segunda-feira, 29 de setembro de 2014

" QUAL DELES ? "




29 de Setembro, Dia Mundial do Coração !...

Qual deles ?

Aquele  que  se  escaqueira,  com  alguma  frequência, e  que  é  responsável  pela  tensão  alta  e  baixa,  taquicardias,  AVCs, tromboses, e  toda  a  panóplia  de  doenças,  que  enchem  toda  a  panóplia  de  manuais  de Medicina ?

Aquele que faz disparar exponencialmente as estatísticas das doenças vasculares em Portugal, quiçá no Mundo?

Aquele que é responsável pelo recheio dos obituários, dos jornais que ainda os publicam ?

Aquele que entroniza anualmente  um S. Valentim qualquer, importado não há muito tempo, lá de fora ... que se nos meteu nos usos e costumes, e que reactiva  em cada Fevereiro, graças às técnicas de marketing e publicidade,  a economia  desta sociedade de consumo em que vivemos, "avermelhando" magicamente por um dia, o cinzentismo instalado  em muitas vidas ?...

Ou o outro ?

Aquele que normalmente não tem conserto, por mais congressos, colóquios, estudos aprofundados que sejam feitos ... por mais sumidades que  eclodam  na comunidade científica ?...

Aquele que não há tratados que o tratem, conselhos que o encaminhem, leis que o orientem, lógicas que o norteiem ?...
Porque ele é libertário, temerário, imprudente, voluntarioso, provocador, surdo e burro ?...

Aquele que não aceita correntes, nem cangas, nem mapas, nem caminhos, nem GPSs ?

Aquele que morre e renasce  constantemente, por um qualquer milagre mal explicado da Vida ?

Aquele que se regenera, que tem um impensável poder de cicatrização dos rasgões que o atormentam, e qual Fénix, renasce das cinzas, quando parecia ser improvável e um acto ciclópico, tal desiderato ?

Aquele que por tudo isto, nos faz sentir  aceitavelmente  estúpidos, gostosamente tontos, impressionantemente  tolerantes,  inexplicavelmente  cegos,  determinantemente ilúcidos ... com a agravante de o sabermos, e gostarmos de o ser ?...

Pois talvez seja simplesmente o Dia Mundial do Coração, " tout court " ... Nada a fazer !!!...

Anamar

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

" QUERO VOLTAR ... "





O avião deixou a Portela, e rumou ... Rumou céus fora, já a noite se abatia sobre Lisboa.

Ela partira ... e ela, ficara.  Não entrou no aeroporto a despedir-se. Odiava despedidas ! Esta, em particular.
Largou-a ainda na rua, de mala de rodinhas deslizando na calçada. Tratou de engolir com força o nó que se lhe apossara da alma, tratou de opacizar os olhos para não perceber que afinal chovia ... meteu a primeira, no carro que não desligara, e seguiu .

Afastou-se dali, rápido.  E enquanto a segunda circular se lhe desenrolava  indiferente, mais indiferente ainda, mais distante da chuva, das luzes, das buzinas, ela se sentia.
Havia uma espécie de amputação no ar.  Uma orfandade definida.  Sentia a opressão que uma violência gratuita e arbitrária, instala no coração.

" É ... não tens a noção desta cidade ... É um amor-ódio que experimento em cada segundo ... não pára nunca !
Sempre um barulho de fundo ... A única semelhança entre as pessoas, é terem braços e pernas ...
Suja e arranjada ao mesmo tempo ... linda e feia ao mesmo tempo ... tanta gente, e tudo tão sozinho !...
Homens lindos e homens horríveis ... Caríssima ... Talvez venhas a gostar de passar temporadas, aqui comigo ... um dia ... Museus lindos, que precisam uma semana para se verem ...
Não !  Não tens a noção do que te falo !...  Multiculturalidade ... Cosmopolitismo ... Nas pessoas, não encontras uma fisionomia semelhante ... Tudo coexiste ... ninguém repara em ti ... Podes morrer, que ninguém dá por falta !... "

