terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

" A PONTE "



Estava sentada junto à janela, no rés-do-chão do edifício.
Dali podia ver o espaço circundante, ajardinado, com algumas árvores, por onde os pássaros se atreviam já a pipilar, e sob as quais se abrigavam bancos de madeira.
Sentadas em alguns, até que a temperatura permitia, estavam  mulheres como ela, que como ela partilhavam aquela casa.
Falavam entre si, soltavam monossílabos de quando em vez ... ou não falavam, simplesmente !

Há muito que ela deixara de ir até ao jardim .
As flores, agora que o tempo amainara, haviam começado a rebentar.  As suas corolas, de mil cores e mil formas, exibiam já alguma pujança primaveril.
Contudo, o tempo atmosférico estava longe ainda,  de se aproximar da estação que vinha aí ...
Por acaso, hoje, uns breves raios de sol atravessaram algumas nuvens, às vezes ameaçadoras, outras cordatas em não massacrarem mais os dias, com chuva.

Há largo tempo que estava ali.  Não sabia quanto.
Perdera a noção do passar das horas, dos momentos, dos dias.
Sabia que a seguir ao almoço, a sentavam naquele lugar, junto à janela, com a mantinha nos joelhos, e o livro no cólo.
O livro ... sempre o mesmo livro, aberto na mesma página, da qual, dia após dia, nunca passava.
O seu olhar perdia-se indefinido lá fora... longe, fixado em algum lugar ... em lugar nenhum !
Apático, deixara de transmitir emoções, fazia tempo...  Talvez, desde o tempo em que mais nenhum rosto familiar, dela se abeirava.
O silêncio pairava naquele quarto, com a cama de colcha florida, a mesa de cabeceira com um candeeiro de luz mortiça, uma cómoda encimada por um espelho, um sofá no canto mais afastado, um roupeiro, onde estariam por certo, os parcos pertences, ladeado de prateleiras, nas quais, quando lá a deixaram, colocaram alguns livros ( seguramente os que acharam, que talvez a transportassem mais, ao que fora a sua vida ) ... e aquela cadeira que a aproximava da janela, e do mundo exterior !...

Sobre a cómoda estavam dispersas várias molduras com fotografias ... de adultos, de crianças e até de velhos !...
Se lhe perguntassem quem eram, ela não saberia.  Tinha esquecido qual a proximidade daqueles rostos com a  sua  pessoa, à  medida  que  alguns  deles, deixaram  mesmo  de atravessar  a  porta  daquele  quarto .
Lá para trás, tudo estava nebuloso ...

Sobre a cómoda,  Leonor, que de quando em vez passava pelo seu quarto, colocara uma jarra, e fazia questão, de sempre nela ter flores frescas, apanhadas no jardim ( porque percebera, que pelo menos no início, isso sugeria transmitir-lhe uma certa alegria e paz  ... parecia serená-la, aquietar-lhe as lágrimas, que com o passar dos tempos, e à medida que o distanciamento se lhe colara ao rosto, deixaram mesmo de escorrer ).
As flores eram, neste momento, quase a única ponte visível, ainda, entre ela própria e o seu passado.
Leonor não sabia grande coisa, mas conseguia auscultar que havia alterações no seu semblante, quando as flores  frescas  eram  colocadas na jarra ... Conseguia perceber herméticas emoções, nos seus olhos distantes ...

O mesmo se passava com a música. Costumavam tocar-lhe temas calmos, doces, nostálgicos.
Sorria, quando ouvia os primeiros acordes.  Sorria, mas não emitia um só som.  Há demasiado tempo que parecia ter feito um pacto de silêncio, ou talvez as palavras já não lhe fizessem sentido.
Havia  de  facto  um  claro  corte  com  o  mundo  real, uma  indiferença  instalada, como  se  nada  valesse já  a  pena !

Olhava-se no espelho, quando lhe compunham os cabelos, prateados  dos tempos, e lhos prendiam atrás, conferindo-lhe um certo ar, quase aristocrático.
Olhava-se mas não se via. Ou melhor, via um outro alguém, sem saber quem ...

As mãos descarnadas impediam que o livro tombasse ao chão, apenas ...
Por entre as suas páginas, havia muitas, muitas flores secas, esmaecidas na cor, mas que haviam sido religiosamente guardadas.
O que elas representavam, Leonor também não sabia. Pressentia que elas haviam sido seguramente importantes, no destino daquela mulher .
Dele, tombavam também, papéis amarelados do tempo, com letra desenhada, inscrita a tinta permanente.
Será que ela os saberia ainda ler ?  Será, que lendo-os, eles ainda lhe diziam alguma coisa ... abririam aquele cérebro, aparentemente cerrado ?

A família foi espaçando as visitas àquela casa, e quando as faziam, encurtavam-nas no tempo.
Na verdade, parecia indiferente que lá estivessem ou não. Ela não mostrava dar por eles, e o seu rosto mantinha-se impassível.
Assim, ficava difícil, parecia inglório ... E afinal, cá fora havia tantas coisas a fazer, que o tempo disponível, quase já só para tranquilizar consciências, ia ficando escasso !...

Júlia parecia cada vez mais, apenas vegetar.  Deixaram de se descortinar totalmente emoções, ou algo que lhe alterasse a expressão facial, indiferente, como quem há muito desistiu, e com a desistência, cortou pontes com o mundo e com a vida.
Afinal, parecia apenas, querer confinar-se ao seu eu interior, que ninguém desvendava.

Os dias foram passando, os meses correndo, os anos também.  Uns, após os outros !
Os que deixara cá fora, sempre achavam que ela já ali "não estava" há muito, apesar de, Verão ou Inverno, frente àquela janela, sempre fixar um ponto inexistente.
No Inverno, a chuva açoitava os vidros, no Verão, o sol tentava penetrar a meia penumbra do quarto, que se tornara apenas ante-câmara, de uma partida ou despedida.

