco esforço de adaptação, não necessitam vencer a guerra diária da inércia. E eu sou preguiçosa, reconheço.
Aparentemente voltei ao cinzentismo e à falta de exigência de vida. Apenas, agora sou eu que dito autonomamente  as regras do jogo !

E os anos foram passando.  Outra década transcorreu na minha ampulheta.

Hoje habituei-me a estar sozinha, andar sozinha, viajar sozinha.  Obviamente, rir sozinha às vezes, chorar sozinha, muitas outras.
E penso que tudo poderia estar perfeito, não sentisse contudo que perco, o muito de bom com que a vida, nesta minha faixa etária, deveria compensar-me : a alegria da partilha, do diálogo, da dialéctica, do aconchego, do ombro  ...
Até mesmo, da tranquilidade que nos proporciona alguém por perto, alguém portador de uma palavra, alguém que propicie um carinho, sem falha, incondicionalmente, como devem ser os afectos nesta rampa em que começamos já a claudicar...
Rampa em que, maduramente, as ilusões dão lugar à estabilidade, em que a tranquilidade ocupa o lugar da turbulência  das grandes emoções, e da adrenalina da vida a mil à hora ...
Fase da vida em que ao contrário de uma abertura ao exterior, levada a cabo nos períodos da adolescência e da juventude, se inicia um retorno ao nosso âmago, à nossa verdade, à nossa autenticidade !
À valorização, do que de facto  importa !
Em que privilegiamos valores reais, e em que a disponibilidade da alma e do coração, nos embala e adormece, na vida vivida em tons pastel, suaves e doces, como deverá ser o  empedrado da nossa última calçada !!!...

De facto, a  minha sociedade uni-pessoal parece ser de menos !!! ...

Anamar

sábado, 26 de abril de 2014

" FOI BONITA A FESTA, PA ... "



Quarenta anos passaram sobre a Revolução de Abril.
Hoje, este dia 25, corre o risco de se transformar numa efeméride paisagística em termos políticos e sociais, num dia de "pic-nic" democrático, de romantismo e afago nos corações mais revivalistas ...

Todos sabemos, os que viveram as emoções de então, todo o envolvimento e mobilização do país, em torno do acontecido.
A sociedade portuguesa estava transformada num barril de pólvora, onde as condições de vida haviam atingido limites inaceitáveis.
A guerra colonial ferira de morte as estruturas sociais, e fragilizava irreversivelmente, os pilares políticos que a sustentavam.  As arbitrariedades, as injustiças, os crimes cometidos contra os cidadãos que ousavam denunciar o sistema, multiplicavam-se. A "emigração política", exílio auto-infligido por todos quantos eram perseguidos pela repressão do regime, assumia dimensões destruidoras.
O país vivia silencioso, acabrunhado, destroçado ...
E desistente ... era um país cansado !
Éramos  a orla pobre de uma Europa com estatísticas incomparáveis.  Continuávamos aqui, no nosso canto, com o futebol, o fado e Fátima, desempenhando cada um o seu desígnio, na esfera da nossa gente.
Os intelectuais, em surdina, nos bastidores, davam sinais de não dormirem.  A agitação motivada pela insatisfação latente, deflagrava aqui e ali, nos meios estudantis e artísticos, mercê sobretudo, da juventude e da irreverência.
De quando em quando, uma "fumarola" consëguia  fugir às redes do controle repressivo do Estado, e da sua Polícia de Investigação e Defesa, fosse na literatura, na música, nas artes de uma forma geral, na clandestinidade de uma ou outra reunião cultural, de uma ou outra clandestina movimentação política e social.
À censura, sempre atenta, pouco escapava, e muitos eram os "malabarismos" criativos,  engendrados  para se  fugir ao "lápis azul".
Os presos políticos, e os deportados para  fortes e campos de concentração, engrossavam  o número dos que caíam nas malhas do aparelho.  As perseguições eram comuns. A delação também.
Viviam-se tempos de desconfiança permanente, de silêncio ... de túmulo !

E a semente de Abril germinou e deitou raízes.
As raízes crescem na escuridão.  As primeiras folhas verdes, vêm à luz do sol, quando a planta começa a autonomizar-se.
Assim foi também Abril !!!

Ainda que grassando em terreno politicamente pobre, apático, por força das circunstâncias, desinformado, cultural e intencionalmente abandonado, pouco consciencializado, onde o analfabetismo e a baixa instrução eram aproveitados em prol dos interesses do autoritarismo dominante ...
Ainda que marginalizados socialmente, com uma "décalage" assustadora e injusta, entre as classes altas privilegiadas e o grande mar humano, desfavorecido e ignorado, preterido e perseguido ... os cravos vermelhos vieram à luz, nesse dia 25, quando as Forças Armadas, esgotadas, exauridas e delapidadas por uma intervenção militar exasperante, sem fim à vista, nas Colónias, levaram a cabo um golpe mais que perfeito ( depois de uma intentona frustrada, dias antes, com origem nas Caldas da Rainha ), e conseguiram, com mãos limpas, em contornos quase novelescos, derrubar todas as estruturas do regime ...
Conseguiram trazer a alegria às ruas, onde a mobilização popular engrossou as fileiras, numa miscigenação extraordinária  com os militares, e onde se operou o milagre da liberdade renascida, ansiada ao longo de cinquenta  anos de obscurantismo, miséria, repressão, sofrimento e perda de identidade de um país !!!

