quinta-feira, 31 de julho de 2014

" TANTO TEMPO JÁ !... "




Pensava eu com os meus botões, olhando o insípido cinzento do dia, num Verão nem carne nem peixe :  faz hoje vinte e dois anos que a vida me deu uma rasteira daquelas !
Faz hoje vinte e dois anos que o meu pai me deixou ... E com ele, partiu aquela ingenuidade e bonomia com que acreditamos as coisas certas da vida .
Como se a vida tivesse "coisas certas" !...

Foi o primeiro grande revés, assim uma espécie de experiência em proveta, para ensaios futuros.
A gente balança, a gente degusta o sabor azedo do abandono, a gente experiencia mesmo a doer, uma orfandade estranha, como o menino sozinho que no deserto  olha as areias monotonamente iguais, a perder de vista, sem caminhos ou nortes ... e não sabe para onde há-de ir ...
E zanzamos por ali, sem atinar muito bem se apanhamos os cacos, se reconstruímos o puzzle, se somos capazes de seguir adiante, apesar daquela injustiça contra-natura  e mortal.

Depois, recomeçamos.
E recomeçamos com novos códigos, novas formas de sobrevivência, novos acreditares, novos empenhos ...
Porque o ser humano tem inata em si, a capacidade regeneradora.

Recomeçamos ano após ano, mês após mês, dia após dia, por cada nascer e cada por de sol.
Por cada alegria ou cada tristeza, por cada insucesso ou cada vitória, por cada riso ou por cada lágrima !
Esgravatamos cada pedra coberta de musgo, e com dedos sangrando, progredimos na encosta ... quando quase já não acreditamos !

Renascemos com cada filho que se aninha no nosso colo, com cada neto que nos conta a sua história, com mãe velha, sequiosa de mimos ...
Reerguemo-nos com cada amor que pinta de arco-íris o nosso céu ... ainda que o arco-íris seja passageiro, e sirva só de trampolim às estrelas ... e nós o saibamos ...
Amarinhamos até ao pico da montanha, sempre que precisamos ver o céu azul, quando as forças ficam falhas ... uma e outra vez ... E não sossobramos ...
Olhamos as flores, e deixamos que os colibris bebam as nossas lágrimas teimosas, que às vezes ficam cegas frente ao universo, complacente e generoso ... E ajoelhamos, que é o primeiro degrau  para  a humildade do percurso ...

E recomeçamos, com as bengalas dos que nos amam, depondo armas de mágoa, deixando raivas e ódios pelos atalhos e veredas.
Aprendemos a perdoar, porque queremos e somos capazes ... E um coração sem dores impressas, pesa-nos menos na jornada !
Perdoamos, mas não esquecemos ...
As páginas do livro foram escritas, e sempre as folheamos, quando nos faz falta ...

E recomeçamos, quando parece que já não há muito para recomeçar.
Mas sempre há !   Porque todos os dias têm alvoradas,  e todas as manhãs acordam de uma noite.
E se hoje choramos, amanhã iremos seguramente gargalhar ... porque a roda é isto... voltar ao princípio, todas as vezes que se fechou o ciclo !

Há vinte e dois anos que fiquei mais pobre ... Ilusoriamente mais pobre, apenas !
O meu pai partiu, só porque tinha que partir ... Era a hora, urgia cumprir o decidido.

Deixou-me  uma nuvem de afecto, à qual só eu tenho acesso. Da qual só eu conheço a chave de entrada.
E ganhei um querubim de olhos verdes, gestos doces e asas protectoras, que me toca ao acordar, que me embala ao adormecer, e que conversa comigo à surrelfa, quando ninguém está por perto, na nossa linguagem  única, nos nossos diálogos de silêncio, e eu o "alugo", com  as  minhas  dúvidas, as  minhas ansiedades,  as  minhas  inquietações  e  os  meus  medos ...

É com ele que renasço, quando ofego de cansada ...
É com ele que recomeço, quando penso que já não vale a pena !...

Anamar

quarta-feira, 30 de julho de 2014

" TRANÇAS E LAÇOS "


E depois ela chegou do alto dos seus quarenta anos, e disse :  " Mas tu não tens a noção ?  Perdeste o senso do ridículo, logo tu que sempre receaste isso ... Não vês que tens quase setenta anos ?! "...

Ela, a outra, emudeceu, sucumbiu ao "murro", e ficou fora de combate ...

Afinal, tudo se resumia a ter feito uma trança discreta no cabelo em jeito de bandolete, por sugestão da cabeleireira que teimou em mudar-lhe o visual ... deixá-la mais jovem ...
Mais jovem e bem ...  que visse no espelho, que constatasse como era verdade ... " Olha que bem, p'ra não ser sempre a mesma coisa !..."
Contemporizara, até achara que era verdade. Um ar mais agaiatado, sem o ser, espreitava-lhe das montras e dos vidros das portas, no regresso a casa.

