segunda-feira, 28 de setembro de 2015

" UMAS E OUTRAS ... "



Andei atrás dela, a noite toda.
Eu, e eles. Os gatos ... desaustinados e endemoninhados.  Como "possuídos" por um qualquer sortilégio que não se descreve !...
Às vinte ( previsivelmente já nascida ... ), às duas, às quatro, depois às cinco e tal....
Prevenindo-me ... porque em 2033, não sei se estarei cá, para a recepcionar de novo.

Catorze por cento maior ... trinta por cento mais brilhante ... quarenta e oito mil quilómetros mais perto dos terráqueos ... mais difusa, mais vermelha ... por aí !
No eclipse, ou fora dele ... antes e após ter sido "engolida" pela sombra terrestre ... com óculos, sem óculos, com máquina fotográfica ... de menor e maior zoom ... no perigeu, ou ainda não ...
Andei atrás dela a noite toda !...

E até moro de varanda privilegiada, juntinho ao firmamento ... E até vivo paredes meias com as estrelas,  as  nuvens,  o  sol ... e  claro... as  luas,  que  me  visitam  com  generosidade ...

Mas apesar de todo este desassossego, não tenho normalmente muita sorte nestes eventos.  Acho que sempre vou com "demasiada sede ao pote"... Deve ser isso !
É certo que a minha vista já deve claudicar ... É certo que a minha ânsia de transcendência é imensa ... É certo que sempre tenho com elas ( as luas ), longas conversas de "pé de orelha", assim  numa  de  igualdade  cúmplice  e  conivente,  em  diálogos  de  mulher  para  mulher ...
Mas sendo tudo isso certo ... não deu realmente rotundamente certo !...

Quando se trata das prometidas e anunciadas estrelas cadentes... a chuva de perseidas, que são as maratonistas do céu ... sempre penso que a minha inabilidade em vê-las, se deve ao destempo óbvio, entre a corrida da lebre e da tartaruga ... Elas têm pressa... o meu olhar vagueia lento ...

Agora, uma lua gigantesca, uma superlua que se dá ao desfrute, lânguidamente deitada num céu doce e manso, como leito de amante sem pressas ... não ter matado a minha ânsia imaginada de vê-la "posar"em grande estilo ... já é demais !

Acho que, quando a fasquia sobe além da conta, tudo fica estragado !
Ingenuamente, devo ter acreditado que catorze por cento maior ... trinta por cento mais iluminada, quarenta e oito mil quilómetros mais perto de mim, "lua de sangue", assim lhe chamaram ... seriam particularidades tão visíveis e suficientes, que satisfariam estrondosamente as minhas expectativas retumbantes de fenómeno único ...
Tonta, mesmo !...

Grandiosa ?... Sim, estava !  Esmagadoramente bela e mágica ?... Sim, estava !  Comprometedoramente feminina, capciosa e tentadora ?... Sim, estava !  Desafiadora e irreverente ?... Também ... Num jogo de sombras e luzes em erotismo cósmico, sedutor e inatingível !
Ela era, de facto, uma jovem voluntariosa e atrevida, cavalgando o céu ... com a soberba de uma amazona distante e inalcançável !...

No entanto, mesmo sem luneta, sem telescópio, sem  que a tivesse esperado num descampado escuro e silente, ainda assim a superlua me devassou  com a sua luz branca  inigualável, violando-me o quarto, intencionalmente desprotegido de persianas, portadas, sequer cortinados ...
Inundou-me a cama, ofuscou-me os olhos, desnudou-me a alma e o corpo ...
E desvendou-me os segredos inexplicáveis do Universo, confrontou-me com a pequenez do humano, tangeu-me  um canto celestial ... em serenata com dimensões divinas ...

... e  marcou encontro comigo, para daqui a dezoito anos !...


Anamar

domingo, 27 de setembro de 2015

" SONHO "



Partiste e foste sombra outra vez,
além ... onde o vento faz a curva ...
Deixaste a minha vida mergulhada
neste charco tenebroso de água turva ...

