sábado, 25 de abril de 2015

" OUTRO ABRIL " - 41 anos depois ...





Azul Abril, de céu, de mar
Verde de esperança 
de navegar
Sonhos de sangue
cravos vermelhos
Força de um povo ...
Novos e velhos
no meio da rua,
solta a canção,
senha, memória
e coração ...

Na madrugada que se fez dia,
asas de fogo
Abril abria ...
Um barco à vela,
céu p'ra voar
sem termos medo de naufragar ..
Abril abriu
nossa verdade,
sabermos certa, a liberdade ...
E a fé nascida num Homem novo,
foi voz de Abril
grito de um povo a recusar a servidão ...
Abril chegou, e disse NÃO !...

E hoje, Abril,
esqueceste as notas,
esqueceste a letra do teu poema, que era canção ?!
Calaste as vozes
Cansaste a esperança,
Perdeste o norte, feito criança ?!...
Esqueceste o rumo
Perdeste o chão ?!...

Que te fizeram ?
Eras azul, de céu, de mar ...
Não vais deixar-te amordaçar !...
Por ti ... já fomos ...
Contigo iremos ...
Tua promessa, tudo o que temos ...
Acorda, Abril
Firma a raíz
Dá fruto e flor, neste país ...
Deixa-me o sonho...
Olha o teu povo ...
Que nasça em ti
um ABRIL novo !!!

Anamar

quarta-feira, 22 de abril de 2015

" SAUDADE ..."



" Três erros e um quarto, menina Guidinha ?!"

Ditado  feito,  ditado  corrigido.   Acima  de  três  erros,  ganhava-se  o  direito  às "orelhas  de  burro "...
Assim estava destinado.

A Guidinha tinha dado um quarto de erro acima do determinado.  Um famigerado acento mal colocado,  ou não colocado ...
Contudo a senhora D. Maria Prego, professora no colégio há décadas, parecia ter  esquecido a penalização.  Ou se distraíra intencionalmente, ou talvez fosse uma tentativa do seu subconsciente repor alguma justiça ...
Afinal a menina tinha apenas 7 anos, feitos recentemente.  Entrara numa primeira classe, como todo o mundo à altura, mas entretanto  provara quase logo, dada a sua agilidade para as letras e os números, estar apta a transitar à classe seguinte.
Dominando os conteúdos programáticos exigidos, a senhora D. Maria Prego transferiu-a  para a segunda classe, a partir de Dezembro do próprio ano do ingresso, passando então a frequentá-la com as meninas de 8 anos, em escolaridade normal.  Era portanto,  a "caçula" da classe !

A menina Guidinha transitara com uma classificação de 20 valores ... mas agora caíra em desgraça !
Aquele maldito quarto de erro !...

O colégio, particular e feminino, era já antigo na cidade.
Era um colégio conceituado e renomado, pela taxa de sucesso.  As alunas  que por lá tinham passado, haviam tido desde sempre, um percurso escolar brilhante, no liceu.
Se existisse um "ranking" de escolas à altura,  o Externato Conde de Monsaraz, na cidade de Évora, seguramente  ascenderia a  um lugar  muito honroso !

As quatro classes ocupavam uma sala exígua, lembra hoje.  Ou pelo menos, no distanciamento do tempo, parece-lhe que assim era.
Eram três ou quatro meninas por cada classe, apenas.
A sala pertencia ao rés-do-chão do prédio habitado pela própria professora e família.  Tinha uma janela com rede de protecção, que dava para o Largo de S.Francisco, frente ao mercado municipal, onde os pais se abeiravam a buscar as meninas, ou a trocar breves palavras com a professora, na hora da saída.
Ao fundo, a casa de banho improvisada, ficava no vão da escada que levava ao piso superior. Consequentemente era baixinha de tecto, a porta também era baixinha ... mas quem a transpunha eram meninas ... igualmente "baixinhas" ... não fazia mal ... ( rsrsrs )
Não era provida de sanitários. A coisa era remediada de outra forma ...
A Guidinha odiava esse pormenor da escola !...

As carteiras, de dois lugares, em madeira, alinhavam-se.
De tampo inclinado, possuíam um buraco para o tinteiro de molhar o aparo, embora no tempo da Guidinha, já existissem as Bic.
Frente a elas, estava o quadro de lousa preta, um mapa de Portugal, das ilhas e das colónias, um crucifixo, e duas fotografias em tamanho grande, lado a lado : Salazar e Craveiro Lopes ...
Havia ainda um relógio de parede, e o ponteiro encostava-se ao quadro.

