terça-feira, 30 de junho de 2015

" POR AQUI ... "




Estou seca !
Seca de ideias, de emoções, de sentimentos ... vazia. Totalmente vazia !
Tão estilhaçada como aquele vaso de porcelana que tombou, e reconhecemos irremediavelmente perdido !
Tão esfiapada como o trapo velho, que desacreditamos  possa ter ainda algum préstimo !
Tão vazia quanto o pode estar o balão que acaba tombando no chão, por perda de todo o ar que o preenchia !

Passeio-me por aqui.  E até o pensar me cansa, e recuso.
Tento voltar esquinas perdidas, procurando no ontem, justificação para o hoje, esperanças  para o amanhã !
Procurando lógicas, fios condutores ... caminhos esquecidos, veredas ou atalhos que pudessem ter levado a algum lado.
Procurando erros, sentidos dúbios, avaliações mal calculadas,  raciocínios mal medidos, ideias mal desenhadas, esperanças infantis, ingenuidades absurdas ... culpas não encaradas ...
Procurando por onde andei lá atrás, que criança fui, que imaturidade me invadiu, que parece ter-me tolhido o crescimento ...  
Interrogando-me, por que razão tão mal me sei mexer sempre, neste percurso ?!
Procurando divisar justificações p'ra tanta inépcia perante a vida, tanta falta de habilidade para vivê-la, tanta incompetência e estupidez, ou burrice a encará-la ...

Em vão !

Não descortino nexos, sentidos, razões que justifiquem tão rápida, cruel e eficazmente, a destruição das perspectivas, das expectativas e das vontades, na vida de alguém ...
Sobretudo da vontade aniquilada, da ausência de capacidade, força ou inconformismo... que esse sim, seria motor impulsionador em cada dia.
Não !  Estou amodorrada, como velha encarquilhada à lareira.

E como  em terreno pantanoso, não me soergo.
Como em areia no deserto, não me desenterro e perco o horizonte.  As estrelas não me dão norte, e as dunas fazem-se e desfazem-se adiante de mim ...
Como em mar encapelado, não lanço mão de madeira à deriva ...

Não !  Sinto  que tudo  já fugiu ao meu controle.  Que tudo já ultrapassou a minha resiliência.  Que tudo atropelou até a minha vontade, a minha coragem e o último resquício do meu lado guerreiro.

Capitulei.  Depus as armas.  Não me rebelo, não me indigno, não me insurjo,  não me puno ... não me digladio ...
Não me surpreendo, não sorrio, não sonho, não luto ... não vivo !...

Estou cansada.  Só sei que estou profundamente cansada.  Desesperadamente cansada.  Doentiamente cansada !
E só !
Com a solidão do náufrago, que percebe que a  última onda possível ... acaba de passar, rumo à praia longínqua !...

Anamar

sexta-feira, 19 de junho de 2015

" NÃO SEI O QUE FOI ! "




Não me perguntem porquê ... mas de repente, fiquei em paz.
Em paz comigo ... mas sobretudo em paz com o meu coração !

Há momentos na vida, em que ela nos dá sinais !
Não me perguntem porquê ... mas há !

Por outro lado, quando se desce tanto, tanto, que se bateu num qualquer fundo ... diz o povo que depois, só poderá ser a subir.
De facto, há instantes em que claramente se atingiu um limite, um limite de cota positiva, ou um limite de cota negativa.
Há instantes, em que subir mais, não se pode ... mas cair mais, também não !

Hoje, estranhamente, sinto-me assim.
E até tenho medo do que sinto, pois pareço ter finalmente desatolado, pareço ter recebido um complexo vitamínico  qualquer, pareço ter sido injectada de esperança, de força anímica, de confiança ... e consequentemente, inundada de paz !!!