Serviste-me o licor, frutas e mel,
do festim que do sonho é alimento ...
Em cálices de cicuta e de indiferença,
fizeste órfão de ti, meu sentimento !

E o tempo que vai e que volta, nas voltas da gente,
ignora a dor fria e vazia desta solidão
Amei-te  acima do certo, do tudo e do nada,
ficou-me a saudade e a dor, no meu coração !

E os dias que chegam e partem no Inverno da vida,
não sabem, nem sonham razões deste meu sofrer ...
Caminham comigo, a meu lado, numa despedida
e estarão comigo p'ra sempre, enquanto eu viver !...

E o sonho que foste e que já não és mais,
escureceu o meu dia, tirou-me o alento ...
Foi maré de praia vazia ... de areias desertas ...
Foi folha arrastada no mundo, em dia de vento ...

Foi sol que desceu no ocaso, lá longe ...
Foi batalha  perdida antes de começar ...
Amei-te acima do certo, do tudo e do nada ...
O meu crime e castigo, foi apenas sonhar !!!...

Anamar

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

" O ENCONTRO " - flagrantes da vida real



" Estou à espera do Mário !...

Voz de timbre marcado e assertivo, num corpo débil, alquebrado, semi-curvado.
Aquele homem idoso, apoiado numa canadiana, óculos fortemente graduados e passinho muito miúdo, entrou no café e disse que ia almoçar.  Pediu uma sopa.
O seu andar era de pardalito indeciso.  Não andava ... tacteava o chão !
Titubeava em cada passo, perigando cair a cada movimento.

Pouco depois, entrou outro homem bem mais jovem.
Caminhou decidido, não parecendo surpreendido, em direcção ao velho.  Pelos vistos, seria previsível encontrá-lo ali.

- " Então, não tinha lá comida ? " - perguntou.

O velho rejubilou frente ao rosto que lhe era familiar.  Como uma criança feliz que acaba de ganhar um presente, insistiu efusivo : " Almoça comigo !  Almoça comigo ! "

- " Não ! Vamos para minha casa !  A Teresa está à nossa espera para almoçarmos ! "
- " Não posso !  Estou à espera do Mário.  Ele disse que vinha aqui ter !...  Eu estava à janela e vi-o passar, com uma criança.  Não posso ir ! "

Pacientemente, o homem novo respondeu :
- " Não.  Ele não vem.  Ele morreu há mais de vinte anos !  Vamos, a Teresa está à nossa espera ! "

E o velho, confuso, desalentado e perdido : " Então e eu não soube de nada ? "

Silêncio.  Frio.
O velho com as mãos na cabeça :  "  Ihhh  mãe ... como é que eu não sabia ?!...

A infelicidade no rosto pregueado.  O sofrimento nos olhos opacizados.  A orfandade e o abandono nas mãos trementes ...  O vazio, o medo e a escuridão !...

Mais silêncio.  O homem novo procurando no bolso, as moedas para pagar a despesa do velho.

- " Vamos ... agora  vamos  para  minha  casa, almoçar ...  A Teresa  espera-nos ! "

- " Não  posso !  Estou  à  espera  do  Mário -  repetiu, irredutível.   Ele  disse  que  vinha  aqui  ter ! "
- " Ele não vem !  Ele era seu irmão.  Eu sou filho dele, e ele morreu há mais de vinte anos, tio ! "
- " Não pode ser !  Ele disse.  Ele disse para eu esperar aqui.  Ainda há pouco o vi.  Eu estava à janela, e ele disse !... "

O passado e o presente.  O passado que apaga o presente.  Desesperante ... patético !...

A casa, os afectos, a família ... Hoje, o Lar ... As sombras demasiado espessas que cobrem o que já foi !...
E o Mário que já não vem !...

Silêncio ... demasiado silêncio ... Vida ... ou ausência dela !...