Aquele sábado, era só mais um ...  Irrelevante ...
Júlia nem sabia que era sábado ;  parecia pouco saber, ou nada saber do que quer que fosse.
Depois do almoço, uma vez mais, sentaram-na frente à janela.
Era quase Primavera, e os primeiros botões brotavam no roseiral. As árvores começavam a cobrir-se de verde, os jasmins, os narcisos, os amores-perfeitos e os junquilhos, festejavam a renovação da Natureza .
As aves já saltitavam de galho em galho, em promessa de vida ...

Haviam-lhe entreaberto a vidraça, para que os cheiros doces, do exterior,  penetrassem, e a aragem lhe pudesse, quiçá, lembrar, que um novo tempo estava prestes a começar.
A cortina esvoaçava levemente, por isso.

O homem entrou.
De costas para a porta, Júlia não deu por isso.
Era um ancião, com o cabelo completamente branco, periclitante no andar.
Estacou à entrada do quarto silencioso, e olhou longamente, incrédulo, o seu recorte magro, seco, débil, sentada imóvel ... Como se procurasse alguém "lá atrás", talvez outra mulher, talvez outra Júlia ... como se rebuscasse na sua memória ... como se escavasse no seu coração.
Trazia um narciso na mão.  Amarelo, como o sol ...  Um, apenas !...

Chegou perto dela, e olhou longamente a sua palidez, a sua degradação, as suas mãos esquálidas, pousadas inertes, nos joelhos.
Uma lágrima teimosa escorreu-lhe pelo rosto, também macerado pelos anos.
Ajoelhou com dificuldade, à altura dos olhos distantes de Júlia, beijou a flor e colocou-lha, abandonada, no cólo, sobre a mantinha que a protegia.

Júlia estremeceu.  Ergueu os olhos ;  por eles perpassou um esgar súbito, de surpresa, como se tivesse lembrado alguma coisa ...
Um sorriso largo iluminou-lhe o rosto ...
Enorme, doce, grato ... surpreso, quase feliz, dir-se-ia ... envolvido numa emoção transbordante ...

Como se toda a vida, junto àquela janela, olhando o jardim vazio lá fora, sempre, ela não tivesse feito mais que esperá-lo, e apenas tivesse sido capaz de viver até àquele dia, porque  um narciso, amarelo como o sol, haveria de cair no seu regaço ...

Júlia, atravessara finalmente, a última ponte da sua vida !!!...

Anamar

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

" MERA CURIOSIDADE "



O S.Valentim, está ligado a muitas histórias e tradições, até mesmo diferentes, de país para país.
Relato aqui, mais uma história, a Ele associada, por curiosidade, e porque a achei ternurenta ...

Feliz Dia de S.Valentim, para quem o valoriza !



Sabia que as celebrações populares do dia de São Valentim estão associadas às aves? 

Pensa-se que os costumes populares associados a estas celebrações, tenham tido a sua origem na Idade Média, época em que se acreditava que 14 de Fevereiro era o primeiro dia de acasalamento das aves. 
Por essa razão, este dia era considerado como sendo a ocasião apropriada para escrever cartas de amor e enviar presentes. 

De acordo com alguns historiadores, terá sido Chaucer (conhecido poeta inglês do séc. XIV), o primeiro a referir esta ligação entre o São Valentim (santo católico) e o amor romântico. 
No seu poema de 1381 escrito em honra do noivado do rei Ricardo II de Inglaterra com Ana da Boémia, Chaucer associou o noivado, a  época de acasalamento das aves, e o São Valentim: 

       “For this was on St. Valentine's Day, When every fowl cometh there to choose his mate".| 

     ( Porque foi no dia de S. Valentim, quando todas as aves vieram escolher o seu par (tradução livre).

Anamar

" TAMBÉM É AMOR ..." ( a propósito do dia de S.Valentim )



No último post abordei os "muitos rostos" do amor, a partir de  "rostos" com que me cruzo, que observo com frequência, que analiso, rostos cujas histórias conheço, a minha experiência pessoal, enfim, expus o meu entendimento a propósito.

Calhou ser esse o assunto.   Calhou simplesmente, já que, como sabem, e constitui nota introdutória a este meu espaço, ele foca temas de forma aleatória, de conteúdo aleatório, e que surgem por isto, por aquilo, ou por nada, às vezes.
Acontece com alguma frequência começar num "rumo", e mudá-lo à medida que vou escrevendo.

Contudo, hoje, 14 de Fevereiro, é mais uma efeméride das tais que nos calendarizaram, importada não há muitos anos.
Quando eu era adolescente, na tal idade dos grandes e inflamados amores, nem se ouvia falar dele.
O S.Valentim, neste momento, está suficientemente "comercializado", suficientemente "plastificado", e adesivado aos corações que se vestem de vermelho, nem que seja só hoje, porque o vermelho é a cor da paixão, dizem ...
Todos os anos tenho abordado o assunto, por este ou por aquele ângulo, por forma a estar ciente de já o ter feito exaustivamente, por todos os ângulos possíveis e inventados.
Por isso, este ano, esgotado que está no meu espírito o tema, e procurando evitar redundâncias, recorrências, carência de originalidades, os tais lugares comuns que todos conhecemos, decreto um S.Valentim à minha maneira !...

Não deixa de ser na mesma o "rosto do amor", a celebração do amor, mas de uma certa forma de amor.
Não o amor homem-mulher, o amor-namorado, o amor recriado ( nem que seja só por um dia, por "decreto", e no qual não sei se vale a pena acreditar muito ), mas vou falar de um amor muito mais incondicional, muito mais despojado, muito mais autêntico por isso, puro, fiel, seguro e certo, sempre !  Afinal, um amor para toda a vida ...

Só podia mesmo estar a falar do amor pelos animais, sobretudo e em especial ( é justo que realce ) , a transmissão unilateral, deles para o ser humano, mais ainda do que a dedicação e o afecto, que o ser humano é capaz de lhes retribuir.