Também não havia recreio.  Em dias excepcionais, muito de quando em vez, a senhora D. Maria Prego, se bem disposta, deixava as meninas brincarem um pouco, no pátio lá de casa. Era um pátio empedrado, com duas trepadeiras robustas a cobrirem completamente a parede daquela casa solarenga.  Uma glicínia e uma roseira de florzinhas amarelas miúdas, confraternizavam desde sempre.
Esses dias eram então dias de festa no colégio, pela raridade do acontecimento !

A senhora D. Maria Prego era senhora já idosa.  Ou talvez não fosse tanto.
A Guidinha sabe que à época, as mulheres pareciam bem mais velhas do que realmente eram.  Era uma solteirona, seca de carnes, esguia, com o cabelo um pouco grisalho, preso num "pôpo" descido na nuca.
Vestia rigorosamente sempre de escuro, e encarnava a figura típica da perceptora inglesa, no nosso imaginário "torturadora" de criancinhas ...
Era austera não só fisicamente, mas também na postura que assumia. Não ria, era autoritária e pouco dada a brincadeiras.  Conversa não era permitida, e por isso, no Verão, apesar da rede na janela, podia ouvir-se uma ou outra mosca intrometida.

O Externato Conde de Monsaraz era frequentado pela classe alta da cidade, e não era fácil conseguir-se uma vaga nas inscrições das meninas.
A Elisinha, filha do Presidente da Câmara, a Dorinha, filha de um médico conceituado, a Mané cujo pai era um conhecido causídico da cidade, eram algumas das alunas do colégio.
A Guidinha tinha pais mais modestos. O pai era comerciante e a mãe, doméstica, e foi admitida no externato mercê de um pedido da madrinha de baptismo, que era prima da professora.

" Três erros e um quarto, menina Guidinha !"...

Fez-se um silêncio pesado.  A Guidinha estava aterrorizada, apesar da senhora D. Maria Prego ter silenciado, parecendo ter esquecido o castigo.
Não fora uma voz fininha, aparentemente tímida, lá do fundo da sala lembrá-la ... e a Guidinha estaria safa ...

Mas não !...

A senhora D. Maria Prego foi flagrada na sua aparente distracção, e apesar do estatuto algo excepcional da menina ... não teve outro jeito ...
... e a Guidinha sentiu aquelas orelhas de cartão, artesanalmente presas a uma fita, serem-lhe amarradas à cabeça ...

Humilhação das humilhações !  Desgosto dos desgostos !  A mágoa do que sentia já como uma injustiça, apesar dos seus 7 anos, deixava-a sufocada em lágrimas.
A aluna exemplar, com "orelhas de burro" !!!

Os anos passaram.  Muitos e muitos anos !
O episódio "devastador" das "orelhas de burro", nunca foi esquecido na vida da Guidinha.
Até hoje lembra com uma nitidez absoluta, aquela tarde azarada, aquela colega "queixinhas", aquele vexame ... aquele quarto de erro !!!...

Saíu da primária sem dar um único erro.  Saíu, sabendo escrever com correcção, sabendo exprimir-se com clareza, com conhecimentos alicerçados, com hábitos de trabalho, ordem, método e disciplina inalienáveis.
Saíu com uma bagagem que lhe permitia encarar a vida escolar futura, sem sobressaltos. Saíu com um domínio estruturado dos princípios necessários a um percurso académico exigente.
Hoje sabe como foi importante todo o rigor, toda a exigência, toda a seriedade impostos.
Sente-se grata pela forma como foi conduzida, numa fase tão determinante da vida, em que lhe foram facultadas todas as ferramentas que a dotaram com a destreza e as capacidades intelectual e de trabalho, necessárias a responderem a uma vida séria e válida.

O Externato Conde de Monsaraz perde-se na bruma do tempo, a senhora D. Maria Ramalho Prego, há muito terá partido .
Quando vai a Évora, sua cidade de coração, estranhamente ou talvez não, quase sempre a Guidinha se esgueira até ao Largo de S. Francisco, olha longamente aquele edifício, e aquela janela  agora já fechada,  e claro, sem rede que a proteja ...
É como se quisesse "conferir", como se buscasse alguma coisa, como se para todo o sempre ali houvesse um encontro marcado com o passado ...

Lá, já não há meninas, nas  leituras ou nas contas, nos ditados ou nos problemas ...
Lá, também já não há "orelhas de burro", nem as cantorias de roda, ou as gargalhadas do "agarra", em dias de recreios felizes ...