Anamar

sábado, 19 de setembro de 2015

" SONHO "



Todos deviam ter direito a um palmo de terra de plantio, que  pudessem revolver com as mãos e perceber o milagre ...
Todos deviam ter direito a um quintal, a uma floreira, a um canteiro, a um vaso de flores...

Eu sinto isso todos os dias, desde que deixei de o ter, e me confinei, dadas as circunstâncias da vida, à casa do betão, mergulhada no meio dos "cogumelos" que todos os dias eclodem à minha volta, no cinzentismo das colmeias que proliferam, genericamente iguais, como fardas de meninos de orfanato ... nem sempre bem comportados ...

"Sufoquei" a casa há largos anos atrás, quando entrei na sanha de angariar todo o espaço possível, empurrando as divisões, fechando recantos, à custa de varandas abertas à rua.
Ganhei com isso, centímetros de paredes, áreas de chão, mais móveis, mais candeeiros, mais tapetes ...
E perdi o sonho de verde, o sonho de céu, a esperança de andorinhas nos beirais, que também sumiram ... a magia do vento livre nos cabelos ... e claro, a remota hipótese de trepadeiras rumando ao firmamento, de cheiro de terra molhada em vasos inventados, e de êxtase de cor generosa em miscelânea genuína ...

E tenho saudades infinitas !

Depois, cortaram-me também a palmeira centenária frente às minhas janelas, ex-libris daquele meu chão.  E o plátano dourado, pousio de pássaros nocturnos pelas madrugadas, e de aves arribadoras, no prenúncio das Primaveras, em cada ano ... cumpriu  o mesmo destino.
E foi como se me amputassem por dentro, me empobrecessem a alma, me cerceassem o sonho ...
Foi como se apagassem o sol na minha paisagem.  Como se me extorquissem o coração ... me orfanassem o espírito ...
E entristeci, fiquei mais pobre ainda ... mais sem "amigos" por perto ...

Por isso fujo.
Sempre que posso fujo e vou atrás do apelo da terra.  Busco o chamamento das sombras, procuro o silêncio embalador das matas, a paz dos matizes, o perfume de tudo o que nasce sem ser semeado, o estalido  crepitante  do  areão  calcado  debaixo  dos  pés, em  cada  volta ...

Sempre que posso, aspiro o ar leve e transparente pela ausência de mácula, escuto o gargalhar de um riacho solto por entre as pedras, oiço o sussurro das brisas nas ramagens, as conversas dos pássaros empoleirados nos galhos ... as histórias dos silêncios nas penedias ...

Sempre que posso, perco-me de olhar uma flor já esquecida no pé, extasio-me por entre os dourados e os vermelhos das novas roupagens da natureza, sigo a nuvem que faz e desfaz bonecos no firmamento ... deixo o vento desalinhar-me o cabelo e voar-me o pensamento ...

Sempre que posso, sento-me numa pedra qualquer do caminho, num muro perdido de curva de estrada ... ou simplesmente num tufo de erva fresca ...

... e esgravato a terra, sonhando-me com chão, com rumo, com destino !!!...

Anamar

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

" FALL "





E pronto, como sempre, no cumprimento do ciclo inevitável, mais um Outono nos espreita já aí, numa volta da estrada !

Os dias começaram a ficar meio pardos, o sol perdeu a luminosidade convincente do Verão, mas sobretudo enfraqueceu no calor com que nos afaga ...
As primeiras chuvas, o vento já desabrido e as nuvens de cara mais feia, pairam sobre nós. Acordamos com eles e escutamo-los pelas madrugadas.  De longe, encompridamos o olhar seguindo o movimento sinuoso dos novelos encastelados e caprichosos, bem à nossa frente, varrendo o cinzento uniforme.

Eu moro juntinho do céu.
Tenho o privilégio de, por cima de mim, só ter o firmamento, ter os telhados do casario espreguiçando-se aos meus olhos ... e com sorte, ter alamedas abertas até ao sol ( desde que se ergue, até que adormece,  lá ao fundo ) ... E  ter caminhos francos até à lua, e às estrelas aqui por cima !
Por isso, o meu horizonte é quase sem horizonte !...