Só comecei a conviver com animais, a analisá-los, a apreciá-los, a entendê-los, e a sentir-me por isso, sortuda e gratificada, não há muitos anos.
E cumpre-me dizer, que devo isso a uma das minhas filhas, essa sim, dedicada afectivamente sempre, apaixonada sempre, fascinada sempre, por eles, sejam gatos, sejam cães, que de facto são aqueles que mais interagem com o ser humano, não excluindo contudo, qualquer outro animal.
Enquanto criança, os meus pais não estavam despertos ou sensibilizados para a questão, e como tal, fui criada sem que existissem animais domésticos, junto de mim.
Quando ia ao Alentejo, a casa dos meus avós, o máximo que conseguia, era levar diariamente o Carocho, o burrico lá de casa, a dessedentar-se ao chafariz.  E como isso me fazia feliz !
Em nossa casa existia um canário, que eu encarava mais como um objecto decorativo, do que como outra coisa.  Não havia qualquer interacção, entre mim e ele.

Casei com um homem, que embora oriundo da província, vivendo mesmo numa zona rural, convivia com animais, encarando-os numa perspectiva muito particular.  Para ele, bois, vacas, galinhas, coelhos, ovelhas, porcos ... e mesmo os gatos e os cães, eram vistos, não como companheiros do homem, mas, alguns como fonte de sustento familiar, quer pelo seu consumo, quer pela sua venda, outros, meros guardas das propriedades, sendo que os gatos eram vadios ... apareciam por ali ...
Isto, quando à nascença, não os metiam num saco e os afogavam no rio ...

De todas as formas, os animais, indistintamente, existiam para viverem na rua , e nunca dentro de casa.
Assim sendo, sempre se opôs, apesar das várias investidas da filha, a que houvesse animais no nosso apartamento.
Ela, contudo, nunca desistia, e inteligentemente foi esticando a "corda", introduzindo subrepticiamente, à vez, os que menos se faziam notar, e por isso, menos perturbavam.
Começámos com peixes, inicialmente de água fria, num modesto aquário de balão, que permanecia no seu quarto.  Depois, um aquário de água quente ( com todos os pertences adequados à criação das espécies que contemplava longamente, com fascínio) Esse, já teve honras de sala.  Uma tartaruga, posteriormente um hamster, viveiros de canários e periquitos de todas as cores possíveis, bicos de lacre ... e finalmente, quando eu fiz 44 anos e havia perdido o meu pai recentemente, o que me remetera para uma profunda depressão, apareceu-me, como presente de aniversário, com quinze centímetros de um gato peludo e fofinho, de olhos ainda azuis, enfiado num cestinho, com fita e laço a compor ...

Era p'ra me ajudar a ultrapassar a perda, e me chamar de novo à vida ... dizia ela !

Já aqui contei, algures num post, algures num ano lá para trás, a história, pelo caricato de que ela se revestiu.
Perante o facto consumado, daquela coisinha que me caíu nos braços,  como prenda do meu aniversário, eu não tinha como negar, e nem vontade tinha de fazê-lo ...
O meu marido saíu de casa.
Segundo  ele,  ou  ele,  ou  o  "animal" ( como  fazia  questão  de  afirmar ) !
Bom, esteve a " curtir a fossa", e a medir forças comigo, durante mais de um mês, findo o qual, percebeu lindamente, que o Óscar viera para ficar, e que o melhor era esquecer o acontecimento.
Quem nunca esqueceu a rejeição, foi o Óscar, que lho lembrava sempre que podia ...
Os animais são um espanto !

Assim, o Óscar foi o meu primeiro companheiro patudinho.
Era "mau como as cobras", como "soi dizer-se", mas a mim, elegeu como dona, contra tudo e contra todos.
O Óscar partiu há mais de quatro anos, ao fim de talvez uns catorze, passados junto de mim.
Depois, e simultaneamente ao Óscar, entrou a Rita, gato com nome de gata, por aqueles equívocos do destino ...
Aí, o meu marido já não ousou fazer birra., Afinal, um ou dois, era quase irrelevante ...
E a Rita, um europeu cinzento e preto, doce que só ele, acompanhou-me até há um ano atrás, em que também me deixou.
A Rita não era um gato, era uma criança.  Dormia comigo no interior da cama, como um bébé, bem juntinha ao meu corpo.
Nunca a Rita  me arranhou, nunca a Rita me mordeu.
Adormeceu, mansamente nos meus braços, a olhar ainda confiante, para mim ...

O Nico era um cão castanho, rafeiro, médio, desvalido da sorte, a degradar-se de dia para dia, nas ruas da minha cidade.
O Nico era um animal muito doente. O seu corpo era uma chaga total, pela sarna que o apodrecia em vida .
Tinha doenças muito graves, do foro auto-imune, e psico-motor.
Viveu com a minha filha, devotando-se mutuamente um amor sem limites e uma dedicação extrema, contra todas as previsões, para cima de dez anos.

Depois veio o Gaspar, outro rafeiro, reguila das ruas, e de doçura e gratidão extremas, com a minha mãe, para cuja casa foi.
O Gaspar e a minha mãe, muito velhinha já, entendiam-se claramente, com diálogos que partilhavam.
"Só lhe falta falar" ... dizia ela.
O Gaspar partiu há cinco anos, e a minha mãe sente até hoje, a ausência de um familiar, e beija a fotografia do Gaspar, que tem junto à cama, antes de dormir ...

Depois entraram duas gatas persas, a Cuca e a Concha, depois entrou uma cadela, a Nicas, depois o Sansão e a Dalila ( um casal de gatos ), por fim o Jonas e o Chico, dois gatos que coabitam comigo, e cuja companhia, eu não trocaria por a de nenhum humano ...

S. Valentim, a festa do amor ...
Do amor indistinto, porque para mim, o amor é simplesmente o "AMOR" ...

E o amor que os animais devotam aos donos, ou simplesmente a quem lhes estende uma mão, é a representação suprema, creio, do que deverá ser este sentimento :  puro, desinteressado, fiel, constante, grato, sem restrições ou limites, incondicional e por isso, autêntico, como disse ...

