quarta-feira, 21 de maio de 2014

" SERÁ QUE TAMBÉM VOU TER UMA JANELA ?..."



Passo àquela estrada todos os dias.  E todos os dias ela está lá !

De um lado um muro corrido, do outro,  p'raí uma dúzia de casas baixinhas, muito simpes, duas janelas e uma porta, lembrando as casas das nossas aldeias, no Portugal perdido ...
São reminiscências da parte velha da minha cidade, ainda orgulhosamente sobreviventes.
Entre o muro e as casas, uma via com trânsito nos dois sentidos, muito trânsito, nas horas de escoamento da cidade grande.

Passei um dia e a  D. Inácia já lá estava.  Passei dois dias, uma semana, um mês ... um ano ... já anos !

Passava, e os nossos olhares cruzavam-se apenas.
A D. Inácia, com pantufas, xailinho nas pernas, colar de pérolas ao pescoço, estava invariavelmente num dos dois sítios possíveis : ou sentada na rua, numa cadeira junto à porta, nos dias de tempo bom, a espreitar a nesga do sol, ou por detrás de uma das duas janelas ... quando o tempo desabrido, tornava incómoda ou impossível a sua permanência no exterior.
Em qualquer dos casos, a vista de que desfrutava era a dos carros a acelerarem na estrada próxima, a figura fugidia dos passantes silenciosos, o gato livre da vizinha, que vinha espreguiçar-se ao sol ... e o muro cego, do outro lado, impeditivo de o olhar se tornar  invasivo além dele.

A D.Inácia é uma senhora talvez de oitenta anos ... por aí.
Vivia com uma filha que partiu, com doença que sem comiseração,  a não poupou.  Restou-lhe a filha dessa filha, com quem vive na casa baixinha de duas janelas e uma porta.
Esta, não trabalha. Aliás, passa o dia  em pijama e bata de limpeza por cima.  Deve dormir até tarde, vem p'ra rua por pentear, com um ar sujo e totalmente negligenciado.
Vivem de pensões precárias, só as duas, e os cuidados prestados à D. Inácia, são os mínimos.
Esta não comunica. Vive no silêncio. Amorfa, distante, indiferente, anestesiada das dores da alma !...
Diariamente é posta e retirada dos lugares onde a sentam.

O tempo foi indo.
E o tempo atribuíu "estatuto", a esta comunicação surda e muda entre mim e a senhora idosa.
Achei que já era altura de a saudar, ao passar.  Comecei por lhe dar as boas tardes, mas a D. Inácia não reagiu.  Creio que não ouve.
Passei então a acenar-lhe com a mão.  Com o rosto impassível, olha-me, mexe levemente os dedos da mão, parecendo  impossível  poder retirá-la do cólo.

Quando por detrás das vidraças, com o horizonte ainda mais limitado, deixa deslizar o olhar, para longe, sem rumo ou destino,  não interaje com o movimento exterior,  não deixa transparecer emoções ... é um vegetal que ganhou raízes naquele chão ...

Que histórias de vida teria para contar ?
Que memórias guardará de outros tempos, de outras gentes?
O que ocupará o seu coração e a sua mente ?  Será que ainda lembra do riso e da alegria ?
Ou, misericordiosamente, uma cortina de esquecimento, de solidão e desesperança, desceu  e insensibilizou por completo, o espírito da D. Inácia, tão opacizado já, quanto os seus olhos ?!...

Não sei !  Penso que nunca irei saber !...

Hoje, ao atravessar a mata, onde as flores silvestres da Primavera adornam  gratuitamente o manto verde do chão, lembrei o rosto esfíngico da anciã, postado por detrás dos vidros, já que o dia estava frio com chuvas esparsas.
Senti o privilégio da vida ... Da vida e da saúde ... Da saúde e das emoções ...
Aspirei até ao âmago o ar frio e perfumado do campo, o cheiro intenso da terra molhada de fresco, e persegui com o olhar o voo livre dos pássaros, trinando de ramo em ramo ...
Apanhei uma haste de "Bordões de S. José", generosamente florida, e ao passar junto da janela baixinha, deixei-a no parapeito.
A D.Inácia, com o seu xailinho de lã e o colar de pérolas ao peito, como habitualmente manteve-se inerte.
Sem um movimento, sem um esgar, sem um sorriso, sem um aceno ... deixou  apenas  que uma lágrima manhosa se desprendesse  dos olhos distantes e vazios, sem contenção, estou certa, e tivesse escorrido  pelo rosto esquálido e macerado ...

Um nó estrangulou-me a garganta.
Uma mágoa apertou-me por dentro, e queimou-me as entranhas ...

Será que um dia também me vai  restar uma  janela ???...


Anamar

Sem comentários: