sexta-feira, 31 de outubro de 2014

" OLHOS DE GATO ... "



Estou a ver se vejo isto pelos olhos dos gatos ...

Eu tenho dois ... gatos de apartamento.
Agostinho da Silva alimentava os que vagueavam nos telhados circundantes, pelas madrugadas, e vinham ao sótão filosofar com ele, discutir-lhe os estados de alma ... consta.
Porque, não tenho dúvidas ... os gatos são filósofos.  São-no, além de muitas outras coisas que escapam ao entendimento humano.

Olho os meus, e sinto que os injustiço.  Como eu gostaria de ter uma qualquer "porta de serviço", directa para as estrelas, para que eles as pudessem olhar, na frescura das noites !
Porque os gatos preferem as noites.  Por isso são seres místicos e míticos, já que nas noites, os seres que as povoam, são mutantes, não tenho dúvidas.
São seres de silêncios e de penumbra, aquela luz difusa que define com total clareza, contornos que só alguns olhos sabem ver.
E os deles sabem !

O Óscar era feliz nas telhas da Verdizela.   Calcorreava-as de ponta a ponta, de nível em nível, ora para a frente, ora para trás, perscrutando lá de cima, o pinhal, cuidando de perceber os ruídos, apercebendo o resmalhar da folhagem das buganvílias trepadoras, que subiam alto ...
Era um pequeno tigre garboso, recortado na escuridão do firmamento, absorto em contemplação, ou de tocaia aos sons do silêncio.
O Óscar não descia as ramagens, mas às vezes tinha a visita de parceiros mais felizes ... os gatos vadios, gatos de ninguém, gatos de pinhal ... gatos do mundo !
Gatos inteiros, ousados e curiosos de desfrutar o "poleiro" privilegiado do Óscar.
E então era aquela coisa da demarcação de território ... E nessa matéria, ele não dava abébias.  Aqueles telhados eram  seus, afinal !!!

Mas como os meus gatos são gatos de apartamento, o mais que fazem é olhar a lua, que quando é cheia, os endemoninha.  A eles e a mim !...
Semi-cerram os olhos para melhor focarem aquela estrela no infinito ... ( aquela lá longe, que parece piscar-lhes um segredo ).  Ou seguem fixamente o voo provocador dos pombos que os desafiam, ou  olham nostalgicamente a minha gaivota quando poisa perto demais, equilibrando-se ora numa ora noutra pata, numa espécie de sapateado, no altinho dos terraços.
Aí, rilham os dentes, e transformam essas figuras livres e soltas, em presas imaginárias, em caçadas  mais imaginárias ainda ...  até que lhes saiam do horizonte visual ..
Então, retomam a vigília em que passam as horas, sobretudo se o sol abençoar os seus lugares de estar.

Os meus gatos de hoje, os tais que dividem o apartamento comigo, não sabem o que é um quintal, um telhado, um beco mal cheiroso, sequer a sombra protectora de um carro ...
Por isso aspiram, aspiram profundamente, os cheiros que alcançam a nesga da janela do sétimo andar.
Tudo é novo, além das paredes, das janelas e da porta da rua !
Bebem o ar fresco que corre, o vento endiabrado que lhes abana os bigodes, brincam com as gotas da chuva que escorre nas vidraças ... como bênçãos dos céus, num deslumbre absoluto !
E queimam os dias a dormir, ronceiros, nos locais mais inimagináveis da casa, e tentam brincar com bolas, tampinhas, fitas de embrulho em caracóis provocantes ... porque até os ratos, tristemente são a fingir ...
E claro, desafiam-se, surpreendem-se, perseguem-se, lambem-se, mordem-se e enroscam  os corpos numa bola única de pelo ...
E voltam a dormir !!...

O Chico, o pachorrento grandalhão, atreve-se à escada, se consegue passar pelas minhas pernas distraídas, quando entreabro a porta.   E desce-a, apressado, como se conquistasse algum paraíso perdido.
Um dia não dei por ele e ficou fora, no emaranhado de um mundo novo que é o meu prédio de sete andares.  Algum tempo depois, chamava do lado de fora, reivindicando a entrada.
Ficam assim, meio burros, os gatos de apartamento !...
Mas também, o Chico é um pouco tímido, já percebi, e carregado de bonomia.
Já o Jonas, não se atreve.  É um ladino do caraças, um reguilóide movido "a pilhas".  Pequeno de porte, magro, elegante, é um vivaço  com olhos de miúdo safado ... mas um medricas permanente.
Basta uma sapatada do Chico para o meter na ordem, e acalmar a sua hiper-actividade.  Então, que remédio ... brinca sozinho e de tudo faz um brinquedo.
Lembra os filhos únicos, que têm que entreter-se por conta própria ...

