segunda-feira, 30 de março de 2015

" UMA DELÍCIA ... "





Eu tinha que escrever sobre o Arnaldinho !

O Arnaldinho é um menino "levado", de calções ao fundo do bumbum, de boné ao lado, fralda da camisa meio dentro meio fora, e algumas sardas sarapintando-lhe as bochechas sempre afogueadas.
Os olhos grandes, luminosos, mais azuis que céu de Primavera, parecem os do querubim pintado no painel, lá da igreja.
A mãe opta por prender uns suspensórios naqueles calções em queda iminente ... Coisa que enfurece o Arnaldinho.

Leva a vida no corre-corre.  A sua agenda infantil rebenta pelas costuras.
Ele é a bola, ele é o abafa, o carrinho de rolamentos, a troca de cromos, o rio que corre em desatino no limite da terra ...
Ele é ir aos ninhos ... são as laranjas e as tangerinas que o espreitam dos campos da Ti Raimunda, ou as maçarocas do milho já maduro, prontinhas para a fogueira ... Tudo tentações do capeta !...
Os matraquilhos sempre o desafiam, na tasca do Manel.  Mas para isso, é preciso moedas, e só de vez em quando o Arnaldinho encontra algumas, esquecidas no fundo do bolso já furado ...

A fisga pendurada dos calções, o ranho pendurado do nariz, e o suor pendurado do rosto, cola-lhe à testa as farripas da franja mal cortada.
No meio de tudo, arranja de quando em vez, um tempinho para as letras.  Só de quando em vez.
Deveres esquecidos, cadernos rabiscados, com dedadas e nódoas de gordura ... e eis que os castigos na escola o "encontram" vezes de mais.
Os recreios em que só tem ordem de olhar a meninada, uma ou outra reguada, a ponteirada que ferve a cada burrice, deixam o Arnaldinho injustiçado e sofrido, perguntando-se o porquê de tanta "maldade" ...
O tormento que o assola, a infelicidade que experimenta, confundem-no !
Afinal, o seu pecado é apenas sentir-se solto, livre, adorar os campos, o rio, caçar os grilos, os gafanhotos e as borboletas para espalmar no meio do livro de leitura ... O seu pecado é ouvir o tlim-tlim dos berlindes no bolso, a atazanarem-no para a brincadeira, ou o pião com a guita ao jeito da mão ... ou o gorgolejar da água bem perto, entre as pedras, correndo pressurosa e fresca, no despontar do Verão ...
O seu pecado é a malfadada traquinagem  que não lhe larga o coração !...
Resistir-lhes ... é obra, e um puto não é de ferro !...

O Arnaldinho esquece tudo.  Só tem olhos para o céu azul, para a aragem que o despenteia ainda mais, para o calor do sol que o envolve ...
Botas ao ombro, pés na terra quente, mais vermelhusco ainda, no entusiasmo da prevaricação ... ele aí vai !...

Afinal é só um menino, feliz com tanto mundo à sua volta, feliz com os horizontes sem horizonte, que a vida lhe concede !

"Naldoooo !...." grita a mãe em fúria, quando precisa de um "mandado" ...
"Esse menino vai ficar sem orelhas, quando eu o apanhar !..."

E Arnaldinho, fazendo-se de morto, escondido no fundo do galinheiro, só pede que a criação não entre em desvario, e o denuncie.
Com as batidas do coração disparadas, os olhos de menino safado esbugalham-se mais ainda, ameaçando abandonar as órbitas ...  Até as sardas parecem desenhar-se em 3D, querendo saltar das bochechas !!!...

Conheci o Arnaldinho há muitos anos.
Numa terra com rio, com sol, com campo, flores e pássaros soltos.
Numa terra em que a esperança era verde como os campos, e a liberdade voava  nas asas das toutinegras ...
Numa terra com sonhos grandes,  feitos de sonhos pequenos.
Numa terra e num  tempo em que os meninos ainda jogavam ao pião, subiam às árvores, usavam fisgas e caçavam bichinhos.
Numa terra em que a felicidade tinha o tamanho do quintal de casa, e o Mundo era limitado só pelo rio e pelas terras da Ti Raimunda !...

Anamar

domingo, 29 de março de 2015

" QUANDO O HOMEM SE ACHA DEUS "





"Desgraciado ... mal nacido... hijo de la gran puta...haberte llevado a 150 personas inocentes ... entre ellos bebés y también 5 perros que iban a ser adoptados en Alemania...porque no te has tirado tu sólito del avión ?? Ojalá ardas en el infierno mala persona, no se como puede existir gente así en el mundo ... ENFERMO PUDRETE "



Acedi à página de Andreas Lubitz.  Queria ver mais de perto o rosto daquele homem.
Afinal o Facebook serve para isso e muito mais.

Andreas é o jovem alemão de 28 anos, mais mediatizado neste momento, pelas piores razões possíveis.  É ele o autor do acidente macabro, do Airbus A320, numa encosta dos Alpes franceses, na passada terça-feira.
Foi ele, que co-pilotando aquela aeronave, a jogou inexplicavelmente contra a montanha, no coração dos Alpes, tonando-se o autor material da morte de cento e cinquenta pessoas, incluindo muitos adolescentes ( alunos de um liceu alemão, que regressavam de Espanha, de um intercâmbio com outra escola espanhola ), e dois bebés, e ainda de cinco cães que iriam ser adoptados na Alemanha ...

Acedi ... e fiquei fortemente perturbada pelo que li.
Deparei-me com uma torrente de ódio e indignação, com uma página destilando raivas, rancores, fúrias incontroladas, pragas dantescas rogadas, vaticínios odiosos.
Deparei-me com um linchamento público sumário, aterrador, em que nem sequer a razoabilidade, algum decoro nos comentários e moderação da linguagem que a sensibilidade da situação exigiria, foram observados, na cegueira incontida dos depoentes.
Não encontrei um pingo de piedade, sequer uma tentativa de compreensão dos factos, ou a busca de uma nesga de entendimento dos mesmos.
Apenas uma sanha exterminadora !

E  espantosamente, todos aqueles que gritam, vociferam, lançam impropérios, auguram chamas do inferno, inquietude eterna de alma e quejandos, para este homem, o fazem em nome de Deus ... do seu Deus !...
Deus que afinal não esteve presente, naquele fatídico instante ... sabe-se lá por que desígnios !!...
E eu, que sou agnóstica, pergunto-me :  ELE não disse que ninguém pode julga ninguém ?!  ELE não disse que o Homem deverá ser misericordioso e perdoar o seu semelhante ?!  Sobretudo o que mais peca ?!
Com que autoridade o ser humano se arvora julgador e justiceiro, se LHE sobrepõe, e liminar e simplistamente, valora, condena, decide, atira para a fogueira outro Homem ?!
A habitual incoerência e hipocrisia ... certo ?!

E  no entanto, o que aconteceu foi de tal forma insólito e brutal, foge de tal forma aos padrões de humanidade, que configura de facto, um quadro demoníaco ...

Mas tem que ter uma explicação, obviamente.
Ninguém comete um acto de desespero tão tresloucado quanto este, sem que haja uma razão que o explique, um motivo que lhe seja subjacente.
Ninguém atira contra uma montanha um avião repleto de pessoas inocentes, gratuitamente ... por nada ... como quem vai ali à esquina comprar amendoins ...
Ninguém age desta forma em sã consciência, por sadismo, por diversão, por inconsequência ... porque sim !...

A esta hora há já quem diga entre dentes : "Está louca !  Se esta mulher tivesse perdido no acidente, um filho, um pai, uma mãe, um amigo ou parente próximo ... certamente não falaria assim !  este crime não tem desculpas, justificações, atenuantes! "

Pois bem ... que fique claro que não deponho em defesa ou aprovação de Andreas.  Estaria insana se o fizesse.
O que se conhece é de tal forma DEVASTADOR,  DESTRUIDOR,  TERRÍVEL, que apenas busco, procuro, tento descortina e compreender o que levou este jovem, a um definitivo acto suicida, de um desespero sem dimensões, e de uma monstruosidade sem tamanho ...
Porque, seguramente, só alguém profundamente perturbado, doente, em sofrimento interior sem limites, sem saída ou luz à sua frente, seria capaz de o perpetrar !
Só alguém para quem a vida já não fizesse qualquer sentido, alguém que houvesse perdido a noção dos limites, sem nenhum auto-controle dos mecanismos da existência ... Alguém perdido ... totalmente perdido, teria sido capaz !
Esse alguém foi Andreas Lubitz, de quem se sabe agora, estar gravemente doente, em depressão profunda, cumprindo tratamento psiquiátrico ...
Um jovem bonito, com um rosto comum, aparentando alegria e descontracção.  Quase um adolescente ainda, com uma vida à frente, também ele ... Com sonhos certamente, ambições, vontades legítimas ...

Convém reflectir que seguramente muita coisa falhou, neste seu percurso final.
Ninguém esconde o tempo todo uma depressão profunda, nos meios familiar, social e profissional ...
Ninguém disfarça mais próximos, uma perturbação mental dessa envergadura mesmo que tente escudar-se da estigmatização a que infelizmente a sociedade ainda sujeita estes pacientes ...
Sabemos que isso é impossível.  A postura de alguém devastado por esta patologia, denuncia, alerta, avisa.  Dá permanentes sinais.  Acciona mecanismos denunciadores !

Quem conhece esta doença de perto, sabe-o bem !
E também sabe que em consequência, as respostas do doente, poderão ser de dimensão e imprevisibilidade incontroláveis.  As mais gravosas para si e para a sociedade !

Por que não foi protegido atempadamente, Andreas ?!  E por que não foi a sociedade protegida, de Andreas, enquanto indivíduo inimputável, potencialmente perigoso, ou pelo menos enquanto um indivíduo de risco ?!
Quem tem sérias responsabilidades em tudo isto ?
Família ?  Amigos ?  Médicos ?  Profissionais seus colegas ?  A própria empresa empregadora ?...