Foi uma revolução muito particular...
Foi uma revolução romântica, levada a cabo também por um povo habituado a sofrer, um povo de ideais e fibra, mas também de brandos costumes, de abnegação, de espírito de sacrifício e tenacidade ...
Foi uma revolução adocicada pela esperança, pela convicção, e pela certeza tida de que o pesadelo terminara !...

Desde sempre, Abril foi acarinhado no coração dos portugueses.  Quem o viveu e percorreu os seus caminhos, não o esquecerá !
Não se descreve ... não há como !...
Descrever o antes e o depois de Abril, às gerações de hoje, é uma tarefa inglória !
Historicamente não será difícil. Documentalmente, tudo já foi exaustivamente abordado, dissecado, escalpelizado, contado.
São factos objectivos e incontestáveis.
É contudo risível e descontextual, acreditar-se que se podem, pela narrativa, abrir janelas que presumissem dar-lhes um vislumbre dessas realidades, com fidelidade, ou sequer aproximação.
Efectivamente,  como "soi dizer-se" ... "contado, não se acredita " !... Apenas a vivência das circunstâncias o permite.  E isso é privilégio de uma geração ... a minha !!!

A caminhada de quarenta anos já, foi trilhada.
Adulteraram-se os ideais e a ingenuidade de Abril.  Subverteram-se as suas expectativas !...
Como um grande acontecimento, de uma envergadura extrema, de uma aposta exaustiva, de uma responsabilidade não passível de erro, a descompressão subsequente, confrontou Portugal, com um Portugal embalado nos braços, sem que soubesse muito bem o que lhe fazer, ou por onde começar ... hercúlea que era a tarefa tida pela frente ...

"Grande nau ... grande tormenta" !!!
E como uma mãe de primeira viagem, em que o nascituro lhe cai repentinamente no colo, Portugal foi avançando, errando mais que acertando, porque também a revolução não se acompanhava de livro de instruções, e a massa humana que lhe subjazia,  impreparada, ingénua, titubeante !!!...

As máculas e as cicatrizes foram-se avolumando, as memórias de Abril foram-se desvanecedo, os véus do sonho foram caindo, decepcionados, o espírito dos cravos rubros foi-se defraudando ... à medida que a geração que os regou também vai indo, no vórtice do tempo !...

Hoje, a herança que nos resta, a nós, a estes que fomos para a rua naquele dia, que fomos para o Carmo, para a António Maria Cardoso, que fomos para Caxias, para Monsanto, que percorremos fraternalmente Lisboa, ao som das canções de Abril, que parecia termos o Mundo nas mãos, em presente tão generoso do destino ...
a estes que acreditámos e esperámos ...
o que nos resta, é só já quase, reviver uma efeméride paisagística em termos políticos e sociais, um dia de "pic-nic" democrático, de romantismo e afago nos corações mais revivalistas ...

...é só já quase, procurarmos com uma saudade infinita, aqueles que nós éramos há 40 anos atrás,  numa busca irreal e inútil ... e deixarmos escorrer uma lágrima teimosa, enquanto que o nó da garganta  não desata nunca  mais !!!...
... E  navegar ... navegar !!!...

Anamar

quinta-feira, 24 de abril de 2014

" OS CAMINHOS DE ABRIL ... "



Eis que Abril chegara,
e de repente
uma luz se acendeu na escuridão
O povo acordou, e foi em frente
dizer basta à miséria e à servidão !
Abril abriu em nós fogachos raros,
que nem sequer sabíamos existir,
abriu sonhos, abriu esperança, abriu sorrisos,
e uma indomável força a explodir ...
Abril deu aos rostos  a alegria
em que o nosso sonho confiou,
a alvorada acordou um novo dia,
que em indízível  fé nos inundou !...
Abril  trouxe às gentes, a criança
que na alma embalava um sonho puro ...
Uma criança com um cravo na espingarda,
um menino envolvido numa farda,
homem-gigante, um herói de outro futuro !...




E hoje, quarenta anos estão volvidos ...
O caminho de Abril  foi perdido
às mãos de quem o não viveu então ...
Portugal de joelhos e sofrido,
humilhado, em desespero e vendido,
chora o cravo que murchou no coração !...
Abril adormeceu, ou o mataram ...
profanaram, destruiram, e calaram
seus ideais, os seus valores ... sua razão ...
O povo volta à rua indignado,
e mesmo já sem fé e destroçado,
é um povo que resiste e que diz  "não" !!!...
Prenderam-nos o sonho, e algemam a vontade
Amordaçam-nos a esperança e também a liberdade ...
Tentam de tudo p'ra lhe dar um fim ...
Num estertor cansado de agonia,
vamos reaver a utopia,
e sonhar Abril, ainda assim ...
Porque Abril foi um brinde do destino
que a sorte generosa, ao meu, ditou ...
Poder tê-lo vivido, um privilégio ...
da minha geração, um sortilégio ...
É sem dúvida outra gente,
aquela que por Abril passou !!!...