Nunca se atrevia muito à vontade,  a fugir do clássico com que enchia a vida.
Contudo,  sentia-se contente com alguns rasgos temerários, com que às vezes a desafiava .  Como se fosse uma pirraça ou uma partida que lhe pregava, em resposta a tantas outras com que ela a mimoseava.
Parece que um qualquer "lápis azul" no subconsciente, se habituara a mandar e a desmandar, e admirava a independência e a estaleca dos excêntricos.
Achava  que  sem  dúvida era necessária uma "robustez" psíquica,  para passar sorrindo, p'lo meio da multidão ... p'ra desafiar a "carneirada", impor o seu estilo independente.
Exagerava, claro. Mas desta feita, sentia-se furiosa.
"Quase setenta anos" ?  Ela, que não havia muito iniciara a década, não parecia sequer tê-los, e pactuara com  a designação de "sexalescente", quando a brincar camuflava o desgosto do estatuto ?!...

Mazinha ela ... a outra.
Incisiva, cirúrgica, sabendo bem demais onde dava a trancada,  conhecendo à légua a ferida onde escarafunchara ...

E ostentava  a "autoridade" própria de quem sabe do que fala. Ostentava o ar sabedor dos que falam de cátedra.  O jeito provocatório de mestre-escola, que se vê compelido a chamar à palmatória, o aluno "pintas" que deu uma de insubordinado.
Onde é que já se viu, achar que já pode ... que "ainda" pode ???!!!...

Ostentara uma rapidez no gatilho, na avaliação sumária, sem direito a defesa  por parte de quem se "passara", quem perdera o norte, a razoabilidade e o senso de conveniência ...

"Ai, ai ..." - parecia dizer ..."Olha-me esta agora, armada em menina !  Se não ponho cobro nisto, qualquer dia aparece-me de tótós, laços e saia de roda ...   Senil ... a minha mãe só pode estar a ficar senil !..."

Acabou-me com a festa !...
Aquela maldadezinha de fim de dia, pôs-me o rabinho entre as pernas, e fez-me sentir qual rafeiro vira-lata, envergonhado, que não entende por que não pode mijar no pára-choques do carro.
Fez-me sentir uma prevaricadora  entontecida, sem enxergar que a  idade confere acrescidas  obrigações sociais  e  pessoais,  parece ... ao  invés  de  conferir  estatuto,  posto  e  autonomia  (pensava eu, asnaticamente ...).
Idade impede já  (ao contrário do que às vezes eu também achava ), que se possam atrevidamente  enfrentar  descontraídamente as "red lines", que se saltem de ânimo leve, as barreiras ... impede que se tenham veleidades serôdias, tonterias inconsequentes ...
A menos que fiquemos indiferentes a que nos achem "gá-gás" ... é claro !...
E disso, ela, a outra, queria obviamente poupar-me ...

Acho que estava sol, mas apagou-se-me um pouco, no horizonte.
E senti, como se deve sentir a andorinha a que tivessem cortado asas ...
Senti, como se deve sentir a criança que se acha a mais linda da festa, até perceber que talvez não seja bem assim ...

Esvaziei-me.  Como o balão que teve a pretensão de voar, e dez segundos depois, está no chão ...

Acho que ela nunca irá atinar até onde foi...
Talvez...Talvez daqui a vinte e tal anos ela consiga perceber, se ainda puder lembrar ...
Mas sempre vai achar que exorbitei ... tenho a certeza !

Por que é que a gente põe filhos no mundo,  filhos que não conhecemos e que não nos conhecem ???!!!...

Anamar

domingo, 27 de julho de 2014

" NADA A FAZER !!!... "




Não sei se todos serão assim, ou se pelo menos as mulheres serão assim.

Cheguei a uma fase da vida em que se me impõem à frente dos olhos, as limitações inerentes ao avanço dos anos.
Ao longo dos tempos,  sempre fui uma "descontraídona",  uma atrevida e uma desafiadora em relação ao seu percurso.
Achava-me invencível, achava que nada me poderia tirar a robustez. , a agilidade, a invencibilidade... e até a dose saudável de loucura, que achava ser-me devida !...
Como por feitio sempre desafiei os dias e os anos, sempre os provoquei, e sempre fui bem mais saudável comparativamente a muitas colegas e amigas da minha faixa etária, sempre vivi descontraída, sempre ousei isto e aquilo em contra-ciclo com as posturas convencionais, sempre desvalorizei  talvez  demasiado inconscientemente, o espectro dos males possíveis ...

Contudo  o  tempo passa, e de repente há um dia em que às vezes, por nada em especial, parece que acordamos para a realidade, e consciencializamos que talvez,  na verdade,  tenhamos vindo  a  perder capacidades,  desenvoltura,  sagacidade ... E  não  achamos  graça !...
Deixámos de ser escorreitos física e mentalmente, deixámos de ter aquele entusiasmo, de ter aquela disponibilidade de espírito que nos permitia arriscar, achar graça a tantas coisas, avançar p'ra tantas outras, ainda com o desejo de aventura, e com a adrenalina de outros tempos.
Ficámos comodistas, arreigados a uma vida demasiado morna, a disposição para o risco ainda que calculado desapareceu, os medos instalam-se, a noção de fragilidade e vulnerabilidade agiganta-se, a convicção de limitação também, o fantasma do perigo, do susto da incapacidade se instalar, fica premente, e premeia-nos com ansiedades e pânicos, injustificáveis muitas vezes !...