Acedi à página de Andreas Lubitz.
Quis confirmar que os seus olhos não continham ódio.
Fui arrastada pela avalanche doente de comentários, ali debitados por gente saudável ( ? ), por gente com  respeito  pelos  valores  religiosos  e  morais ( ? ), por  gente  temente a Deus ( ? ) ... ou  por gente  com  uma  sede de julgamento, de vingança  e  de ódio, devastadora  e cega ?!
Ou gente que com toda a leviandade e indiferença, foi rápida a sobrepor-se ao próprio Deus, que ali invoca ?!
Gente  que  tem  pressa  de  encontrar  o  alvo, o  responsável, o criminoso,  para  apaziguar  as consciências  e  dormir  em  paz ?!

Andreas partiu, e arrastou com ele gente demais, que apenas teve a pouca sorte de estar no sítio errado, na hora errada !  Destino ... chamo-lhe eu.
Os pais, quiçá irmãos, quiçá avós ... todos os que lhe queriam bem, continuam por cá.
Será justo que também eles tenham que carregar para sempre o ónus da desgraça ?  Será justo que também eles sintam sobre si o peso do estigma de uma sociedade distante, anónima e hipõcita, o dedo acusador de todos que descartam o seu sofrimento, o inferno da sua dor, só porque são seus, de sangue e coração ?!
Penso que não!

Acedi à página de Andreas Lubitz, e fiquei mal ... muito mal !

Anamar

quarta-feira, 25 de março de 2015

" CURTAS ... "




Perguntaram-me hoje pela minha gaivota ...
Pois é, não se tem feito por aqui, e apesar de num destes dias o céu estar pejado de um bando que parecia dançar o "Bailado dos Cisnes"... ( neste caso impropriamente denominado, portanto ) ... eram gaivotas "estrangeiras", tenho a certeza !
Nenhuma era ela !

Hoje sim. Rasou-me a janela há pouco.
Meio desgovernada, em balanço pouco estável, já que o vento bem forte não nos larga há três dias, vinha velejando um céu encapelado.  Parecia pois, pouco convicta do itinerário a seguir.
Asas esticadas, pescoço em frente ... era a absoluta imagem da liberdade e do desafio !

Isto de se ter uma gaivota, é uma fortuna do destino, já aqui disse noutras ocasiões.
Ter uma gaivota, um "farrusco" preto  nos terraços lá em baixo, casario e mais casario encavalitado a perder de vista, antenas e mais antenas das operadoras de comunicação empoleiradas aqui e ali, algumas esparsas manchas verdes, que se salvaram " in extremis" no esquecimento dos homens, céu, muito céu sem fronteiras que o delimitem ... Dispor de todo este espólio, ter isto tudo gratuitamente, é um privilégio além da conta !
Ah, é verdade ... e ter arco-íris se as bruxas são generosas,  raios e coriscos em trovoadas bravas, desenhando geometrias psicadélicas no céu escuro ... ter super-luas que me descoordenam  o espírito, e ter ainda  pôres-de-sol para todos os gostos, que me extasiam sempre ... isso então, é tratamento cinco estrelas, que eu, francamente  não mereço !

Da minha janela, por uma nesga, enxergo ainda a Pena, lá longe ... meio sumida, meio disfarçada nas nuvens, num jogo de esconde-esconde.
É castelinho de fadas, visto daqui.   Parece a cereja encarrapitada no chantilly, pousada lânguidamente no alto do Monte da Lua, numa Sintra que amo, e onde me perco menos do que gostaria, mas ao alcance do meu sonho e imaginação ... sempre !...

Por isso, vos digo ... não troco esta tribuna "vip" por nenhum "flat" topo de gama !
Vai fazer quarenta e um anos que ela  se divide comigo, que ela  partilha a minha história ... que envelhecemos juntas ...
Estamos aqui para o que der e vier, pois acredito que algures neste betão, nestes tijolos e em tudo o mais, me crescem raízes, que se afundaram ano após ano, vida após vida, e que deste sétimo andar junto ao céu, já se terão firmado  certamente bem fundo, na terra lá em baixo ... o meu chão !...





Anamar

" O PONTO FINAL "





"As reticências são os três primeiros passos do pensamento que continua por conta própria, o seu caminho "
                     Mário  Quintana


Uso e abuso de reticências na minha escrita.
Talvez porque nunca tenha uma certeza definitiva das minhas afirmações, talvez porque sempre as ache passíveis de uma melhor análise de outrém, talvez porque pense que para lá do que convictamente defendo, há miríades de outras opiniões, visões e pontos de vista provavelmente mais válidos, consistentes, mais bem estruturados e seguros, que os meus.
Talvez porque para mim, tudo na vida se mostre  inacabado, mal acabado, insuficientemente conclusivo.

Assim, fica ao critério do leitor, continuar o ensaio mental do que deixo suspenso, o avanço criativo do "que é",  mas que também "poderá ser"...

Ou talvez seja porque as reticências sejam o rosto da minha insegurança.  E eu sempre pense quão além das verdades, se calhar eu plano ...  quão desviada da objectividade eu sobrevoo ... para quão distante das realidades, a minha utopia viajante me conduz ...