As primeiras mensagens, a trazerem o frio e o abandono, de lá ...
As mensagens de resposta, a levarem o cheiro da terra molhada da serra, o azul do céu, os raios do sol que é só nosso ... o verde da esperança e do ânimo ... ainda que a saudade, essa coisa tão próxima, não desentranhe nunca, e mortifique, a cada dia que nasce mais vazio ...
A incerteza, a dúvida, a angústia ! A inevitabilidade , que como todas, não é escolhida, impõe-se...
E depois, há aquela paixão que não se suspeitava. Aquela Lisboa que afinal é muito mais bela, que tem regaço de mãe, e braços de embalar ... Que tem colo, que é ninho, cúmplice e aconchegante ...
Há a gaivota no rio, e o vento que empurra a vela ... há o crepúsculo em Sintra, e há um Outono doce, dourado de plátanos a despirem-se, enquanto o cheirinho das castanhas no assador, sobe, e nos fala da casa ali ... do refúgio a esperar-nos, ali tão perto ...
E há o riso dos amigos, a força dos afectos ... as cumplicidades partilhadas com a mãe, com irmãos, com avós... com crianças ... Com família, que teve de desprender as amarras e deixar-nos  partir ...  
E há até o fado, que é frase feita, mas que é verdadeira.  Bate, e carrega em cada nota o que é ser português, e percebê-lo, por vezes tardiamente, quando nos escorraçam da nossa terra ...
E há o mar salgado ... com as lágrimas de Portugal a encherem-lhe as marés ...
A  nostalgia, é então a única coisa palpável,  que pinta o céu cinzento, lá longe !...

"Angústia... sim ...  Angustiada, vivo ... Talvez  a  confrontar-me em definitivo, com a injustiça de  ter que deixar o meu chão !..."



Anamar

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

" OUTONO "


 

O Outono parece ter chegado.  Mais cedo, afinal.
Depois de um Verão atípico e de uma Primavera que não tivemos, o tempo deu uma volta, os dias acinzentaram, o sol ganhou aquele brilho estranho que se percebe estar a apagar-se, embora ainda seja quente.
Um calor, que não nos espantaria  se de repente ouvíssemos trovejar.

Iniciaram-se as tarefas de preparação da " toca " para o Inverno que há-de vir.
Os putos andam ligados " à corrente ", pelo reinício das escolas.  Como se isso fosse a última maravilha do mundo, e como se os livros que agora afagam, miram e re-miram com curiosidade, não fossem rapidamente motivo de saturação e incómodo ... Não demora !
Os pais andam  obviamente a reboque, às vezes mais ansiosos que os próprios miúdos.

Quem já não tem esses "filmes", mesmo assim anda a sofrer da "síndrome" outonal.
Numa sanha estranha e inexplicável, lança-se à limpeza das casas, a fundo, lança-se à "purga" dos roupeiros, numa ânsia de os extirpar do antigo acumulado, e considerado já de inviável utilização.  Parece pretender-se deitar fora, junto com tudo isso, e com urgência, um pouco do "lixo de alma", pesado, cansativo e sufocante.

Na época da queda da folha, numa das fases de mudança profunda no ano, o ser humano também assume o espírito de equinócio, que desta feita, à semelhança da Natureza, é um período de interioridade, introspecção e  intimismo.
É o período de recolhimento, de hibernação, de adormecimento, de concha.

Eu, pelo menos, sinto assim !

Muito difícil sempre, atravessar este "túnel" !
Muito penoso sempre, arranjar forças para andar adiante.  Mais difícil de ano para ano, parece.
É como um fardo mais e mais pesado, com acumulação de tudo o que de negativo a vida parece encarregar-se de nos adicionar ao percurso, sempre na razão inversa da força anímica de que dispomos, e que enfraquece a olhos vistos.