Dou por mim a ter cuidados redobrados, na rua, com as quedas ( parece-me sentença certa, uma fractura de perna, se cair ... Não faço por menos ... )
Dou por mim a verificar desgostosamente, como fica difícil amarinhar a um banco, p'ra acertar o relógio de parede, e a ter medo de subir...Até porque as pernas viraram chumbo ... com os diabos !...
Dou por mim a constatar como a cabeça parece perra, e a linguagem pouco oleada, no falar e no escrever ... eu, que sempre fui desembaraçada para o efeito ... E afianço que começo a ter sinais de Alzheimer incipiente ...
Dou por mim, a ver com desgosto, que objectivamente não vejo ... ou seja, se calhar tenho que me habituar a viver num "aquário" de água turva, porque contornos bem nítidos, olhar acutilante, preciso e límpido ... talvez nunca mais !...
Que ouvir ... bom, se olhar o mexer dos lábios do meu interlocutor, é mais fácil ... Senão ... os sons misturam-se todos, e ao meu tímpano poucos chegam definidos ...
Dou por mim, dei pela primeira vez este ano, na viagem que sozinha fiz recentemente para o estrangeiro, como habitualmente, a apavorar-me na eventualidade de lá poder adoecer, na inventada hipótese de um acidente, de um ferimento ( eu, que sempre achei com alguma inconsciência, é verdade, que não haveria de acontecer logo a mim, e que o isolamento e a distância não eram problema ... Afinal o mundo é logo ali, tudo ao virar da esquina !...
Dou por mim, em última análise, a evitar fazer exames médicos de rotina, porque ... receio o resultado, e mais o que "eles" dêem em inventar !... (rsrsrs)

Bolas !  Isto é velhice ?  É degenerescência mental ?  É estupidez mesmo ???...

Acho que é apenas mais um capítulo da velha guerra sem tréguas, travada entre mim e o avanço dos anos e da vida.
É a inaceitação da inevitabilidade da progressão inelutável do tempo ...
É a  raiva  de estimação contra o ciclo da existência, que me parece sem sentido, sem lógica, sem explicação e sem razão ...
É a  sensação azeda de ser a tal peça de xadrês movida sem regras ( e sem que ninguém mas tenha ensinado, algum dia ) ...
De ser o tal actor largado no palco onde uma peça se desenrola, e a quem ninguém teve sequer a gentileza de  explicar  qual  o  enredo ... menos  ainda  se  queria  participar  da  mesma ...
De ser a marioneta mexida a cordéis, aleatoriamente, ao sabor dos dedos caprichosos de quem tenta dar-lhe vida ...
É a velha sensação, de que alguém prepotentemente  goza, ou perdida ou indiferentemente, com os peõezitos por aqui largados ( nada muito importante, afinal ... ), mera carne para canhão lançada em cenário de guerra ... E que cada um  invente, que se safe o melhor que possa ... que se "amanhe" dentro do contexto ... que descortine como sobreviver !...

E depois há os que sabem fazê-lo, e os que não, os pragmáticos e os que não, os que estrebucham e os que não, os que se importam, e os que se indiferentizam e seguem ... amodorradamente ... anestesiadamente ... apaticamente, sem grandes ondas, turbulências ou convulsões ... navegando à bolina ... acomodados que são !...
E os que não !!!...

É demasiado rocambolesco e de mau gosto tudo isto.
É um "nonsense" sem tamanho, um filme de humor negro de mau gosto, um sketche dos Monty Python em fim de carreira, que não consegue sequer, arrancar-me  já,  uma  só  derradeira gargalhada !!!...

Anamar

domingo, 20 de julho de 2014

" DÁ QUE PENSAR ... "



Já abordei vezes demais o tema das redes sociais, a sua visibilidade, a sua utilização por parte dos cibernautas, e a consequente modelagem social  a que deram origem.

É cada vez mais agressiva, abusiva, invasiva e absurda até, a forma como a generalidade dos utilizadores delas se servem.
Nomeadamente o Facebook, que é praticamente um contrapoder, ou um poder paralelo que ombreia e põe em causa todas as estruturas sociais, profissionais e políticas, nacionais e internacionais, por mais fortes e privadas que devessem ser.
É portanto, verdadeiramente,  uma arma de alcance indeterminado.

Por ele passa de tudo, como se sabe.
Ele é utilizado com todos os fins, sejam inofensivos e mais ou menos louváveis, sejam de devassa e com torpes intencionalidades.

Nele já li diários escritos por pessoas com a vida a prazo, que o utilizaram para partilharem as emoções, e as experiências, indistintamente, quase até ao seu último suspiro.

Nele já se anunciaram actos suicidas, suicídios em directo, atentados, episódios inconfessáveis do ser humano.

Nele já se festejou o milagre da vida, devassando-se e partilhando-se com anónimos, a entrada neste mundo, de seres que não sabem nem sonham !...
E o inverso também.

Depois, todas as especulações sobre tudo, o imaginável e o inimaginável, por lá circulam.
Fazem-se e desfazem-se relações, amizades e romances ...
Queimam-se pessoal, política e socialmente, muitos cidadãos.
Denunciam-se tramas e conspirações.
Forjam-se ídolos, e apeiam-se outros ...
Criam-se correntes de solidariedade humanitária, mais ou menos credíveis, e defendem-se causas, aproveitando-se a velocidade da veiculação da informação entre os povos ...
Defendem-se   verdades   e   princípios,  inventam-se   mentiras  e  calúnias,  delata-se  e  injuria-se ...