Mas  a Guidinha sente sempre um nozinho na garganta, um calorzinho no coração, enquanto que um sorriso nostálgico de saudade lhe invade o rosto ...
... porque saudade é tudo aquilo que fica, quando já nada existe !...

Anamar

domingo, 19 de abril de 2015

" SUFOCO "





Que falta me faz um ar ...
Que falta me fazem dez centímetros de terra, uma cancela, um caminho que nem precisava ser calcetado, um arbusto com anseios de árvore ... um quintalzinho de cinco por cinco ... um projecto de paraíso !
Que falta me faz, em desespero ... ao menos uma varanda que finja ser um jardim suspenso ... com parapeito onde eu pusesse as sardinheiras, com paredes, onde eu pudesse pendurar os amores-perfeitos ... com tecto, donde eu dependurasse os vasos de junquilhos, de narcisos, de jasmins ...
E uma casinha para passarinhos ... porque de certeza eles iam adorar a minha janela !
Ou então, faria olhinhos às andorinhas, para ver se tinha sorte, e elas, sentindo-me só, talvez me privilegiassem com a sua presença !...

Que falta me faz ir ali, colher uma braçada de alecrim, de giesta, de madressilva, umas pernadas de glicínia ... ou simplesmente apanhar uns cheiros, daquele caco velho, floreira inventada dos meus condimentos ...
Que falta me faz, agarrar um xaile, deitá-lo aos ombros, encarar a brisa, e percorrer os meus cinco por cinco, supondo-me latifundiária de um quintal de sonhos ...

Como eu precisava romper estas paredes, calcorrear estes telhados em voo rasante, passar para lá do além, julgar-me pássaro ... e ir ...
Como eu precisava que o sol me aquecesse a alma e o vento me enfunasse as velas ... e partir ..
Como eu queria tornar-me um grão da areia que o mar traz, o mar leva, rolando nos fundos, percorrendo os continentes ... descobrir os segredos dos búzios que são de todos os mares e de todas as praias ...
Ou ser alga esfarrapada dormindo na orla, largada pela babugem das ondas ... e sonhar ...
Como eu gostaria de ser a borboleta, que mesmo de noite encontra cama debaixo das estrelas, é livre nos caminhos ... e pode escolher ...
Ou, claro ... ser simplesmente a minha gaivota que ciranda por aqui e é dona de todos os céus ... e sorrir ...

Que falta me faz um ar ...
Que falta me faz, meter as mãos no enterroado do chão, deste chão que será berço de todos nós, um dia ...
Que falta me faz ter umas asas cá dentro, empoleirar-me no parapeito, e deixar-me ir, ao sabor da aragem, como se brincasse de  pára-pente.
E assim estaria no topo do mundo, e veria os rios, os lagos, as florestas invioláveis, os oceanos e as casas dos homens... tristes e cinzentas !
E assim,  esticaria os braços pelas madrugadas e apanharia bouquets de estrelas, antes de elas dormirem ...
E veria deitar a lua e amanhecer o sol ...
E seria bússola sem pontos cardeais ...rodando com os girassóis ...

E nunca mais me faltaria o ar, como agora !...

Anamar

sexta-feira, 17 de abril de 2015

" SINTRA "




Ao virar de uma esquina, no meio da ramagem, de repente surge a princesa, altaneira,  no recorte de castelinho de fadas.
A Pena lá se mostrou ...

Os meus caminhos nunca favorecem vê-la deitada lânguida, espreguiçada no topo da encosta, como ela o sabe fazer ...
Sempre a abordo de nascente.  E desse ângulo, ela encaracola-se e só mostra o que quer.
Calcorreio as veredas, os becos, as escadinhas.
Nos beirais envelhecidos, encarrapitam-se plantinhas atrevidas que espreitam de cima, as ruas estreitas.
E florescem ... espantosamente florescem por sobre as telhas ...
As janelas, de todas as formas, não são simplesmente janelas.  São janelas de estirpe, com carisma. Têm histórias  a contar.  A patine dos anos adoça-as, a graça das cortinas revela-lhes o rosto.
São molduras de vidas, são caixilhos de sonhos.
Há uma cumplicidade contada na penedia, recoberta de musgos ancestrais.
Há segredos subentendidos em cada tronco, por onde as heras trepam com sonhos de infinito.
Há a magia da neblina que esconde e desvenda.