                                  25  DE  ABRIL  SEMPRE !!!


Anamar

domingo, 20 de abril de 2014

" NO RESCALDO DA PÁSCOA " - lá, no meu Alentejo ...




E a Páscoa terminou !
Terminou, como tudo termina.  Os pratos, os copos e os talheres regressaram aos armários, o resto dos doces prometem engordar-nos ainda por mais alguns dias, a toalha da mesa, mergulhou na máquina.

As saudações, os votos, os desejos, em magnânimos gestos de simpatia, ditos e repetidos a cada esquina, pelas pessoas conhecidas, recolheram por mais um ano.
Irá ouvi-los de novo, quem viver.
A pequenada torce o nariz, perante já só a um restante único dia de férias.  Quem viajou para a província, para famílias distantes, ou simplesmente quem se permitiu um luxozinho de um fim de semana no Algarve, esperando um sol que nunca veio, tem agora pela frente, o frete da viagem.
Os carros cheios ( de gente, de batatas ensacadas, frutas do pomar, mais as chouriças, as alheiras, o queijo ou o presunto, que aconchegarão as mesas nos tempos próximos ), fazem-se à estrada ... que amanhã, é dia de "pica bois" !!!

Entretanto, o Benfica sagrou-se campeão, creio.
Adivinhei-o, pelas buzinadelas de carros em desvario, num gasto de gasolina tresloucado, e p'los gritos de quem, pendurado das respectivas janelas, acena com cachecóis  e bandeiras, ou sopra a plenos pulmões, nas  cornetas ensurdecedoras, numa manifestação colectiva, de insanidade também colectiva !
Salva-se o país, resolvem-se os problemas ... o Éden espera-nos !!!...

A família que chegou, almoçou e já foi. Cumpriu-se a tradição, reviveram-se as memórias, exerceu-se um ritual de praxe ....
O dia ... bom, o dia esteve mais de sexta-feira da paixão, do que de Domingo da Ressurreição.
O cinzento plúmbeo de nuvens carregadas, as gotas de chuva, aqui e ali, transformaram este Domingo de Páscoa, num dia algo taciturno, nostálgico, sombrio mesmo !  O sol esquivou-se o tempo todo, e a Primavera regateou dar o ar da sua graça.

No meu Alentejo, quando eu era menina, a segunda-feira de Páscoa, o dia de amanhã  portanto, era um dia particularmente alegre ... era  um dia de reunião familiar outra vez, de encontro e partilha.
Fazia-se o  picnic  anual  na ribeira, junto à albufeira,  para onde  toda a família convergia,  nos  carros de varais ou de canudo,  puxados pelas mulas ou pelos cavalos,  com as mantas para se cobrir o chão, as toalhas de quadrados para se pôr a "mesa",  os mantimentos acondicionados nas alcofas e nas cestas de verga, o garrafão da boa pinga, as frutas e as iguarias sobrantes da Páscoa.

Sempre era mais do que um carro a fazer-se ao asfalto, porque a família ainda era grande então.
Por isso, a viagem era uma festa !  Desafiavam-se no cortejo, acenavam-se em cumplicidade, desgarravam nas modas que cada um puxava, cantavam-se as "saias" sem memória ...e cada qual  ostentava o sorriso mais feliz que lhe inundava a alma !
Os velhotes de chapéus de aba larga, iam debaixo de guarda-chuvas, grandes e pretos,  porque o sol que nunca nos faltava nesse dia, já esquentava um pouco além da conta.
As mulheres levavam nas cabeças, lenços garridos de flores, e  a  miudagem, ansiosa por chegar, impaciente por iniciar as brincadeiras, e esfomeada porque o ar do campo sempre abria o apetite, não via a hora das águas da albufeira se anunciarem numa clareira de curva da estrada ...

Chegados ao local, iniciava-se a labuta da logística, ou seja, a escolha da melhor sombra, sob os chaparros mais generosos, em meio das maias cheirosas, que já exibiam o dourado da floração.
Dividia-se com amigos, vizinhos e conterrâneos, um terreno planozinho, em leve declínio até às águas da albufeira ...  Dariam jeito, para refrescar os pirolitos, para manter o almeice fresco, para os que gostavam, para lavar as mãos ... ou mesmo para a pequenada chapinhar, enquanto os adultos dormissem a sesta, depois do repasto.

As favas, ricas de coentros e alho, a salada de alface em juliana, o borrego assado com batatinhas coradas ... claro que os inevitáveis pastelinhos de bacalhau  da tia Zézé, as azeitonas retalhadas, os queijos curados, de Évora, o arroz doce bordado a canela,  pelos dedos finos da avó, as queijadas, as merendeiras e os bolos de folha, vindos da mesa do Domingo ... e um bom tinto insuspeito da Adega Cooperativa, mais os pirolitos mergulhados na fresca da água ... tudo, tudo isso, era mais do que um manjar inolvidável dos deuses !!!...