E depois, a ironia da vida encarrega-se de criar factos que nos dão que pensar :  Cor Pan, fotografou o avião da Malaysia Airlines que o levaria à morte, horas antes desse desfecho, e publicou-o no Facebook.
Com alguma ironia tétrica, com a displicência, a bonomia e a boa disposição de quem eventualmente inicia uma viagem de recreio ou férias, brincou em ar jocoso, numa clara alusão ao voo da Malaysia Airlines com desfecho enigmático há alguns meses atrás :  "Se também desaparecermos, o avião era este !!!"...

Cor foi uma das quase trezentas vítimas do brutal atentado aéreo, ocorrido com um avião civil, sobre o espaço aéreo fronteiriço Ucrânia-Rússia, abatido por um míssil terra-ar.

Seguramente, ao postar a foto da aeronave e a "boutade" anexa, nunca em verdade terá suposto que seria a última frase que debitaria neste espaço, e que com ela ficaria tristemente conhecido mundialmente,  pelas piores razões na sua vida ... exactamente a sua morte !!!...

As  curvas  e  contracurvas  do  destino  que  dribla  tudo  e  todos,  em  tempo  real,  à  velocidade  do impensável !!!...

Dá que pensar !!!...



Anamar

sexta-feira, 18 de julho de 2014

" MENINO DO BAIRRO NEGRO "



Encerrando as minhas dissertações sobre a recente estada em S.Tomé e Ilhéu das Rolas, e não querendo repetir-me ou enfatizar excessivamente, verdades e sentimentos experimentados, faço aqui uma espécie de resenha e conclusão final, sobre tudo o que lá vivenciei.

Tudo foi visto e experimentado por mim, pelos meus sentidos, coração e alma ...
Como tal, terá a subjectividade inerente e incontornável, obviamente.
Contudo, suponho ter sido justa, isenta, realista, face a uma realidade que muitas vezes mais pareceu ficcionada, pela beleza natural esmagadora, pela dureza e rudeza da vida, pelo mix de sofrimento e alegria de todos os santomenses .

A eles deixo o meu agradecimento, a eles presto a minha homenagem !
Em particular, aos MENINOS de S: TOMÉ, a quem presenteio com este "Menino do Bairro Negro" tão a propósito, e tão sabiamente cantado pelo nosso Zeca Afonso !

Espero que tenham gostado de viajar comigo !


Um recuo no tempo, retorna-me a S. Tomé.

S.Tomé e a sua ilha satélite, o Ilhéu Gago Coutinho, conhecido por Ilhéu das Rolas,  foram mais uma aprendizagem humana, enriquecedora do meu eu.
Como tudo o que é natural, primitivo, não trabalhado pelo Homem, este destino encerra a ingenuidade, a pureza e a autenticidade de um local onde a nossa mão ainda não fez estrago.
Como tal, um local de verdade !

Olhando atrás, se quisesse ressaltar aquilo que efectivamente mais me tocou, teria seguramente grandes dificuldades em fazê-lo.
Contudo, sem grande dúvida, duas coisas, deixaram claramente marcas de ternura no meu coração :
por um lado, a beleza natural pujante e avassaladora por todos os cantos, num excesso louco de cores, de sons e de cheiros ... por outro, a doçura e a espontaneidade das suas crianças, os tais "bandos de pardais à solta" que nos rodeiam, nos envolvem, nos tocam, e nos amam de imediato !...

São meninos sem nada, absolutamente nada ...
Não têm alimentação de qualidade, ou sequer alimentação ( poder-se-á dizer ), não têm medicamentos, não têm brinquedos, não têm roupa, além dos andrajos rotos e sujos que vestem, não têm livros, jogos, objectos escolares, higiene ou sequer possibilidade de a ela aceder.
Têm escassa assistência médica, dependente sobretudo, do voluntariado generoso do pessoal da AMI, Médicos Sem Fronteiras ou Médicos do Mundo.
Vivem numa sociedade em que o salário médio é de sessenta euros !!!...
Não têm nada, mesmo !!!

Têm-se uns aos outros, nas brincadeiras infinitas, na aldeia, na mata, na terra, nas pedras, nos rios, nas praias.

Têm os mais novos para olhar, os bébés para cuidar, para carregar, como os filhos que terão mal cresçam, e já adolescentes iniciem famílias numerosas, com uma dimensão absurda, numa sociedade culturalmente poligâmica e pomíscua, que como tal, tenho o pudor de valorizar, menos ainda julgar.
Existe uma desinformação doída, na população  ( ainda se acredita que a pílula do dia seguinte passa por uma lavagem na água do mar, após as relações sexuais ).

Têm de sobra, uma dádiva carinhosa para quem deles se aproxima ...

Têm uma alegria ímpar e contagiante, e expressões de doçura infinita !

São meninos que gostam do toque, que nos dão as mãos e nos guiam nas caminhadas pelo meio das suas aldeias.
São meninos que querem mais e mais fotografias, e ao verem-se nelas, exprimem uma felicidade ímpar, saltam, riem, batem palmas ...
São meninos que nos mexem no cabelo, com fascínio, e com ele nos fazem tranças ... E sempre nos acham bonitos ... " a amiga é bonita" !...
São meninos que querem os nossos beijos, nos rostinhos sujos e empoeirados e correm ao nosso lado, disputando o melhor lugar junto de nós ... que acabaram de conhecer ...