As glicínias e as roseiras aproveitam cada canto, cada muro, cada portão, para se mostrarem plenamente, como donzelas fáceis, porém enganadoras.
As camélias, desenhadas em talhe de arquitecto, num mimoseio de "biscuit", enfeitam parques e jardins ...
As sinetas de anunciar, nas entradas das quintas, os batentes das portas, trabalhados ... os cães empoleirados nos muros, anunciando-se ... ou sonolentos, por hora de sesta ... os gatos ... muitos, com vida boa e repousada, têm alforria total.
Que mais quererá um gato ?!

Tudo isto, é Sintra !...

Adoro perder-me por lá, em caminhos que nem entendo.
Adoro pausar numa qualquer pedra, num qualquer recanto, numa qualquer volta, só para respirar, absorver o ar fresco que emana da serra, descansar as pernas.
Assim, dolentemente, sem horas, sem compromissos, sem encontros, além do meu com Sintra, que tenho a certeza, sempre está à minha espera !

Sintra é um deslumbre, uma surpresa, uma novidade , um assombro ...
Sintra é uma ternura, um encanto, uma canção ... uma dádiva generosa ...
Em cada canto há um recanto inusitado, que não se sonha ou prevê.  Que simplesmente aparece, que se dá, como uma prenda a desembrulhar-se ... a cair-nos no regaço.
Os sons e os silêncios, as cores e os aromas, a brisa que perpassa, que dança nas ramagens de todas as cores e de todas as formas ... desde as que rastejam atapetando e envolvendo, às seculares que sobem e se erguem, diferenciando-se, querendo abraçar a montanha ... Tudo é uma promessa de amor ...

Porque Sintra é amor ... seguramente Sintra é amor !...



Anamar

terça-feira, 14 de abril de 2015

" AS MAIAS, O MAIO - HISTÓRIAS E LENDAS "




Já aí estão as maias outra vez, florindo nos campos, como se o amarelo do sol tivesse acendido a Terra !
É sinal que beiramos outro Maio, é sinal que daqui a pouco é Verão, e um calor gostoso começa a tornar a Natureza úbere, e nos remete a um ventre fértil, em que as entranhas fecundas e pródigas nos mimoseiam com flores, frutos, aromas, cores estonteantes, beleza a rodos... sem regateio !

As maias ou giestas,  eram as flores dos pobres, lá no meu Alentejo.
Não havia mesa na cozinha, escaparate que se prezasse, mesa de cabeceira de sonhos promissores ... que não tivesse uma bilha, uma caneca, um qualquer caco mesmo gatado que as  não contivesse !
Eram pretexto de idas ao campo, de piqueniques de beira de estrada.
Uma braçada das maias  inebriava, penetrava-nos o coração, purificava-nos o ar, entontecia-nos a alma com o  perfume intenso, que trazia a Primavera  adentro de casa !

Largadas no chão,  atapetando caminhos de terra batida, entradas de montes ... soleiras das portas ou em pontos de descanso para sesta desejada ... lá estavam elas, garantindo a frescura, e o odor a paraísos sensoriais ...

Nas ruas, em tempo de procissão, também as maias adoçavam os percursos, para que os santos os calcorreassem em tapete macio.  Por certo arregalariam os olhinhos, de ternura agradecida !

Em  miúda ia apanhá-las ... Era de praxe !
Quando a minha mãe, no primeiro dia de Maio me entrava pelo quarto, mal o sol raiava, com uma amêndoa na mão, para que eu, mesmo adormentada  a comesse ... eu já sabia que era Maio, que eu não podia "deixar entrar" o Maio ... e que as maias já floriam na charneca lá fora !  Não tinha erro !

Sempre refilava pelo despautério.
Sempre achava aquilo, uma enormidade, uma tonteria,  um perfeito absurdo !
Raios !... Mania dos mais velhos trazerem ao presente o passado, com medo que ele fique definitivamente lá ... no passado mesmo !
A amêndoa era a terapêutica preventiva da entrada do Maio no corpo da miudagem, o que prenunciaria preguiça e molenguice  o ano inteiro !...
Era o suspeito "vedante" de uma desgraça dessas !!!...

O tempo passou, e há muito já, que o Alentejo me ficou para trás.
Há muito que as  memórias, as histórias e as lendas são exactamente isso... lembranças doces, histórias inesquecíveis ligadas a sítios e a gentes  que se tornaram míticos ...
Desde sempre, os aromas da terra, a cor inexplicável daquele chão, a grandeza daquela planura sem horizonte ou limite  que se veja,   me impregnaram até ao âmago, com a força de uma tatuagem que não desgruda, com a certeza de uma ligação umbilical indestrutível, com o amor de uma maternidade para toda a vida !

