quinta-feira, 29 de maio de 2014

" NADA É EXACTAMENTE ..."


Nasci no pós-guerra, não  muitos anos  depois da Grande Guerra de 39 / 45 ter terminado.
E nasci no Alentejo pobre, desfavorecido, neste país, afinal  também desfavorecido da sorte.
Não fui filha de latifundiários ;  de meu, tinha apenas o que o trabalho do meu pai, providenciava.
Não faltou nunca, contudo, abastança na mesa. Para o resto, também se ia dando um jeito.
Casa própria não existia, carro nunca tivemos, esbanjamentos não eram possíveis.
E ainda assim, sem nunca o meu pai tirar férias para si próprio, já  propiciava, a mim e à minha mãe, um período de férias no Algarve, em quarto alugado de casa particular, ou de  residencial modesta.
Mais por razões de saúde, hoje lembro bem o espírito da coisa.  A praia faz bem a uma criança !...

A vida corria mansa, sem sobressaltos, bem desenhada nos espíritos.
O meu pai trabalhava como comerciante, tinha  um salário mais ou menos certo ao fim do mês, com ele se contava, com ele se geriam os dias.
Prossegui estudos, avolumavam-se as responsabilidades, mas era pacífico que eu tiraria um curso superior, para o que tivesse jeito e gosto, porque um emprego certo, me esperaria no fim do percurso. 

Fui educada dentro dos moldes sociais, familiares e morais da altura, o que significava  rígidos, sem concessões, com exigência e seriedade, mas sem sustos ou surpresas ... Era assim, e todos sabíamos como era.
Os valores inalienáveis do  respeito, da humildade, da educação, do trabalho, do esforço, da honestidade, da generosidade, do sacrifício e da dedicação, eram trabalhados na família, na micro e na macro-sociedade em que nos inseríamos, nos núcleos profissionais, nos círculos dos conhecidos e amigos, e também dos desconhecidos com quem partilhávamos a vida.
Era estimável que nos pautássemos com dignidade, honradez e rectidão, por forma que em qualquer momento e em qualquer lugar, nunca fôssemos apontados por motivos menos válidos. Sempre pudéssemos andar "de cabeça erguida" ... este, o slogan !

E os que o não eram, aqueles que feriam os valores genericamente vigentes, e defendidos  pelas estruturas sociais definidas, eram facilmente identificáveis.  Não existiam muitos alçapões, moitas ou tocas, onde se pudessem  acoitar.  Não se escudavam  no seio de suspeitos protectores, com nomes sonantes ...
Mais cedo ou mais tarde seriam referenciados,  e marginalizados pela própria sociedade, que não contemporizava e naturalmente os expurgava.
Era exactamente assim !

Formei-me e fui trabalhar.
Talhada tradicionalmente para o casamento, realização óbvia e quase incontornável das mulheres da minha geração, escolhi ser professora, destino consentâneo e ajustável  às tarefas  de mulher e mãe ( algo também demasiado previsível e óbvio, no universo feminino, quase sem excepção ) .
Conhecia perfeitamente a carreira que tinha pela frente, sabia das seguranças profissionais a nível do trabalho, os deveres e as regalias  que o caminho me assegurava.
O meu primeiro vencimento foi de 4$50, como professora eventual, recebido então em dinheiro vivo, num envelope que o Chefe da Secretaria  me entregava , contra a assinatura mensal da Folha de Vencimentos.

Sabia que teria anualmente actualizações do vencimento, depois de ter passado a Professora Agregada, e finalmente a  Efectiva do Quadro.
Sabia que usufruía de diuturnidades com incidência temporal regular, sabia exactamente quantas horas teria que prestar em leccionação efectiva ( não existiam ao tempo, outros "faits divers" ... ), quantas me eram equiparadas  no trabalho de Direcção de Turma, quantas horas iria beneficiando de desconto no cômputo total do horário, à medida que envelhecesse ... sabia qual a valorização exacta que acrescia à minha nota profissional, por  cada ano de leccionação ... Enfim, sabia muitas coisas ... exactamente !!!