É um amor de Vida, e por vezes, muito além da Vida !...


Anamar 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

" OS MUITOS ROSTOS DO AMOR "


 
Por que  é  o amor assim ?

Estou no café de sempre., para o meu pequeno almoço do meio-dia, com um tempo atmosférico indescritível,  lá fora, o que faz hoje, deste espaço, um particular abrigo, tornando quase bem agradável, estar aqui dentro, numa preguiça que é o prolongamento da que trouxe da cama, há pouco.

Quando estou em espaços públicos, a menos  que esteja a ler ou a escrever, dou por mim a fazer algo que muito me agrada : observar à minha volta, olhar os rostos, ver as posturas, analisar comportamentos, ouvir inevitavelmente conversas, ser uma espécie de espectadora única, numa plateia onde a desmistificação do ser humano se desenrola, quase sempre, sem que ele próprio, o consciencialize.
Quando nos "travestimos" desta personagem, alheamo-nos de grandes pensamentos existenciais, de dúvidas metafísicas, despimo-nos de emoções nossas, angústias nossas, ou reflexões pessoais.
Estamos eremitamente isolados de nós mesmos, estamos em silêncio, e com uma concentração inevitável, esquecemos tudo aquilo com que vivemos, e nos atropela a tempo inteiro ... a nossa própria vida !
Este exercício silencioso, chamemos-lhe assim, repousa-me, relaxa-me, desperta-me a curiosidade e ensina-me muito, sobre o Homem.
Fala-me muito sobre a atitude do ser humano em público, sem que se dê conta de que é observado, sem estar sob os "holofotes" da crítica social, sujeito portanto, ao socialmente adequado a cada situação, sem disfarces, controle ou "maquilhagens".
São portanto, seres humanos que não se  estão a "policiar" ...

Os adolescentes e mesmo os adultos jovens, mercê da geração a que pertencem, e dos tempos que atravessamos, em que a liberalização dos costumes é imperativa, não têm comedimentos ou contenções especiais, sobre quase tudo.
Permitem-se todo o tipo de atitudes mais ou menos exibicionistas, com o ar convencido, de que o mundo é realmente deles, e o resto é paisagem.
Não se coibem de exteriorizarem o que quer que seja, e como a idade ainda não lhes deu grandes ensinamentos, vivem a vida com uma confiança inconsciente.

Por isso, os casais jovens que dão os primeiros passos no amor, na aventura e na sexualidade, fazem questão de exibirem descontraidamente, toda a gama de sentimentos que experimentam, sem contenções, inibições ou timidez.
São pessoas que estão em fase de descoberta, ainda não marcados pelos "trambolhões" da vida, tendo por isso um entusiasmo sem barreiras, estejam onde estiverem, que nos "esfregam na cara", constantemente.
Não têm limites, controle social ou outros, que os detenham.
Por isso, levantam "voo" com toda a facilidade, da ambiência em que mergulham, ignoram-na, apagam-na e isolam-se do mundo que os cerca, como se nele apenas eles coubessem.
Não se importam com o adequado, e não se importam mesmo de confrontar os mais conservadores.

Depois, há os casais na faixa etária dos trinta e tal, quarenta e tais anos, a maioria com famílias já constituídas, com filhos pela mão, ou até já pré-adolescentes, que transmitem uma mornidão apática , na exteriorização do amor.
Tudo muito asséptico, tudo muito contido, rotineiro, sem encantamento visível, tudo muito cinzento ...
Uma espécie de amor já gasto ou a esgotar-se, um indiferentismo instalado.
Não há já cumplicidades visíveis entre as pessoas ... um lê o jornal, o outro, uma revista,  pouco dialogam, como se já não houvesse assunto, controlam os filhos à distância, ou largam-nos por conta própria, permitindo que frequentemente façam disparates ... desde que não os macem ...
Esses, esqueceram há muito, o que é namorar ... E pronto !
O amor é entediado e entediante, sem novidade, já a precisar de reciclagem, eu diria.
Esta faixa etária é a que mais contribui para a estatística  do número de divórcios, como sabemos, porque as pessoas parecem já terem-se dito tudo, e não terem nenhuma paciência mais, para acordarem diariamente e esbarrarem no mesmo rosto, nas mesmas manias, nos mesmos hábitos, nos mesmos cheiros que adoravam e já não suportam ...
E se não conseguem recriar outra realidade, normalmente o amor sossobra ... até porque eles acreditam piamente, que ainda têm infinitas oportunidades que a vida lhes oferecerá !
Como tal, sempre haverá mais marés, que marinheiros !...

Existem depois os casais idosos, que como rochedos, não se deixaram abater por ventos e temporais, e que se propõem dividir o crepúsculo da vida.
Vê-los, faz-nos sorrir, pela ternura, companheirismo, cumplicidade, entre-ajuda no caminhar, no atravessar da rua, no passeio higiénico diário, na colocação da canadiana no braço ...enfim ...
Falam alto, porque já não se entendem muito bem no que verbalizam. O ouvido endureceu, os olhos opacizaram.
Partilham um amor que desembocou numa profunda e indiscutível amizade, e fidelidade aos valores de bem e de mal, que tenham que enfrentar ainda.
Esses, estão "condenados" a arrastar os seus dias até ao fim, nesse registo. Esses, não desertarão jamais.
Mas esse registo, é uma forma sapiente de partilhar amor, uma maneira inteligente de partilhar companhia, uma forma feliz de acertarem o passo no caminho a percorrer, com a  linguagem comum que os une.
E isso torna-os felizes, e não desejam nada além disso !

Depois, há as pessoas que se encontram na idade madura, serôdia  diríamos, desadequada ( se isso tivesse algum figurino próprio ), que em contra-ciclo, dispõem do último terço das suas vidas, tentando reviver o romance, o amor, a redescoberta, com uma maturidade, uma sabedoria e uma disponibilidade particulares, de novo com o encantamento do marinheiro de primeira viagem, de novo com a ilusão de uma adolescência esquecida, e  que sabem que esse é o seu derradeiro "canto do cisne" ...
Vivem o amor com outra disponibilidade, outra qualidade, outra exigência, outra entrega, outro compromisso, outra paz, outra plenitude, outra verdade ...