Eu nasci no Outono, no entanto é uma estação que custo a atravessar ...
Por um lado, estes primeiros sinais de recolhimento  impostos pela Natureza, sempre me convidam à introspecção, ao intimismo, ao ninho ... ao útero ...
E talvez, disso já sentisse  saudades ...
E isso agrada-me, aconchega-me e aninha-me ...
Por outro, para quem está só, para quem os tempos não são fáceis, a redução da luz, o encurtar dos dias, a aragem fria que nos enxota para casas silenciosas ... desconfortam,  e potenciam todos os sentimentos mais sofridos do ser humano !

É o tempo da folha  cair, é o tempo em que o fulgor das cores estivais dá lugar ao recato doce dos tons quentes e aveludados, dos dourados aos vermelhos, passando por todos os cambiantes de castanhos ... Como se a Natureza quisesse presentear-nos apenas com emoções cálidas e calmas, como se quisesse remeter-nos ao afago do embalo, rumo à estação agreste que virá depois ...
A "hibernação" inicia-se.
À nossa volta, os "decibéis" da Vida, baixam ... na antecâmara do sono que a aguarda.

Época de recolecção.   A Natureza, generosa, oferece o que de melhor nos preparou.
E despe-se.  Despe o manto garrido de folhas e flores, sons e aromas dos tempos que nos deixam,  e encaminha-nos para o ensimesmamento, para o "baixar das luzes" ...
Tempos de reflexão, propiciados por dias curtos e noites compridas ... Tempos de solidão ... Tempos pesados !...

Mas são também tempos felizes.  Tempos de partilhas e cumplicidades.
São gostosos os passeios sem horas,  mergulhados nos primeiros agasalhos,   pelas veredas da serra, ora  atapetadas de folhagem ...
E sentir o cheiro intenso das carumas, dos musgos trepadores de caules seculares ... o cheiro inconfundível da mata !...
É gostoso cortar as uvas, apanhar os cogumelos selvagens, os arandos, os mirtilos, as framboesas, as nozes, as avelãs, os medronhos, as romãs ... e também os marmelos e os diospiros ... Tudo  quanto há-de virar compota de dias doces!...
É gostoso  deambular pelos areais já vazios, rasando a beirinha da maré ... e brincar com os seixos, olhar as gaivotas ...  mais donas das praias do que nunca, colher os ouriços dos castanheiros, úberes das castanhas já maduras ... dividir as mãos em bolsos que se tornaram comuns ... e seguir rindo ou silenciando, conforme o momento ... conforme a emoção !...
É gostoso ... para quem pode ...

Sempre assim ...
Sempre igual ... e contudo, sempre diferente, sempre novo, sempre inesperado !

Damos por nós a concluir que ainda fora ontem ... e que afinal, mais um ano entretanto passou !...




Anamar

domingo, 13 de setembro de 2015

" QUIMERA "


A minha mãe pediu-me um colar
e em cada conta do mesmo, estava um sonho de sonhar ...
Pediu-me uns brincos também ...
Neles se guardavam histórias,
e pingavam as memórias,
que a sua vida contém...

Foram lendas, foram esperanças,
Foram contos e lembranças
que p'lo seu rosto, passaram ...
Sorriu ao espelho outra vez,
e num milagre que se fez,
as mãos que tremem, pararam ...

Todas as cores  e matizes
lembrando dias felizes
no seu rosto a afoguear,
devolveram-lhe a candura,
despertaram-lhe a doçura,
quando lhe dei o colar !...

E em cada sonho sonhado,
feito um rosário desfiado,
por momentos, renasceu ...
A menina, hoje velhinha
com a cabeça bem branquinha
de novo,  sonhos teceu ...

E o seu silêncio profundo
que continha  a dor do mundo,
tinha  a imensidão do mar ...
Mas ...
Olhou ao espelho e sorriu,
adormeceu e "partiu" ...
quando lhe dei o colar !...