E sabia também que, eu que começara a ensinar aos vinte anos, teria o fim da minha carreira e a almejada reforma, quando atingisse  em alternativa, ou 36 anos de serviço ou 60 de idade ...
E também sabia a fórmula exacta com que seriam feitas as contas da minha futura pensão, baseada nos anos de trabalho e nos vencimentos auferidos ...

Depois, também se previa sem grande margem de erro  ( a menos que algum imprevisto gravoso se nos atravessasse na vida ), a curto, a médio e a longo prazo, como iria ser economicamente em termos de estabilidade, de segurança, de gestão, a nossa vida ao longo dos anos, e no seu fim.
Era possível delinearem-se estratégias, assumirem-se responsabilidades, correrem-se riscos ( porque o eram sempre calculados ), fazerem-se opções, escolherem-se caminhos ... porque qualquer um que escolhêssemos era nosso conhecido, qualquer responsabilidade seria honrável, qualquer plano, criteriosa e seguramente analisado antes da decisão, qualquer estrada tinha luz e saída ... e os sonhos ainda eram permitidos !!!...

Os mais previdentes, e normalmente era-se algo previdente, procuravam  fazer ao longo da vida ( porque isso era ainda viável ) , um pé-de-meia, para uma eventualidade na velhice ... como se dizia.
Uma "eventualidade" ... Porque esta não existindo, o resto estaria acautelado.
Havia respostas sociais asseguradas, em termos da assistência à saúde. Precárias, é um facto ... não satisfatórias, é verdade ... mas existiam .

Bom, poderia ficar infinitamente a dissertar, à medida que fosse lembrando, o desenrolar deste filme que nos conduziu aos dias de hoje.
Os dias de hoje, que nós, os que viemos lá de trás, custamos a perceber, a aceitar, a partilhar ...

Mas não vale a pena, pois todos sabemos a realidade que vivemos na actualidade, e todos conhecemos o principal motivo de, os da minha geração, se sentirem peixes fora de água, sem azimute e sem norte ... perdidos, com a sensação de vivermos numa Torre de Babel de valores, regras ou normas ...
O  principal  motivo deste cansativo, destruidor e angustiante  "stato quo ", tem um nome :  insegurança, indefinição, incerteza ... dúvida ... susto ... porque sobrevivemos afinal  em  tempos em que "NADA  É  EXACTAMENTE ..." !!!

Anamar

quarta-feira, 28 de maio de 2014

" O CINZENTO DOS DIAS "



O dia está cinzento, aliás, continua cinzento.
Esta Primavera que daqui a menos de um mês está de saída, eu diria que nunca esteve de entrada.

As pessoas andam como o tempo, cinzentas com tendência a agravamentos súbitos, aqui e ali.
Vive-se, mas não se percebem sinais exteriores de quaisquer resquícios de felicidade ou alegria nos rostos, sequer de realização ...
Bem ao contrário, os rostos são fechados, carregados, pouco dados a bonomia ou gentilezas.
As  palavras,  menos  ainda,  e as  atitudes,  são  de impaciência,  intolerância,  agressividade ,  prepotência  ( sobretudo se se fala "para baixo" ... ), quase gratuita.
As pessoas andam azedas umas com as outras, e com a vida.
A tolerância foi-se, a paciência também, a má vontade e a sacanice à solta, são visíveis, e caminha-se numa espécie de não valer a pena, tipo "perdido por um, perdido por mil ", desesperador !

Diz-se do povo português, um povo triste, e corrobora-se essa afirmação dizendo-se que não é à toa  que o fado é a canção nacional mais fielmente tradutora dos estados de alma, que se poderia ter arranjado.
Pasmamos às vezes, como dobrando a fronteira, numa península tão pequenina, temos dois vizinhos tão abissalmente diferentes, os espanhóis e nós.
A mim, coube-me ser do lado  de cá, para mal dos meus pecados, posso dizer ...