Os avós dormitavam nas mantas, as muares pastavam por ali, os adultos conversavam, riam, cantavam ... e a criançada perdia-se no esconde-esconde atrás  das moitas de murtas, giestas e alecrins,  ia aos grilos, ou apanhava raminhos das papoilas, das maias, dos malmequeres, da urze,  da esteva, do rosmaninho, e de toda a panóplia de flores silvestres, que os campos primaveris  já ostentavam há muito !

Tantos  anos  volvidos,  continuo  a  emocionar-me,  desencavando  as  memórias  doces  de  então !
Continuo a sorrir nostálgica e melancolicamente, percebendo a marca do tempo em todos nós, nos que há muito "desertaram" ... nos poucos que ficaram, e que são os fiéis depositários disso mesmo ... as memórias, que fazem uma geração, uma identidade, uma terra, um povo !
De facto, era tudo tão genuíno, tão autêntico, tão simples e despretensioso ... tão coração às escâncaras, como o é aquela planície sem fim, sem muros, sem portas ou janelas ... sem peias, limites, ou horizontes !!!...

E que saudades do meu Alentejo !!!...


Anamar

sexta-feira, 18 de abril de 2014

" MEMÓRIA, TRADIÇÃO OU PRAXE ? "




A Páscoa hoje é pretexto ... ou melhor, a Páscoa hoje desencava  memórias, busca emoções, se calhar hábitos antigos, ou talvez um pouco mais ... lembranças doces !...

Sim, doces como o doce intenso das queijadas, dos pintainhos feitos pela tia velha, das amêndoas francesas, e torradas com canela ou chocolate, compradas pelo pai ( As únicas que havia ... Não existia cá, a chinesice da sofisticação de cinquenta mil tipos diferentes, a desafiar os bolsos ... ).

Realmente as Páscoas doces, bem doces, são as da minha infância, lá no Alentejo distante, como quase sempre, as memórias doces, bem doces, sempre correspondem a memórias infantis, o período áureo e privilegiado das vidas.
Todas as vivências do ser humano, são acompanhadas  de cheiros e de sons, além das imagens que resistem ao implacável do tempo.
E quando penso em Páscoas, as que se me iluminam na mente e no coração, são as ensolaradas, são as dos campos verdes e floridos, são as das planuras sem horizonte, com  aromas adocicados no ar, com som de chocalhos no pastoreio, de badaladas de campanários ao longe,  nas aldeias perdidas, de chilreados, trinados e voos rasantes, charneca afora ... de balidos ensonados entre papoilas e macelas, do roçagar da aragem, pelas oliveiras e sobreiros do montado.
São Páscoas preguiçosas, de férias escolares, de roupa estreada, de brincadeiras no largo, de alecrim nos altares das igrejas ( fardadas a preceito ), e das glicínias e jarros brancos nos andores dos santos, na procissão do dia ...

Vieram depois as Páscoas na Beira ... já contei vezes sem conta.

Eram outras,  essas Páscoas. ...
Para trás, ficava a família do Alentejo.  Eram agora outras, as gentes que se sentavam à mesa, era agora outra, a ementa que a recheava ...
O sol e o verde dos campos, persistia.  Apenas, o ar soprava da montanha.
As andorinhas e os outros pássaros regressados, também por ali andavam.  Cegonhas, não ... essas gostam mais do sul.
Os avós e as tias velhas, já não estavam, o pai também  não !
Todos haviam já partido, e levado com eles, a minha meninice.  Agora era a meninice das minhas filhas.
A Páscoa agora era delas.

A ingenuidade e a simplicidade de tempos idos, dera lugar a outros figurinos.
O ensopado de borrego, ou o cabrito no forno,  davam então lugar à chanfana, preferencialmente.
As queijadas, os bolos de folha, as merendeiras, os pintainhos, o bolo de buraco e as amêndoas em pacotinho de papel transparente, davam lugar aos ovos de chocolate recheados de amêndoas, às lampreias de ovos, aos ninhos da Páscoa ... O folar persistia, contudo !
O coelhinho da Páscoa fazia a sua aparição triunfal, ao tempo !...
Tudo já era menos doce para mim ... porque eu virara adulta, afinal !...

Hoje ... bom, hoje a Páscoa é pretexto ...
Pretexto para desencavar memórias, buscar emoções, hábitos antigos, ou talvez ... lembranças doces !...
Ou será simplesmente praxe a cumprir ?!

Hoje, a Páscoa da grande cidade, não tem procissão, nem altares aperaltados.  Não tem glicínias, nem jarros brancos ... nem sequer alecrim, já florido nos arbustos das matas.
Não tem cegonhas à vista, e restam-nos os pombos residentes, porque as andorinhas também não se afoitam muito por aqui.  Tudo é demasiado poluído para elas.
Não há sinos, nem chocalhos, menos ainda macelas e papoilas.  Também não há montado, nem montanhas ... temos o betão, as torres de gente anónima, e a ausência de jardins.
Resta-nos o sol, a fazer malabarismos de esconde-esconde, ao pôr-se por entre os topos dos edifícios desalinhados ...
E temos super e hiper-mercados, atulhados de ovos de chocolate e amêndoas  em série ... e não mais a mercearia do Sr. Manel, com alguns pacotinhos de papel transparente, na montra.

