domingo, 28 de dezembro de 2014

" COM MÚSICA NO CORAÇÃO "



O Natal esgotou-se.  Esgotou-se com tudo o que tem de bom e de mau, de magia e realidade, de desejado e imposto, de sonho e de pesadelo.
Porque efectivamente o Natal tem quase sempre mais de pesadelo, que de sonho... ( Isto, sou eu a pensar alto !... )
Sobretudo o Natal que "impõe" as pessoas umas às outras, mesmo que não tenham afinidades visíveis, linguagens próximas, formas de sentir, ou mesmo filosofias de vida semelhantes.
Natais que o calendário determina, entre gentes desestruturadas, gentes de costas voltadas, gentes com corações desencantados, almas desalentadas, famílias imperfeitas, feitas de pessoas imperfeitas ... especialmente imperfeitas !

Porque na verdade, o ser humano é cada vez mais intolerante, menos disponível, mais estratificado e fossilizado em formas de ser e estar ... e as famílias, a gente não escolhe, de facto.
Não se fazem sob medida, de acordo com figurino, ao sabor dos nossos anseios, das nossas expectativas, do que gostaríamos que fossem.
As famílias coexistem connosco, nós nascemos dentro delas, desta e não daquela, sem vontade própria ... aleatoriamente ... Vá-se lá saber porquê !...

Há os Natais que se sonham ... "familiarmente correctos", como mandam as leis da Santa Madre Igreja.  Natais tão doces, quanto os sonhos que se compram para os rechear.  Natais tão bem "esculpidos" na massa humana, tão "santos", que o amor escorreria  por todas as costuras, os sorrisos fraternos iluminariam  os rostos, a generosidade de corações disponíveis extravasaria, e os homens de boa vontade uniriam  esforços, entendimento e magnanimidade, para que essa  fosse "a noite", em torno da tribo ou do clã !...
São verdadeiramente Natais improváveis ... virtuais !

E depois, há os outros ... os Natais "reais" !
O ser humano, mercê da vida de que dispõe, melhor dizendo, da fraca qualidade de vida de que dispõe, ostraciza-se, talvez por defesa, não sei, em células cada vez mais confinadas ao seu "eu", às suas verdades e às suas convicções.
As pessoas estão cansadas, stressadas, talvez angustiadas, talvez de mal com o que as cerca.
As pessoas estão mais e mais autistas, as pessoas estranham-se, as pessoas são dominadas e possuídas por agressividades latentes, prontas a "chispalhar" ao primeiro clique, ao décimo incómodo ... à terceira contrariedade... 
Os valores do afecto, do amor, do respeito, da partilha e da cumplicidade, os tais propagandisticamente  inalienáveis, deveriam ser presentes e persistir sempre, sobrepondo-se a tudo o que vá acontecendo ao longo dos 365 dias que permeiam dois Natais.
Ao longo mesmo, das divergências, dos sentimentos menores ... Ao longo mesmo de mazelas que a vida vá semeando nos caminhos individuais ... num espírito superior, altruísta, de união e comunhão entre aqueles que se amam ...

Mas isso são utopias e idealismos que o calendário impiedosamente julga poder resolver ... só porque se chegou outra vez ao dia 25 de mais um mês de Dezembro ...

E por isso é que eu detesto o Natal !

É que ele quase sempre tem a capacidade de trazer ao de cima as "nódoas" a que fomos fechando os olhos ao longo dos dias, o lixo que fomos varrendo para debaixo dos tapetes ... os "ódios de estimação", recalcados em realidades mal resolvidas, tantas vezes !
E as pessoas não conseguem transcender-se  na verdade . O Homem é por natureza egoísta, comodista, egocêntrico mesmo.  E não se transcende em prol do outro... em prol de ninguém !  Nunca se transcende, de facto !...

E assim,  tenho para mim, já com alguma tolerância e ingenuidade,  que o Natal deveria ser apenas uma comemoração "sub-dez", digamos que vivenciado apenas até à idade da consciência.
Enquanto crianças, os sentimentos são puros, as mentes  não guardam animosidades, rancores, raivas ou mágoas.
A inocência sempre mostra alvoradas iluminadas, os corações são magnânimos e desarmados.
A disponibilidade e a generosidade  são incondicionais e têm o tamanho do Mundo.
A tolerância e o afecto distribuem-se indistintamente, com a grandeza de almas fraternas.
O ser humano, incólume, ainda não foi vergastado pela vida, destruído pelos tempos, trucidado pela sorte, armadilhado pelo destino !

É por essa razão, que o Natal sempre persiste ao longo dos tempos e das vidas, quase exclusivamente como herança terna do imaginário infantil de cada um de nós, nas memórias doces e inesquecíveis dos nossos primeiros anos !!!