O  que  é facto, é que se sente que a resistência emocional das pessoas, está a esticar até limites impensáveis ;  sente-se que se anda há muito, a viver além das capacidades psicologicamente equilibrantes ; sobrevive-se mais do que se vive, porque nos arrastamos mais do que caminhamos, num deserto em que nem as dunas alteram a paisagem ...
Ela é uniformemente, cansativamente, desinteressantemente igual ... ela é mortal e assustadoramente desmotivante.
Vivemos em automatismos diários, que já nem questionamos.  Fazemos assim, porque é assim !
Programados, chipados, fotocopiados, entramos na engrenagem de manhã, e acabamos à noite.
A qualidade já não é questionada, a razão já não é equacionada, o destino já não é repensado ...
Acreditamos pouco, perdemos há muito, a ingenuidade face a um futuro pouco promissor ...
Parecemos o hamster na roda. Vivemos atordoados, anestesiados, aparvalhados muitas vezes, indiferentes. Doídamente indiferentes ... como um boneco de corda ... até que a corda acabe !!!

E assusta-me, assusta-me tudo isto, porque é extensivo e transversal às gerações todas, atingindo mesmo as faixas etárias mais jovens, num período da vida em que as pessoas deveriam ser combativas, esperançadas, lutadoras com convicção em objectivos válidos, em que as pessoas deveriam desunhar-se nessa luta, com a certeza  de  que  a  vitória lhe seria proporcional, bem como ao esforço dispendido e à fé colocada na aposta ...
Uma fase da vida em que ainda lhes seria permitida e desejável, uma certa dose de ilusão no percurso ...

Mas não !  Os horizontes mostram-se carregados, as fronteiras fechadas, os túneis sem luz.
As alvoradas não se iluminam, e os sóis vivem em ocasos.  As andorinhas não chegam, porque as Primaveras também não !  Claro que só as gaivotas planam por aqui, já que elas não têm rumo ou norte, e apenas aproveitam os golpes da aragem, numa dança oportunista e preguiçosa, para cá e para lá, como as marés que só recuam e avançam, e enjoativamente trazem e levam ... chegam e partem ...

Enquanto isso, a Europa virou mais e mais à direita, nas eleições para o Parlamento, dando um sinal inequívoco do endurecimento das sociedades mandantes, dando um sinal de indiferença, de total ausència de solidariedade e de espírito "de família", para com os povos que só servem para lhes varrer a casa ...

O espírito oligárquico, o espírito de depuração de povos, o espírito de marginalização de  parentes pobres, a recusa pela assimilação e integração das economias mais frágeis e desfavorecidas, e antes sim, o aproveitamento e a exploração miserável e insensível dessas mesmas economias, com a consequente inviabilização do seu reerguer e da sua regeneração ...
o acentuar de um fosso de submissão político-social-económica, entre a supremacia dos povos do norte sobre  os do sul da Europa, num manifesto e claro retrocesso na senda que o mundo deveria percorrer neste século XXI ...
uma desumanização bem visível, face ao que seria a procura desejável do enriquecimento pela miscigenação das civilizações, sendo cavadas  inversamente, barreiras e clivagens inultrapassáveis na aproximação dos cidadãos e das culturas ... aproximação essa, que deveria nortear a filosofia dos estados, no sentido de uma  Europa  humanista e de valorização ...

... prevalecem, e antevêem dias muito sombrios e preocupantes, em que o terror de um nazismo renascente, ameaça mergulhar de novo a Europa, num mar de desesperança e morte,  deixando para trás, desde já, as suas estradas inapelavelmente pejadas de estropiados e  de "cadáveres" !!!...