Mas por outro lado, acredito que o Outono da vida, possa ser um tempo de privilégio para alguns.
Para aqueles que têm ninho, lura, porto, cais, luz, âncora ...
Para aqueles que têm raízes escoradas, referências seguras, que têm sossego no coração e vivem quietude na alma.
Esses devem fazer um tempo de fruição, de bem-estar, de enriquecimento espiritual, de acerto com o "caminho", de pacificação do espírito, de repouso interior, de plenitude gratificante, sem sobressaltos ou angústias, estou certa ...

Imagino aquela casa, bem simples, de quarto e sala, aninhada naquele jardim pequeno, de plantas bravas a bordejar o areão da entrada.
Imagino aquelas duas janelas ladeando a porta, e a cancela em madeira velha franqueando o acesso ... a gemer nas dobradiças ...
as roseiras de rosas singelas, com o  aroma tépido das Santa Teresinha, e as ervas aromáticas perfumando o ar.
Imagino os gatos ronceiros por ali ... Os de dentro e os de fora, em harmonia plena ...
E os pássaros que ficaram, buscando o aconchego. Porque os outros, já não pulam pelos galhos ... Partiram para longe, faz tempo !
Imagino a mesa junto à janela, salpicada de potes com alecrim e madressilva, a esmo ... espaço de escrita ou de leitura, na moldura do jardim lá fora ...
uma música calma, perpassando em surdina, para não espantar o som da aragem nas folhas, nem macular o tamborilar dos salpicos de chuva na vidraça, de quando em vez, em ameaços, apenas ameaços ...
Imagino uma luz acesa, velada, íntima, para não sobressaltar os sonhos, nem dispersar os pensamentos ...
Imagino aquela casa de Outono ... imagino ...

Por que será que imagino aquela casa, que de repente, pelo sonho parece tão minha ... se nunca a vi, se nunca a vivi, se nunca a senti ??!!...

E no entanto, é como se a cheirasse, como se já a tivesse palpado, como se conhecesse com perfeição a rugosidade da madeira da arca, como se soubesse com clareza a intensidade da luz que penetra pela janela ... como se ouvisse com nitidez o estalar do areão do caminho sob os pés que avançam, como se adivinhasse sem erro, os "gatos" daquele prato  do escaparate, como se olhasse a ramagem do cretone que forra o sofá ... e a soubesse minha, de há muito ...
É como se me passeasse por um espaço mais que familiar ... íntimo ... secreto ... e tivesse em mim um calor doce de compotas, num embalo de amarelos, ocres e vermelhos ... de castanhas quase no braseiro ...

Quase sinto a brisa lá fora, lembro as notas  do murmúrio do vento, e os cheiros que vêm voando, e que eu não sei se são salgados ou doces, se vêm do mar ou da serra ...
Tenho um xaile breve pelas costas, tenho o cabelo prateado em corrente líquida de intemporalidade, e tenho um cesto no braço, repleto de rosmaninho ...
Quase sinto ...

Por que será que temos estas coisas ?  Por que será que nos deixamos invadir por desnortes, que são isso mesmo... coisas inexplicáveis de orgias mentais, pura elucubração de demência ??!!...

Serão reminiscências de vidas passadas, ou sonhos de vidas futuras ???!!!...

O ser humano é meio doido,  mesmo !!!...

Anamar

terça-feira, 9 de setembro de 2014

" E SE EU ABRISSE INSOLVÊNCIA ?!... "




Preocupo-me mais, se não me preocupo ...

Eu explico : preocupo-me mais com um estado de letargia e uma postura de indiferença face à vida, do que quando ainda contundo, esbracejo, me indigno, reivindico ... O silêncio, sobretudo o silêncio de alma, é o que mais me aflige.
Porque naquele estado, estou viva, vejo colorido nos dias, tenho esperança, experimento sentimentos, acho que vale a pena, crio metas e objectivos, tenho expectativas que me importam ... encontro razões de vida !  Ainda acredito !
E nada pior que não nos importarmos já, que assimilarmos um amorfismo, uma insensibilidade e um cinzentismo face ao tempo.
Nada pior que condená-lo a um Outono antecipado e perene, fora de época !