Hoje, pela primeira vez ao fim de muitos, e muitos, e muitos meses, em que os dias me amanheciam cinzentos e anoiteciam negros ... eu acredito que nem tudo se perdeu na minha vida, que estou num momento mágico de superação, de clarividência, de reversão, de aposta e de fé.
Eu acredito ( e digo-o com uma serenidade que não sei onde fui buscar, mas que  baixou claramente no meu caminho ), que estou num momento em que, de consciência tranquila, apenas me cabe esperar.

Esperar um pouco mais.
Não me deixar soçobrar.  Procurar perceber além do curto horizonte que ainda me espreita, e ter fé que outro céu, outro mar, outros sonhos, outra vida, me aguardam mais além !
Acreditar que há-de vir outro tempo.  E que o tempo de borrasca e tempestade brava, de cerração profunda, sem sol no meu firmamento, terminará ...
Simplesmente porque, pior do que está, não poderá ficar, e eu terei forças para vir à tona !

Sempre assim foi na minha vida !  As minhas histórias de luta, visíveis, mas também as invisíveis, foram por mim digladiadas, esgrimidas, enfrentadas e superadas ( por vezes com excessivos custos) ... mas por mim, apenas ... por mim, só por mim .
E fui capaz de muitas coisas, que não pensaria sê-lo.  E fui muito além das forças que julgava ter.  E reformulei-me, e rearticulei-me ... e juntei as peças ... e apanhei os cacos ... e como uma espécie de fénix ( aos trancos e barrancos ), ainda assim renasci ...

Hoje ... não me perguntem porquê ... de repente deixei de ter mais medo do tempo, e da safadeza que ele comete, ao fugir-me .
Logo eu, que quero ainda viver tanto na minha vida !  Logo eu, que pressinto ter direito a mais um lampejo de felicidade !  Logo eu que sou sedenta, sequiosa, impaciente para agarrar o mundo com as mãos !
Logo eu !...

Hoje, não me perguntem porquê ... olhei para trás e fiz as pazes com o meu passado.
Aceitando-me, primeiro que tudo. Redimindo-me das minhas falhas e omissões.
Percebendo-me, e às minhas incapacidades e limitações !
Olhando com serenidade  os dias, as pessoas, as vivências que fizeram parte de mim e da minha estória  ... Recebendo no coração o que foi, sem reclamar do que podia ter sido .
Não chorando pelo que terminou ... mas bendizendo ter acontecido !
O bom e o mau ... numa aprendizagem permanente e incessante !

Hoje, não me perguntem porquê ... reconciliei-me com a minha existência.
Hoje, algo de novo,  acaba de se me anunciar ... uma página experimentou começar a viragem ...
E eu acredito, sinceramente acredito que alguém que nunca me falhou, esteja onde estiver, "percebeu", "sentiu" que o trilho destruidor e sem rumo que eu pisava, tinha que ter um fim, que  a escuridão na minha alma tinha que cessar, que a minha resistência física e anímica  estavam a esfiapar-se ... e abriu-me finalmente uma janela ... soprou-me uma lufada de ar fresco !!!

Há momentos na vida, em que ela nos dá sinais !
Não me perguntem porquê ... mas há !...

Anamar

quarta-feira, 17 de junho de 2015

" O GRANDE DITADOR "




O tempo é o grande decisor.
É o homem da batuta, é ele que dá as directrizes, os comandos, as ordens, assume as determinações.
Ele decide, à revelia das vontades.  Ele resolve.  Manda e desmanda, mostra, ensina ...
Premeia e castiga.
E é sempre impiedoso e autoritário.
Nada o demove, com nada se compadece ...

Por aqui andamos, ao sabor dos seus caprichos.
Tanto nos ilumina a vida ... como, pirracento, nos desagua no coração, uma tempestade devastadora.
Quando estamos felizes, aziaga-nos a felicidade !  Não descansa enquanto não acaba com ela.
"Não há bem que sempre dure"... diz o povo.
Também, diz ainda o povo que "não  há mal que  nunca  acabe".
Só que esse tempo é sempre tão longo, tão longo, que parece não ter fim ... e o seu estrago também não !
Ensombra-nos a existência, e parece rir da "partida", com indiferença e distanciamento !
Coloca-nos no "mato sem cachorro", como baratas tontas, às cabeçadas ao destino !...