São pessoas que ainda não desistiram, que ainda têm energia e qualidade de vida, que ainda não embotaram sentimentos e emoções, e recusam não vivê-los de novo, se puderem ...
São pessoas que não deixarão que lhes roubem o último terço dos seus anos, exactamente os que deveríamos reservar, para saborear as conquistas de uma vida !
São pessoas que recusam ficar amargas, a remoer passados, ou a fantasiar futuros, e que querem absorver o presente até às últimas consequências.
Recusam parar, isolar-se, e esperar apenas que a velhice as tolha e as apanhe na curva, encontrando-as definitivamente, de mal consigo e com o mundo, revoltadas e insuportáveis !
São pessoas que evitam a todo o custo,  morrerem lentamente !...

Mas estranhamente, esses casais, por serem de uma faixa etária já não jovem, assumem uma postura em sociedade, de  pouco à vontade, como se estivessem a invadir terrenos que já não lhes seriam devidos, sofrendo  por vezes  a crueldade, da incompreensão das outras gerações, como se usurpassem direitos de afecto, de amor, liberdade, paixão até, que já  não deveriam pertencer-lhes ...

É um amor incompreendido muitas vezes, por quem não entende que o amor virginal, possa voltar a ser reconstruído, reinventado, a ter uma feliz "reprise", muitos anos depois.
Sentem-se por isso, um pouco mal  na sua pele ...
Trocam olhares cúmplices por sobre as mesas do café, esboçam gestos de ternura em leves toques das mãos, prometem-se com o olhar, uma felicidade que se reveste de alguma clandestinidade, e que os faz corar e sorrir timidamente, denotam a "atrapalhação" de uma criança, quando fez uma tropelia ...

E é tão lindo, este amor ... eu acho !

Lindo, e digno de um imenso respeito e admiração !
O respeito e a admiração devidos aos que se recusam a desistir, aos que ainda acreditam, aos que ainda sonham, e não prescindem de o fazer, aos que enfrentam e que lutam pelo direito ao último e pleno terço das suas vidas, como disse,  que deverá beneficiar da mesma qualidade de antes, e deverá traduzir a solidificação de sentimentos, agora  mais libertos, para se exprimirem com total entrega, disponibilidade, seriedade e verdade, de alguém que já palmilhou muito, que já perdeu muito, que já prescindiu de muito, que já sofreu muito ... e continua a apostar !...

Muito digna, esta forma de assumir o amor !!!...
Ironicamente, é a que tenta passar mais despercebida, é a que tenta denunciar-se menos, é a que tenta esconder-se muitas vezes, como inapropriada, é a que receia o ridículo ...
Inclusivé, é a que colide muitas vezes com opiniões e comentários familiares, inaceitáveis.

Porquê ???...

Anamar

sábado, 8 de fevereiro de 2014

" TU DORMIRÁS ... "



Meu amor, um dia destes vou sair pé ante pé,
naquele sussurro de andar, que não acorda ninguém,
naquele caminhar sobre nuvens de algodão ...

Aqui dentro, já não dá !
Há demasiado frio e escuridão, e eu tenho medo do escuro.
Lá fora chove, mas eu faço de conta que é Verão,
Até porque as gaivotas brincam nos céus bem à minha frente,
Os narcisos, as mimosas e as cantarinas já se enfeitaram por aí ...
Faço de conta que te tenho,
brinco de rebolarmos na erva fresca,
ou de apanhar carrapetas, nos carrasquinhos do monte ...
e cogumelos acabadinhos de acordar ...
Brinco de ter uma lareira que me aqueça a alma ...
ou então espero pela Primavera,
porque aí, sim,
já posso seguir nas asas de uma borboleta,
ou debaixo da asa de um pintarroxo !

Seja como for, eu prometo sair pé ante pé,
para que não fiques órfão dos meus braços,
saudoso do meu colo,
despido da minha pele,
amputado da minha nudez ...

Também podemos brincar de faz-de-conta ...
Eu faço de conta que acredito no amanhã,
faço de conta que não oiço a tempestade aqui no meu peito,
(abafada que é, pelo rugido do mar,
nessa savana, de algas, búzios e conchas ...)
Eu faço de conta que ainda te espero ...
mas isto, só porque quem nada espera, está morto e não sabe !...
Faço de conta que não estou louca,
já que distribuo gargalhadas, que voejam por sobre a copa das árvores ...
fazem eco nas clareiras sombrias,
e assustam as aves nocturnas !
Vou esquecer que já te esqueci,
quando esquecer que estou a brincar ...

Meu amor, promete que não me chamas,
porque os teus braços já não chegam p'ra me aninhar,
os teus beijos eram  papoilas dos campos do meu Alentejo ... e murcharam ...
e o teu calor gastou-se, abrindo as corolas das madressilvas ...

Até porque tu dormirás ...
e eu prometo sair nos bicos dos pés !...

   

Anamar

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

" VÃO-SE OS ANÉIS ... "



"Vão-se os anéis ... fiquem os dedos" - o povo diz ... disse sempre ao longo dos tempos.
Reflecte o desespero dos que, como solução final, deitam mão dos últimos valores que detêm, para honrarem compromissos, para taparem "buracos", para sobreviverem  à precariedade dos tempos.

Nunca neste país se viu, como se vê hoje, tantos espaços abertos, de comercialização de ouro e jóias, àqueles que  têm que os vender para sobreviverem  ( às vezes bens familiares, com valor afectivo profundo, jamais recuperável ).
É um claro sinal dos tempos, e da maré demolidora que nos fustiga.
Essas lojas  começaram a grassar, como cogumelos, exponencialmente, em proporção directa, à gravidade da crise que atravessamos.