Anamar

sábado, 24 de maio de 2014

" AS ANDORINHAS "



O sol já desceu, e com ele, as andorinhas já foram ...
Há pouco, dançavam  ao sabor da aragem, naqueles volteios rasantes por sobre as águas dos lagos.  Asas esticadas ... o chilreado típico do fim do dia !

Estas tardes melancólicas, mansas e silenciosas, em que os alaranjados do céu redefinem a linha do horizonte, acentuam a penumbra que desce devagarzinho, subindo as paredes, avolumando a sombra esfíngica da solidão, e pintando os sonhos como se fossem aguarelas de cores maceradas e esbatidas.
O sol deixou-se ver, enquanto as nuvens em castelo no firmamento o permitiram, e a sua luz incendiou os novelos brancos e grossos lá longe.
Depois, os contornos já escurecidos das construções sem rei nem roque, impediram-no de iluminar mais, o meu rosto, sentada  que estou, em silêncio, numa imobilidade dormente, em anestesia de alma, com o coração deitado na palma da minha mão ...

Sobre o mar, ele ainda preguiçou, que eu sei !
O mar não limita, não cerra fronteiras, não fecha caminhos.  Depois do mar, há sempre mais mar ...
Tenho a certeza, que até que o céu tenha virado azul escuro, ele continuou por lá !...

Aqui, as pintas de círios acesos neste presépio estranho, começaram a pintalgar este quadro de solidões,  de distância ... de ausências ...
Uma aqui, outra ali ... a fazerem de conta que mais para lá, há vida e há gente !

Os fins de dia , estes fins de dia, são iguais à minha vida... folhas de outono amarelecidas, que esvoaçam  no torpor de uma  aragem cálida, que deslizam no sabor da minha corrente de cansaços, que se escoam dos meus dedos e simplesmente vão ... nunca olham para trás ... nunca me perguntam se eu deixo ...

Os pássaros que cortam os céus com pressa, em pôres-de-sol  já  liquefeitos, transportam nas asas,  fogachos de horizontes próximos, para aléns mais distantes ... Porque são livres e soltos.
As andorinhas bordam os beirais, em  desenho  caprichoso,  de  mágica arquitectura, desafiam a renovação, auspiciam  a  felicidade, a  paz  e a  abundância, nas Primaveras dos nossos amanhãs ...
As andorinhas sempre prometem esperança,  a colorir  os avessos da  nossa  vida ...

Voltaram ... este ano voltaram ...



Anamar

quarta-feira, 21 de maio de 2014

" SERÁ QUE TAMBÉM VOU TER UMA JANELA ?..."



Passo àquela estrada todos os dias.  E todos os dias ela está lá !

De um lado um muro corrido, do outro,  p'raí uma dúzia de casas baixinhas, muito simpes, duas janelas e uma porta, lembrando as casas das nossas aldeias, no Portugal perdido ...
São reminiscências da parte velha da minha cidade, ainda orgulhosamente sobreviventes.
Entre o muro e as casas, uma via com trânsito nos dois sentidos, muito trânsito, nas horas de escoamento da cidade grande.

Passei um dia e a  D. Inácia já lá estava.  Passei dois dias, uma semana, um mês ... um ano ... já anos !

Passava, e os nossos olhares cruzavam-se apenas.
A D. Inácia, com pantufas, xailinho nas pernas, colar de pérolas ao pescoço, estava invariavelmente num dos dois sítios possíveis : ou sentada na rua, numa cadeira junto à porta, nos dias de tempo bom, a espreitar a nesga do sol, ou por detrás de uma das duas janelas ... quando o tempo desabrido, tornava incómoda ou impossível a sua permanência no exterior.
Em qualquer dos casos, a vista de que desfrutava era a dos carros a acelerarem na estrada próxima, a figura fugidia dos passantes silenciosos, o gato livre da vizinha, que vinha espreguiçar-se ao sol ... e o muro cego, do outro lado, impeditivo de o olhar se tornar  invasivo além dele.