E até hoje, o cheiro das giestas parece perfumar o meu imaginário distante, e dou por mim a sorrir nostalgicamente, quando os olhos alcançam o amarelo outeiro acima, num contraste perfeito  com o azul intenso e luminoso  do céu de Maio ...

Só que eu não sou mais a gaiata de então !...



Anamar

segunda-feira, 13 de abril de 2015

" QUANDO FOI ?? "




"Força, faça força ...  Vá, segure a minha mão e faça força !"

Aguentava-se ... que remédio.  Era muito menina ainda, inexperiente, mas nunca foi de fazer escarcéu,  houvesse  o  que  houvesse.  Tentava  sempre  aguentar  firme, discretamente ...

"Pronto, já cá está.  É uma menina !"

Aliviada, dizia sorrindo : "Ainda bem !  A irmã queria uma menina !  E é perfeitinha ?"

No tempo em que ainda não se sabia que poderia ser uma menina, e em que a "perfeição" se concluía naquele justo instante ...
Pergunta-se  hoje como seria concluir da perfeição, naquele momento ... Dois braços, duas pernas, mãos e pés ... cinco dedos em cada ... ?!

Era assim !

"Chorou" !... Óptimo, excelente ... está feita à vida !...
Engraçado !  Quem lhe falaria então, em produções independentes, bancos de esperma, barrigas de aluguer, partos na água ... sequer fertilização "in vitro" ?!...  Quase escolha por "catálogo" !...
Quem lhe falaria ?!...

E então o tempo passou ... algum tempo ... tempo de mais ...

Quando foi que deixaram de lhe sentar o colo ?
Quando foi que o beijo se tornou rápido, à entrada e à saída da porta ... na visita ... Coloquial ?
Quando deixaram de rir com ela, de lhe contarem histórias, de chorarem mágoas, dividirem desgostos ou  simplesmente "desgostinhos" ?
Quando passou a ficar estranho, apertá-las, estreitá-las, cingi-las a si, a ponto de lhes sentir as batidas do coração ou o calor do peito, sem que sentisse de imediato levantar-se de permeio, o tal mar de ondas agigantadas, sem que sentisse de imediato que a terra abria e afastava duas metades, que só às vezes lançavam pontes ??!!
Quando passou a haver ali o distanciamento doído da vida, que de repente mostra outros, no lugar dos nossos, mostra estranhos no lugar de conhecidos ?!
Quando foi que se desconheceram pela primeira vez, quando foi que a linguagem se tornou ininteligível ... e as braçadas aprendidas já não as guiavam para a mesma margem ?!

Terá sido apenas quando deixou de fazer falta nas cabeceiras, a acalmar pesadelos ?
Terá sido apenas, quando as madrugadas já não precisaram de silenciar choros, o sarampo já havia eclodido, e as letras e as contas não precisaram mais ser perguntadas ?
Terá  sido,  quando  lhes  cresceu  o  pudor de já  se  acharem  gente  grande, e  por  isso,  ridículas ?

E pronto ... não há "rewind" a fazer !
As mãos e os braços desabituam o gesto do afago, o regaço já não sabe fazer colo, os olhos choram para  dentro.
Às vezes a memória empurra uma mão teimosa carente de carícia, obedecendo a um coração que não entende ...
Mas ela recua a meio caminho.  Fica sem jeito.  Esqueceu o trilho, receia o "estranho" em guarda, do outro lado ...
A linguagem emudece, não se solta ... recua além dos três primeiros passos.  O fosso não se atravessa.  Há um arame farpado armadilhado, no meio do percurso ... inexpugnável !...

E só passaram alguns ... demasiados anos !...
Que raios !  Onde poderia ter aprendido outra maneira ?  Será que havia "outra maneira" ?!
Hoje será diferente ?  As gerações serão forjadas noutros moldes ?  Aprenderam noutros livros ?
O tempo tem outra dimensão, que não esta medida imensurável, capaz de transformar alguns poucos anos, num vórtice infinito ?!...