E estou nessa !...

Neste momento, e de novo, acho que a minha vida é feita de desperdícios.  Acho que tem sido um caminho perdulário, mal escolhido, mal gerido e mal administrado.
Decididamente eu não dou para gestora, administradora, empresária ...
A vida de cada um é a sua maior empresa e desafio, o seu maior empreendimento.  E obviamente há que saber  levá-lo adiante, com inteligência, determinação, frieza e  clarividência.
Há que administrá-lo com racionalidade, objectividade e sentido prático.  Não pode haver cedências, deslizes, facilitismos.
A vida é real, todos os dias, as emoções só complicam.  Quando entram em cena, quando se sobrepõem e subvalorizam o senso empreendedor do processo, vai tudo "p'ro brejo" !

Portanto, eu não poderia nunca, dar certo ... portanto, eu só poderia obviamente falir o esquema.
Nem sei como me colocam como gerente de um megaprojecto destes !!!...

Cabeça fria na análise das coisas, é tudo menos o que eu tenho, racionalidade nas decisões, também não, clarividência ... com frequência pareço não querer ter, capacidade decisória, menos ainda ...
Aliás, a frequente e sempre presente indefinição e indecisão perante quase tudo, persegue-me com intencionalidade.  Coisa de destino, mesmo !
Tenho  um "peregrino" apelo pelo abismo, omnipotente e omnipresente.  E sempre, entre dois caminhos, sou especialista em escolher o atalho !...

Evidentemente que as minhas "finanças emocionais" têm que estar exauridas, muito mais que os fundos do "Banco mau" ...  Não há Troika por aí que me valha, nem saída que me acuda !
Não há recuperação à vista, nem a curto nem a longo prazo.  As reservas de resistência vão indo, com esta gestão danosa e ineficaz, e a esperança de refundição do processo, afigura-se tarefa titânica e impossível.
Uma auditoria não adianta, porque é linear e adquirido que a responsabilidade é do gestor !
Isso faz, colocarem-se nos cargos, pessoas totalmente desadequadas aos lugares, e sem perfil para o seu desempenho, claro !!!...

E depois há um enorme "handicap" ...  É que não há qualquer possibilidade de renovação ou  rodagem da equipa, porque seria eu, substituída por mim mesma ...
Muito pior que a "Olívia-patroa" e a "Olívia-costureira", da nossa saudosa Ivone Silva,
Por outro lado, eu reconheço ser uma aluna relapsa e desatenta, ou mesmo uma inveterada burra, porque pareço não aprender com os  insensíveis e ríspidos ensinamentos do dia a dia.
Tenho um masoquismo de vida, idiota !  Tenho um olho para entrar com as "jantes" nos buracos, que é obra !   E pareço atrair e cultivar o que me destrói !
Chama-se a isto, uma falta de pragmatismo estúpida demais !!!

O resultado de tudo, é de facto um estado de exaustão, de desencanto e de desistência tal, que me conduz à tal indiferença e letargia insolúveis, de que falava.

E  não  adianta,  porque  quando  o  registo  é  este, "encaracolo",  entro  numa  de "alforreca"  ( como diz a Lena ), fecho para obras, hiberno feito um urso polar, não emigro nas asas das andorinhas porque não posso ... encosto as janelas já que fica um por-de-sol de repente, e penso seriamente : " será que eu não poderia abrir insolvência ???... "

Anamar

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

" SOBREVIVE - SE ... "



A "lei" é a da sobrevivência ... pouco mais !