Também por isso, ou apenas por isso, numa espécie de compensação para a alma, numa espécie de presente para mim mesma, o meu dia de Natal este ano,  precisou terminar embalando-me no sonho e na doçura do inesquecível e intemporal "Música no coração", que teve o mérito  indefectível de me remeter à magia de  uma realidade quase perfeita !...


Anamar

sábado, 13 de dezembro de 2014

" O NEXO DA FALTA DE NEXO ... "



O dia amanheceu mergulhado em "nieblas".
Uma cerração desgraçada, adivinhava que o sol não se levantaria.  Temperatura a baixar abissalmente, um frio de Natal a instalar-se.
Na rua, as pessoas circulam apressadas. Golas levantadas, narizes vermelhos, ofegantes, passo estugado na tentativa de enganarem o ar gélido.  Das bocas, aquele fuminho denunciador de uma humidade brava, espalha-se, como  se de uma chaminé se tratasse.

Foi o primeiro dia, deste Outono beirando o Inverno, que efectivamente puxou dos "galões" e mostrou claramente que o tempo atmosférico até agora, tem andado a brincar a uma coisa que não é nem deixa de ser.  Hoje sim, temos um daqueles genuínos dias coerentes com o calendário.
Os faróis dos carros, neste lusco-fusco de noite às cinco da tarde, projectam um  cone de luz tremeluzente, no asfalto molhado.

E choveu toda a noite.
Os pingos das gotas de chuva nas vidraças da janela, o pingue-pingue metálico na calha do estore da vizinha de baixo, foi-me lembrando ao longo das horas de silêncio, que estaria  desagradável lá fora.
O gato preto ... onde andará ?
Continuo a entrevê-lo através dos estendais, prédio abaixo. Estendais agora vazios de roupa, em tempo de borrasca. Sobrevive no terraço, em completa solidão.
Onde se acoitará da água ?  Sim, porque do frio, não há lugar razoavelmente protector.

Os pingos ...
"Estás constipada ?" - perguntaram-me ao telefone.
"Não ! Estou apenas a pingar !" - respondi, justificando o fungar perceptível.
A gente pinga, de quando em quando.  Pingam os olhos, pinga o nariz, ao sabor do pingar do coração. Porque é aí que tudo começa !
Será que se pode ter saudades do futuro ?  Ou melhor, de um futuro que ainda o não foi, e apenas se idealizou ?
Será que se pode ter saudades de alguma coisa que não se viveu, só se adivinhou no coração ?
Porque saudades do passado, é fácil.  E lógico.  As saudades são os restos que ainda não partiram.

Sou capaz de olhar um galho adormecido, e cheirar o verde húmido da mata, quando foi apanhado...
Sou capaz de olhar um calhau rolado  das areias distantes, e inebriar a alma com a  maresia que dele se desprende ...
Sou capaz de ouvir os chocalhos do rebanho no pastoreio, e as badaladas da torre sineira ... ritmadas, cadenciadas, ecoando no silêncio, como então ...
Escuto com precisão o grasnido da gaivota planante, antes de repousar no alto daquele poste lá ...
E  escuto  também  as  exactas  palavras  ditas, os  risos  largados, os sorrisos  subentendidos ...
E oiço o Natal, e o ano vizinho ... e cheiro a intimidade da sala, e o calor da cama cúmplice...

Tudo ontem ...

E amanhã ?
Amanhã, é uma manhã como a de hoje, mergulhada em "nieblas".  É um vendaval  de chuva cerrada, que não deixa ver através das vidraças embaciadas.  É uma espécie de vereda que caminha  na ravina  e  termina lá ao fundo, subitamente ...  num penhasco  em garganta rasgada sobre o mar ...
Amanhã ... é uma manhã cinzenta de um Outono beirando o Inverno.
Amanhã é uma interrogação sem resposta.  É um futuro de  fé sem esperança ...
Amanhã é a ausência de nexo, numa história que desconhece o seu significado !...

Anamar

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

" A DÚVIDA METÓDICA "




Não escrevo faz tempo.
É assim a minha vida.  Altos, baixos, períodos de valer a pena, períodos de indiferença e distanciamento em relação a tudo.  Amorfismo face à realidade, encolher de ombros, fazer-me morta ... deixar correr.
Se calhar é assim a vida de toda a gente.  Afinal, não há carapaças de tartaruga para todos, apesar que me daria imenso jeito !

Ontem, um programa televisivo equacionando um tema assaz interessante : " Haverá ainda futuro para Deus ? "
Um espaço de reflexão, de opinião, de questionação.  Um espaço de interrogação.  Muitas perguntas, nenhuma conclusão.  Obviamente !