E o tempo passa, e estes pobres gatos do "betão", nos redutos musculados que são as nossas casas ( e que sempre achamos serem as suas maiores maravilhas ), não vivem ... vegetam.
Esperam ( se calhar como nós ), apenas que o tempo passe.

É certo que têm o prato cheio, é certo que não sofrem a intempérie e a insegurança da terra de ninguém ... e na generalidade são rodeados de muito carinho e afecto.
É certo que os maltratos da rua,  não os atingem ...
Mas sofrem outros, infligidos à sua condição de seres vivos.
O Homem castra-os ( "trata-os", como as pessoas dizem, para adoçarem o acto ).  Não acasalam, não procriam, portanto.   Há quem lhes extraia as unhas, para que os sofás fiquem incólumes ...
Fazem  pouco  ou  nenhum  exercício  físico,  porque  obviamente  o espaço  de que dispõem  é  limitado.  Em  consequência,  tendem  a  tornar-se  obesos, com  inerentes  problemas  de  saúde ...
Mas  não sofrem depressão  como os humanos, nem problemas existenciais ... porque os gatos, não são dados a essas minudências ...

Tenho pena deles ... dos gatos do "betão" ...

A vertigem do pinheiro, não a conhecem, a emoção da caçada, também não, os instintos da defesa, do ataque e da emboscada,  inatos nos felídeos iguais a si, não os apuram ...
O sabor do vento e da chuva,  a felicidade dos caminhos francos,  os espaços amplos  ou o esconso das ruelas ...nunca virão a saber como são ...
Não apanham pardalitos, lagartixas ou borboletas ...
Não sonham ... não vivem romances tórridos, pelo luar de Janeiro ... nas escapadelas nocturnas !...
"Liberdade", não é palavra do seu léxico ...
Afinal, estes gatos "civilizados" não são mais que pássaros de asas cortadas,  habitando gaiolas douradas e  olhando o infinito perdido !!!...


Anamar

domingo, 26 de outubro de 2014

" DE TUDO UM POUCO ! "




Reincido no tempo !  Salvam-se as castanhas assadas, que estão no tempo, e já fumegam por aí !

Eu, estou com um pé em cada estação.  Tenho um olho guloso na praia que não pisei por cá, este ano...  tenho a ânsia de coração, da renovação que as Primaveras nos trazem ... experimento interiormente a nostalgia e o encasulamento de um Outono meio louco, que padece de sezões ... e pareço precisar urgentemente, do frio e do desconforto que o Inverno promete, para assim aceitar com alguma bonomia,  a vida confinada às quatro paredes deste quarto, aberto como sempre, sobre o casario desordenado duma terra sem história, simpatia ou beleza.
É verdade que o sol se põe ainda entre os laranjas e os vermelhos, é verdade que ainda desenha lindos ocasos lá ao fundo ... mas sente-se tudo fora de ordem ... na Natureza e em nós próprios ...

Ontem, "Os gatos não têm vertigens" ... uma ternura que até estranhamos.  O desempenho magistral duma Maria do Céu Guerra  igual a si própria ... sem beliscadura.  Um filme "naïf", com tanto de verdade, de realismo e de emoção, que nos embala o sonho e ilumina o espírito.
Tantas questões ali respondidas !  Tantos sentimentos ali experimentados !
Fiquei a saber ( e isso aqueceu-me a alma ) ... que não sou velha ... sou "vintage" !!!....   (rsrsrs)

Depois, a arrecadação, lembrando um campo de batalha, onde já não pisava talvez há mais de dois anos.  Uma "conveniente" avaria não reparada da porta, impediu-me o acesso a tralhas de uma vida.
Esta minha arrecadação é ecléctica  no recheio, e guarda histórias contadas ao longo de todo o sempre.