Lembram-me "urubus" espiando a carniça, do alto das árvores da savana africana, esperando calmamente a sua oportunidade ...
E revolto-me, e nauseio-me, e enfureço-me !

Também, nunca no país se viu nascerem e proliferarem como actualmente, em ritmo ciclópico, as imobiliárias, entupidas de imóveis para vender ou alugar, num mercado que está praticamente estagnado.
É o desespero, é o último recurso, a última cartada, a última tentativa, de quem, acaba espoliado, talvez do único bem realmente valioso de que dispunha, e que não consegue segurar mais entre os dedos .

Quando as luzes se apagam totalmente, neste túnel apertado que são os nossos dias de hoje, quando as pessoas sentem que não têm mais saída nenhuma, para satisfazerem a prestação do empréstimo assumido, perante os bancos ( e que foram os próprios bancos que lhos ofereceram de bandeja ), numa esparrela sem tamanho, de benefícios  fáceis, estimulados até ao tutano, há tempos atrás ... o desnorte toma-nos conta, o desespero de animal acossado instala-se, a depressão da angústia de quem está perdido, acentua-se, as pessoas tomam as mais variadas decisões em relação às suas vidas, para tentarem resolvê-las ...

E totalmente desprotegidos e indefesos, são exactamente aqueles que lhes ofereceram as maravilhas do crédito fácil, que agora o vêm miseravelmente cobrar, como aves de rapina voando por cima das nossas cabeças ... porque "os bancos não são a Santa Casa da Misericórdia", como foi dito na minha cara, por um gestor de topo, de uma instituição bancária ...

É então que, enquanto se pode ... vão-se os anéis e ficam os dedos, esbraceja-se e luta-se contra marés alterosas, que sabemos nos sucumbirão, mais cedo ou mais tarde ... não tem jeito !!!...

Na macro-realidade do país, passa-se o mesmo.
Assumidos que foram compromissos que não teríamos condições de honrar, mesmo alienando-se bens ou valores,  com que se pudessem  realizar os "milhões" necessários, rapando o "fundo ao tacho", onde ainda se cheiravam restos quase inexistentes ... mesmo  virando do avesso os bolsos dos cidadãos  ( dos que já eram os mais desfavorecidos, entre os desfavorecidos socialmente ), tenta "reduzir-se a patacos", como dizia o meu pai, os últimos níqueis que tilintem ainda ... lança-se o ónus da solução sobre os mais sacrificados, silenciados e desprotegidos, e em última análise, põe-se o país à venda, leiloa-se, penhora-se, miseravelmente, despudoradamente, provocadoramente ...

Matam-se os que ainda resistem e se recusam a desistir, enlouquecem-se os que se sentem perdidos sem capacidade de resistência, tentam cavar-se moedas de ouro, em terrenos onde só há couves plantadas ... com a condição de sempre se preservar, de não se tocar, de não se afectarem, de uma forma que seria a justa, os que têm efectivamente potencial para, proporcionalmente às suas grandes fortunas, serem taxados de forma isenta e transparente.
E assim, não se acabam com os vergonhosos "lobbies" económicos, não se trava a corrupção e os compadrios, as trocas de favores e as fraudes ...
E continuam a fechar-se  os olhos, e a assobiar-se  para o ar, no que concerne aos "feudos" de individualidades, que parecem ter nascido para serem intocáveis ...

Em resumo ... ninguém tem "cojones" para meter a mão em "vespeiros", e dignificar a repartição de bens, e as condições de subsistência, neste país.

Tudo isto, a propósito de quê ?

Tudo isto a propósito de algo que me surpreendeu, me indignou, me revoltou, me enojou, e em relação ao qual, o cidadão comum deste país, não tem voz, e simplesmente não pode reagir, apenas lamentar : a alienação inescrupulosa e criminosa, de uma colecção de valor inestimável de obras de arte, os oitenta e cinco quadros de Miró, que são nossos por direito, que são uma propriedade portuguesa inalienável,  que são património deste chão e desta gente que somos todos nós, e que serão disseminados aleatoriamente, Mundo fora, em leilão, que deverá ocorrer em Londres.
Apenas, porque há que realizar a qualquer custo, mais uns tantos milhões de euros, para tapar mais um "buraco" das responsabilidades governamentais assumidas, perante quem tem Portugal, neste momento, debaixo  da pata !!!
Pobre país, mendigo dos estrategas da finança, e dos interesses políticos e económicos, de uma Europa que ajoelha uma vez mais, depois de 45, perante uma Alemanha fria, indiferente, gigantesca, ditatorial ...
Um polvo monumental, que estende os tentáculos, e sufoca indiferente e insensivelmente, os seus parceiros da Comunidade.

De  facto,  anéis  já  não  temos ... Veremos  até  quando  duram  os  dedos !!!...

Anamar

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

" CASA ROUBADA ..."



À medida que as desgraças acontecem neste país, são levantados então os problemas que as originam, com carácter de urgência .

Seis jovens morrem estupidamente na praia do Meco, tragados pelo mar, com suspeita de terem sido sujeitos a um ritual de praxe académica, inqualificável.
Discutem-se então as praxes, obviamente com carácter de urgência.  Medidas a tomar, amplos debates sobre o tema, porque afinal, tendo embora ocorrido n relatos, lá para trás, de mortes causadas por abusos idênticos, por terem tido pouca visibilidade então, não suscitaram mobilização da sociedade.
Cada um ficou com os seus "prejuízos" ...

O poder da mediatização é um espanto, tal como o poder da ausência dela  pelos media, têm a capacidade de empolar ou desvalorizar os acontecimentos, como uma onda gigante, essa sim, incontrolável.!
Desde logo, exaustivamente, todos os canais televisivos abrem invariavelmente ( e já decorreram quase dois meses ), com notícias especulativas ou não, que o espectador avidamente consome.
Desde logo, os depoimentos dos pais, dos colegas universitários, colegas directos ou não, das esferas académicas e  governamentais envolvidas, de pedagogos nas diferentes áreas, de psicólogos, dos vizinhos da casa ocupada pelos jovens no fatídico fim de semana, do cidadão comum ... e na Net, este caso, tornou-se absolutamente viral, revestindo-se, quanto a mim, de riscos inevitáveis.