Nos dias que correm, vivem-se tempos de indefinição, de incerteza, de ansiedade, e por isso, de angústia.
Acho que não se safa ninguém.
Nem mesmo as crianças, que não mais têm  vidas descontraídas e despreocupadas, que as poupem a stresses acrescidos.
De facto, lançadas no emaranhado dos tempos, apanhadas pelo vórtice da vida insegura dos próprios pais, também elas já percebem e vivenciam a necessidade de sobreviver ... um dia de cada vez.
Também elas já percepcionam a aleatoriedade da existência diária, com escassa margem de segurança.

Os jovens, e os entalados na charneira dos trinta e muitos - quarenta e poucos anos, levam em grande maioria, uma vida atípica, maioritariamente de insatisfação, e quase sem alternativas possíveis.
A nível profissional os horizontes são sufocantes, a precariedade acentua-se, os caminhos outros, são inexistentes, a insegurança  é total.
A porta aberta ao mundo é a única saída que ainda deixa ver paisagem lá fora.  E por isso se emigra, em desespero de causa.  Porque verdadeiramente ninguém desejaria trocar a sua realidade conhecida e teoricamente segura enquanto porto de abrigo,  o seu nicho de conforto, pelo menos umbilicalmente afectivo, o seu ar e o seu chão ... pelo desconhecido, pela solidão e pela dureza da integração, onde quer que seja, ainda que seja só nos primeiros tempos, e ainda que represente melhoria significativa da realidade de vida.
O quebrar compulsivo das amarras, a violência do empurrão para a água, pode fazer do nadador, um náufrago, não esqueçamos !

A nível pessoal e familiar as indefinições persistem.  A dificuldade de equilíbrio e estabilização económica, a precariedade e insegurança do mercado de trabalho, adiam quase "sine die" a tomada de decisões de fundo, como seja por exemplo o estabelecimento de uma relação tradicional, a assumpção de filhos nessa relação, a aposta na aquisição de uma habitação para o casal, ou mesmo outras responsabilidades a longo prazo.
Porque nunca se sabe o que  esse "longo prazo" pode acarretar nas vidas das pessoas.

Ou então, as vidas das pessoas assentes diariamente em alicerces frágeis,  implantados em terrenos movediços ou "minados", não chegam sequer a resistir e a tomar consistência.
E assim, os ainda jovens oscilam entre experiências emocionalmente  falhadas, inconseguidas e desestruturantes, e desinvestimentos afectivos ( condenados que estão a sucumbir a curto prazo ). Abandonam  sonhos e projectos de vidas familiares que parecem inexequíveis, e fazem  escolhas  assumidas de vidas de solidão, com  o inerente desencanto, mágoa, frustração e estrago pessoal muitas vezes irreversível.
É isso que  confidenciam existir, é essa a linguagem que partilham entre amigos, quando se encontram e falam das suas experiências pessoais ...
Arrastam-se sem um vislumbre de futuro, eles, que teoricamente terão à  frente  ainda tanto futuro !...
E não vivem ... sobrevivem apenas !...

Os da minha faixa etária vivem "assombrados" e angustiados, num susto permanente com este mar encapelado em que são obrigados a navegar.
Criados e formados em parâmetros bem conhecidos e definidos, com regras e princípios com perenidade de segurança, com valores aprendidos e exercidos sem mutabilidade expectável, com uma previsão de futuro calma e tranquila, são agora obrigados a "mexer-se" em novos códigos, em padrões diversos, a aderir a novos "modus vivendi" que não identificam, a pactuar com novas e desconhecidas realidades ...

Não se sentem confortáveis nos novos fatos que têm que envergar, não se encaixam nos novos figurinos que os rodeiam, com regras que não entendem ... e já não têm estaleca nem saúde,  para enfrentar  a cinetose a que o sobe e desce das marés os sujeita ...
Desesperançados, cansados e com um caminho já precário e fracamente promissor a percorrer, também não vivem ... sobrevivem no cinzentismo e na brisa dos dias !...