Ela guarda as provas provadas de uma família.  Lá, tudo mora.
O que por já não ter préstimo imediato, não garantiu lugar na casa,  o que guardava expectativas de reutilização um dia, às mãos dos vindouros, e aquilo que ainda se mantém "em trânsito" entre o lá e o cá, como é o caso das malas, de próximas, longínquas viagens, com muito de sonho, e não tanto de realidade ...
Chegou a hora de abrir a porta, de franquear a entrada, de tomar pulso ao poder do tempo sobre as coisas ... e de decidir. Decidir o que fazer à montureira guardada ... Se a redefinir, se continuar deixando-a  ao percurso do tempo, para um dia alguém ser compelido a tomar tal tarefa em mãos ...

Achei que teria que agir.  Porque se nada daquilo me fez falta durante tanto tempo já, não fará seguramente nunca mais !

Olhei as gaiolas e os viveiros dos pássaros que já tive.  Vazias, ferrugentas, parecem apartamentos devolutos sem vida !
Olhei as "toneladas" de livros escolares, dossiers de arquivo, cadernos e testes.  Se nunca mais ninguém  os  utilizou,  caídos  em  desuso,  nada  já  se  adequa ... O  "papelão"  os  aninhou !...
Olhei os suportes de garrafas, sem garrafas.  Vinhos que azedaram, ou se delapidaram de alguma forma .  Ninguém lhes sentiu a falta !
As historinhas infantis e adolescentes, da infância e juventude das minhas filhas e minhas também ! Para essas, garanto um final mais feliz.  Tenho uma menina de dez anos, que felizmente gosta de ler.
Acho que apreciará !
E tenho jogos e peluches e bonecas, e "chorões", e legos, e loicinhas e "pinypons" ... e berços e carrinhos, e toda a panóplia de cangalhada que faria as delícias de um rancho de meninas ...
Tenho dois rapazes e uma rapariga, sendo que o mais novo já fez sete anos ...
Nunca a "arrecadação" desceu, pela escassez do tempo, quiçá pelo "démodé" dos brinquedos !...
Olhei a arca, cheia dos papéis dos sonhos ...
Eu explico :  à medida que as minhas filhas, uma a seguir à outra, aprenderam a fazer riscos, desenhos, colorir, pintar ...
à medida que produziam em série, paisagens ordinariamente providas de casa, sol com olhos, árvores maiores que a casa, flores que eu diria gigantes, e um boneco e uma boneca, por via das dúvidas legendados ... "papá" e "mamã" ...
à medida que esse manancial artístico era produzido, juntamente com os primeiros "os" e "as", e "is", dentro das duas linhas bem juntinhas a conterem as letras entre si, nos primeiros cadernos ...
à medida que as palavras incipientes,  de duas sílabas, as primeiras frases de uma linha, e redacções de três, eram articuladas ...  eu sonhei que um dia, sim, com todo o tempo do mundo, com toda a paciência do mundo, com toda a placidez, eu iria desfrutar ainda enlevada e babada de novo, tudo aquilo ... sendo que o faria com a paz, a serenidade e a disponibilidade que me seriam conferidas pela fase da vida que então viveria ...

Pois bem ...
À semelhança de tudo na nossa existência, adiar é um erro.  Guardar para revivenciar, um logro. Esperar o reencontro com emoções "em marinada", um engano.
Há que esgotar o momento, e nunca deixar para trás. "Agora", é a hora para o que essa hora nos dá. Deixar que o bafio penetre os nossos sonhos ... inadequado.  Viver até à exaustão, uma ordem !
Nunca nada se repete, a vida é permanentemente mutável ... e o significado das coisas, único !
Resta-nos a mágoa irremediável da saudade.  E a saudade é uma realidade inacabada ... que veio "à forra" e nos faz sofrer !
Inevitavelmente !!! Tão inevitavelmente, quanto o é o percurso inapelável e inexorável do tempo !

Decidi que não quero, nem posso fazer da vida uma "arrecadação", como a minha.
Empoeirada, desarrumada, desordenada, escura ... sem luz ou sol que a rasgue.
Com um recheio obsoleto,.. imprestável !  Uma arrecadação de memórias, que foram fugindo em bando, pelos interstícios da porta !
Uma fotografia a sépia, cuja precisão vai sumindo na penumbra !...
Bafienta.  Com um imobilismo ou adormecimento, anquilosantes ... incapacitantes ... mortais !!!...