Anamar

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

" ADIANTE ... SEMPRE ADIANTE !... "


Liga-se a televisão, e é inevitável.  Lêem-se os jornais e é inevitável.  Entra-se na Internet e é inevitável !

Não há como fugir às notícias, como ignorar a realidade, como esquecer o terror, como encolher os ombros à angústia.
A sangria rumo à Europa, de fluxos intermináveis de gente em fuga, de continentes em dor e sofrimento, lembra a escorrência incontrolável das avalanches monstruosas encosta abaixo, nas derrocadas e deslizamentos das altas montanhas.
Também aí o processo não se trava.  Também aí, o caminho é imparável ... e há uma inevitabilidade de morte e destruição, que não se detém.
O Homem não tem capacidade de freiar essa catástrofe.

O êxodo dos refugiados, a migração desesperada de milhares e milhares de seres humanos, em fuga da guerra, da miséria e da morte, configuram talvez já, o maior flagelo do século XXI, e reportam-nos de novo, aos tempos escuros e doídos, da Segunda Guerra Mundial.
As imagens eram então a preto e branco ... agora são bem coloridas. Mas os rostos de famílias inteiras em desespero, transportam em si, o mesmo tipo de sentimentos : horror, cansaço, medo, dor, angústia ... dúvida, incerteza ...
Mas também esperança, determinação e fé.
No limbo, entre o nada ter e o poder assegurar pelo menos a vida ... na divisória que separa o risco do que virá, e o nada ter já quase para  arriscar, há uma força interior que impulsiona  aquelas torrentes humanas,  que sem rumo ou norte definido, assumem que é proibido olhar para trás ...

Impressiona-me particularmente, o rosto dos milhares de crianças arrastadas no caudal, pelas mãos ( num esforço exigido, seguramente acima das suas reais capacidades ), aos ombros, em carrinhos, nos braços de mães e pais que tentam desesperadamente  aninhá-las, protegê-las, subtraí-las, se isso fosse possível, às agruras de toda a ordem a que são submetidas.

E seguem, em rios de gente ... seguem sempre ...

Que se passará nas suas cabecinhas infantis ?...
Que será feito dos amiguinhos de rua, da escola onde deveriam estar, da casa que habitavam, das bonecas e das bolas com que deveriam jogar ?...
Que lhes será dito, sobre a insanidade que vivem ?...
Que lhes será explicado, sobre os afectos que lhes ficaram pelo caminho ?...
Que lhes será exigido, para também elas não desistirem, não adoecerem ... não morrerem antes de tempo ?!...

E não há parança.  Não há remédio.  Não há solução.
A chaga social há muito aberta em África e Oriente Médio, continua a purgar.  O exsudado fétido corre inevitavelmente, como se os diques precários tivessem cedido ... como se fosse impossível estancá-los !

E nós por aqui, numa Europa humana, política e socialmente incapaz, sentimo-nos agoniadamente mal ... muito mal !
Os homens não se concertam nas políticas a tomar, nas acções a desenvolver, nos rumos a dar a esta gente.
Os esforços dos organismos de apoio humanitário são curtos, são gotas de água, são pequenos curativos, visando minorar apenas temporariamente, a dor e o sofrimento pungentes.

Erguem-se fronteiras, arames farpados,  constroem-se "campos de concentração", levantam-se muros ... outra vez !...
Engendram-se combóios, cheios ao milímetro, no transporte, por vezes enganador e desumano, dos migrantes. Lembram Auschwitz, Birkenau ... o caminho  para o horror !...
A Europa barrica-se de novo.  E barrica-se também em si mesma, porque os medos e os terrores, também lhe minam as entranhas !...