Enquanto isto, depois de cem anos sobre a Primeira Grande Guerra e setenta e cinco sobre a  Segunda, a Europa vê de novo, meio adormecida e esquecida, parece, acender-se um rastilho ameaçador mais a leste ( não querendo entender que é num rastilho que começam os grandes incêndios ) ...

Enquanto isto, o Estado Islâmico, insano e bárbaro, assassino e inconsciente, avança em loucura fundamentalista e destruidora, numa ameaça bem clara, galopante, terrífica, imprevisível e de alcance incomensurável, sobre o ocidente ...

Enquanto isto, o ébola alastra e devasta descontroladamente, dizima impiedosamente os mais pobres dos pobres ... os países miseráveis de África ... e revela a impotência, a real incapacidade, a fraca aposta e a ainda clara  ignorância do Homem,  face aos cataclismos naturais que se abatem sobre o Mundo ...

Estranhos dias estes !...
O planeta Terra está,  de facto, a ficar um lugar pouco recomendável e esquisito para se sobreviver ... que direi para viver ?!...

Anamar

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

" A CRISE ESTÁ A AJUDAR A JUNTAR QUATRO GERAÇÕES À MESMA MESA "


A  casa de Isabel Cabral, em Ermesinde, é um exemplo de coabitação, impulsionada pela crise, de várias gerações da família


Encerra-se aqui, a publicação dos cinco artigos, escritos pela jornalista Ana Cristina Pereira do jornal "Público", sobre "as diferentes gerações", e divulgados ao longo de cinco domingos consecutivos.

Porque os achei interessantes, pertinentes  e lúcidos, decidi partilhá-los com todos aqueles que acedam aqui, ao meu espaço.

Anamar


Por força do desemprego, da precariedade e da emigração, pode estar a abrandar o processo de desarticulação das famílias e a aumentar a coabitação de gerações.  Este é o último de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações.


Maria não larga o telemóvel. Anda encantada com um rapaz e a conversa com ele, parece interminável - trocam mensagens a uma cadência só deles.  "Dizemos coisas sem jeito, mas que para nós fazem sentido ", conta ela, entre risos.  Nada irrita tanto os avós como aquele toque constante.  De vez em quando a avó até lhe diz que gostaria que o telemóvel caísse e deixasse de funcionar.

Só tem 14 anos, Maria António.  Mora com os avós em Santa Eufémia, uma aldeia do concelho de Leiria.  A mãe está em Bergen, a segunda maior cidade da Noruega.  Maria esteve com ela dois anos e meio, mas quis regressar.  Quer fazer um curso técnico-profissional de gestão de quintas e eventos equestres.  E está convencida de que em Portugal as escolas são mais exigentes e os cavalos melhores.  "A minha mãe deixou-me vir.  Ela está triste, mas compreende ."

Mónica António, a mãe, não pensou que lhe custasse tanto deixá-la ao cuidado dos avós.  A 11 de Agosto, estava a colocar a mala na bagageira e já lhe rolavam as lágrimas pelo rosto.  Foi a chorar grande parte da viagem até Lisboa.  Recomeçou o choro mal ouviu, já no avião, falar norueguês.  "Estás no teu país e já não estás.  Já estás a ouvir uma língua de um sítio para o qual não queres voltar."

O avô torceu o nariz.  Tudo aquilo lhe parece um bocado disparatado.  Para ele, adolescente não tem querer ;  quem tem querer é o pai ou a mãe ou ambos, caso ambos se portem como pais, o que não é o caso do pai de Maria.  A mãe pensou muito.  Maria tinha quatro anos quando o avô a levou pela primeira vez à Feira da Golegã e lhe comprou um cavalinho de plástico.  Por volta dos seis começou a pedir para montar.  Monta desde os sete.  Quantos pais podem gabar-se de ter uma filha que, aos 14 anos, sabe o que quer ?"  "Ela está feliz em Portugal ", percebe a mãe.  "É  uma rapariga da terra.  Gosta de tomar banho na nascente, de ir à terra com o avô, de alimentar as galinhas, os perus e as ovelhas.  Se tiver equitação, passa horas a limpar as cocheiras."

