quarta-feira, 4 de novembro de 2015

" OS VELHOS TAMBÉM SE ABATEM "





Sendo que este meu espaço também é informativo, divulgador, cultural, deixo hoje aqui um texto extraordinário, brilhante mesmo,  de Pedro Ferro, alentejano, jornalista e professor, que é totalmente meritório de ser partilhado, mormente com o público do Alentejo, interessado nas suas gentes, tradições, costumes, cultura e sentires.
Ele retrata com total e impressionante fidelidade , uma realidade que nós, os que vivemos o Alentejo no coração e na alma, conhecemos claramente.

A divulgação deste texto, prende-se a uma justa homenagem que Francisco Martins Ramos, também ele alentejano  e  professor catedrático de Antropologia da Universidade de Évora, lhe prestou.

Aqui vai  :

" Os velhos também se abatem "

"Os velhos alentejanos dão muito jeito.  São indispensáveis a cronistas com défice de imaginação e a fotógrafos artísticos carentes de reconhecimento.  Ficam bem nos desdobráveis turísticos : dão vida a uma paisagem desolada ; salientam, pelo contraste sombrio, os recantos caiados onde acoitam a pasmaceira.  A certos turistas da cidade satisfazem a fome acéfala de exotismo : são uma espécie rara em ambiente natural - como o tartaranhão caçador ou a abetarda.

Fazem um jeitão às alcateias políticas de todos os quadrantes e matizes - sobretudo quando, prazenteiramente, o país vai às urnas, como diria Eça.  Não há velhos mais fotografados, nem mais falados.  Não há velhos mais usados.
Sem eles o Alentejo talvez não passasse de um acidente geográfico, como um dia ironizou o então presidente de Câmara Francisco Felgueiras.  Com estes velhos, o Alentejo é um Parque Jurássico de matriz spielberguiana.

Mas estes velhos têm um único e gravíssimo defeito : não podem ser conservados em azeite.
Quando morrem, perde-se o molde.  É lamentável.  O Alentejo não tornará a ter velhos assim.
Povoam paragens de camioneta.  Pasmam de tédio pelos largos.  Contam "casos".  Lembram "partes".  Remoem "passagens".  Histórias que nenhuma História há-de escrever.  Mastigam um tempo que só a eles pertence e onde se instalam numa cápsula do passado.
Os velhos farejam no ar o crescimento das searas.  Adivinham nas viragens do vento o tempo que vai fazer.  Sentem o Suão e a geada nos ossos.  Têm os olhos cansados e pontadas no coração.  Sabem que a morte não tarda : " Eu sou devedor à terra / a terra me está devendo / a terra paga-me em vida / eu pago à terra em morrendo " - dizem quando se põem a cantar.

Chupam cigarros enrolados à mão.  Cigarros grosseiros como tochas, enrugados como pernadas de sobro.  Sopram um fumo negro, pesado, gordo como um chouriço espanhol, capaz de ser talhado a riscos de navalhinha petisqueira.
Os velhos ficam horas a fio com o mesmo cigarro colado ao canto dos beiços : pedacinhos de mortalha de papel, como esfarrapados pendões de paz, acenam-lhe dos lábios sempre que os queixos se mexem em bocejos cavernosos.

São velhos : sabem de cor e salteado todas as manhas da planície e das covas das azinhagas.  Isso autoriza-os a serem opiniosos.
Ficam envinagrados se os netos os tratam por tu - é camaradagem a que se não habituam, preferindo o respeitoso tratamento de "vossemecê".  Franzem os sobrolhos quando vêem as netas beijar os namorados e dizem "tomara que casem" - só para que não tenham de assistir a tanta falta de vergonha.
Mas ficam babados com as mini-saias e dói-lhes a alma e o resto, de já não terem a tal idade.
Lá na sua ideia, estão convictos de que os moços de agora não passam de uns "bananas" - uns "empalermados" sem nervo, nem heroísmo para apanhar, ali ao alcance da mão, o que no tempo deles tinha de ser conquistado a golpes manhosos, escuridão e alguma cumplicidade : " Ficávamos sentados no chão. / Imóveis. / Só as famílias puxavam cadeiras para as portas. / E conversavam coisas antigas e misteriosas. / ( ... ) Decerto / foi numa noite dessas / que eu pus os dedos sobre o teu peito / e senti os teus seios nascerem debaixo das minhas mãos ", Manuel da Fonseca.

Os velhos dormitam no barbeiro.  Quando despertam tornam ao largo, ao abrigo caiado da parede, à paragem da carreira.  Um pouco antes do sol-posto marcham-se a caminho de casa em busca da ceia e da amaga, a deita.
Lá em casa, os velhos ainda fazem menos do que quando estão aos cantos a apanhar o "olhinho do sol ".  Acham que já fizeram tudo o que tinham a fazer : nem o chapéu tiram da cabeça. Jantam com ele puxado para a nuca, com a soberba de um rei coroado pelo Papa.  Limpam a boca às costas da mão.  E, se as mulheres os contrariam, vão-se deitar sem comer - por caturrice, só para lhes afirmarem que, em 40 e tal anos de casamento, continuam a ser eles os homens lá de casa.
O único gesto a que os velhos se permitem, depois de engolida a ceia, é fechar e devolver à algibeira a navalhinha de lâmina gasta e afiada.  A mesma com que cortaram o moreno pão de trigo às sopas miúdas.

Os velhos são mestres de escárnio e da má-língua.  São "escarneadores" e sabem fingir como ninguém uma incredubilidade que não têm.  Na verdade são cépticos fundamentalistas : à televisão dão o benefício da dúvida, mas dizerem-lhes que o homem foi à lua, é estarem a "mangar" com eles.
São rudes.  Casmurros como mulas.  Venenosos.  Irónicos.  Ásperos como toiros eriçados de picos.  Amargos como piorno.
São frágeis como colmos de trigo.  Ternos como a água dos açudes.  Graves como os abismos da terra.  Altivos como faias.  Solitários como águias.  Sábios como poucos - a perpetuar um tempo e uma geografia da memória que fatalmente lhes escapa das mãos de barro seco.
São o próprio tempo das palavras.  O tempo grande : herdade semeada de outros tempos, sem raízes para no tempo ficar.
Com a razão dos anos que têm, os velhos cospem nas calçadas todo o desprezo pelos tempos modernos.  E quando ficam viúvos, sem trambelho para as coisas domésticas, penduram-se na trave da cozinha.

Afinal, do Alentejo, não são os novos que desaparecem.  Os velhos também se abatem.  Ao efectivo. "

"Público" - 28 de Novembro de 1993

Anamar

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