Gostava de ser mais pragmática, mais afirmativa, mais imperativa.
Porque se o fosse ... baloiçava menos sob os ventos do destino ...
Se o fosse, seria mais avisada face aos sentimentos, seria mais imune à manipulação !

Por outro lado, e curiosamente ( o que parece configurar uma contradição ), não convivo pacificamente com o pendente, com o cinzento, com a neblina, com a sombra, com o dúbio ... com a incerteza, com o que fica dependurado entre palavras, pensamentos ou atitudes.
Com o que ficará para lá das "reticências"... em suma.
Não convivo com "mortes" sem cadáver ...  E entendo claramente, quem tem de se submeter a lutos de fantasmas inquietos...
Fantasmas que não vão, nem ficam ...

Para mim, nada mais desestruturante do que assunto não terminado, do que livro fora da prateleira, do que aquela coisa de encontro vagamente concretizado ... do que pão dormido, que abolorenta, porque se lhe adiou o destino ...
Parece pois, tratar-se de uma incoerência  na minha personalidade !  Será ?
O que é facto, é que prefiro uma casa arrumada, àquela falsa desarrumação da ordem !...

Uso e abuso das reticências.  Na escrita, nos dias ... no destino .

E que jeito me dava um ponto final na retórica da vida !


Anamar

terça-feira, 24 de março de 2015

" A PATINE DO TEMPO "





Nunca é boa ideia remexer nas "antiguidades".  Sejam antiguidades materiais, sejam "antiguidades" instaladas no espírito e no coração.
Dito de outra forma, nunca é bom remexer no que repousa em paz, na terra assente, na água parada, nas arcas fechadas.
A  "poeira" que se levanta, belicosa, nunca nos faz bem, retira-nos a paz, sufoca-nos mesmo !
Torna-se num turbilhão, numa tempestade de areia que se agiganta, e que por momentos nos tira a vista e o ar.

Tudo o que é passado e que guardámos por alguma razão, leva-nos em viagem de marcha atrás, lá atrás, exactamente.
Leva-nos numa viagem de retrocesso insalubre.  Faz-nos regredir ao reencontro de alguém que já não somos, faz-nos revivenciar memórias, momentos idos, sem volta ...
Assombra-nos, com a ilusão pueril de que alongando os braços muito, muito, poderíamos alcançar de novo o que se esfumou.  E não podemos !

Então, é como extirpar um pedaço de nós, outra vez ... é como arrancar o sonho , e a convicção infantil de que conviveríamos de novo com os momentos, as palavras, as pessoas e os sentimentos.
É portanto sofrer duas vezes ...
É provocar a vida e o tempo.
É fazer a reprise de um filme que já não cabe na película.
É  uma agressão gratuita e desnecessária sobre o nosso espólio emocional.
É como arrancar intencionalmente a "casquinha" da ferida em cicatrização .
É como escarafunchar com um estilete agudo, a úlcera apodrecida, embora dormida ...
É como reabrir estupidamente uma sangria, num processo de regeneração em curso ...
Em  suma,  é  uma  espécie  de  masoquismo  inglório,  de  pena  infligida,  de  brincar  com  limites ...

Porque, cumprido o desiderato da "visita guiada", tudo fica obviamente como dantes.  Tudo recupera os seus lugares nas prateleiras da vida, na penumbra do tempo.
Tudo, menos nós, que ficamos remexidos, mais sofridos, num processo gratuitamente interrompido, de convalescença de alma.

E para quê ?
Para quê descer às catacumbas, ressuscitar fantasmas, revisitar personagens que se enquadraram num tempo, num espaço e numa realidade, que não são o tempo, o espaço e a realidade que temos hoje, e em que nós não somos mais o que éramos então ?!  Meras figuras descontextualizadas !...
Para quê entreabrir portas, de novo, violar gavetas que experimentam fechar-se, espreitar arcas há muito seladas ?

Pura perda de tempo !
Por isso, inevitavelmente, o passado já foi ... o amanhã é duvidoso e imprevisível ... o certo é o hoje, o momento, o instante ... este segundo em que respiramos ...
E não queiramos ignorar ou esquecer deliberadamente, que apenas para a morte é que não há remédio !!!!...

Anamar

domingo, 22 de março de 2015

" BEM - VINDA, PRIMAVERA ! "





Sempre adoro acordar nestes dias de Março beirando Abril, com a Primavera a bater à porta.
Sempre amanheço sorrindo à leveza do ar que dá em respirar-se, a um céu quase sempre azul, com um sol ainda a esfregar os olhos, das ramelas do Inverno.
E não há como negar, que de repente se instala uma urgência na Natureza, ano após ano, mostrando que os seus ciclos sempre são fiéis e se cumprem.

A passarada anda na azáfama da procriação.  Ninhos feitos ou refeitos ... altura de ovos e de filhos futuros.
A sinfonia das aves é um hino, uma glorificação, um láudano para a nossa alma !