E resta-nos o almoço de domingo, com meia dúzia de gatos pingados em volta da mesa, num sexto ou sétimo andar de um qualquer edifício, com  os  narizes  a  esbarrarem  nas  janelas  dos  prédios  da  frente ... e  onde  as  ausências  ganham  já  largamente,  às  presenças ...
Estas Páscoas, não mais semeiam memórias.  Estas Páscoas não têm cheiros, sons, música, doçura a perpetuarem-nas ...

Restam-nos rostos de crianças sem emoção, entusiasmo, ou mesmo felicidade ... a cumprir-se calendário ...
Porque  de  facto,  tudo  não  passa  disso  mesmo  ...  mais  um  simples  almoço  de  domingo !!!...

Anamar

segunda-feira, 14 de abril de 2014

" MIL COISAS ..."




Mil coisas para fazer ...

Ao que parece, Manuel Forjaz tinha mil coisas para fazer, por dia.  Fazia listas exaustivas de actividades, programava a vida, a mil à hora ...

Deixei de "ter coisas para fazer" por dia, e acomodei-me a amodorrar-me no meu canto, a esperar o dia cair lá fora, a olhar o sol  a  descer nas nuvens ou no céu limpo, azul ou róseo, até tombar na linha que determina estar na hora de fechar as cortinas ...
Indiferentizei-me quase, com o passar das horas,  num desperdício injusto e  aterrador.
Insensibilizei-me, numa espécie de espera de vida a correr.
E como um doce requentado, fora de prazo, vou azedando aos poucos.  Como uma maçã bichada, esquecida na cesta, vou apodrecendo aos poucos ...  Como o atleta esgotado que atira a toalha ao tapete, desisto todos os dias um bocadinho ...

E não faz sentido, não é lógico, não é justo !...
Caracoleta que estou, vou morrer de preguiça  de  me mexer, me agilizar, me interessar, lutar, ou pelo menos esbracejar ... acordar ... viver !!!

E vivo no escuro, no lusco-fusco, na penumbra ... no crepúsculo interior.
E vivo de pescadinha de rabo na boca, em círculos concêntricos e herméticos, sobre si mesmos, sem porta de saída ...
Acordo, olho a paisagem lá fora, vejo o filme a passar, película igual todos os dias ... e não saio da plateia ... não abandono a sala ... nunca ...

Faltam-me razões.  Razões de acordar, razões de rir, razões de sonhar, razões de querer e de crer, também.
Faltam-me  forças para serrar as grades que me prendem por detrás dos jardins, que me enjaulam em gaiola de cansaços ...
Faltam-me motivos que justifiquem que eu espere ... a Páscoa, o Verão ... o Inverno outra vez ...
Faltam-me justificações para que me sobressalte, me surpreenda, me agite, me encante, me emocione ... Justificações para que chore ...
Chore ... choro de vontade, choro de avalanche que rebente diques, choro de excesso, choro de exagero ...
Porque sempre fui uma mulher de excessos.  A minha alma não vive regada apenas ... só vive inundada.
Não  vive  morna ... só  vive  a  queimar.  Não  vive  de  mais  ou menos ... necessita de tudo.  Tudo, até esgotar !...

Não consigo viver de dias pardos.  Ou quero dias de escuridão absoluta, com borrasca demolidora por sobre a cabeça ... ou dias em que o sol me cegue os olhos.
Em que os azuis, os verdes e os prateados do mar, me ofusquem .
Dias,  em  que as cores das  flores  desabrochadas, ganhem  às  cores do  arco-íris,  porque ainda mais belas e variadas ...
Dias em que as borboletas acenam liberdade,  em volteios azougados
Dias em que os cheiros, não cheirem só ...  Mas me sufoquem de aromas entorpecentes ...
Dias  de  conversar  com  os  pássaros, dias  de  adormecer  no  batuque  dos  tambores  na  savana  de  África, dias  de  me  largar  louca, com  os  cabelos  empurrados  pela  brisa  da  tarde ...

Eu tenho urgência !

Urgência de ter mil coisas a fazer por dia, mil sonhos a sonhar por noite, mil palavras a dizer a mil ouvidos de escutar, de ter mãos para agarrar, braços para prender,  boca para sugar ... de ter futuro para alcançar, de ter vida para viver ...
Urgência de renascer, urgência de trilho para andar, ar para respirar, praias para naufragar, montanhas para escalar ... todas as cores para pintar ... qualquer coisa ... qualquer coisa ... mil coisas ...

Porque eu tenho urgência mesmo !!!...

Anamar

domingo, 13 de abril de 2014

" AQUELA DANADINHA !!!... "



A   minha mãe completou  93 anos.

Ela pede a um e um, costuma dizer.  Ultimamente, acho que já só pede sazonalmente.
Se chegar ao Natal, desejaria chegar à Páscoa.  Chegando à  Páscoa, desejaria chegar ao Verão ... e assim vai vivendo.