Deixam-nos assim com uma emoção pesada no coração, pois nos confrontam com a aleatoriedade perfeita da existência , com a efectiva e real dimensão da penalização das assimetrias sociais.
Quase nos culpabilizamos de uma sorte que não pedimos para ter, de um privilégio que nos coube, e nada fizemos por ele, a não ser pertencermos ao outro lado do Mundo ...

E sentimos a magoada impotência pela incapacidade de revirar o destino, impotência face à distribuição de  uma qualquer justiça social que deveria ser equitativa entre todos os cidadãos, indistintamente do continente a que pertencem, do chão em que nasceram, da sociedade em que foram criados ... sobretudo quando se trata de crianças !

S.Tomé e o Ilhéu das Rolas foi também uma dolorosa e séria lição de vida, foi uma história narrada com personagens reais, bem frente aos meus olhos, foi uma aprendizagem e um abanão na acomodação instalada que possuímos, e de que ainda assim, sempre reclamamos ...

Voltarei !
Gostaria de voltar, sim, a olhar os rostinhos sujos, de ranho à boca, dos meninos dos caracóis e trancinhas, de olhos impressionantemente meigos e desarmados, e escutar outra vez aquela palavra-senha, na correria louca, desenfreada atrás do carro que se afasta : " Doce, doce, doce !... "


Esta, a minha sentida homenagem de gratidão a todas as crianças com quem me cruzei, nesta minha digressão por terras de S.Tomé e das Rolas.

OBRIGADA !


ZECA AFONSO

Menino do Bairro Negro


Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz

Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Se até da gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

Anamar

quinta-feira, 17 de julho de 2014

" UMA ANÁLISE FRIA E OBJECTIVA "


Os mercados são a mais genuína expressão de um povo, creio.
Por eles desfilam múltiplos perfis humanos, por eles passa  toda uma miscigenação de raças, de rostos, de cores, de vozes e de cheiros. Eles são uma mostra extraordinariamente rica, de um  multiculturalismo evidenciado.
São o pulsar e  o  fervilhar de gente,  são o ritmo cardíaco  que nos desafia  a  um mergulho ao âmago da alma e do coração de um país ...
Eu diria que eles são imbuídos de um espírito ritualista e mágico ...

Em África, em especial, há todo um "colorido" peculiar.
As frutas que sempre são variadas, misturam-se com os legumes, nas bancas, no chão e nas cestas.  Têm cores e formas inenarráveis e curiosas.
Confundem-se com a cor dos panos que envolvem as mulheres da cabeça aos pés, desde os turbantes, aos que à cintura suportam os bébés nas costas.
O peixe, fresco ou seco, de todos os tamanhos, cores e formas, de espécies que desconhecemos muitas vezes, aguarda em baldes, aguarda no chão, ao sol, às moscas, à poeira ...
O "brouhaha" é ensurdecedor. Os decibéis vão muito acima do normal ... e há uma azáfama qualquer, e uma qualquer alegria contagiante, no ar !...
Mas é assim !
Tudo isso é "normal".  A realidade nada tem a ver com a nossa, os ritmos de vida também não !

Com as suas particularidades, há contudo sempre muito de semelhante nos mercados.
Eles são ponto de encontro diário e de estadia em permanência de horas, dos vendedores, que por isso já são uma família, acredito.
As mulheres permanecem acocoradas, sentadas por ali ;  as crianças, quase nascem, e já ocupam posto no mercado.
Dentro de caixas de cartão, à sombra de chapéus de sol que mal protegem do calor abrasador de África, iniciam as suas vidas ... gerações dos que serão os putos livres e soltos que parecem eclodir do nada, em cada esquina das aldeias, em cada canto da mata, em cada beira de estrada ...

E depois há o âmbar da pele  nos corpos expostos, suados mas cheirosos ...
Há o branco luminoso de dentes impressionantemente regulares e saudáveis ...
Há o requebro e o dengue lento, de ancas roliças que passam, lentamente, preguiçosamente, com algum erotismo nas curvas e no olhar ...
Há os rostos lavados e sem artifícios, das crioulas ... e há os sorrisos rasgados, ou as gargalhadas trocadas, entre quem está e quem circula ...

Sempre que visito um país estrangeiro, procuro não falhar o mercado local.
Procuro não falhar, observo, "bebo", tomo o pulso, analiso, aprendo ... registo, se puder e tal me for consentido.
Nunca utilizo a câmara fotográfica com humanos, sem que o requeira, sem que isso me seja previamente autorizado. Sempre respeito o direito à privacidade e à imagem individual.
Foi assim em Bali, em Zanzibar, em Samaná, em Cuba, Costa Rica, Tailândia ... por aí ... em tantos outros sítios desse mundão !...
Foi também assim  em S.Tomé.

As crises sociais e as assimetrias, amargam os povos.
Na maior carência, as pessoas desesperam e perdem os louváveis valores que as norteariam.
As raivas e os ódios recrudescem.  A miséria  sempre é má conselheira, e desencava "machados de guerra".
Ela traz à tona o que de pior o ser humano alberga no coração.  O Homem cega, e assume posturas selváticas inexplicáveis.  Acredito que em qualquer lugar do planeta, e mesmo em qualquer civilização ...