A D.Inácia é uma senhora talvez de oitenta anos ... por aí.
Vivia com uma filha que partiu, com doença que sem comiseração,  a não poupou.  Restou-lhe a filha dessa filha, com quem vive na casa baixinha de duas janelas e uma porta.
Esta, não trabalha. Aliás, passa o dia  em pijama e bata de limpeza por cima.  Deve dormir até tarde, vem p'ra rua por pentear, com um ar sujo e totalmente negligenciado.
Vivem de pensões precárias, só as duas, e os cuidados prestados à D. Inácia, são os mínimos.
Esta não comunica. Vive no silêncio. Amorfa, distante, indiferente, anestesiada das dores da alma !...
Diariamente é posta e retirada dos lugares onde a sentam.

O tempo foi indo.
E o tempo atribuíu "estatuto", a esta comunicação surda e muda entre mim e a senhora idosa.
Achei que já era altura de a saudar, ao passar.  Comecei por lhe dar as boas tardes, mas a D. Inácia não reagiu.  Creio que não ouve.
Passei então a acenar-lhe com a mão.  Com o rosto impassível, olha-me, mexe levemente os dedos da mão, parecendo  impossível  poder retirá-la do cólo.

Quando por detrás das vidraças, com o horizonte ainda mais limitado, deixa deslizar o olhar, para longe, sem rumo ou destino,  não interaje com o movimento exterior,  não deixa transparecer emoções ... é um vegetal que ganhou raízes naquele chão ...

Que histórias de vida teria para contar ?
Que memórias guardará de outros tempos, de outras gentes?
O que ocupará o seu coração e a sua mente ?  Será que ainda lembra do riso e da alegria ?
Ou, misericordiosamente, uma cortina de esquecimento, de solidão e desesperança, desceu  e insensibilizou por completo, o espírito da D. Inácia, tão opacizado já, quanto os seus olhos ?!...

Não sei !  Penso que nunca irei saber !...

Hoje, ao atravessar a mata, onde as flores silvestres da Primavera adornam  gratuitamente o manto verde do chão, lembrei o rosto esfíngico da anciã, postado por detrás dos vidros, já que o dia estava frio com chuvas esparsas.
Senti o privilégio da vida ... Da vida e da saúde ... Da saúde e das emoções ...
Aspirei até ao âmago o ar frio e perfumado do campo, o cheiro intenso da terra molhada de fresco, e persegui com o olhar o voo livre dos pássaros, trinando de ramo em ramo ...
Apanhei uma haste de "Bordões de S. José", generosamente florida, e ao passar junto da janela baixinha, deixei-a no parapeito.
A D.Inácia, com o seu xailinho de lã e o colar de pérolas ao peito, como habitualmente manteve-se inerte.
Sem um movimento, sem um esgar, sem um sorriso, sem um aceno ... deixou  apenas  que uma lágrima manhosa se desprendesse  dos olhos distantes e vazios, sem contenção, estou certa, e tivesse escorrido  pelo rosto esquálido e macerado ...

Um nó estrangulou-me a garganta.
Uma mágoa apertou-me por dentro, e queimou-me as entranhas ...

Será que um dia também me vai  restar uma  janela ???...


Anamar

sábado, 17 de maio de 2014

"ESTE MAIO É P'RA ESQUECER ..."



O tempo estivou de vez.
Já não se vislumbram nem ao longe, os dias desabridos, cinzentos e chuvosos, que este ano nos acompanharam até há bem pouco atrás.  Quase os esquecemos.  O Homem esquece depressa !
Agora, o calorzinho  com a doçura do édredon no pino do Inverno, envolve-nos, qualquer brisa já nos é abençoada, o céu mantem-se uniformemente azul transparente, e sobretudo, os cheiros das espécies florais em explosão, fazem um cocktail de perfumes, que nenhuma essência, por muito requintada e trabalhada, alcança ...