De tudo um pouco, neste fim de semana "ronceiro" ...
Um fim de semana em que também a hora mudou, para antecipar a noite e a escuridão, a dias de verão que se recusam a invernar ...
Tudo  morno,  um  marasmo  oxidante ... uma  modorra  de  tarde  estival,  pegajosa,  a  destempo !!!

Anamar

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

" ESCORRÊNCIA "




Ando tão indefinida quanto a indefinição do tempo !

Um tempo que põe a mesma árvore que frutifica, a reiniciar a floração, sem se decidir ... põe-nos a nós, de neurónios baralhados, corpos confundidos, feitos "baratas tontas", em encruzilhadas de vida, sem bússola.
Ou em alternativa, que o não é, num marasmo, numa apatia, numa desmotivação e num cansaço de doer.

Um "abanão", dizia-me um amigo, eu precisar urgentemente ... Um abanão !!!

Mas que abanão ?   Que intensidade de abanão precisarei eu, para ver a vida de outra forma, para me ver com outras "lentes", para achar alguma credibilidade nesta coisa que vou desfiando ( "gemendo e chorando, neste vale de lágrimas" - dizia-se na catequese ), vinte e quatro sobre vinte e quatro horas ?
"Para sorrir" ... dizia ele !...
Refém ... sinto-me refém de uma não sei que história sem história,  sinto-me penitente de uma não sei que falta ou pecado, sinto-me ré de um não sei que ilícito ou infracção ...

Dor ...
Um destes dias li um artigo espantoso, sobre a dor.
A dor muda que carregamos e não dizemos. Vem às vezes aos rostos, que não têm a habilidade da camuflagem ...
Vem às vezes à voz menos treinada em desdizer ...
A dor do corpo, quase sempre a menos importante, e depois a outra, a gigante ... a monstruosa ... a da alma, a que está cá dentro e que comanda.
Comanda o dia e comanda também a noite.  Traz-nos ao peito, raivas  incontroláveis.  Traz-nos água aos olhos, desobedientes.  Traz-nos nós que não se desatam, às gargantas que entopem e emudecem.
Ensombra a luz do caminho, e por isso, o assombra irremediavelmente.
Paralisa e tolhe.  Agarra-nos, como as forças da lama de um pântano escuro agarram quem lá fica prisioneiro.


A dor, cuja cura mendigamos e de que ninguém quer ouvir falar, por incómoda, por perturbadora, por massacrante ... Se calhar, até por acusadora ... será ?
A dor que não expomos, porque não é socialmente correcto expô-la, não é prudente no mínimo, ou aconselhável ...
Sequer adequado, encararmos as fragilidades, denunciarmos as dificuldades, exibirmos as nossas merdas, e menos ainda, servi-las de bandeja na praça pública, para repasto de urubus ...
Porque urubus pairam, sempre pairam, desde que cheire a carniça em putrefacção.
Já assim é, na savana africana ...

E isso, é demais ... assim já é demais ! É masoquista, é suicida, é temerário ... é brincadeira de mau gosto, ou perda da noção !
Porque é no mínimo ingénuo acreditar em arrego, esperar uma espécie de protecção ou colo anónimos, acreditar em disponibilidade, interesse ou vontade real, filantropia, afecto de geração espontânea, propiciados a nomes sem rosto ... o nosso .
É no mínimo tonto, fora da realidade ... sem necessidade, dirão os avisados.
E depois, quem é suficientemente insano que grite no escuro, que suba à montanha e clame, ou que abra o buraco no deserto e largue lá o seu desespero, auto-estigmatiza-se, auto-rotula-se ... coloca-se uma etiqueta ...
Desnuda-se, tira a roupa protectora da alma ... e mostra-se vulnerável e frágil.  Mostra-se no seu pior.
Mostra como é tão anormalmente diferente, tão imperfeitamente humano, tão marginalmente "outsider", numa sociedade de sentires calibrados, equilibrados, previsíveis e aconselháveis.
Uma sociedade vocacionada para o sucesso, e para os vencedores ... Não para os perdedores, aqueles que evidenciam uma sobrevivência desequilibrante e desequilibrada !...

E talvez tão tivesse valido a pena !...