E é segunda-feira.
Uma igual a muitas ... a todas.
E a roda rodando.  E numa roda quando roda, todos os seus pontos sempre retomam as mesmas posições, depois  de  descreverem  a  mesma  circunferência,  sem  princípio  nem  fim ...
E a roda rodando ... cansando ... rodopiando tontamente sem escolha, numa engrenagem imparável ...
O hoje já é ontem ...  O ontem, já tem séculos !...  Já é segunda-feira de novo ...

"Força ... faça força !  Segure a minha mão, e faça força !"...

Anamar

domingo, 12 de abril de 2015

" A SUPER AVOZINHA "


A minha mãe fez  94 anos.

E fê-los, apesar de tudo, num pico de melhor qualidade de saúde, outra vez.   Desde Setembro que a sua vida se alterou drasticamente, com altos e baixos muito acentuados.
Os períodos negros têm sido muitos, e houve dias em que tentei mentalizar-me que seriam sem retrocesso.
É certo que perdeu muito da sua autonomia.
É certo que "perdeu" a independência da sua casa, e com isso, muita da alegria de viver.
É certo que se tornou uma pessoa mais amarga e desinteressada de tudo ...

Mas apesar dos pesares, continua a ser a "guerreira" de sempre ...  a alentejana de raça, habituada desde criança a uma vida dura, de trabalho e exigência, sem grandes ambições, e aceitação do possível, com satisfação.
Nela se forjou, e é com essas armas que vai chutando as "partidas" com que o dia a dia a presenteia.
Esta mulher, é efectivamente uma força da Natureza !

Quando vou levantá-la para a higiene pela manhã, já ela, sobre a cama, completou a " aula de ginástica" diária ... os exercícios de pernas e braços que se propõe fazer.
Quando não pode ir à rua com as canadianas e pelo braço de alguém, anda no corredor da minha casa, de cá para lá e de lá para cá .
Porque pará-la, algum dia ... só se a vida a apanhar muito distraída ! ...

Que mais poderei dizer ?
Que a invejo, sem dúvida !
E que lamento não ter tido a sorte de ser brindada com as suas qualidades de determinação, força interior, luta, resistência psicológica, garra, paciência e generosidade ...
E gosto por existir, por "caminhar", por amar ... por desafiar o destino, não soçobrar, e sempre o enfrentar e agarrar "pelos cornos" !

Enfim ... a forma deve ter-se quebrado, e ficado por lá !!! ... ( rsrsrs )

Quando um dia se for,  será sem dúvida, o melhor exemplo  deixado  aos descendentes que por cá estão, e ainda conheceram a Bi ...  Uma velhinha impertinente, "eléctrica", que lhes dava montes daqueles beijinhos capazes de sufocar qualquer um ... devota do Sporting e da sua Santa ... uma resistente e uma campeã ...

Em suma, uma "super  avozinha" !!!

Anamar

sábado, 4 de abril de 2015

" OS APÁTRIDAS "





Isto de não se ter terra, tem que se lhe diga !...
Nestas alturas, Natal e Páscoa, época de êxodo do pessoal, isso dá cá uma gastura !...

Viver na grande cidade, sobretudo na capital, confere-nos um estatuto  injusto de "orfandade".
Até as cidades de província, sobretudo do interior, sendo agregados populacionais menores, são menos impessoais, menos incaracterísticas, menos anónimas, mais aconchegantes ... mais regaço e ninho!

Por outro lado, estou crente  que quem nasceu e viveu a sua vida, exclusivamente na capital, será um devoto inveterado do seu chão, sentindo-o  como de facto o é, o único "colo de mãe" que conheceu.
Acaba por estabelecer raízes, laços e cordões que vêm do útero telúrico.
Não anseia logicamente outra realidade, não sente outras necessidades ou premências ... Não conheceu outra terra, de berço.  E a gente ama o que conhece !

A questão coloca-se em quem, tendo nascido no interior, nele criou os seus mais antigos e profundos laços relacionais, nele implantou afectos, nele vivenciou as primeiras emoções ... e depois, fruto do percurso da vida, migrou para a capital, e aí se radicou.

Verdadeiramente, este indivíduo é um indivíduo de fronteira, é um desalojado ... é um "sem terra" !...
E depois, é também um ser desmembrado, dividido, amputado, de alguma forma ... Porque, muito embora toda a sua realidade se processe na grande metrópole,  quase sempre o coração permaneceu por lá, as memórias também, e a saudade continua arreigada àquela terra, de onde, fruto das circunstâncias, foi extirpado !
E sempre  o  seu imaginário mais embalador, para  lá o remete ...