A vida, não a vivo ... vou-a vivendo ...
E como numa espécie de passeio no parque, sem destino ou horas, sem finalidade ou determinação, progrido, avanço alameda fora, sentindo o areão estalar sob os pés, usufruindo as sombras, desfrutando das luzernas de sol em meio da copa das árvores, deixando o olhar perseguir, preguiçoso, o volteio dos pássaros, e escutando  a melodia dos seus trinados, numa pauta musical de maestria !


Sinto-me adormecida, sonolenta, amodorrada ... dormente.
Dormente traduz melhor a sensação analgesizante com que plano por aqui, numa viagem ao Deus dará, sem lógica ou meta.
Quando questiono a insatisfação que experimento pela vida que detenho, este perfeito fazer de conta não gratificante, desespero-me, entristeço-me, enfureço-me às vezes,  porque tenho a sensação que isto é uma brincadeira de crianças, de mau gosto, é uma provocação gratuita, um jogo viciado que não quero, mas sou obrigada a ir jogando ...

Gostaria que alguém me convecesse do interesse disto por aqui ;  deste acordar, deitar, desta inutilidade arrastada, desta fotocópia de dia após dia, num cinzento atroz, desta falta de ar de respiração que não se tira até ao fundo, desta sufocação de um coração espremidinho no meio do peito, desta torrente tolhida em cada olho, que se degladia p'ra correr ...

Bom, eu sei que faço inveja a muitos, cujo desiderato seria terem para viver, por cada vinte e quatro horas, este meu figurino de vida.
No entanto asseguro-vos que ele me destrói.  E destrói, porque, dando-me um crédito de tempos mortos de análises e reflexões, em que a mente não se compadece, atola-me num lameiro de que não consigo emergir.  É impiedoso, massacrador e não dá descanso.
É um tempo exaustivo de balanço de tudo, de retrospectiva e de análise.
E na minha vida actual, as análises não têm resultados positivos em quase nenhuma vertente.

Mas afinal, o ser humano deveria beneficiar, com a liberdade de gerir a sua existência, sem horas, sem espartilhos temporais ou outros.
Pareceria que, ultrapassado um dos graves problemas da sociedade actual, que advem da correria louca em que o Homem entra de manhã e termina quando se deita, p'ra dormir também a correr ( o que lhe tira qualidade de vida ), pareceria, digo, que metade dos seus problemas de equilíbrio, bem-estar, realização e satisfação pessoais, estariam sanados, na exacta proporção da sua disponibilidade.
E eventualmente esses estadios serão alcançados pela maioria dos mortais, que acreditam que após a retirada da vida activa, possam ter um esquema mais a contento

Eu, contudo, de uma forma irremediavelmente incoerente, funciono ao contrário !

Por um lado, sozinha, tenho cada vez menos paciência para programar o que quer que seja.  Consequentemente, os meus períodos de introspecção e clausura entre as quatro paredes a que me confino, aumentam exponencialmente, e com eles, o amorfismo, a indiferença, o desinteresse e o cansaço, também.
Há alguns anos atrás, ainda achava o máximo, a experiência da autonomia e da liberdade que vivia entusiasticamente, ao viajar só !
A mim, bastava eu.  Via pelos meus olhos, pensava pela minha cabeça, sentia pelo meu coração !
Os silêncios não me atormentavam, a solidão também não !

Por outrolado, a crise económica que atravessamos, sem fim à vista, é absolutamente limitadora de projectos, castradora de iniciativas e realizações.
Tudo implica existir folga económica, desde os programas mais simples, aos mais exigentes.
Até para se ver o mar, a montanha, respirar ar puro, ou usufruir de um sol franco, que não limitado pelos contornos do betão ... se precisa gastar dinheiro !...