E incomoda os outros !

E as pessoas não vivem aqui, para serem incomodadas.
As terapias, individuais ou grupais, como qualquer serviço, pagam-se.   E aliás, custam os olhos da cara a quem delas precise !
A sociedade não tem obrigação de ser psicoterapeuta de causas não suas !
Nela, é cada um por si.  E é esta a realidade.  Não tenhamos veleidades !

Na verdade,  muitos, quase todos  vivem felizmente deslumbrados com a vida.   Vivem numa integração quase perfeita no éden da existência.  Vivem em gratidão permanente.  Vivem em êxtase absoluto, porque acordam e dormem cada dia, todos os dias.
Numa realidade normativa, cumprem sem guerrear, com  razoável satisfação, o inquestionável, destinado a si e aos que amam.
E percebem que é assim, deve ser assim ...  Incorporam essa realidade sem utopias, sonhos megalómanos, devaneios absurdos, exigências doentias, insatisfações despropositadas ... a idiota mania do direito à felicidade ...

São indivíduos estruturados, assertivos, inteligentes, pragmáticos, realistas, saudáveis, não lunáticos, crescidos e não atrofiados emocionalmente, adultos, maduros ... ( sei lá o que estas coisas são !!!... )
e por isso, talvez felizes ... ou mais felizes !

Sabem, é muito engraçado fazer-se uma análise antropológica, social, relacional ... das respostas de cada indivíduo face ao que o perturba, ao que o desagrada e o incomoda. Face a quem vá chapinhar no seu charco cálido e manso ...
Se nos cheira mal, afastamo-nos.  Se nos queimamos, tiramos a mão.  Se nos incomodam, evitamos e podemos mesmo fugir ...
Deve ser legítimo, lógico ... deve ser humano !

E uma escorrência fétida, putrefacta, infecta ... só mesmo de máscara, luvas e viseira ... eu entendo !...

Anamar

domingo, 19 de outubro de 2014

´" É ASSIM QUE EU SOU !..."




É extremamente curioso, o ambiente de um terminal de chegada de aeroporto.
É um mundo dentro do Mundo !...
Seja na multidão que circula, seja na diversidade cultural que desfila, seja no multicolorido da pele, dos trajes, seja nas línguas, nos cabelos, no ar, dos que estão e dos que chegam ... seja nas emoções expressas ou na ausência delas ... seja no ruído de fundo, permanente, seja até nas bagagens que passam ... Tudo é uma curiosidade só !!!

É um espectáculo, estar simplesmente sentado, apenas olhando atentamente, sem urgências, analisando quem, com mais ou menos pressa, chega e parte.
Chega do grande coração intraportas que medeia desde a pista de aterragem à sala das bagagens, por corredores intermináveis, guichets, escadas e passadeiras rolantes ... e parte para o exterior, para a rua, para a grande metrópole ... para a vida lá fora, para o trânsito, para a chuva, o calor ou o vento, para a família ou para os hotéis, para alguém, ou para ninguém .

Os rostos em férias são diferentes dos rostos em trabalho.  O ar tranquilo dos que se adivinham veraneantes, é diverso do ar afobado, do fato e gravata, dos que se adivinham em trabalho.
As mochilas a que quase   se resume a bagagem despreocupada dos mais jovens, contrasta com as várias malas, avantajadas quase sempre, das famílias ou dos viajantes de uma faixa etária que nunca dispensa as "amenities " ...

Os operadores de viagens esperam fastidiosamente a chegada dos clientes.   Exibem mecanicamente o folheto informativo, gracejam entre si.  Às vezes parecem sonolentos.
Aeroporto, para eles, representa trabalho simplesmente.
Já nem curiosidade experimentam pelos rostos que esperam, massa informe que se repete em ondas, pelos dias e pelas noites.

Quem chega e sabe que tem quem o espere, abre um sorriso à porta de acesso, rasga esse sorriso quando encontra o rosto esperado no meio da multidão, e acena efusivamente enquanto empurra em ritmo acelerado, o carrinho da bagagem, pela rampa abaixo, na urgência do abraço, do beijinho, de mais sorrisos e gargalhadas.  Afinal, o chão firme já está debaixo dos pés ...

