sexta-feira, 6 de junho de 2014

" APONTAMENTOS "



A abóbada das avenidas e pracinhas começou a ficar lilás.
Os jacarandás voltaram a florir, polvilhando com lágrimas roxas, o chão das ruas que pisamos.
É quase Verão, é quase Sto. António ... Lisboa enfeita-se !

Mais um ano passou, é o que isso significa !

Maravilhei-me ao vê-los a azular em explosão de cor, tal como há muitos anos me extasiava, quando numa noite qualquer de Primavera, ao regressar das aulas, o vento de feição me surpreendia com o cheiro do pitosporo da minha praceta.
Aí, eu percebia que o calendário tinha dobrado outra folha, que o hibernante Inverno passara, e que a renovação estava aí, outra vez !...

Mas isso já foi, faz tempo.
Agora já não há pitosporo na praceta, já não há aulas, nem regresso delas, pela meia noite, com frio, chuva, ou bom tempo ... assim, nas tais noites de me cheirar a flor de laranjeira, e de eu sorrir ... a sentir-me agradecida !

Estes sinais da Natureza, estes presentes gratuitos e nunca regateados, esta generosidade suprema, esta harmonia perfeita que só a Vida nos providencia,  é algo inatingível,  e é algo incomparável  à  maior obra de arte produzida pelo Homem, por maior que ela seja ...
Atingi uma fase da minha passagem por aqui, em que me sinto mais e mais marginal da sociedade em que me insiro e dos seus valores, mais e mais desligada dos contextos que ocupo, a nível pessoal, material e social, mais e mais indiferente aos seus conteúdos ...
Por outro lado, sinto-me privilegiada pelo facto de, sem nada pedir ou dar em troca, poder usufruir da maravilha perfeita e equilibrante que desfila frente aos meus olhos, e de que usufruo, só pelo facto de os ter, de ter olfacto, ouvidos e coração.  Em suma, pelo facto de estar viva, simplesmente !...

Não é à toa, que cada vez mais sinto em mim um apelo pelos espaços amplos, pelos horizontes sem limite, pelo silêncio audível das grandes planícies, ou pelo chilreio cúmplice dos pássaros no emaranhado dos bosques ...
Não é à toa que me emociono ao ver as areias brancas, e  todas as cores da esmeralda  à turquesa, dos verdes aos azuis intensos, das águas para lá do nosso continente ...
As cores variegadas dos pássaros, das borboletas, dos insectos em zumbidos ensurdecedores ... dos que conhecemos, e de todos os que vamos conhecer ...
Não é à toa que deixo o sol atravessar-me a pele e envolver-me o coração, com o calor entorpecente ... num convite à modorra e ao voar do sonho ...
Ou que me inebrio com o adocicado de todas as flores, naquele cheiro que não se descreve, apenas se sente, se reconhece,  e nos preenche, como uma poção mágica que nos transportasse a outra dimensão !...
Não é à toa que me deixo solta no vento, deitada no sal das marés ... embalada pelo vai-vem das águas que apenas adormecem , languidamente na areia, com toda a voluptuosidade de bailado dos deuses ...

Não é à toa que, nesta passagem  ( sim, porque eu vim de algum lado, não pertenço bem aqui ... e estou a ir ... seguramente ), mais e mais vou, busco, procuro, fujo ... fujo da insatisfação da minha realidade maçante, decepcionante, cansativa e tão sem graça ... e sucumbo ao sonho ou embrenho-me em realidades outras, que não estas ... e sempre caminho nas asas da imaginação  e do devaneio !!!...

Não é à toa que vou ter saudades, muitas saudades, do azul-violeta das campânulas em cachos pendentes, dos nossos jacarandás ... um dia, quando partir, e não estiver mais cá ... tenho a certeza !!!...

Anamar

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