E por tudo isso, ou porque envelheço a passos largos, ou porque estou psicologicamente doente, ou porque estou cansada, exaurida, desmotivada ... ou porque não acredito já  em nada que valha a pena, ou porque deixei de sonhar e o meu eu interior desiste a cada momento, fenece e estiola ... não vivo, vou vivendo ... adormecida, sonolenta, amodorrada ... dormente ...

... até quando ??!!...

Anamar

domingo, 11 de maio de 2014

" AMEM-ME OU DEIXEM-ME ! "



Até parece que estive fora.  Até parece que fui de férias.
Não tenho memória de um afastamento tão longo, aqui deste meu espaço !
Mesmo quando viajo, sempre vou artilhada de todos os necessários, para escrever apontamentos, crónicas de viagem, relatos dos locais por onde me perco.

Pois é !
Só que desta feita, estou por aqui, estive por aqui, não saí do mesmo lugar.
Apenas houve alguma coisa que de mim se distanciou, à minha revelia : a vontade, a necessidade, o desejo, o interesse, e até o gosto por debitar o que quer que fosse ... e a valorização reconhecida do que pudesse escrever.   Como  consequência,  a  sua  injustificação !

Escrever sobre mim, incomoda-me, e presumo que incomode os outros.
Aferem-me, analisam-me de lupa, perscrutam-me com olho clínico e crítico.  Os mais próximos acham-me tontinha, olham-me com aquele olhar complacente, com que brindamos os irremediáveis de espírito.
Entendem-me como ingrata face ao destino e à vida, porque afinal,  de acordo com os seus parâmetros avaliadores de pessoas com vida normal ( se se considerar como normal, esta coisa que não se entende bem, mas que se cumpre diariamente ), eu tenho tudo, tudo o que para eles é a visão da felicidade absoluta : eu tenho tempo, eu não tenho limitações de nada, abstractamente falando, eu funciono à minha vontade, com o meu livre arbítrio, fazendo as minhas escolhas a cada momento.
O que se pode querer mais ?
A minha existência é na verdade, o "el dourado", é o desiderato que todos ansiariam alcançar, configura o que todos pediriam a Deus, usufruir.

E portanto, não a aproveitar, não a valorizar, e, blasfémia suprema,  dela me queixar e nela  me sentir infeliz, é uma injustiça e uma ingratidão sem tamanho ... ou é coisa de doidos !
Só os maluquinhos perdem a noção da relatividade das coisas ;  só os supra-egoístas não têm capacidade de enxergar além do seu umbigo e do seu pequeno mundinho ;  afinal, só os comodistas, os incapazes de análises isentas e objectivas, os incapazes de se transcenderem, ou tão simplesmente de irem à luta ... em última análise, só os privilegiados dados a vitimizações balofas, é que se queixam, de barriga cheia !

Talvez !
É  possível que eu seja tudo isso.  É possível que não consiga alterar nada disso, apesar de me degladiar numa dialéctica interior, insana.
É possível que não tenha sucesso, e que me estafe, numa busca serôdia de outra personalidade, ou de outra capacidade de enxergar o mundo com olhos diferentes, que não aqueles em que me forjei.

E não sei  fazer melhor.  De facto, começando por mim própria ( que seria a principal beneficiada ), não encontro bússola que me troque os pólos da mente, que ponha o meu globo a rodar ao contrário, que me inverta os sentimentos aqui dentro do peito, que me projecte outro filme no écran, que me acabe com os "dramas", para os quais "já não há paciência" !...
Não encontro !

E  estou  cansada,  de  facto,  muito  cansada.  E  proporcionalmente  desistente ... existencial  e  mortalmente infeliz !

E como nada muda, e como não mudo nada, e como o tempo passa, corre, some ... e porque como os burros, continuo empancada no mesmo ponto ... e porque nada tenho de interessante para escrever, e porque falar de mim, deste obsessivo pântano donde não saio, é entediante, desinteressante e chato ...
é esgotante, é execrável e inglório ... em suma, é um nojo ...
... e como de tudo o que é entediante, desinteressante e chato, a gente tende a afastar-se, a gente tende a evitar, a gente não é obrigado a aguentar ...