P'ra mim, um aeroporto sempre é um lugar de emoções.
Está inevitavelmente associado a destinos, a sonhos, a outras realidades, novas vivências e maior riqueza interior ...
A períodos garantidos, de afastamento das rotinas muitas vezes pesadas ...
Está associado a sol com outra cor, a mar generoso, rostos distintos, verde e flores, saberes e sabores, outros cheiros e outro vento ...  outra chuva, aventura e liberdade !
Há sempre um mistério desejado e doce, para além das salas de embarque, que não consigo disfarçar.
Mesmo quando não vou, mesmo quando ali estou apenas por acidente, e não saio do lugar ... o meu olhar guloso e atrevido infiltra-se, sem passaporte, percorre corredores, escadas, passa barreiras, adivinha os assentos de espera, olha a pista com os "monstros" alados em dormência de repouso, e o meu coração de caminheiro inquieto, sem rota definida, de viajante sedento e curioso  - que feito pássaro solto, salta de galho em galho  -  acelera as batidas, e lança-se no espaço, em velocidade de cruzeiro, a muitos mil pés de altitude, para um voo interminável e errante !!!

É assim que eu sou !...



Anamar

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

" HISTÓRIAS SEM HISTÓRIA ..."


O tempo está isto. Está esta coisa que se sabe ...
Mas também, sempre ele tem a culpa de tudo ! Por isso, ri ou chora, adocica ou sopra de fúria, se, e quando quer. Com estados de humor indiferentes aos estados de humor flutuantes, dos simples mortais.

Afinal a gente sempre reclama. Sempre achamos, do que reclamar.
É a humidade, é a chuva, é o sol forte demais, a desuso, é a ventania desabrida, é o ar trovoado que nos azara a cabeça, ou é o cinzento de um céu mal pintado ... Enfim, qualquer coisa é "bode expiatório", qualquer coisa justifica o desconforto, a vontade estranha de fugir, de voar p'ra outros céus,  outro chão ...
Qualquer coisa explica esta estranha ânsia de levantar ferro e zarpar ... zarpar por aí, por onde não houvesse vivalma ...de preferência ... digo eu !

Até os patos estão fora do lago...
Mais de vinte ponteavam há pouco a relva, na bordadura da água.
Cá fora a chuva cai, copiosa, insensível. Tenebrosa.  Toda a noite, toda a madrugada e por todo o dia, vento fortíssimo arremessou torrentes de água contra os vidros das janelas, empoleiradas neste terceiro andar, sobranceiro ao verde frondoso das árvores baixas e da relva do golfe, e frente ao cinzento uniforme e plúmbeo do céu, sem horizonte que o limite.

Está um tempo de borrasca.
O firmamento não tem nuvens ... é uma nuvem !   Inteiro, escuro e triste, desliza açoitado pelo vento, empurrado, como se fosse fumarada enfarruscada de chaminé de fábrica.
As árvores vergam, ameaçando quebrar, a temperatura caíu abissalmente, antecipando um Inverno em Outubro ... e as rajadas ruidosas, assobiam desaconchegando tudo e todos. Fustigando o corpo e macerando a alma !...

O silêncio por aqui, ouve-se ...

À excepção do assobio da ventania que se esgueira por qualquer não detectada frincha, à excepção do tamborilar forte das gotas de chuva nas vidraças, e do lamento queixoso da ramaria ... tudo o mais, é quietude.

Vi-os há pouco , à passagem ... aquele casal, na beira da estrada.
Dividiam uma protecção única, para a chuva impiedosa.  As roupas ainda ligeiras, obedecendo à convenção calendarizada, levantavam as golas, fingindo proteger.
Eu juraria estarem completamente encharcados, porque o vento desordenava o percurso da chuva .
E cingiam os corpos na tentativa de aconchego ... e seguravam o chapéu sem esperança, titubeante aos golpes desabridos ... e tinham os rostos iluminados, radiosos e coloridos do calor terno que os inundava, com  uma felicidade e um sorriso tão rasgado, que desafiava a autoridade dos céus ...
Eu diria que passeavam pelos intervalos das gotas, provocadoramente, desatentos ...
Tão demais o que os unia !!!...Tão de menos a intempérie que os rodeava !!!...