Desde a devassa da privacidade das famílias enlutadas, são incontrolavelmente veiculadas notícias fantasiosas, depoimentos anónimos, mails de quem não quer dar a cara, opiniões ( as mais variadas e credíveis ou não ) difundem-se como seguras, meras suposições bombásticas e sem consistência, criando-se um verdadeiro caldeirão do "diz que diz", e nada mais !

E o país entretem-se ...

Lembro, e todos lembrarão seguramente, a tragédia da derrocada da ponte de Entre-os-Rios, num famigerado 1 de Março, há já bastantes anos.
E lembro o que foi o poder do mediatismo de péssimo gosto, incontrolável, miserável mesmo, da comunicação social, que aproveitou esse triste "folhetim", para vender, vender, subir audiências ... entreter !
Como verdadeiros abutres, devassou-se sem escrúpulos, o âmago das famílias, os sentimentos dos reais sofredores do ocorrido, não respeitando o silêncio e o luto dos abrangidos ... e repetiu-se, repetiu-se o já visto, o já dito, vezes sem conta ... sem respeito !
Lembro que houve canais televisivos que cobriam ao milímetro tudo o que ocorria, em discursos empolados, ridículos e improvisados, de péssimo gosto, e jornalismo medíocre ... dias inteiros !
A ponte que já estava em mau estado há anos, por via da erosão nos pilares, pela subida e descida das águas, pelo desassoreamento das areias no leito do rio ... foi então, consertada !...

E o país entreteve-se ...

Lembro, e todos lembrarão, os horríveis, castigadores e dramáticos fogos, que recentemente assolaram a mata portuguesa, na canícula deste Verão, bem como a perda de oito vidas de jovens bombeiros, na defesa da floresta.
Novamente, a comunicação social, explorou até à exaustão, a notícia objectiva, a subjectiva, as aflições, os sentimentos, os medos, a dor, a revolta, que envolveu as aparentemente intermináveis calamidades, na exploração demagógica, do infortúnio e do desânimo, de quem perdeu quase tudo ...
Os funerais, ao pormenor, "renderam" que se fartaram, nos telejornais ;  as lágrimas dos pais e familiares, idem, as homenagens dos camaradas de profissão, também.
O Facebook, repleto de apelos de solidariedade, de divulgação, de partilhas, de angariação de ajudas, de rostos de cada um dos que partiram, com pormenores dispensáveis, das suas vidas pessoais, encheu páginas e páginas, murais e murais!

Claro que depois da floresta ser cinza e carvão, e a desolação se apossar dos "pulmões" do nosso país, inglória e impotentemente, ineficazmente por extemporâneo já ( pelo menos na circunstância ), iniciou-se então um alargado debate, do contraditório bombeiros-protecção civil, na assunção de responsabilidades, ou de gestão errada dos meios disponíveis, iniciou-se a responsabilização dos donos das matas, do próprio estado, detentor de matas próprias, pela negligência ( legislada, mas raramente fiscalizada, menos ainda punida ), da necessária limpeza dos terrenos, etc, etc, etc, vindo a terreiro o MAI, garantindo sérias e imediatas medidas preventivas, impeditórias de possível repetição de idênticas situações ...

E o país continuou a entreter-se ...

Na Madeira, as enxurradas arrastaram casas, monte abaixo, com prejuízo de vidas e de bens, em zonas, que toda a gente sabia, há muito, não terem capacidade de sustentabilidade das construções, e que também há  muito,  requeriam obras  de  reforço  e  resistência  dos  terrenos , logicamente  obrigatórias  e  nunca efectuadas !
Os "urubus" dos  media  voltaram  a  aproveitar  o "furo" jornalístico, em  cima  do  infortúnio  de  cada  um ... e  o  país  também  se  foi entretendo ...

Agora levantou-se recorrentemente, a referência à utilização de amianto, em construções de edifícios públicos, numa dada época, no país.
Em escolas e edifícios que há longos anos albergavam e albergam serviços, e onde consequentemente "habitam" longas horas por dia, muitos e muitos indivíduos, continua a conviver-se com a presença dessa substância.

É sabido que o amianto é uma substância química, potenciadora de desenvolvimento de doenças oncológicas, em quem a ele está longamente exposto.
Anda por aí, na comunicação social, este assunto, por via de denúncia e queixa, de pessoas comprovadamente vítimas do mesmo.
Só nos últimos tempos, o estado resolveu pegar na questão, e fazer obras de reabilitação desses espaços, retirando a substância cancerígena.

Trabalhei mais de 36 anos, numa dessas escolas, construídas nessa época, sob "figurino" todo idêntico.
Consequentemente, a minha escola sempre teve amianto, e creio que ainda tem ( não estou certa, já que me afastei há quase 4 anos ), nos tectos dos pavilhões e nas coberturas dos passadiços.
Recordo claramente a estatística negra, dos colegas, empregados auxiliares, e mesmo alunos, que ao longo dos tempos, faleceram de facto, com cancro ...
Nessa  altura,  ainda as vozes não se tinham levantado, a comunicação social ainda não "pegara" na denúncia ...
Eles ... partiram.  E foram muitos, objectivamente.
Se  houve  nexo de causalidade entre as suas mortes e a existência do amianto, não  poderei  garantir, contudo ...

E  o  país  continua  a  entreter-se,  enquanto  dura, e  é  fresca, a  notícia ...

"Casa roubada, trancas na porta" ... é algo mesmo muito nosso, muito português, de facto.
Somos um povo sereno, já dizia o outro !  Mesmo muito sereno !...

Afinal, a  nossa  realidade  é  tão desesperante  neste  momento, que se calhar é  legítimo  que  nos entretenhamos  com  algumas  "coisitas" !!!...