Experimentei, estranha e surpreendentemente, este estado de coisas em S.Tomé.
No meio de um povo que beneficia de uma Natureza generosa, pródiga e espectacular, um povo que tem as crianças mais doces do mundo, um povo cujas raízes afinal cruzam as nossas, as portuguesas, experimentei  tristemente, pela primeira vez na vida, atitudes odiosas de rejeição, racismo e xenofobia .
Só porque aos olhos dessas pessoas, eu era turista, eu teria dinheiro ... e eles, o povo, ostentava bem, a miséria em que sobrevive, o sofrimento em que arrasta as suas vidas !!!...

Obviamente  não  faço  juízos  de  valor.  Obviamente  relativizo,  porque  obviamente  até  entendo !...
Apenas lamento.  Não por mim, mas pelos santomenses  mesmo, já que este país, sem recursos, pobre e largado ao seu destino ( estamos em África, é bom não esquecer ... ) apenas terá como futuro, a meu ver, a aposta  no café e no cacau, em exportação devidamente dinamizada e implementada, em grande escala ( o que ainda não acontece ), e evidentemente, o turismo, fonte promissora de receitas, graças a  todo o potencial natural de que dispõe.

Mas claro que não a qualquer preço ... E é pena !...

Anamar

quarta-feira, 16 de julho de 2014

" O PREÇO DA INSULARIDADE - aquele embarcadouro ... "



Estamos na  " gravana " ou estação seca, aqui em S. Tomé.

Nunca pensei que no Equador pudesse haver frio, e dias infindáveis sem que o sol rompa a abóbada cinza carregada, aqui por cima das cabeças.  Um capacete denso, de nuvens persistentes e espessas consegue pintar de tons pardos e escurecidos, o multicolorido desta ilha, que para mim era o paradigma eterno  da luminosidade, da cor, do brilho e da alegria.
Criei essa fantasia baseada em informação deficiente, seguramente, ou simplesmente porque ainda que melhor documentada estivesse, creio que nunca acreditaria que pudesse ser diferente.
Mas o facto é que já aqui estou há quatro dias, e ainda não vi o sol, a temperatura ambiente é desconfortável ( até porque vim desprevenida para termómetros mais baixos ),  há algum vento, e banho de mar, também é mentira, já que as correntes e as marés são muito fortes e perigosas.

As cores deste maravilhoso ilhéu estão obviamente prejudicadas, não obstante a beleza esmagadora oferecida por uma Natureza excessiva, rica, luxuriante e esfuziante também ...
Assim, parece que perambulo num cenário fora de contexto, ou que contemplo um postal ilustrado a preto e branco.
O dia tomba repentinamente cedo.  Pelas seis da tarde é mais que lusco-fusco, e se quando amanhece o rosto do dia se anunciasse mais magnânimo e promissor, com sol a raiar, céu azul e temperatura morna, apeteceria sair da cama, vir para o exterior, absorver os cheiros, os sons, extasiar-me, deixar-me simplesmente envolver.
Assim, durmo até mais tarde, e experimento uma sensação de desperdício de  tempo.

Mas é assim !
A época seca caracteriza-se climatericamente desta forma, e não há nada a fazer ... A não ser, claro, regressar na época das chuvas, do sol forte e do calor impiedoso ... ( rsrsrs )

A lancha que liga o ilhéu a S. Tomé, vai e vem  três ou quatro vezes por dia.  Carrega quem trabalha do lado oposto àquele em que vive, e os turistas que chegam e que partem.
A insularidade tem o seu preço, de facto !

No pequeno cais de encosto da embarcação, juntam-se os autóctones :  as mulheres em desocupação de fim de tarde, a criançada no terreiro da Igreja, paredes meias com o embarcadouro, indiferente, nas brincadeiras sem fim, os rapazes da ilha lançando conversa fora e graçolas de circunstância, actualizam notícias da Ilha do Chocolate.
Aqui, é local de encontro e de lazer.  As notícias vão e vêm, as boas e más novidades também.
Eu diria que é o ponto mais importante do ilhéu.  É uma janela que se abre ao mundo, ao mundo que está do lado de lá, nem que o lado de lá seja  tão simplesmente a ilha-mãe, S. Tomé !
É a única ponte que têm.
Por ela seguem os doentes em busca de auxílio na capital, seguem as crianças para a escola, sonhando com outros futuros ... seguem os mortos, a caminho de S. João dos Angolares ...
É  o local de despedidas e de chegadas, com todas as tristezas, incertezas e angústias, mas também todas as esperanças, ilusões e quiçá alegrias, dos que partem e dos que chegam.
Ali se despedem os que vão, em busca de trabalho, de sorte e de melhor destino, seja em Portugal, em Angola ou Cabo Verde ...
Para trás ficam os idosos, os familiares chegados, os amigos e os filhos, que dirão um adeus interminável, enquanto a  "João de Santarém" se afasta mar adiante, e até que a distância a reduz a um pontinho lá longe, perdido no meio do oceano, em direcção à Ponta da Baleia.
A dor e as lágrimas, a nostalgia e a saudade  ficarão afogadas na indiferença salgada das ondas, até ao dia em que de novo a embarcação se corporizará, quando as águas devolverem a casa, aqueles que haviam partido ...