Anoiteceu-me junto às vidraças.
Sou eu, os dois gatos e a cadela, o universo espectador deste fim de dia.
Eles dormem.  Eu, alongo o olhar através da penumbra que desce mais e mais, de instante a instante, apagando os contornos deste quadro sem caixilho.
Espicho os olhos por entre as cordas que despencam dos céus, na tentativa de divisar alguma coisa, alguém ... lá longe ... mais além ..
Uma sombra que entrasse solidão adentro... Uma ária que me trinasse um rouxinol ... Um perfume que me subisse da mata ...
Ou tão só, na esperança  de descobrir onde pára a nesga de azul e os raios de sol ( neste anoitecer castigador ), que eu tenho a certeza, pairavam sobre o chapéu de chuva daqueles dois ...

Anamar

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

" INEVITABILIDADE "




Não sei como será viver-se, tendo como esperança de vida, não  ter esperança de vida ...
Não sei como será acordar-se, e por cada manhã  constatar que  mais uma noite passou,  e voltaram a esquecer-se de nos vir buscar, durante o sono ...
Para o bem ou para o mal !...  Ainda não foi desta ...
Não sei como é, olhar o mundo do poleiro da ramagem,  da emoção daquele galho que já foi nosso, e saber que os voos não se podem fazer com as  asas já cortadas ...

E sentir o fervilhar da vida por aí, ouvir dos projectos e dos sonhos, perceber a pulsação dos que riem, dos que falam e se agitam, e entram, e saem, e caminham ... porque têm caminho à sua frente ...
Conviver com o sorriso feliz e iluminado, dos que têm esperança ... porque têm vida !!!

E  não têm paciência, disponibilidade, vontade ou interesse, para ouvir aquela nossa história que nos garantem, repetida já,  cem vezes ...
E confrontam-nos  constantemente  com a confusão, a imprecisão,  a ausência de nexo da nossa argumentação ...
Eles lá  têm tempo para isso !!...
O tempo deles é precioso demais para o perderem  escutando nada de relevante.  Afinal, têm vidas que os solicitam, e onde  há  tanto  para fazer !...

E reclamam da repetição do repetido, da negligência dos nossos  cabelos brancos em desalinho, da indiferença ou da distância adormecida que nos embala ... porque as emoções nos falham, as forças se esbatem,  o cansaço se instala, a  mente  se  opaciza ,  na proporção da turvação crescente do nosso olhar... e da nossa cabeça !

Não sei como será percebermos que o tempo passou, muito depressa, que o nosso lugar do sofá, é quase só o que nos deixaram ... e que nos cabe viver, ou melhor, sobreviver  sem que façamos grande turbulência, exigências,  ou agitações de maré brava e perturbadora ...
Para que o estorvo que já somos, não se torne insuportável, e a nossa presença  quase já  muda ... inaceitável ...

E verificamos o ar entediado  e saturado com que não ouvem já as mesmas queixas, repetidas mil vezes, que falam das dores, da imobilidade, do desequilíbrio, dos sons  não ouvidos, ou das imagens não definidas ... Do que se confundiu, do que se esqueceu, do que se baralhou ...
Se tudo isso é verdade, é constante, é permanente ... e dói mesmo ?!
Dói no corpo alquebrado, no coração cansado e na alma entristecida ?!

A minha mãe tem noventa e três anos e meio.
Já por aqui falei muito dela.
Já contei como a sua história é de coragem, dedicação, força, tenacidade e persistência.
Nunca foi mulher de capitular face a adversidades e  a  tropeços.  A  sua vida  foi sempre mais a dos outros, em detrimento da própria.  A do meu pai, a minha, a das netas ... também  a dos bisnetos.

Agora garante estar  farta de por aqui andar.
As dores são insuportáveis, diz.  A autonomia desaparece diariamente, porque a decrepitude a incapacita de reger os seus dias, como sempre fez.
O seu sofá  é o mais alto poleiro da ramagem, de onde olha um mundo que já não conhece, já lhe diz pouco, e sobretudo, a cansa... A minha mãe está a querer desistir da caminhada !
Só pede que uma qualquer noite, se lembrem  dela,  por cá.

Olho-a e penso, num misto de emoções que não descrevo ... como será viver-se tendo como esperança de vida, não  ter mais esperança de vida ?!...