As sociedades e os países vivem crises inomináveis.  Sobre o nosso chão mesmo, também os nossos "refugiados" e "migrantes" se avolumam, com a ausência de recursos, a precariedade das condições de vida e oportunidades.
Também aqui, a maioria sobrevive ... Pouco se vive !
Os nossos velhos estão desprotegidos, e arrastam fins de vida indescritíveis.  Os jovens vêem horizontes limitados à sua frente, e confrontam-se com uma desvalorização e desaproveitamento das suas valias e capacidades ...  E partem, também eles !
A geração charneira, aqueles que estão etariamente pelo meio, vão percorrendo o trilho destinado ... um dia de cada vez, em cinzento e pardo ... de sol manso e enevoado ... esperando apenas, que nenhum maior sobressalto  lhes assombre a marcha, ou que de repente, lhes tire ainda o curto e incerto chão, que têm debaixo dos pés ...

Como se pode então pedir, que estas sociedades doentes, de doença crónica  contudo com dor controlada, se abram a amanhãs desconhecidos, imprevisíveis, com consequências inimagináveis, mas que se adivinham gravosas ?

Porque a chegada desta leva incontrolável de pessoas, é como o assalto de mais ocupantes, a um bote precário, de lotação há muito esgotada ... É como a chegada de um salvador,  junto de quem está na iminência de afogamento ...
São questões de sobrevivência ... e o desespero da sobrevivência, tudo permite, como sabemos.

Em sociedades com sérias precariedades, com desequilíbrios e assimetrias profundas sem resolução visível ... como assimilar uma sobrelotação que implica a todos os níveis, um agravamento do peso social, que não conseguimos carregar nas costas  ?!...
Como aceitar a entrada de povos, cujas raízes culturais e religiosas pouco conhecemos e nada têm a ver com as nossas, acarretando o risco inerente de maiores  clivagens e fracturas sociais ?!...
Como não recear, que estando conotados com fundamentalismos religiosos e políticos extremistas, estes povos ( que talvez  injusta e levianamente reconhecemos por norma, associados a actos bárbaros e de vandalismo absoluto ) ... não aproveitem esta infiltração encapotada, subscrita e aceite pelos países hospedeiros, para  aí  alcançarem os seus desígnios criminosos ?!...
E como tal, o racismo e a xenofobia recrudescem, como defesa, eventualmente  legítima !

E depois, há todo um aproveitamento político, que se joga nos bastidores e que o comum dos mortais não alcança, e que advém duma engenharia ardilosa, dos lobbies de que infelizmente tanto ouvimos falar ...
Passam-me pela cabeça infindáveis interrogações, cujas respostas não descortino com clareza :
porquê a Alemanha, super potência do velho continente, sempre tão rigorosa, pouco maleável e radical nas exigências aos seus parceiros europeus, encabeça agora uma posição de tanta tolerância, colaboração e disponibilidade ?!
De tanta filantropia e redenção?!...
Será mesmo e apenas, isto ?
Que interesses e manipulações menos louváveis, se escamotearão e presidirão por detrás de um "rosto" aberto e generoso ... franco e fraterno ?
Quem se "serve" também, de toda esta situação ? Porque será indubitável, que também se jogam economicamente interesses fortíssimos, em todo este xadrês ...

Depois, porquê os irmãos de "sangue" e de convicções religiosas, os parentes ricos do Médio Oriente, os que falam a mesma linguagem de coração ... não se chegam agora à frente, e não assumem a postura humana e religiosa expectável e propagandeada nos seus dogmas ?!
O que ditariam os seus Profetas ?
O que ordena o Alcorão, na questão em apreço ?!...

Enfim ... demasiado complexo para mim !
Demasiado obscuro para todos nós, acredito  !
Intencionalmente demasiado confuso, para o entendimento do maioritariamente desinformado e ingénuo cidadão ... ( com quem também se joga em chantagem emocional ) ... quer-me parecer !
Nada linear !  Nada exactamente o que parece !  Nada exactamente o que na verdade será ... seguramente !...