Nas Rolas, contudo, tudo terá permanecido exactamente igual, como se o tempo tivesse adormecido, amodorrado na sombra do caroceiro  gigantesco do terreiro poeirento, paredes meias com a aldeia, paredes meias com a Igreja, paredes meias com o mar e o cais de embarque ... sempre com o chilreio da criançada descalça, suja e rota, em correrias, nos jogos de futebol, ou nas corridas dos carrinhos improvisados !!!...

Este, o preço da insularidade !!!...

Anamar

terça-feira, 15 de julho de 2014

" LEVE - LEVE ... "



Não sei se é leve esta vida ...

Esta gente não tem água em casa, não tem luz nem todos os outros bens que julgamos indispensáveis.
A roupa lava-se no tanque da aldeia, estende-se no chão, nos muros, nas pedras e sobre as plantas.
A água traz-se em latas ou contentores, aos ombros, desde cisterna ou poço.
Quer-se comer, planta-se a terra, faz-se a horta.  As frutas, são as árvores fruteiras da mata que dão. E são infinitas !
Derrubam-se os "caroços" do caroceiro, abrem-se com uma pedra, no chão, e de dentro, come-se o pinhão.
A fruta-pão, a papaia, a jaca, a carambola, a  castanha, a  cajamanga, o  sape sape, o maracujá, a  banana  ( sete variedades diferentes, na ilha ), a goiaba, a manga, o cacau ou o café ... espreitam a cada canto.
Os cocos aliviam a sede.  Caídos aos milhares por todo o lado, abrem-se de qualquer jeito.  Ou com uma catana certeira de gente experiente, o que ainda assim arrepia o coração de quem vê e nunca fez, ou simplesmente sob o impacto de um pedregulho valente.
Depois, é só beber ... A água é sempre fresca !

Lança-se a canoa ao mar, e traz-se peixe, ou mergulha-se e busca-se nas profundidades pródigas.
Põe-se a arma ao ombro e caçam-se rolas, ou morcegos.
Os animais andam soltos pela aldeia e pela floresta.
Por ali, cabras e cabritinhos, porcas e leitões, galinhas, patos, cães e gatos, deambulam e chafurdam por entre os humanos ... por conta própria e entregues ao destino !

Nos céus, os morcegos avistam-se. Vêm, ao cair do dia, de S. Tomé, dormir às Rolas, numa migração diária em busca de fruta madura. São frugívoros.
Andorinhas rasam as águas, mas são os falcões que imperam nos céus de S. Tomé.

O café colhe-se, torra-se e mói-se.  O cacau, também.
Toda a qualidade de plantas desta floresta luxuriante, se usa na alimentação, na higiene, e na cura ou prevenção de maleitas.
A erva-mosquito usa-se no "calulu" ( prato típico confeccionado com legumes, óleo de palma, peixe seco, ou mesmo  frango ), ou ainda no molho de fogo.
A mandioca, o coentro selvagem ( de sabor idêntico ao que conhecemos, numa planta com aspecto totalmente diferente ), o chuchu, o inhame, a pimenta, a cana de açúcar e tantas outras espécies vegetais, enriquecem o prato santomense.
O vinho de palma, colhido em bica instalada na própria palmeira, pelo colector nativo que escala o tronco em segundos ... trepa... por nós, se o provarmos ...
O micócó utiliza-se em omeletes, em sopa, estimula o apetite, purifica o organismo e potencia o desempenho sexual masculino, quando em chá.
A casca do mucumbli é usada num chá de efeitos gastro-intestinais, ou mesmo como analgésico.  Por isso, também se usa como banho aliviante das dores.
As folhas da goiaba e do abacate têm também o mesmo mérito.
Já as folhas frescas da salaconta, servem para confecção de chá, ou mesmo como bem-estar para as mulheres durante o período menstrual.
Das flores de ylang-ylang, a árvore do perfume, fazem-se essências de cheiro idêntico ao jasmim  misturado com amêndoas, ou simplesmente preparam-se  banhos agradáveis e cheirosos.
O Goji Berry, folhas de sabor ácido e toque áspero, mascadas ou esfregadas nos dentes, tornam-nos brancos.

Estes, alguns exemplos desta parafarmácia natural, à disposição, em que as medicinas alternativas têm passado de geração em geração, são prescritas pelos curandeiros, e constituem rico património cultural, mantido incólume desde tempos ancestrais.
Trata-se de um invejável repositório de saberes, transversal aos tempos.

A floresta de S.Tomé, equatorial, cerrada e quase impenetrável, possui as mais diversificadas espécies de madeiras.
As árvores, de corpulência esmagadora, dão sombra e dão a matéria-prima para a construção das embarcações.
Sobretudo as "okas", árvore que pode atingir 30 metros de altura, e com um diâmetro de tronco impressionante, associada a espíritos maléficos  da época da escravatura.  O seu abate carece de autorização governamental.
Das madeiras da floresta, num trabalho de maestria e criatividade, sai também o artesanato local.
É o caso da árvore-cinderela, que por ser bastante macia, permite a escultura de tudo o que possa imaginar-se.