Anamar

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

" DELETEM !... "



Estamos naquela hora em que o sol nos foge numa fracção de segundos.  Apenas o tempo de procurar os óculos, para percebermos que ele já foi por hoje, naquele azul diluído num laranja-fogo, lá longe ...
Está a por-se bem mais à esquerda, no meu horizonte visual, por detrás das antenas de telecomunicações encarrapitadas incomodamente no alto de um terraço, frente à minha janela.
Ainda assim, deu p'ra ver que se deitou numa espécie de água de maré baixa, quando o mar recua, e fica aquela serenidade no areal.

Levantei-me não há muito, constatei ...  E pensei como foi curto o meu dia, como se encurtando-o mo anestesiasse, doesse menos, por menos horas ter de confronto comigo mesma.
Porque, de facto, enquanto os sonhos vão e vêm na sala escura do nosso "consciente onírico", tudo desfila à revelia do real, e com sorte, deambulamos por espaços, por pessoas, por momentos que já foram, e que se não foram, muito provavelmente gostaríamos que tivessem sido ...

Estou assim ... não diria desequilibrada ... Não gosto do termo.
"Desestruturada", encaixa na perfeição.
Desestruturada é alguma coisa fora do contexto, fora do enquadramento ... fora da moldura.
Aquele pedaço de pano que esgaçou, sem hipótese de conserto, está totalmente desestruturado.

Um dia fica-se assim.  Quando os olhos, o peito e a mente, não obedecem a ordens.
"Florzinha de estufa", como diria a minha filha, que tem pouca queda p'ra perceber estas coisas fora dos enquadramentos rígidos de racionalidade, pragmatismo e objectividade, na realidade em que se mexe .
Fraca capacidade de resiliência.  "Frescuras" ... diria, se fosse brasileira.  Falta do que fazer ... dir-se-á.  "Vida santa " ... dirão os que analisam de fora ... " que não valorizo".
"Querer mais o quê ?... perguntam-se.
Tontinha, insana ... mal agradecida e parva !!!

Estão desde já, todos perdoados !
Estas coisas, não entende quem quer.  Sim, quem pode.  Quem é capaz.  Quem percebe.  Quem sente, ou sentiu .

Quase me culpabilizo por não ter uma razão comezinhamente palpável, que justifique o esfiapar deste tecido de refugo, que é a minha mente, sobretudo nestes dias coloridos a ocres e vermelhos de Outono, com o sol a dormir por detrás das antenas, só p'ra me desfeitear ...
Uma razão daquelas que fazem estatística.  Que engrossam colunas.  Insuspeita.  De peso.  Uma boa razão, de valer a pena !
Porque nos tempos que correm, só tem direito a lamúrias existenciais, quem sofrer de males maiores, aqueles que atacam as pessoas ditas normais, por azar, acidente, ou destino, nesta época de crise bravia.
Esses sim, mereceriam o nosso respeito, comiseração e solidariedade.

Só  que  há  "males  maiores",  tão  "mortais"  quanto  outros.  Que  uns  entendem ... outros  não !...
Também, não vou agora aqui discutir o sexo dos anjos !

"Em criança não nos despedimos dos lugares.
Pensamos que voltamos, sempre.
Acreditamos que não é a última vez " - diz Mia Couto.

Eu sempre olho para os lugares, bem ao contrário ...  Achando que é de facto a última vez.  Lamentando que o seja, quase sempre.
Por isso também, guardo uma religiosidade solene quando o sol amodorra, e os silêncios possíveis ocupam os espaços vazios por aqui.  Sempre penso, que muitos o vêem deitar sem que o vejam acordar amanhã ...

E pareço ouvir aquele meu amigo ( alguém, já não sei quem foi, dizendo a sorrir, abanando a cabeça desaprovadora ) : "Lá estás tu a ver as coisas dessa forma !  Tens é que pensar, quantos lhe assistem o despertar, isso sim !"

A velha história do copo meio cheio e meio vazio ...  A demagogia à solta !...

Este texto hoje, é um desconchavo mental.  Uma peça de "patchwork" de má qualidade !
Retalhos mal ajambrados, coisa atamancada e perversa ...
É lava de vulcão, cujo vómito súbito seria impensado ...
É tudo, e é nada !  É só um "botar para fora", neste Outono pesado e cansativo.

Querem um conselho ???   "Deletem !... "

Anamar