A sua principal limitação, prende-se com a mobilidade.  É por aqui que começamos quase sempre a claudicar.  A cabeça, tendo em conta a idade, funciona ... e funciona muito bem !
A minha mãe continua praticamente autónoma, continua na posse das suas vontades e decisões.
Aliás, continua como nos bons velhos tempos, como sempre digo, a fazer só o que  quer.

Tem contudo muitos dias tristes, em que chora.  Espantosamente chora, porque, pasme-se, não consegue fazer as coisas de casa, ao ritmo que gostaria.  Não se mexe com a destreza de outrora, não tem a força de preensão necessária, e deixa cair muitos objectos.  Vê muito mal, ouve pior.
A sua conexão com o Mundo que a rodeia, sai portanto truncada, o que a magoa mortalmente.
Esse, o preço da longevidade !!

Depois, também já viu partir quase todos da família, neste momento reduzida.
Além de nós, a família próxima  ( eu, netas e bisnetos ), só existem já, um irmão e uma sobrinha, contudo também já envelhecidos e doentes.
Falam-se telefonicamente com frequência, não mais.

Amigas, a minha mãe nunca teve.  Teve conhecidas, de circunstância.
Aquelas pessoas do dia a dia, encontros de compras, vizinhos de rua ... só !  A sua vida desenhou-se ao sabor da sua maneira de ser.  Sempre viveu para o núcleo familiar, bem reduzido aliás ( eu e o meu pai, quase sempre ausente por razões profissionais ), e para o espaço familiar ( a casa, que era imperioso sempre estar a brilhar em qualquer momento, naqueles acessos de incontrolável mania de limpeza, provindos  das suas raízes alentejanas ).
Vida própria, não me recordo de a minha mãe cultivar. A sua vida girou, em última análise, em torno do bem estar dos seus ...

Convive mal com o avanço dos anos. Aliás, esse assunto é recorrente no seu discurso.
Eu, que considero ter pouco dos seus genes, foi seguramente a ela que fui buscar também, essa insatisfação permanente, essa inevitável questão, com que brigo diariamente ... a insurreição contra o envelhecimento inevitável e progressivo.

Bom,  mas a minha mãe tem uma disciplina de vida, verdadeiramente invejável.   Uma força de vontade tenaz, e um espírito de sacrifício espantoso.  Aquilo que se propõe fazer, faz, custe o que custar !
Não há quem a faça desistir.
É uma velhota danadinha, mais difícil de controlar que o Quico, de seis anos !...

Contudo, noventa e três anos, é quase um século, e num século a Terra roda cem vezes em torno do sol ...
E na Terra, a vida roda milhares de vezes, em cambalhotas imprevisíveis ...
Particularmente, os avanços, as mudanças, as mutações dos estilos e formas de vida nestes cem anos, corresponderam a reviravoltas impensáveis, de cento e oitenta graus.
A  todos os níveis, os  desenvolvimentos havidos, foram de tal envergadura, que parece terem-se vivido cinco dias, por cada um que passou ...
Por isso, a minha mãe sente-se já com os pés numa terra que não é  bem a sua,  como se largada tivesse sido, num lugar que já não entende muito bem, e cujos valores, normas, costumes e linguagem, desconhece ... ou estranha ...
Uma espécie de extra-terrestre,  no planeta onde nasceu ...
E é penoso, cansativo, defraudante, complexo, desconfortável  e ininteligível, viver assim ...
O preço da longevidade !!...

Ainda assim, a velhinha que ela é hoje, é para mim, um enternecedor milagre de vida, um hino à capacidade de resistência ... representa  uma  heróica  sobrevivente  numa carapaça encarquilhadinha, tentando manter-se à tona, em águas excessivamente profundas ... avançando  titubeantemente, aos trancos e barrancos, numa estrada demasiado sinuosa, escura e pedregosa ... com cautelas, teimosias, e  infinitas dificuldades,  mas sem nunca pensar em desistir !!!...

Anamar

quinta-feira, 10 de abril de 2014

" NÃO SE DISTRAIAM DA VIDA "



Num intervalo de vinte e quatro horas,  morreram duas individualidades  que  não conheci, com quem  nunca falei, mas que pertenciam ao mediatismo,  que os órgãos de comunicação social confere a alguns.
Coincidentemente, ambas pessoas  relativamente jovens ainda, e ambas, figuras cujo desaparecimento me deixou  a pensar ...

Uma delas,  actor da ficção brasileira, entrou pela minha casa adentro, há  largas décadas, nos tempos em que  Gabriela Cravo e Canela,  enfeitiçou muitos  portugueses,  na novidade que era  então, o formato novelesco em televisão, e em que o Brasil, adocicado em linguagem e gestos, nos cativou quase a todos.