Os primeiros brotos verdes e tenros, eclodem por todo o lado, da noite para o dia.  Os botões florescem, numa explosão de cor, de aromas, de formas e de beleza, prodigamente pelos quatro cantos.
Os pólens voejam ao sabor da ciranda azougada dos insectos.  Borboletas coloridas, abelhas e zângãos, libelinhas e louva-a-deus ... não falando dos grilos em melopeia, dos besouros barulhentos, ou das cigarras que à desgarrada se tornam ensurdecedoras ... Todos pululam pelos campos, pelos jardins ... por onde haja um pouco de verde !

A renovação está aí.  Um caminho de esperança reabre-se e contagia-se.  Estamos quase no tempo das cerejas !!!

O torpor do Inverno que nos tolheu a mente e o corpo, quer desvanecer-se.  O tempo escuro da hibernação sentida, parece ter o seu epílogo.
Há uma vontade de sacudir o bafio acumulado, a escuridão instalada .
Como as aves que sacodem a água das penas, e adormentam a usufruir do calor aconchegante do sol, assim o ser humano deseja sacudir para longe, a penumbra de uma noite longa, como se com ela, todas as penas da alma também partissem ...

A Natureza regenera-nos as energias.  As cores claras e luminosas integram as roupas que vestimos, como um novo manto de plumagem que nos  revestisse também.

É o milagre da Primavera.  É a ilusão da esperança, do sonho e da fé, a instalarem-se outra vez.
É a convicção de que a vida vira uma página promissora ...  
É a certeza de que a luz sempre sucede à escuridão, e de que a vida sempre se sobrepõe à morte !!!





Anamar

sábado, 21 de março de 2015

" DIA MUNDIAL DA POESIA "





Poesia é uma forma de dizer as coisas ...
é uma arquitectura,
uma construção ...
É coração e é ternura ...
É pôr azul e rodopios,
no céu, nos rios ...
Malabarismo, logro, magia
equilibrismo, sonho, utopia ...
Poesia é fazer breve o que é doído
É rir, dizendo o que é sofrido ...
É arlequim, polichinelo,
fada, duende ...
É tornar belo ... seguir em frente
pelo caminho mais tortuoso ...
sentir no mar , mesmo alteroso,
um berço doce, quente e profundo ...
É,  da "viagem" fazer poemas,
tornar enormes, coisas pequenas ...
partir no vento, escolhendo o rumo ...
Poesia é deitar co'a Primavera,
e é pendurar na janela,
arco-íris, luas, sóis e alvoradas
É pintar o céu com estrelas,
voar na cauda dos cometas,
p'ra acordar as madrugadas !
É viver uma quimera ...
Poesia também é espera,
e sabê-lo ... Que ilusão !
O poeta é um fingidor,
transforma o ódio no amor
com que nos ergue do chão !...

Anamar

sexta-feira, 20 de março de 2015

" AMORES "






" Há amores que duram um arrepio, um por-de-sol, um beijo, um abraço, um poema.  Não mais que a intenção ..."

Há amores que chegam e partem como as estações.
Despontam com a força das margaridas silvestres ... promissores, coloridos, irreverentes, cheirosos ... e partem com as primeiras chuvas, nas asas das andorinhas, quando estas partem também ...

Há amores que redimem, que salvam, que sobem connosco, à última cor do arco-íris.  E outros que matam, que destroem, e que nos encerram o coração num quarto escuro ...

Há os que nos semeiam esperança no caminho, nos enchem a vida de auroras azuis e nos despertam com lilazes à cabeceira.
São madrugadas de sonhos, parideiras de paz, alegrias e gargalhadas.
São amores abençoados, amores de valer a pena, que preenchem o ser humano e o fazem acreditar no destino !
São amores - lufada de ar fresco, de cheiro de maresia, de caruma da serra, ou de terra molhada !
São colírio para os olhos.  Desanuviam a mente.  Embalam o coração.
Soltam-nos hinos que nem imaginávamos cantar.
Fazem-nos criança outra vez, com o pensamento a saltar à corda  entre felicidade e felicidade, com o desejo em rodopio incansado, de borboleta nas corolas ...
Trazem-nos cor ao rosto e um afogueamento ao peito, como se tivéssemos calcorreado veredas sem fim ... Trazem-nos um sufoco à garganta ... e aos lábios, o néctar doce dos colibris ...
Não  têm  notas  dissonantes.   Não  desafinam,  não  erram  a  pauta ... não  estragam  o  concerto ...
São amores que nos acrescentam a vida e postergam a morte, para lá dos horizontes ...

E depois há os beijos que se soltam, feitos  passarinhos de ramada em ramada.
Que pululam por entre os trinados.  Que nos tocam de mansinho, subtilmente, como varinha de fada - madrinha ... Que nos aquecem, quais raios de sol ...

E há os beijos que levedam no coração e na alma, e que nunca levantam voo ... Nunca nos abandonam os lábios ... nunca iniciam a viagem ...
Como palavras balbuciadas e não ditas, como vocábulos enxergados e não alcançados ...