Enquanto isso, as hordas de gente perdida, atravessam mares, calcorreiam caminhos, engolem pó, engolem a fome, a dignidade e o desespero que os corrói ...
Enquanto isso, secam as lágrimas, carregam os filhos ... calam os gritos de aflição ... silenciam a revolta dentro do peito ...
Enquanto isso, enterram os mortos, pelo caminho ...
Enquanto isso, as crianças não mais adormecem as bonecas, na beira das estradas, não mais carregam os livros nas mochilas da escola ... não mais pontapeiam bolas, em campos passados e felizes ...
Enquanto isso, não mais escutam canções de ninar, em sonos que não são de paz e tranquilidade ...
Enquanto isso, os seus olhos incrédulos e sem luz, opacizam de cansaço e doença, os corações esvaziam de sonhos nunca vividos, e as suas almas desesperançadas e sem futuros, sufocam o medo ... e continuam em frente, sempre em frente ... ao ritmo do que as suas pernas pequeninas, as levam...

... adiante ... sempre adiante ...
Num suplício e num pesadelo, que nós, os que por aqui estamos, não sonharíamos ainda, ter que assistir, impotentes, nesta nossa existência !!!...





Anamar

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

" VIAJANDO ... "





Gostava de voltar a encontrar-te ... Pensa nisso.
Que idade tens tu agora ??  Quarenta e quatro, e tu ? Conversa estrategicamente contornada.  Para quê, pensar nisso ?...
Cinquenta vai fazer o António, breve, breve ... e o João ... Sempre o João !
Reencontrei-o, tinha trinta e oito ... Como é possível ?  Ainda foi ontem !...

Tudo inacabado !  Esquinas e mais esquinas.  Ângulos rectos de vida, a impedirem o olhar de se insinuar outra vez, no trajecto percorrido.
Sim, porque nas curvas, a gente sempre espicha os olhos pela paisagem que foi, e pela que há-de ser ...
Assim o é, nas encostas das montanhas.  E nada se perde quase em definitivo !

Tudo estranho !

Saudades da Maria.  Esquisito saber-se alguém nosso, que já não é bem nosso.  Que anda por aí ... Bem ?  Mal ?  Vivo ?
Sim ... tem que estar vivo.  Ainda que longe.  Ainda que seja um filho nosso ( que dizem ser um pedaço de nós ... )
Então, como pode um pedaço de nós ter-se soltado, e voejar ... sem que o saibamos ?
E como existimos nós, sem esse pedaço ?!
Por que é a vida feita de amputações ?!

Esquisito ... tudo esquisito !

Quero ir e quero ficar ...

Como é que alguém pode dizer  que vai  lutar sempre ... insanamente ... numa  roda louca de hamster ?!
Assim, sem pensar.  Engrenado,  simplesmente ... atordoadamente ?!  Sem sequer querer sentir o que deixa, o que dispersa,  nos restos que vai largando pelo caminho ?!
E que um dia morrerá ... mas que até lá vai continuar adormecido, autómato de um destino, morto-vivo,  sem o saber ?!...  Como pode ?!...

Percebo-me numa varanda, numa mansarda ... E só olho os bocados de histórias semi-escritas.
Passam vertiginosamente, ligeiras ... umas ... Outras estão amodorradas nas soleiras dos bancos de jardim ... sem pressa.
Fazendo render os minutos, que têm a mania de escoar-se rápidos.
Essas são as histórias que mergulham em silêncios.  As outras, tagarelam pelas ruas, gargalham nas esplanadas, que são sempre lugares de sol.

Gosto de me perder no penedo, em frente ao mar.  Porque aí, eu mando no horizonte.
Levo o sol, devagarzinho, devagarzinho, a percorrer a descida, ao ritmo que eu quiser.  E só o deixo dormir, quando eu também estiver cansada.
Comigo, o vento no seu zunzum entorpecente.  Comigo, os pássaros que vão e que vêm.  Que são livres e soltos.  Comigo, os caminhos incompletos que percorri.  As veredas que me fizeram retroceder.  As estradas sem saída, os ziguezagues do destino ... os labirintos da vida ...
Vida !...
Como o vai-vem das ondas lá em baixo, onde o mar se faz mar a sério.
Sempre diferente, enganadoramente igual, na melopeia da sua canção ... Como os dias ...