O tempo escreve, rescreve e apaga.  Sem perguntar nada.  Sem pedir opinião.  Indiferente às mazelas. Distante da hecatombe  !
E como um ditador, faz e não justifica ...

Assim é o meu tempo, neste momento da minha vida ...
Brinca a cada momento.  Obscurece-me o coração e extirpa-lhe as mais bonitas emoções, que eu jurava  não mais de lá sairiam.
Agride-me e destrói-me , numa manobra de amortecimento do espírito, colocando-me num estádio sonolento de vigília, face à vida.
Quase deixo de sentir, quase estou incapaz de me envolver com a minha própria história ... quase me descomprometo da realidade.
E sinto-me estranhamente irreconhecível.  Identifico-me a custo, e sinto-me como alguém em hibernação fora de estação ... desligada, apagada ... semi-morta !
"Zombie", em cada dia que passa ... como se não percebesse sequer se é manhã, se é noite, se a noite já repegou outra manhã ...
Prisioneira, tolhida de liberdade, amputada do livre arbítrio sobre as minhas escolhas !...

E ele passando ... avançando !
De ampulheta na mão, olha-me de lado ... sobranceiro ... altivo ... insensível, disfarçando o riso amarelo de escárnio ...
Ditador ... um ditadorzinho de meia tigela !
Porém, poderoso, dono e senhor ... gélido e impassível ... como todos os ditadores !!!
Reféns ... nada mais que reféns ... Eis o que somos, neste jogo desleal, desigual e absurdo, de poder ...

Este é o meu tempo !
Este é o tempo que vivo !
Este é o tempo que me mata, todos os dias um bocadinho !
Este é o tempo que me tiraniza, e de que estou farta, absolutamente farta !!!...

Anamar

domingo, 14 de junho de 2015

" VÓMITO "





Aquilo que vou escrever é absolutamente chocante, controverso ... se calhar revoltante.
Sobretudo para quem o leia pela rama, se ligue à leitura superficial do texto, se prenda ao significado simplista das frases .

Não importa !
Como afirmo na apresentação deste blogue, escrevo-o fundamentalmente para mim, coerentemente com o meu pensar e sentir.
Imune  a  preocupações de censura, ou a opiniões dissonantes ( até porque as pessoas que a ele acedem, quase nunca, ou nunca, fazem comentários sobre o que lêem ... ).  Sequer ainda, a  juízos de valor.

Estou mergulhada num processo irremediavelmente destrutivo  e sem outro tipo de solução, alternativa, ou saída.
Costuma dizer-se que "o que não tem remédio, remediado está" !  É um pouco assim de facto, embora pelo menos, o direito aos sentimentos e às emoções, qualquer ser humano tenha.

Tenho a minha mãe, com 94 anos, semi-acamada, sem mobilidade, com demência progressiva, e com um coração que "preso por arames", parece aguentar tudo ...
Tenho à minha frente, todos os dias e /ou noites, um quadro terrífico de alucinação, de descompensação cerebral, de descomando do resto da racionalidade que aquela cabeça determina.
A minha mãe ... aquela que o foi, obviamente que há muito aqui não está.
E esta, a que raramente me conhece, mas sobre quem lança a raiva de por mim ser "controlada", é uma caricatura triste, é uma figura patética, é um esgar de ser humano ... é uma tristeza ... num "espectáculo" de vida, a que ninguém deveria ter obrigação de assistir.

A impotência que sinto, face à sua destruição como pessoa, a raiva que sinto contra uma degradação irreversível, a mágoa e a dor que me assolam face a um "apodrecimento" incontrolável, deixam-me em desespero, em ódio e em revolta,  vivem comigo de dia, e pernoitam comigo na almofada que não consegue conciliar-me o sono ...
Porque "viver", não é apenas acordar, respirar, e adormecer de novo.
Porque viver não deveria rimar com sofrimento, com dor ... com piedade e comiseração ... com solidão de alma ...