São beijos tristes, como folha encalhada no riacho.  Que acabam gelando, que vão mofar e que rastejam  até  ao  fundinho  de  nós,  como  os  musgos  nos  troncos,  na  penumbra  da  mata ...
São aves de asas cortadas.  São vontades sem vento para voarem.  São veleiro, sem aragem que o transporte ...
São beijos cinzentos como os dias indefinidos de outonos escuros, em ocasos sem o vermelho do sol a ir-se ...

"Há amores que duram um arrepio, um por-de-sol, um beijo, um abraço, um poema ... "
... Contudo,  maiores que o universo ... mais eternos que a eternidade dos tempos ... mais seiva que a seiva que sobe os caules ... mais sangue que o sangue que nos percorre as veias ... mais inebriantes que todas as braçadas das flores de Abril ... HÁ  AMORES !!!...





Anamar

quinta-feira, 19 de março de 2015

" 40000 .... já é qualquer coisa !!! "





AMIGOS

Dos quais  poucos conheço, mas que de quando em vez se deslocam até aqui, ao meu "quintal", plantando neste pedacinho de chão, os rastos das vossas passadas ...

Os quais se interessam pelos meus valores, partilham as minhas ideias, esgrimem opiniões comigo ...

Os quais gastam o seu tempo, mostram a sua curiosidade, atestam a sua fidelidade perante a expressão das minhas emoções ...

Como não me sentir sensibilizada ?  Como não me sentir orgulhosa ?   Como não me sentir agradecida ? Profundamente agradecida ?

É que, pesem embora as agruras da vida, pesem embora decepções, angústias e incertezas,  saber que desse outro lado  invisível  e  desconhecido, está gente que ao longo já de seis anos, me continua a ler, é profundamente gratificante, é sumamente estimulante,  e desafia-me todos os dias a nunca desistir da escrita, um amor que me acompanha desde que me sei ... e que é a forma mais genuína da expressão da minha personalidade !

OBRIGADA  A  TODOS !!!

Anamar

domingo, 15 de março de 2015

" A PASSAGEM "




"Aqui, estamos de passagem ... " - li hoje. Aliás, uma vez mais, porque é frase feita, e recorrente na escrita.

Reflicto e pergunto-me : Uma passagem é algo que une pontos, locais, estados, momentos...
Assim sendo, se estamos de passagem, estamos  entre o quê e o quê ?
Entre o nada e o nada, certo ?

"Felizes os que acreditam ! Deles será o reino dos céus !"... rezam as Bem-aventuranças.

Pois é, eu não acredito, e como tal, eu apenas enxergarei ( de acordo com melhores opiniões ), de uma forma pobre, triste, redutora ... sem esperança. Apenas terei hipótese de continuar cumprindo o meu degredo, desalentada, amarga, sem esse futuro prometido ... o reino dos céus !

Mas de facto, o que eu vejo é isto ... o nada que somos, antes que aquele espermatozóide se funda com aquele óvulo, naquele dia, naquele instante, quase sempre insuspeito sequer pelos nossos progenitores ... e o nada em que nos tornamos, quando de novo chegar aquele dia, aquele instante, quase sempre insuspeito, felizmente talvez ... mesmo por nós próprios.

No entretanto, na "passagem", lutamos, estrebuchamos, desesperamo-nos, cumprimos desígnios, palmilhando esta coisa que chamam de vida por alguma razão, e não de morte ... vá-se lá saber porquê !
No entretanto, convivemos com a condição mais térrea e humana, mais frágil e indefesa, menos especial e divina, de escolhidos, potenciais candidatos a uma eternidade cinco estrelas ...
No entretanto, assistimos à vil degradação da matéria que nos constitui, à volatilização das centelhas de luz, com espíritos que também eles nos vão abandonando ...
No entretanto, vamo-nos irreconhecendo, perante nós e perante os outros ...
Respiramos ainda, mal nos temos nas pernas ainda, comemos o que nos impingem, bebemos o que entendem, lavam-nos, esfregam-nos, defecamos, não ouvimos, olhamos mas não vemos, já não rimos, emitimos uns esgares de sorriso ... choramos muito ... produzimos sons, às vezes inentendíveis... pouco comunicamos ...
No entretanto, curvamo-nos mais e mais em direcção ao chão, como se ele fosse o nosso destino final, a terra, que de facto nos acolherá.  O chamamento daí emana ...
Deixamos de olhar o azul do céu.  As estrelas apagam-se no firmamento, procura-se a sombra, porque a luz do sol parece perturbar-nos já ...
As emoções não importam, cansam, tornam-se primárias, quase só. Passam pela alegria de ainda ter acordado hoje ... pouco mais. O entorpecimento tolhe a mente e o coração. Como anestesiados, não vão mais além.
É como se houvesse uma preparação ...

E é perturbador, é aterrador, é monstruoso, acreditem !
Conviver-se com o cenário dantesco da degradação e da destruição da condição humana, passo a passo, paulatinamente ... confrontarmo-nos com a impotência face a essa realidade ... percebermos como no tapete rolante todos vamos precedendo os que avançam, e que tudo é uma questão de ordem e de tempo ... é devastador, questiona-nos, levanta-nos dúvidas, causa-nos perplexidades ... assusta-nos além da conta !