Que não haja equívocos.  As famílias, sublinha o sociólogo Manuel Villaverde Cabral, não são democráticas, embora sejam menos autoritárias, menos impositivas, do que há 30 ou 40 anos.  As idades continuam a pesar, até "pelas diferenças de formação e do papel que cada grupo etário desempenha na sociedade e dentro da própria família."

As relações entre as gerações podem variar conforme a classe social, a zona de residência, o posicionamento político, a escolaridade, a orientação sexual e outros factores.  O uso do telemóvel, porém, será quase sempre um ponto de descontinuidade.  Dir-se-ia que os mais novos não se cansam de o usar.  Mandam em média 100 mensagens de telemóvel por dia - segundo um estudo feito pelo Instituto Superior Técnico e pelo Instituto de Telecomunicações no ano lectivo de 2010-2011.  Às vezes, parece que querem só testar o canal de comunicação.  "Estás aí ?"  "Onde estás ?"  "Está tudo bem ?"

Quando Mónica era adolescente, havia dois telefones lá em casa e ambos tinham um cadeado a impedir chamadas não autorizadas.  Qualquer conversa podia ser ouvida.  Agora, Maria tem telemóvel na mão e destreza nos dedos.  O avô, de 68 anos, a avó, de 62, adoram-na, mas não compreendem aquela ligação à máquina.  Os pedidos para sair são outra tormenta.  Têm medo que algo lhe aconteça.  A mãe explica-lhes " que tem de se confiar, que ajuda soltar a corda com limites."

Era outro o Portugal da juventude dos avós.  Há 50 anos, 91% dos casamentos realizavam-se sobre a égide da Igreja Católica, o marido provia o sustento e ditava as regras ;  a mulher era responsável pelo governo da casa e, tal como os filhos, devia-lhe obediência - só 18% delas trabalhavam fora.

No calendário das relações entre gerações, vale contar um antes e um depois de Maio de 1968, que começou por ser uma contestação estudantil em França e se tornou  no que Villaverde Cabral descreve como " o cume do movimento antiautoritário que varreu o mundo".  Nos países democráticos e não só, " a contestação da família patriarcal, da repressão sexual e das desigualdades de género fizeram diminuir o autoritarismo."

Depois de 25 de Abril de 1974, Portugal tratou de recuperar o atraso.  As mulheres atiraram-se de cabeça para o mercado de trabalho.  Diminuíram os casamentos, aumentaram os divórcios, diminuíram os nascimentos, aumentou a esperança média de vida.  É essa, resume Villaverde Cabral, " a modernidade da sociedade actual.".  Com tudo isso " a noção de família foi perdendo a sua personalidade masculina autoritária."  e a própria família perdeu muito do seu peso " como referência social e mesmo pessoal."

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

" ENCERRARAM-NOS O SONHO ... "



Ontem cometeu-se um crime em Sintra.

Porque um crime pode ser tão somente um atentado ao nosso património cultural, um assalto às nossas memórias colectivas, um roubo dos nossos sonhos, um margear compulsivo do nosso imaginário.
Um crime é tudo aquilo que nos vede a criatividade, defraude a fantasia, nos cerceie a vastidão da "viagem", nos erga muros ao "passeio" da mente e do coração ... nos ampute a ilusão, de pelo menos por um par de horas, nos sentirmos crianças outra vez ...

O Museu do Brinquedo em Sintra, sem acordo possível entre o proprietário ( já que de uma colecção particular se trata )  e a autarquia, encerrou em definitivo as suas portas e janelas, pelas seis da tarde deste 31 de Agosto de 2014, numa tarde quente e ensolarada, com a vila do romantismo pejada de visitantes, portugueses e estrangeiros, adultos e crianças.
Havia alegria no ar, havia boa disposição, e aquela displicência de quem usufrui o que quer que seja, sem pressas, degustando cada instante.