Os olhos húmidos ...

Sem nexo ... quase tudo sem nexo !

Acordar, dormir ... acordar, dormir.  Que brincadeira mais sem norte !...
Marionetas ... palhaços ... robots ... sei lá !
Como aquele homem de olhar macerado, que naquele café, lavou o olhar na água fria, como se quisesse acordar ... como se quisesse lavar a alma ...
E saíu sem dar por nada, sem estar ali ... carregando na mesma, o pesadelo escuro que lhe pairava por cima , e não sabia ...
"Marionetas" ... somos só marionetas.  "Peões de xadrês", disse o João.  E o "Arquitecto", a divertir-se sei lá onde !
E as lágrimas a escorrerem-me.  Porquê ?  Porquê isso ?!
Perplexidade e impotência !  Triste ... demasiado triste !...
Há tanto tempo já !...
Será  que  o  homem  ainda  anda  carregando  por  aí,  aquela  nuvem  negra,  ameaçando  borrasca ?!
E aquela sombra de desesperança no rosto, que a água daquele café não lavou ?!

O João já não lembra ... seguramente.  Só se eu o recordasse.  Então, eu tenho a certeza que ele lembraria aquela longa conversa, de pequeno almoço fora de horas ...
A existência ... o viver ...
Esta coisa do acordar, dormir ... acordar, dormir ...
E nós, pequeninos, pequenininhos ... por cá, neste terreiro de feira ... a sermos olhados, sadicamente ... Só a sermos olhados ...

Tudo estranho, tudo esquisito ... tudo sem nexo !...

Quero ir e quero ficar ...

Os olhos húmidos ...

Anamar

terça-feira, 1 de setembro de 2015

" CURTINHA ... "




Setembro chegou.
Enfarruscado, mal humorado ... cinzentão !
Chegou com prenúncios de chuva, com ameaças de vento, com mercúrio a cair no aparelhinho.
Chegou uma coisa assim, mal convencida, com cara de quem não é carne nem peixe, apitando o fim da partida ... doa a quem doer !

Recomeça a azáfama.
A "canalha" já anda eléctrica, a antever aquilo que irá fartá-los, lá mais para a frente.
Os livros pintam-se de cores convidativas, por enquanto.  As mochilas, os ténis, os fatos de treino ... e mais os estojos, os cadernos e tudo o que faz e mais o que não faz falta, mas que se insinua das vitrinas, deixa os putos acelerados, em "palpos de aranha".
Os pais, esses fazem e refazem as contas de um mês que promete ser " longoooo " ...

Sempre assim ... sempre igual !
Ano após ano, a miudagem recém chegada do calorzinho dos areais ainda bem mornos  mas muito mais vazios ... tem uma urgência urgentíssima, de rever os amigos, os colegas, os companheiros.
As novidades de férias fazem-lhe cócegas debaixo da língua.  Há uma pressa no ar  que se percebe , que se sente, que se transmite.

Até o sol amarelou, com cara de parvo.
Não consegue mais pintar a bochecha radiosa, com todo o empolgamento dos dias decorridos.
Já só convence poucos !

Começa a olhar-se a roupa e os sapatos ... e a verificar-se como num passe injusto de mágica, as mangas puderam encolher tanto !..
A constatar-se como as biqueiras  se tornaram impiedosas ... E já que as sandalinhas, não demora estão de lado ... fazer o quê ???!!!...

Como foi possível os ganapos terem medrado assim, em escassos meses ?!
Será que os regámos de mais ?!...
Será que nos distraímos,  mergulhados que estávamos, no creme suculento das bolas de Berlim ?!...
Será que adormecemos nas areias mansas, e recusámos acordar antes de tempo ?!...

Sempre assim ... sempre igual !

E como tenho saudades !...

Anamar