Era o tempo em que se  abreviavam os afazeres,  para que na hora da novela, dela pudéssemos usufruir religiosamente, já  descontraídos e relaxados no sofá, e em que a  história e as personagens se nos colavam à vida.
Ríamos, discutíamos o enredo, e sonhávamos também, com as mirabolantes aventuras e desventuras, tramas e romance, com que Sónia Braga, Nívea Maria, António Fagundes, Ary Fontoura, Paulo Gracindo (o temível cacique local, coronel Ramiro), José Wilker, o galã  Dr.Mundinho ... e tantos outros, , nos brindavam, capítulo após capítulo, numa história já tão familiar, que não quereríamos acabar mais ... de tal forma já fazia parte das nossas histórias também ...

Corriam então os anos setenta ...

O Dr. Mundinho, um galã de voz grave e morna, com todo o seu charme, era um bonitão que envolvia a mulherada da época ...
Pois, José Wilker, a ele exactamente me refiro, deixou-nos  repentinamente e sem  que nada o fizesse prever, aos 66 Anos.
De posse de toda a sua  plena forma física e intelectual, com todas as  suas características pessoais e profissionais de actor de excelência, intocadas, partiu, assim do nada ... apenas porque estava vivo! ...
Não teve tempo de conjecturas, determinações, reflexões, suspeitas  sequer, sobre o que num instante, o surpreenderia.
Não teve tempo de arrumar a vida, arquivar sonhos,  preparar-se para  a  viagem ...


Manuel Forjaz, cinquenta anos, uma personalidade que se tornou conhecida do grande público, pela sua coragem, o seu posicionamento, a sua alegria nunca derrotada, a sua luta estóica e denodada, contra o cancro que o vinha  afectando desde  há cinco anos . .. partiu também.
Segundo ele, morreria de um cancro que nunca o mataria !!! ...

Foi  incapaz de se submeter ao seu  determinismo, e  provocadoramente, nunca abdicou de viver um só dia como quis, com toda a plenitude possível, com toda a aposta de fazer valer a pena ...
Jamais permitiu que a sua vida ficasse ensombrada pelo fantasma da doença, jamais permitiu que esta lhe impusesse timings e limitações, e preocupou-se em aproveitar toda esta energia e positividade que reservava, face à "sentença" ditada, para exercer uma espécie de apostolado junto de todos os doentes cancerosos, como ele.

" Don't  believing", foi o tema musical que escolheu para acompanhar o seu próprio funeral ... " Não se distraiam da vida", o título do livro que publicou,  poucos dias antes do seu passamento.
Um livro de auto-ajuda, com uma abordagem pedagógica e didáctica, destinado a quem necessite de uma verdadeira lição de vida, destinado a todos aqueles, para quem a vida deixa de fazer sentido, perdidas a coragem, a fé e a esperança, face a um diagnóstico terminal.

Com uma abordagem pragmática, realista e sobretudo interventiva, pugnou sempre por agir junto daqueles que se negam a continuar, ao longo dos dias que ainda lhes estão destinados.


Entretanto ... as flores rosa e lilás, na segunda fornada da floração primaveril, começaram a despontar na mata. A  beleza  das glicínias,  nos seus  cachos diáfanos de gotas de chuva, já  espalham  o  seu  aroma  por aí ...
Até  porque  o sol  brilha de novo ...

Afinal, de facto a Vida continua sempre ...  E tantas vezes eu me distraio dela! ...


Anamar

quarta-feira, 9 de abril de 2014

" UM DIA ISTO TINHA QUE ACONTECER "

Hoje fala por mim, um homem que admiro, na formação pessoal e literária .

Mia Couto é quase sempre claro, objectivo, assertivo, realista ... e espeta-nos bem o dedo, no meio das feridas, daquelas que transportamos de trás, daquelas com que não estamos a saber conviver, daquelas cuja existência é uma pústula fétida e mal cheirosa, na inabilidade com que conduzimos a gestão do futuro, da geração que temos aí, e sobre a qual, Mia Couto diz TUDO !!!

Realmente, "um dia isto tinha que acontecer " ... e acontece-nos todos os dias, pais que somos duma camada de jovens ainda, muito frequentemente sem norte, muito frequentemente sem couraças, ambições, exigências, com valores mal colocados ... frívolos e vazios !
E arrogantes ! Maioritariamente arrogantes, também !

Li este texto, e como digo, Mia Couto fala por mim.
Pareço ler em voz alta a minha mente, e não haveria sequer uma vírgula, que carecesse ser acrescentada.

Assim sendo, reporto como muito importante, a  sua  divulgação, aqui, neste meu espaço.

De tudo isto, e esgaravatando no mais recôndito de mim mesma, apenas consigo encontrar um só argumento atenuante, da azia e do mau estar que estas reflexões me provocaram :  por um lado, todos sabemos  que os filhos não traziam  "livro de instruções" consigo ... por outro, aos pais, também nenhuma universidade de vida, deu regras claras e correctas de "know-how",  nas formas educativas adequadas !

Assim, cada um tacteou por conta e risco, o melhor que pôde ... cada um "desengomou-se" como soube, errando, julgando muitas vezes acertar ... cada um imbuíu-se do seu melhor saber, tacto e bom senso ... e navegou nessas águas !