As crianças da aldeia fazem a primária aqui nas Rolas.  Existe uma escolinha na aldeia de S. Francisco, que alberga a cerca de dúzia e meia  de crianças do ilhéu.
Estudam matemática, língua portuguesa e meio físico e social.  Só mais tarde, quando acedem às classes posteriores, estudam os seus dialectos ( crioulo fôrro de S.Tomé, lunguiê  do  Príncipe, e  angene -  dialecto da  zona  dos  angolares, também  na  ilha  de  S.Tomé ).
Por isso, diariamente se levantam às cinco horas da manhã, e com mar manso ou "grande", rumam, na lancha, até à capital.
Só regressam perto das cinco horas da tarde, na última viagem que faz a travessia diária para o ilhéu.

" Leve-leve" ... Tudo para eles é "leve-leve" ...
Com  ar  tímido, doce  e  sorridente,  garantem-no ao  visitante  incrédulo ... Repetem-no, em jeito de verdade !...

Não fiquei nada convencida !
Acho sim, que o coração dos santomenses é que é "leve-leve", na forma adocicada, generosa, afável e amiga, com que quase globalmente, nos acolhem indistintamente, e na grandiosidade dos sentimentos de alma, que partilham desinteressadamente.
Tão magnânimos, espontâneos e puros, quanto a simplicidade da sua terra, das suas vidas e da sua raça !...

Anamar


segunda-feira, 14 de julho de 2014

" UMA JANELA DE PRIVILÉGIO "




Um pé em cada lado da Terra, um olho espreitando cada nicho de céu estrelado, os braços abertos para que envolvam  o Mundo ... eis o centro do planeta ... eis o planisfério desenhado aos nossos pés ... e o privilégio de se ter uma "janela" na latitude zero, onde a estrela polar e o cruzeiro do sul  namoram, em noite de céu limpo !...

O Equador a fazer-nos sentir míticos, quase religiosamente especiais, num silêncio que se nos impõe.
Silêncio de lugares solenes, como se não pudéssemos perturbar a magia que impera.
Aqui, até a floresta se cala, e o vento só sussurra ... não se atreve mais !...

Naquele mapa-mundo, Portugal bem pequenino na escala universal, ali está, numa cor destacada.
E o marco, o marco como preito de homenagem dos ilhéus a Gago Coutinho, lembra que foi ele que entre 1915 e 1918 ali pousou, numa missão geodésica, e confirmou, pelos estudos efectuados, que a linha zero de latitude, passava mesmo por ali, nas Rolas !

Essa linha imaginária parece sugerir-nos, que quem pisar aquele chão não mais ficará igual, porque ao alcance de um passo, estão-nos as duas metades da laranja, para onde a nossa varanda de privilégio assoma.

Os hemisférios beijam-se lúcubres, em luxúria tão natural e despudorada, quanto aquela com que a floresta beija o mar, descendo ravina abaixo, até às águas azul-turquesa, ou verde-esmeralda.
Os coqueiros e as palmeiras fazem equilíbrios de génio,  pelas rochas negras das encostas vulcânicas, sempre em vénia marítima.
E quando desistem, é no mar que os gigantes repousam e se aquietam, é nele que tombam os corpos, é a ele que se entregam, feito canoas errantes no sabor das marés ...

É assim S. Tomé, onde o sol, mesmo quando só promete  e a gravana nos deixa sequiosos, está lá, por detrás do dossel das nuvens espessas e uniformes ... S. Tomé,  onde a luz envolve, onde a brisa é mansa, e os cheiros são doces ... tão doces quanto a doçura incomensurável das suas gentes !!!...



Anamar

domingo, 13 de julho de 2014

" TEM DOCE, TIA ?... "




De repente fiquei "tia" de uma dúzia de meninos : os meninos de S. Tomé.

No Ilhéu das Rolas, as crianças brincam livres e soltas, descalças, rotas e sujas, pelo meio das pedras, nos troncos das árvores, no terreiro da Igreja.
Narizes ranhosos, desenhos nos rostos de lágrimas misturadas com pó, joelhos esfolados de pedra traiçoeira.
Ali mesmo ao lado está o mar, e estão os turistas que chegam na lancha, duas ou três vezes por semana.  A maioria, portugueses, os que eles mais gostam porque falam a sua língua, ainda têm os seus genes.

Os rapazes fazem bolas improvisadas com plantas fibrosas, que ganham consistência de futebol.  As meninas com o cabelo a tecer trancinhas, contas de cores coloridas entremeadas, e colares nos pescoços morenos, riem, riem sempre.
Rodeiam-me como um bando de pardalitos indisciplinados, e deliram com as fotografias.

" Tira outra, tia " ...
Sozinhas, de corpo inteiro, em pose estudada, num sonho imaginado de artista.
Uma, e outra, e mais outra ... porque nesta, o irmão pequenino também se pôs à frente, ou a amiga se fez à pose, sem autorização ...

"Como te chamas, tia ? " - pergunta cada uma que chega, uma, duas, dez vezes ...
"Tem doce, tia ? " - uma, duas, dez vezes - em sorriso descarado !

Em S. Tomé, os meninos pedem cadernos e lápis. É já a escola que os apoquenta.
Ou livros, para lazeres que não preenchem, porque não têm com quê, além da rua, da terra que é de todos, do mar e da praia, dos brinquedos que inventam, das frutas da floresta generosa, do terreiro poeirento da Igreja, e das árvores para treparem ...

Ah ... claro ... e da alegria esfuziante das brincadeiras livres e soltas ...

Os meninos das Rolas não sabem nem sonham, como são afortunados !!!...




Anamar