E isto, e SÓ isto, é a PASSAGEM !...

Anamar

quarta-feira, 11 de março de 2015

" TALVEZ UMA MULHER COMUM ... "




Não há local mais aprazível aqui nas imediações, para um cafézinho, uma boa conversa, um solzinho ... que aqui, neste clube de golfe, sem dúvida destinado a gente privilegiada.
Tudo aqui é perfeitamente enquadrado, meticulosamente organizado, espantosamente desenhado, com aquele toque "rafiné", típico da classe cinco estrelas, da qual o golfe é cartão de visita.

Este espaço de lazer, café/restaurante totalmente panorâmico, foi concebido para que as suas paredes em vidro, nos mergulhem no "green" ondeante, uma verdadeira alcatifa  adivinhadamente macia, que convida a rebolar encosta abaixo ...
O sol de Inverno, claro e particularmente luminoso, envolvente e quente, promete uma Primavera sem retorno.
Olhando para cima, para este azul translúcido, total e sem mácula, não se acredita que possa, num qualquer dia destes, cobrir-se, escurecer e mesmo chover ainda. Afinal só vamos a meio de Março !

O horizonte é amplo, as árvores são esparsas, e estão distribuídas criteriosamente, numa moldura irrepreensível e perfeita.
São pinheiros mansos sobretudo, de copas arredondadas, não agressivas.  Ao fundo, muito lá ao fundo, numa linha quase de contorno, e como que envolta numa neblina  esbatida,  ergue-se  a  Pena, altaneira, imperativa,  com  o  seu  recorte  inconfundível  de  palácio  de  fadas ...

Este lugar é um garante do carregamento das minhas baterias.  É uma fuga ao betão, uma ânsia de zarpar, de levantar ferro, erguer vela e fazer-me, por aí ...
Venho aqui como lazer ... como terapia, também ..

Neste quase silêncio, penso na vida.

Sou da geração de presumíveis mulheres prendadas.  Mulheres cordatas, pouco reivindicativas,  bem "femininas" ... como cansei de escutar a vida inteira.
Mulheres-família,  que correspondessem ao que o inconsciente colectivo, delas esperava.
Nascidas, criadas submissas, programadas para uma saída profissional razoável, complemento do orçamento familiar, casariam, seriam boas esposas, mães, fadas do lar, e depois, dignas nas suas profissões, capazes, desempenhando-as cabal e prestigiadamente.
Filhas de mães maioritariamente domésticas, oriundas muitas delas de uma classe média com alguma estabilidade, cresciam presas a um "cordão umbilical" castrante, até casarem.
Tornavam-se por isso, mulheres acomodadas, ingénuas, pouco experientes, pouco defendidas, também.  Eram figuras complementares dos maridos, os "chefes de família" ...

Lembro que as colegas mais desenvoltas, assumidas, conseguidas, que conheci na faculdade ... as mais bem "equipadas" face ao futuro, eram aquelas que, provindas do Portugal interior, longe da família, se haviam feito à vida, estando a estudar sozinhas na capital.
Entregues a si próprias, em auto-gestão, tiveram que fazer-se mulheres inteiras, seguras, exigentes, esclarecidas, afirmativas ... de "olho aberto" ...

Como eu as invejava !  Eu, a quem a minha mãe cortou as "asas"  à nascença ...

Não fugi ao estereótipo.  Casei cedo. Dezanove anos mal acabados, uma impreparação  total de vida !
E "enquadrei-me" ... como não ?
Era impensável defraudar as expectativas.  Tive que me agigantar, o que pude e do que fui capaz.
Mantive o carril.
Fui professora, porque sempre se achou lá em casa, ser a profissão mais ajustável ás de mãe e doméstica, que obviamente acumulei.
Aprendi a "acostumar-me" ... E nada pior que nos "acostumarmos".
Isso significa alienar sonhos, por de lado projectos, ignorar vontades.  Prescindir até do direito de escolher "veredas", se quisesse ... sem ter que percorrer obrigatoriamente cómodas "auto-estradas" !...
Criei filhas, ali, no reduto da família, sem demasiadas ondas ...
Admito que poderia ter dado certo ... quiçá !  Mas não deu !

Filhas fora de casa, filhas já com vida própria, autonomia  ( elas que tiveram horizontes outros, vontades  outras,  escolhas  reconhecidas,  quereres  legitimados ... direito  até  a  errar ... )...
foi hora  de parar !...

Parar, reavaliar e olhar-me ... enquanto olhava o espelho.  Olhar-me por fora, mas sobretudo por dentro.
Hora de faxina no coração e na mente ...  Uma impossibilidade de continuar ...
E agora ?

Agora ... os cinquenta já haviam dobrado a esquina.  Mas o coração e a mente, haviam parado lá atrás.
A jovem, a rapariga que eu fora, afinal ainda existia, parecia existir  num qualquer lugar pouco identificável  pelos que me rodeavam, como se tivesse reaberto parêntesis fechados apenas temporariamente.