Anamar

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

" COMO QUEM SE CONFESSA ..."



Gostava de ter histórias lindas para contar.  Ou pelo menos, gostava de ter histórias que envolvessem os leitores, pelo interesse que despertassem.
Gostava de ter criatividade, para ficcionar um enredo gostoso de se ler, um percurso que levasse alguém infinito fora ...

Mas não.
Concluo que criatividade, tenho pouca, memórias interessantes que se reportem a épocas, vivências pessoais ou sociais, passadas e curiosas, também são limitadas,  e  as  que  me  ocorrem,  por  saudosismo ou  efeméride,  já  as  contei  ( se calhar,  vezes  sem  conta ... ).
E resta-me falar de mim, da realidade que tenho colada ao coração, impressa na alma, viajante no sangue !
Da minha vida, dos meus anseios, dos meus sonhos, das poucas concretizações, dos meus amores e desamores, das minhas dúvidas, dos meus medos, das minhas experiências de vida ... afinal, daquilo com que convivo diariamente, talvez pouco enriquecedor, seguramente entediante demais ...

E contudo, olhando para trás, a minha vida, a real, a própria, a que sei cá dentro, a de todos os dias, de há demasiados dias, sem esquemas, camuflagens ou maquilhagem ... aquela que só eu destrinço ao pormenor, o meu lado solar, mas também o meu lado lunar, como se costuma dizer, talvez desse um bom enredo de qualquer coisa ... de um filme, de um livro que não sei escrever, de uma história que não ouso narrar ...
A minha história !

Tenho, tive, uma vida estranha, complicada, muito marginal, que infracciona deliberadamente  regras,  preceitos,  conceitos tradicionais, socialmente determinados pela cultura judaico-cristã em que nascemos, fomos criados e ainda permanece vigente, com mais ou menos influência, queiramos ou não.
Tive e tenho uma forma de ser, de me posicionar, de me interpelar, de me questionar, de me guerrear, que tenho a certeza ( isto não é mérito nem demérito ... é simplemente assim !... ), é pouco comum às outras pessoas, que atravessam este mundo, este planeta nesta minha época, que são da minha faixa etária, com a minha formação tradicional ( aquela que recebi ), com vidas de "figurino" enquadradas e "correctas", com vidas que eu vejo muito passadas a "papel químico" ... mas que não as contestam, que as aceitam com passividade, sem se debaterem ou se lamentarem.
Sem pressas de andar, sem medos de que se lhes esgote o tempo disponível, sem ânsias de ver o que as espreita depois daquela volta de estrada, daquele alto de monte, sem correrem em direcção a horizontes que delas se afastam, por cada passo que dão em direcção a eles.

Eu, pareço aquele vulcão, aparentemente extinto, e que um dia surpreende o mundo, porque as línguas de fogo, se levantam nos céus, e o gigante, apenas adormecido, vomita as raivas e a turbulência, que afinal, silenciosamente, sempre continuara latente, a existir nas suas entranhas ...
As minhas "entranhas" também se agitam, o meu coração não dorme, o meu espírito não se aquieta.
Sinto quase sempre, ser um barril de pólvora, que contém, a duras penas, a força  potencialmente explosiva, guardada no seu interior.
A contenção do meu "avesso", é uma manobra treinada, calculada e cansativa, e por isso me deixa exaurida, frustrada, arrastada por aqui ...

Às vezes abrem-se fissuras, que colmato como posso, porque "dizem" que deve ser assim ...
Outras vezes, a panela de pressão ameaça não aguentar, a válvula de escape é obrigada a deixar vazar o excesso de turbulência ...
É então que abro lutas comigo mesma, e me pergunto por que é a minha vida assim ?
Por que vivo insatisfeita, desajustada, esgotada, enraivecida ... ou então, anestesiada, distante, indiferente, de indiferença sofrida ?
Por que não consigo alterar a minha forma de sentir, as minhas convicções sobre o que me rodeia ?
Vivo sob reclamação permanente, com destinatário desconhecido ...

Umas vezes sou uma criança, com uma ingenuidade invejável, outras, uma  adolescente , crédula e sonhadora, outras ainda, uma velha revoltada e sem sossego ...
Sou um mar encapelado, em constante preia-mar, de tempestade imprevisível, destruidora, raivosa, mortífera ...
Sou alguém que não cabe na carcaça que lhe enfiaram, e que tem que viver dramaticamente com ela ...
E por isso, sou um ser de desespero, desequilíbrio e desconforto permanentes ...
Invento vidas, porque esta não me gratifica.  Sonho histórias futuras em que acreditei, ou lembro passados mais ou menos distantes, porque o presente não me preenche.
Os meus dias são bolorentos, bafientos demais.
Cheiram a algo putrefacto, como se fosse num pântano que eu tivesse os pés.
Estou cansada, muito cansada, como alguém que madrugada alta não enxerga que caminho tomar, numa encruzilhada da  serra ...
Perdida, por isso, também.

Sozinha, muito sozinha, sem ninguém por perto, que fale a minha língua ...
Labirinticamente perdida e extenuada, sem descortinar o caminho de libertação.
Tudo igual, tudo demasiado igual, tudo demasiado cinzento, como a cor da borrasca que o céu nos exibe, e como a tempestade que as gaivotas nos prometem !
Sentada num banco da estação, à espera de um combóio que jamais passará ...

Não sei estar por aqui !  Sinto-me castigada por ter que estar por aqui !...

Subo ao penhasco e olho o mar.  É a sua lonjura a perder de vista que me aquieta ;  É o azul de um céu diáfano que me aquece ;  É o voo da gaivota, do albatroz, ou da águia nos picos do monte, que me transporta e me acena liberdade lá longe ... sonho, lá longe ... fé em algo, lá longe ... alguma salvação ainda, lá longe !...
Como se eu acreditasse nisso, e respirando-o, me deixasse envolver por paz ...

Apenas tudo tão longe, que estou certa, jamais chegarei lá !!!...

Anamar