A boa intenção é que conta, "quem dá o que tem, a mais não seria obrigado" .... Mas foi curto, foi manifestamente insuficiente ... subverteram-se os métodos correctos, em nome de muitos sentimentos, medos e valores nossos, erráticos !!!
E obviamente, um dia, isto tinha que acontecer !!!...

Estas, as nossas únicas justificações possíveis, porque a penitência, bem amarga e doída ... essa, estamos sem piedade a cumpri-la todos os dias, em todos os dias das nossas vidas !!!!...


Um Dia Isto Tinha Que Acontecer.


(por Mia Couto)

Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida. 
Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. 
A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.
Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.
Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.
Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.
Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam.
Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.
Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.
Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.
Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós).
Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.
E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estamos à rasca.
Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.
Haverá mais triste prova do nosso falhanço?


Anamar

terça-feira, 1 de abril de 2014

" FUGAS "



À medida que os anos passam, à medida que já andei mais do que tenho para andar, mais me afasto do ser humano e mais me aproximo da Natureza, e de tudo o que ela nos disponibiliza.

Neste momento da minha vida, há duas coisas que não só aprecio, como valorizo primordialmente, e me são imprescindíveis : por um lado, desde logo, poder usufruir de uma conversa amena, sem pressas, em paz, bem tranquila, com alguém que me interesse vivamente ... por outro, poder mergulhar na quietude que a Natureza pródiga e generosa nos oferece ainda, em pequenos retalhos deste nosso conturbado mundo !

De facto, poder estar junto de alguém com quem sinta afinidade, conversando de tudo e de nada, como uma personagem nua em cena, sem limitações, sem preocupações de retoques ou artificialismos,  quer na presença,  quer na palavra, quer no gesto ...

Poder mergulhar numa partilha de opiniões, de pensamentos, preocupações, ansiedades ... ou alegrias, ou novidades, ou dúvidas, ou projectos ... ou mesmo sonhos ... ( aquelas pequenas / grandes coisas que nos afloram à cabeça, com ou sem relevância, mas que são a nossa vida em cada momento ) ...

Poder sentir gente com coração, calor e cumplicidade ... aquela coisa invisível que passa e nos aquece a alma, nos sustenta o espírito ... numa identidade perfeita, na identidade que se reconhece, quando do outro lado, ao nosso lado, está alguém que amamos, seja o filho, o amigo, o amor ... alguém a quem dizemos tudo, sem receios das nossas fragilidades, porque não nos julga, apenas nos ouve ... e nos aluga o coração gratuitamente ...
em suma ... alguém que fala a nossa língua ...

Poder tudo isto, é sem dúvida, verdadeiro luxo da existência, privilégio da vida, que nos faz sentir ricos e sortudos ...

Por outro lado, confundir-me com a Natureza, miscigenar-me com a assombrosa generosidade com que nos surpreende diariamente, mês após mês, estação após estação, olhá-la simplesmente, ou mergulhar apenas no seu silêncio, é retemperador de forças, é equilibrante para a alma, e é uma alegria sem limites para o nosso ser !...

De facto, cada vez mais me afasto das aglomerações de gente, dos eventos sociais normalmente desinteressantes, entediantes, frívolos e vazios.
Lugares de arrebique e ostentação de "plumagem", de arroubos narcísicos e carícias para os egos enfunados, infelizmente.
Não passam quase nunca, de feiras de vaidades, despojadas de conteúdo de valer a pena.
São quase sempre, verdadeiras perdas de tempo !...

E refugio-me então, em espaços tanto mais interessantes, quanto menos foram sujeitos à intervenção humana. 
Os  locais mais selvagens, mais inóspitos, menos "trabalhados", são sem dúvida os mais gratificantes, preenchedores e enriquecedores.
O homem sempre estraga, sempre adultera alegando alindar, ordenar, disciplinar.
Como se a Natureza carecesse de disciplina, e não tivesse a sua, a própria, a harmonia ditada pelo Artesão que a arquitectou, jamais inigualável ou substituível !...

Por isso, sempre que posso, fujo da babilónia em que o Homem vive,  fujo do labirinto de betão, onde quase sempre o sol tem que pedir licença para entrar, onde o verde é regateado ou plastificado, onde o azul do céu se espreita "à surrelfa" por entre muros, onde os sons têm a agressividade do matraquear humano e do motor das máquinas, onde o ar tem o peso dos escapes poluidores, onde não há pássaros, não há insectos, não há o embalo manso da brisa no arvoredo, não há o aroma adocicado das flores espontâneas e coloridas ... muito menos o cheiro a terra molhada ...

... e procuro um pouco de tudo isto, e submerjo no cerrado da serra, atravesso os córregos da planície, subo ao alto das escarpas, e converso com a claridade esbanjadora do astro-rei, e sorrio com os farrapos brancos da espuma nos rochedos verdes, e sugo e deixo que a aragem se me entranhe até ao mais recôndito de mim mesma, e tactuo-me com as estrelas do firmamento escuro,  onde a lua altiva, impera ...

... para não definhar, entristecer ... morrer ...
Para ter a certeza que, apesar dos pesares, ainda estou viva !!!...

Anamar