E digo para mim mesma : " eu não quero acabar assim ... eu não posso acabar assim !!!"
Nenhum ser humano deveria ... ninguém mereceria ... NÃO  É  JUSTO OU POSSÍVEL !!!

Que é feito da dignidade, que é feito da essência, que é feito da "vida", centelha da luz que distingue o Homem dos outros seres irracionais ?

Neste momento, dou por mim a olhar os velhos com quem me cruzo.  Olho-os, além de vê-los.
Não consigo olhá-los, que as lágrimas me não caiam.
A velhice é de facto feia, parda, cinzenta ... descolorida !
A velhice não comporta risos, esperança, futuro ... amanhãs ...
A  velhice  é  uma  partida  de  mau  gosto ... é  uma  piada  jocosa  de  humor  negro  e  desrespeitoso !
Os rostos pregueados, romanticamente conotados com "histórias de vida" ... podem, na verdade, não ser motivo de orgulho ... mas tão somente, sinais de uma inevitabilidade desesperada, que tem que se carregar.
Os velhos olham perdidamente o vazio, porque não descortinam nada mais para ver. Param os olhos, muito para além do que os rodeia.  Escarafuncham na vida, quando era vida e não morte !
O olhar opacizado vagueia ... entre o passado e um não-futuro ...
Fogem do sol, e buscam a penumbra ... porque estão a recolher-se ao útero telúrico donde saíram .
Procuram o silêncio, porque o "ruído" com que a vida se veste, é excessivo e descontextualizado do estadio que habitam.
A velhice "fede". Tristemente "fede" ...
É um grito amordaçado em gargantas que já não ousam fazer-se ouvir.
É um cansaço arrastado, que se quer parar, e não é possível.  É um pedido lancinante de arrego, é uma ânsia do colo que não se alcança mais ... é o estertor de quem sufoca no coração e na mente, quando a crueldade de alguns momentos de lucidez lhes devolve a "imagem"...

É duro ler isto ... é duro ouvir isto ... é duro escrever isto ...
Sobretudo quando convivemos impotentemente com esta realidade, exactamente  num "romance" sem fim à vista, um romance que não podemos rescrever, aligeirar, modificar ... que sabemos sem fiabilidade, sem futuro, sem esperança ... sem "happy end" possível !!!...

É isto, o destino ?
É esta "tragédia", o corolário da vida do Homem ?  É isto, o que lhe é concedido ?  É isto, tudo a que tem direito na saga que calcorreou, arrastando seguramente correntes e grilhetas, num percurso esforçado, cansado ... penitente ?

A minha garganta sufoca um grito tão grande, que ultrapassa o além !
A minha garganta queima, com o vómito de fogo que me sobe das entranhas, me entorpece a mente e me cega os olhos ...
O meu coração não se compadece desta realidade crua e dura ... Não consigo !!!


Estarei a ficar louca ???!!!...

Anamar

quarta-feira, 10 de junho de 2015

" NEVER ENDING STORY "






Adiado ... está tudo adiado !
Neste momento, a minha vida, toda ela, tem o estranho adiamento de alimento em banho-maria.   De carne em fogo brando, que não torra e não coze ... mas também não fica crua.
Fica aquela coisa insalubre que não fede nem cheira ...

A minha vida neste momento é um túnel tão escuro, que por o ser, nem se lhe divisa o tamanho.
Nada é, nem deixa de ser.
Tudo está coberto pelas famigeradas "nieblas" de que já tanto falei, que me assustam, que me fecham o horizonte, me tolhem a visão, me embrulham o coração  a ponto de sufocá-lo, e me bloqueiam a mente.