Lá, era a casa dos avós ou mesmo dos pais idosos ...
Lá, era o "paparico" da tia velha, que jurava nos engordaria, aquando da nossa estadia  ...
Lá, ficaram as brincadeiras irreverentes, a época auspiciosa das férias, os amigos, que por serem os primeiros, o eram de coração e para toda a vida ... Os primeiros namoricos ... a emoção do primeiro beijo aceso ...
Lá, eram os dias grandes e ensolarados, a liberdade da rua ... lá, era a sensação da borboleta solta, voejando de flor em flor ...
As  memórias  mais  doces, normalmente  as  da infância e  da  juventude, prendem-se  claramente por lá ...

A vida real, dura e sofrida, a vida adulta, à séria, implacável quase sempre, com os seus inerentes e óbvios desencantos e dificuldades, as responsabilidades pesadas que nos ajoujam ... instalaram-se mais tarde, na grande cidade que nos acolhe.

Esse indivíduo apátrida, vive portanto entre duas referências, dois mundos, duas memórias distintas !
E sempre que pode, quando pode, responde ao chamado do coração.
E o êxodo inicia-se.
É assim nos Natais, é assim nas Páscoas, quase sempre no Verâo !...

Lisboa esvazia-se, e há uma exuberância na migração, uma alegria provocatória e contagiante, uma expectativa infantil, em cada família, em cada pessoa, à medida que os quilómetros da estrada se vencem, e o torrão natal se aproxima !
À medida que o céu de Lisboa nos fica pelas costas ... e o ruído do trânsito incómodo, se substitui pelo zumbido dos insectos, pelo pipilar das aves, pelo sussurro afagante da brisa campestre, à tardinha ... pelo marulhar manso da ribeira !
Pela proximidade  antevista dos rostos queridos, das conversas que se hão-de ter, das gargalhadas que se hão-de soltar, das novidades que se hão-de trocar ...
Somos portanto reais emigrantes, dentro da nossa terra ...
A ansiedade é sem dúvida a mesma !  A felicidade, também !

Mas  depois há ainda uma terceira realidade, a mais doída e a mais dramática de todas.
Respeita  àquele em que nos tornámos, quando  naquela terra que era a nossa, que nos esperava sempre, nos acolhia e aninhava ... já só existe um vazio de doer ...
A família já partiu faz tempo ; os lugares, com o passar dos anos, descaracterizaram-se, já os não conhecemos ;  as casas que foram "nossas", detentoras dos nossos sonhos e ilusões,  foram alienadas, ou já não têm pedra sobre pedra ... e os amigos que lá fizemos, mercê da passagem irrevogável do tempo, do afastamento e da realidade da vida, parecem-nos estranhos ...
A cumplicidade  que nos unia não a sentimos mais ... não com aquela força mobilizadora, que parecia nenhum vento ser capaz de abanar ...
Restaram as imagens esfumadas nos olhos, os sentires já difusos no nosso coração ... as memórias e as recordações felizes, que agora doem ...
E uma lágrima teimosa que espreita, e um nó na garganta que sufoca ... Não mais !

A vida não nos deixou  nenhuma margem ...

Não vale a pena engrossar nenhum êxodo ... porque não temos sequer para onde o fazer !...
Ficamos ... mas ficamos tristes, quietos no nosso canto, a vê-los partir ...  É como se afinal, nenhum pedaço de terra, tivesse sobrado para nós !...

Tristemente, tornamo-nos assim, no  mais "apátrida" entre os apátridas !...



Anamar

quinta-feira, 2 de abril de 2015

" INEVITAVELMENTE ... PÁSCOA ! "





" Que altas, que baixas, em Abril caem as Páscoas "

Toda a vida a minha mãe repetiu esta frase, quando Abril chegava, e ela ainda não tinha olhado o calendário,  a preceito.
"Não sei quando é a Páscoa este ano !..."
Seria certamente por aí, mais semana menos semana ...