E agora ? - perguntei-me mil vezes.

Agora ? ... Agora estou largada numa encruzilhada, sem bagagem e sem bússola.
Agora ... escancarou-se um portão, tão mas tão grande, que eu precisava transpor, e receava.
Porque lá fora, o mundo, aquele mundo tinha uma linguagem pouco reconhecível por mim, agora que estava senhora dos meus destinos para o bem e para o mal.

Abarrotava de sonhos e esperanças numa vida nova e diferente.   Sentia  as asas crescerem-me de novo, precisava voar, p'ra me sentir viva.
Tinha devaneios  de adolescente ... mas não era suposto !
Ter creres de mulher, ter vontades e sonhos, desafiar limites ( mesmo fora de época ), permitir-me transgressões ainda que infantis ... não era compreendido !
Subverter o figurino "comportado" que se esperava de mim ... não adequado !
Reencontrar um amor, reinventar afectos ... não era também aceitável pelos que me rodeavam !  Não seria muito ortodoxo, não era pacífico ... criava constrangimentos, aos olhos habituados anos e anos a olharem-me de outra forma ...
Como se eu tivesse que criogenar "ad eternum" !  Como se eu devesse dar um nó na alma, no coração e no corpo, "ad eternum" !...
Ninguém entendia a " Primavera " que eu experimentava, ninguém entendia ou tolerava.  Ninguém percebia que quisesse vivê-la ...

E não ousei ousar.
Quedei-me por caminhos rectos, fugindo ao "almariado" de algum mar mais buliçoso que não me valeu a pena navegar.
Fui empratelando os sonhos, à medida que os anos faziam rima sobre mim.

E cheguei ao hoje.
E hoje vivo em parceria com os medos da solidão.  Vivo sentindo o peso da incerteza do amanhã, assente em ombros que já não têm a robustez de antes.
Vivo tropeçando em pedras mais eriçadas.  Vejo pouco colorido através da minha janela.  Os horizontes não são amplos, a perder de vista, como os da minha terra ...
São limitativos, e neles sempre se põe o sol.
Vou vivendo.  Vou estando por aqui sem muita convicção.  Apenas porque é assim...  Apenas porque devo estar ... porque tenho que estar !

Cumpro o desígnio da vida, sem a fé que move as montanhas dos Homens, sem a convicção que empurra diariamente esses Homens adiante, sem a esperança de superação de limites ou metas norteadoras, de objectivos válidos ... sem a força necessária a erguer-me com um sorriso por cada manhã que nasce.
Simplesmente porque a Primavera já foi, e o cansaço da estação do frio, aproxima-se ...

Bom... mas talvez eu seja simplesmente,  mais uma mulher comum !...

Anamar

segunda-feira, 9 de março de 2015

" A OLGUINHA - Crónica de hospital "


                                                                                                                 RIP

Na cama ao lado, está um simulacro de gente.  Um vegetal que já morreu, e não sabe.
Não se mexe, não interage, não abre sequer os olhos.
Fica horas esquecidas na mesma posição, aninhada em almofadas que tentam minorar-lhe o desconforto.
A máscara de oxigénio, cobre o rosto,  em grande parte.  No lábio, existe um ferimento seco, provocado pela sonda alimentar.
Nos primeiros dias ainda gemia, baixo, bem baixinho, parecendo não querer incomodar ... "socorro" ... "socorro" ...
Uma falta total de forças, e uma inanição absoluta dominam aquele farrapo humano, quase só um esqueleto coberto de pele, onde a palidez do rosto, dos braços e das mãos descarnadas, perdidas na cama, desvenda uma morte anunciada.

Como será estar-se ali ?
Como será existir-se e não se existir ao mesmo tempo ?
Será que algumas funções, além das vitais, ainda persistem ?

As visitas entram, saem, conversam.  Tocam telemóveis, entra e sai pessoal, no serviço diário de um hospital. As pessoas são indiferentes.  Afinal aquele corpo esquálido, não corresponde ao familiar que avidamente procuram com os olhos
E ela está imóvel, ausente, distante ...

E o mundo continua adiante.
E está um dia glorioso, de sol e céu azul.
E a Primavera está aí a chegar de novo, com tudo o que de promissor sempre carrega consigo.
E há vida lá fora ... há demasiada vida lá fora ...

Aqui ... bom, aqui acabaram de correr a cortina em torno da cama.
Uma busca de mais privacidade e conforto para a doente - pensei.
Uma memória doída atravessou-me.  O mesmo cenário.  O mesmo silêncio ... S. Francisco Xavier, 30 de Julho de 1992 ...

Também aqui, a morte acabou de chegar, sorrateiramente.  Também aqui a sua sombra de fantasma  aterrador,  desceu.  E  o  seu  frio  gélido,  percorre-nos  a  espinha  e  eriça-nos  os  pelos ...

A "Olguinha", como lhe chamavam carinhosamente, partiu.
Talvez tenha finalmente alcançado a paz .  Talvez tenha cessado o seu sofrimento.  Afinal o "socorro" respondeu à sua chamada ...

Que repouse em paz ...

Anamar