Penso que circulo em roda livre.  Penso que circulo em piloto automático.
Penso que circulo aos encontrões , como robô mal comandado.
Penso que verdadeiramente, não circulo ... arrasto-me adorminhada, naquele estado entorpecente e atordoado de quem se levantou de noite mal dormida, acordado de supetão, sem saber onde está ou para onde vai !

Contudo, a sensação que me invade, e que pertence ao domínio do que se sente e não do que se consciencializa ( porque isso eu já não sou capaz de fazer ), é de pesadelo interminável, é de uma história em círculo, é de um jogo viciado que tem que continuar a ser jogado, é de chuva de Verão, que não dessedenta,  nem sequer refresca ou alivia ...
É como olhar pela janela do carro, com a chuva torrencial a cair impiedosa, e sem que o limpa pára-brisas dê vazão à limpeza ...

Estou acordada, mas em vigília permanente.
E nada mais desgastante para o ser humano, do que não visualizar  na sua vida, três palmos adiante.
Nada mais desgastante do que não conseguir estabelecer planos.  Não perceber o que se vai passar. Não ter mais metas a atingir.
Não poder definir objectivos, prioridades, caminhos ...
Não ter mais direito a sonhar !...

Porque o Homem move-se por objectivos, trabalha por objectivos ... e também vive por objectivos ...
Sem os ter, o Homem entra numa desistência comatosa, em que se desconstrói globalmente ...
E sem sonhos, o Homem deixa simplesmente de viver ... Morre lentamente ...
Mas primeiro apodrece ... vai apodrecendo !...

A incerteza, a dúvida, a angústia,  amarguram e esgotam ... depois revoltam, e depois ainda, anestesiam !
Mas anestesiam mortalmente, como o ansiolítico ou o anti-depressivo que se toma para se "ir levando", para "fazer de conta", para nos permitir olhar à nossa volta  com lentes especiais ... ou ainda como o "doping" milagroso,  que faz o atleta acreditar ter tido a admirável pujança que o projectou merecidamente ao pódium ...
Só que ... tudo de "mentirinha", de panaceia ... de penso rápido ... qual oxigénio que nos permite um último fôlego !...

E  então,  já estamos irreversivelmente a encolher os ombros ... porque já tudo é indiferente.
Não há mais força ... Não há mais vontade ... mais ânimo ... mais fé !
Não vale mais a pena !...

Anamar

domingo, 7 de junho de 2015

" JULGUEI ..."




Julguei que conhecias os caminhos ...
Sim, aquelas veredas que cortam a serra além, que sobem às falésias, e de repente nos deslumbram o mar ...

Julguei que os conhecias,  por os palmilhares vezes sem conta.  Até porque eram caminhos do meu coração ... Não podias esquecê-los na segunda curva da estrada !

Por que cruzámos trilhos, trocámos braçadas de rosas, respirámos o mesmo azul do céu, a mesma neblina do monte ?...
Por que  rimos com o voo do pássaro azul empoleirado no galho ... olhámos até ao firmamento a gaivota rasante, aninhada no vento que perpassa,  para descansar ???
Porquê ? - diz-me lá ...

Tantos códigos de afecto que registamos nesta passagem, e que nos caem do bolso do coração, no primeiro socalco da estrada !...

E as amoras ?!  Será o tempo das amoras adoçarem os caminhos ?
Não sei !  Já perdi a noção desse tempo ... como um  filme que saíu de cena, há muito !

Estranho ... é tudo tão estranho nesta jornada !
É tudo tão frio e tão vazio, que nem o sol que começa a esquentar por estes dias, consegue aquecer ...
Já perdi coisas de mais ...  Distracção  da alma ... tenho a certeza !...
Ou então já não sei jogar neste tabuleiro ...