Desloquei-me intencionalmente a Sintra, inclusive não estando em perfeitas condições de saúde.  Mas fi-lo numa espécie de despedida devida a um espaço, que durante dezassete anos prestou um serviço público absolutamente  ímpar, estou certa.
Isso se percebia claramente pelos rostos, e pelas expressões de apreço e de alegria incontida das muitas crianças que por lá circulavam, encantadas, agradavelmente surpreendidas, a deleitarem-se numa realidade lúdica que não é seguramente a sua  na actualidade, e com uma curiosidade  insaciável e atenta, de ouvirem as histórias e as explicações dos adultos que as acompanhavam.
Esses sim, misturavam numa indefinição de sentimentos,  algo que se percebia doído, emocionado, saudosista, fascinado ... com estupefacção, mágoa e revolta.
No ar pairava uma pergunta indignada : " Porquê ?! "  "Por que não foi possível chegar-se a um consenso e acerto entre as partes implicadas, por forma a que, como acontece em muitos países estrangeiros, se pudesse ter mantido entre nós, um lugar tão peculiar, um serviço público de tanta valia, com um acervo amplamente divulgador da cultura de um povo, das suas raízes, costumes, memórias e histórias ... Tudo o que constitui também  afinal, a nossa identidade cultural ?!
E bem assim,  possuidor  ainda, de um espólio valioso, de peças de origem internacional, com igual importância" !

Por que é que este país tem uma estranha vocação para perder, para se empobrecer, para não se dar valor, para não se cuidar ?!...

Não ouviremos mais, exclamações  encantadas  face a um pião, a um livrinho de histórias, a uma mini tábua de engomar, um servicinho de loiça, um carrinho de bombeiros, um comboio no emaranhado dos  carris, um batalhão de soldadinhos de chumbo, um "Jogo da Glória" de tantas tardes sonolentas, ou um pequeno balde de folha, companheiro de areais perdidos : " oh ... eu brinquei com um exactamente igual !... "  "olha ... eu tive um destes !..."
E o puto a indagar insistente, sobre o paradeiro da dita peça ... e o pai a responder : " deve estar lá para casa da avó !..."

Não ouviremos mais as explicações detalhadas e cuidadosamente possíveis, dos adultos, perante os rostos sedentos da criançada, sobre o que eram as trincheiras da 1ª Grande Guerra, ou sobre os hospitais de campanha, ou o desfile das tropas alemãs pelas ruas de Berlim, com a suástica estampada nos carros de guerra, e a saudação nazi exibida por cada soldado ...  para se ouvir logo a seguir, um puto esperto e informado, argumentar : " olha, olha mãe ... o Hitler !  Vai lá à frente, naquele jipe !..."
... ou o adiar para melhores horas,  do esclarecimento complicado sobre a "múmia" que repousava na vitrina !!!...

Enfim, uma ternura sem tamanho, tudo isto !...

Dei por mim a sorrir.
Dei por mim a recuar no tempo, e a passear-me pelas lembranças doces e distantes da minha meninice.
Do tempo em que a Lolinha, a minha primeira boneca de porcelana, de caracóis  loiros  e olhos azuis, que chorava quando embalada, e que "vive" comigo até hoje ... me entrou pela vida adentro, pela mão do meu pai !...

Outros tempos, outros sonhos, outra vida ...   Outra que eu era !...

Ontem cometeu-se um crime em Sintra.
O Museu do Brinquedo encerrou definitiva e injustamente, numa tarde quente, luminosa, aparentemente indiferente ...  E com ele, encerraram-nos também o sonho !...

Mas a curiosidade das nossas crianças, as recordações dos nossos velhos, e obviamente a memória saudosa de todos nós, não o mereciam !!!...



Anamar