Já falei aqui, várias vezes e de várias formas, desta comemoração que para mim guarda memórias.
Memórias temporalmente diferentes, espaçadas no tempo, e consequentemente vividas distintamente.
Retenho muito, com muito carinho, as Páscoas de Alentejo, de casa de avós.
Singelas, doces, felizes.  Páscoas simples, autênticas,  e tão "açucaradas" quanto os doces e os pitéus que as recheavam ... quanto o carinho e o afecto que escorria entre todos, os que nos juntávamos então ( e eram muitos ... quase todos ... )
Tão "açucaradas" quanto o aconchego sabido em casa mais que paterna, que por o ser, deverá sempre ser especial no nosso coração, ser "ninho" primordial, ser cordão umbilical indestrutível.
Tão "açucaradas" quanto o serão sempre  as memórias descomprometidas da criancice e da adolescência, as recordações de férias, o verde dos campos, o matizado das flores pródigas, a cobrirem  todo o chão do Alentejo !
O sol sempre tinha a claridade deste sol de Abil, que brilha em céu claro e translúcido.
O primeiro calorzinho convincente, do ano, instala-se, e sente-se claramente que a Primavera não dispensa vir comer as amêndoas connosco !...
Foram tempos !...

Recordo depois, anos passados, as Páscoas beirãs.
Outra gente, outra realidade, outras vivências.
Páscoas recheadas com família escolhida ... pais, irmãos, cunhados e já filhos a crescerem,  para quem a Páscoa repetiria seguramente o sabor das minhas, muitos anos lá atrás !

A geografia espaçava estas vivências.  O tempo espaçava estas emoções.  Os costumes diversificavam as comemorações.  A vida escolhia figurantes novos,  em cenários diferentes ...
Mas eu, continuava a ser eu, menina-mulher, calcorreando adiante a senda destinada.
O chão era outro, o ar também.  Os cheiros, talvez diferentes.  Os verdes agora eram da montanha, e não da planura sem limites.
A cor, a esmo espalhada, não se fazia rogada, e era igualmente generosa.  Engalanava encosta acima até ao pico da serrania, todo o espaço que a nossa vista alcançava ...

Também aqui, as glicínias penduravam os seus cachos roxos e cheirosos.  A "flor da Páscoa", os jarros, as camélias e as magnólias alindavam os jardins.
E nos campos, também aqui, as giestas, as macelas, as estevas, os dentes de leão, os bordões de S. José, o alecrim, o rosmaninho  e as urzes, não esquecendo as papoilas salpicantes e mil outras, se faziam presentes, ombreando em beleza e em cor, em singeleza e autenticidade, numa explosão de aromas e formas.
Flores sem mão de jardineiro !  Nem por isso menos belas ... Um regalo para a alma !...

Mas era o mesmo Portugal, embrulhado no mesmo céu, resplandecente, com o mesmo sol sempre claro e luminoso ... o sol de Abril que nos chama à Natureza, à renovação, ao renascimento ... à esperança !!!

Tenho saudades ... claro que tenho saudades !
Como costumo dizer ... saudades de tudo, mas sobretudo saudades de mim, da que eu era, e de todos os que, presentes fisicamente então, me continuam no espírito e no coração para todo o sempre !...

" Que altas, que baixas, em Abril caem as Páscoas !" ... a tradição mantém-se !!!...



Anamar

quarta-feira, 1 de abril de 2015

" DO AMOR E OUTRAS COISAS ... "







"Havia um sonho.  Havia uma
esperança.  Havia.  Havia.
Mas o sonho também cansa
e a esperança está vazia.
Havia um sonho e uma esperança
Pois havia. "
                             Joaquim Pessoa



Do amor só sei o que me contaram,
da vida, o que me ensinaram,
e de mim, já pouco sei !...
Os sonhos nunca são como disseram,
as esperanças já não são como se esperam ...
E dos dias ... já cansei !

Havia um sonho que poisava à cabeceira,
um sonho bom, que deitava à minha beira,
que vinha à noite, e comigo amanhecia ...
Era azul como a luz da alvorada,
tinha o perfume de uma mulher desenhada,
deixada só, numa cama ainda vazia !

E era um corpo que sonhava a Primavera,
p'ra florir ...
Corpo de ir, e não de espera,
feito rio que não tem muros e busca o mar ...
Era um ímpeto, um sufoco, um grito fundo,
era um lamento, foi um riso, ou só um esgar ...
Era pássaro velejando em céu profundo,
era barco sem amarras pelo mundo,
sem ter medos ... ou temor de naufragar ...

Foi luz de estrelas, foi centelha,
foi crer, foi querer,  e farol ...
Foi a força de um chamado e de um queixume
Foi fogueira acesa, sem ter lume ...
Morreu no frio do Inverno, sem ter sol !...

E o sonho que ficou na cabeceira,
como a ave que poisou na macieira,
foi só sonho ... não passou de uma quimera !
Era azul como a luz da alvorada,
vinha doce e embalava a madrugada,
mas partiu ... como parte a Primavera !!!...

Anamar