... amem-me ou odeiem-me ... mas deixem-me em paz !!!...

Anamar

quinta-feira, 1 de maio de 2014

" NO TEMPO DAS CEREJAS ! "



1º de Maio !...

Quando penso no 1º de Maio, sempre me ocorre o primeiro 1º de Maio ... o de 74 !
O primordial, o virginal, como o é tudo aquilo em que muito acreditamos e nos enleva !

Era o tempo das cerejas, era um tempo leve, de céu azul, e muito sol.
Estava um dia quente, sim, a anunciar tempos de bonança, que talvez não viessem nunca  a honrar a suspeição, ou tão somente o desejo.

Lembro de ter uma casa nova, onde implementava os preparativos da estreia ... Lembro de ter uma única filha  ( oito meses de menina, com caracóis loiros e rosto de porcelana ), sentada na alcatifa rosa-carne da divisão totalmente vazia ainda, contígua à cozinha, onde eu arrumava, arrumava, arrumava ...
Lembro de que não havia brinquedos que a aliciassem a entreter-se, para que eu pudesse aproveitar a tarde a que me propusera ... E  lembro que nas ruas havia um sonho que voava de galho em galho ...

Lembro que sentia estar a perder qualquer coisa  sumamente importante, como o são as coisas únicas, na vida.  E também, que invejava não engrossar a marcha, vinda de todos os cantos, marcha de todas as raças, de todas as gentes, que se fizera rio único, de caudal gorgolejante e impetuoso.
Rio que inundava as praças, as alamedas e os largos. Rio que não permitia represa !
Um  poema  de  frases soando a liberdade ... vírgula a vírgula ... parágrafo a parágrafo ... escrito por todos nós !

E lembro os cartazes, as bandeiras, os hinos, as cores e as siglas ... as canções-arma, os risos cúmplices partilhados, divididos pelos rostos exaltantes ...  E os abraços dados aos desconhecidos ... a mistura dos suores de todos, os que naquele tempo, eram mais que irmãos ...
Os slogans, as palavras-norte e as palavras-ordem. E os braços no ar, quando o punho fechado, apenas significava vitória ...
Porque, no tempo das cerejas, ter a mesma esperança, rejubilar sem diques ou contenções, com a mesma alegria dos ideais únicos ... era  fraternizarmo-nos, como nunca voltou a repetir-se em tempo algum !...

Que importava ser mais ou menos vermelho ??!!
Que importava ter foice e martelo, ou rosa, ou estrela ... se ainda escorríamos para a mesma foz ??!!!

Os cravos não regateavam peitos ...
Uma força hercúlea pintava de certezas as ruas, os corações, e as almas.   Engalanava-se de vontade, de quixotismo, de sinceridade e de pureza.
Era  Abril, adentro o Maio que começara !... Era a festa que não cessara ... uma semana corrida !

Pela primeira vez,  num coro único de corações, todos, mas todos mesmo, tínhamos a ingenuidade de marinheiros de primeira viagem,  a alegria de putos soltos e livres,  a gargalhada que não comprometia nem assustava, em uníssono com a gargalhada  do  "camarada-irmão",  desconhecido ... ali,  ao  nosso  lado, com  a  mão  no  leme,  que  nem  nós !!!...
Tínhamos o êxtase e o deslumbramento, de ver uma história sonhada, que parecia finalmente saltar da ficção à vida !
Tínhamos a convicção, que passo a passo, atingiríamos a almejada meta !
Tínhamos a determinação dos que sabem o que querem ... ou a inconsciência de que bastava Querer, com aquela força ... para Ter !
Fossem lá dizer-nos que não era assim !!!...

Foi um dia de sol, de céu azul ... um dia quente, que respirava Liberdade !!!...

Foi o tempo das cerejas !

Anamar