A existência de um deus nas nossas vidas, a busca de um significado para elas, numa sociedade ferida de tal desencanto e tão desprovida de soluções, que empurra mais e mais o ser humano para um afastamento do divino.
A ciência explica muitas dúvidas existenciais, daquelas com que nos confrontamos diariamente. Explica muitas, mas não todas.  Longe disso !

O Homem, na precariedade da sua existência, na insatisfação dos mundos em que mergulha, na orfandade das suas dúvidas, sem enxergar respostas, entregue aos seus medos, às suas angústias, face à  sua  pequenez e fragilidade, face a tanto desencanto e tantas perplexidades ... precisa na maior parte das vezes, de uma âncora, de um porto, de uma lógica, de um caminho.
E cria uma figura "paterna" maior, última, definitiva, em que dogmaticamente acredita, se recosta, se aninha.
Esse "mito", essa protecção que desconhece, mas sob a qual nada lhe acontecerá, esse arrego doce, esse colo embalador que não julga, sempre compreende e perdoa, restitui-lhe a tranquilidade que o aquieta, dá-lhe o norte e a significância para o caminho doído, ergue-o quando cai, dá-lhe forças na doença, ânimo no desespero  ... luz na escuridão ... repouso ... esperança numa salvação promissora, transcendental.
Essa figura que não se vê, não se palpa, contra a qual consequentemente o Homem não se pode rebelar, surge na sua vida como solução, saída, resposta final.
E o Homem que criou na sua mente essa figura parental,  vive assim mais em paz, mais confiante, mais submisso, mais humilde.
Não O questiona, ou raramente O questiona ( Se o fizer, sentir-se-á um ímpio, um ser desprezível e ingrato ), e aceita em conformismo,  o destino, a "cruz", a penitência.
Como peregrino em devoção e agradecimento, tenham as provações a dimensão que tiverem ...  ruma à salvação !

Assim vivem os crentes, e assim encontram uma razão para a sua existência.

E os não crentes ?  Aqueles que nunca, ou "ainda não" foram tocados por essa luz, ou não experienciaram esse "milagre" ?
Nesses, incluo-me eu.
De facto, agnóstica que sou, depois de um início de vida tradicional e deterministicamente religioso, encontro-me na encruzilhada da dúvida.
Com uma formação académica científica, com uma irreverência, e uma espécie de contrapoder atrevido, dentro de mim face à vida, sinto-me uma sedenta e estupefacta caminheira, com um pragmatismo desencantado, na beira da estrada, olhando, perscrutando, analisando, descodificando, interrogando e desgraçadamente não encontrando "outras" justificações ou respostas, para nada daquilo que segundo a segundo, vai desfilando neste carril aleatório e sem nexo.
Não encontrando  "outro" sentido ou significado, "outro" fio condutor lógico na percepção dos acontecimentos, não encontrando "outras" leituras credíveis, na aleatoriedade acidental ... olho cansativamente o papel em branco, no qual tenho que desenhar, momento a momento, a "estória" que com alguma liberdade arbitral vou vivendo.
Dramaticamente.  Angustiadamente.  Cepticamente.

Questiono-me sempre, se viver assim, não  é só por si, uma  "tragédia" ?!
Se encarar o transcurso  do tempo, sem bengala, sem "antidepressivos" de alma, sem  "analgésicos" de coração, sem muletas emocionais ... apenas entregue à minha esperança e desesperança em todos os seres - que não passa por desígnios de salvação de alma -  entregue exclusivamente à minha fé particular e inabalável no ser humano, nas suas potencialidades e nas suas espantosas capacidades regenerativas, no seu poder de encontro e de renascimento constantes ...  questiono-me sempre, dizia, se estas minhas escolhas,  estas minhas convicções de caminho, não serão assumidos exercícios suicidas, de teimosia temerária, de inconsciência não acautelada, em que a minha vulnerabilidade, a minha pequenez, e a minha insignificância de peão de tabuleiro, são largadas em permanência,  no xadrês da vida ?!...
Lá ... onde dizem que Deus não joga !...

Mas eu sou inevitavelmente assim, e não consigo ( o que simplistamente talvez me adoçasse e pacificasse o percurso), ver a existência humana, de forma diferente !
Esta dialéctica é a minha verdade.   Esta estrada acidentada e pedregosa, o meu caminho.  Esta autenticidade muitas vezes titubeante, desoladora e sem colorido, a assumpção daquilo em que acredito ...
Porque eu "desconfio" muito seriamente, que depois de nada ... nada existe mesmo !!!


Anamar