Nesta altura, Lisboa era linda.  O castelo e as ruinhas  ressomavam a manjericos, a tronos e a festões.
Nesta altura, julguei que a cidade era do tamanho do que eu carregava dentro do peito ...
E as janelas das vielas, com os velhos de atalaia, e as roupas descoradas e tão velhas quanto eles, adormecidas na fresca da tarde, acenavam-me como as velas das faluas cruzando o Tejo, lá ao fundo ... por entre meio do casario !
Julguei que tudo ia ficar ... mas enganei-me outra vez !

Fica-me o quê, então ?

Fica-me o que consigo guardar no sótão da memória.  Ficam-me os risos iluminados dos rostos. Ficam-me  as vozes que a brisa me sopra lá de longe.  Fica-me o eco das fantasias inventadas, porque era Verão, havia sol de mais, e a esperança verde embalava-me no seu regaço ...
Ficam-me as mãos perdidamente vazias, esquecidas das linhas do teu corpo ...
E fica-me a ausência de todos os que amei ...
Fica-me o espaço vazio, sobrante na alma.
Fica-me o silêncio que pesa eternidades, e me assombra as madrugadas desertas ...
E ficam-me demasiados buracos, nos sonhos tricotados  nas noites enluaradas ...

Quem disse que o vazio não pesa ?
O vazio pesa o peso do Mundo !  O vazio tem a cor do desespero, pinta-se de negro como as alvoradas que não querem nascer , ou as velhas embiocadas que choram os mortos ...
Tem aquela cor mate, que é uma mistura inventada entre o vermelho sangue e o branco paz, que são a cor da inquietação  e a cor da saudade ... tenho a certeza !...

E eu que julguei estar viva !...  E afinal, não era  bem assim !... Também não era bem assim !...
Estou por  aqui, é verdade ... Mas olho e não vejo, busco e não encontro, falo e não me oiço, chamo, e a voz atraiçoa-me ... segue sem endereço, como mensagem extraviada ...

Então, resta-me sentar  no penedo adormecido, olhar o sol a descer de mansinho ... e esperar.   Só esperar !...

Anamar

sábado, 6 de junho de 2015

" PORQUÊ ??? "


Estou exausta !
É a terceira noite que não descanso, nem qualitativa, nem quantitativamente.
É o esforço físico e mental, mas é ainda mais, o desgaste psicológico e emocional de ver alguém que foi um ser inteiro, mas inteiro mesmo, autónomo, senhor das suas vontades e decisões ( muito embora as limitações sobretudo locomotoras, lhe restringissem nos últimos tempos, alguma qualidade de vida ) ... jogado numa cama que mais é uma prisão, refém de espaço, refém da ausência de forças e refém  de uma demência, progressivamente a acentuar-se  de noite para noite.

Como é possível, pergunto-me, o ser humano degradar-se a este ponto, em que não é mais nada ... apenas uma máquina, que irá funcionar em desacerto, enquanto houver corda ?!
Como é possível que na verdade o comando cerebral seja a exclusiva central norteadora de tudo, e o coração, apenas a bateria, que descarregando-se, ainda assim faz mexer braços, pernas, olhos, boca, mãos ... e mais nada ?!

A minha mãe é, neste momento, uma aproximação injusta, triste, totalmente desarticulada, de um ser humano.
A minha mãe é uma sombra, um pesadelo, um esgar ... monitorizado a comprimidos, a fraldas, a ritmos impostos, quer alimentares quer de higiene.
E quando "se olha", e o "fusível" está ligado ... desespera, revolta-se, pede clemência e paz ... pede para  partir, porque partir será sinónimo de descanso ... E ela quer descansar !
Ela precisa parar esta luta inglória, que por inércia da vida, ainda é obrigada a travar ...

Não há muito mais a fazer !  Mesmo os mais sonhadores, crentes e determinados, estou segura, que interiormente estão certos da sua utopia, e estão certos do que ali está realmente a acontecer ...
E o que está a acontecer é que a última chama da "vela interior", está a extinguir-se, lentamente, dolorosamente, agressivamente ... a última centelha de luz é tremeluzente, é titubeante, é asténica ... irá apagar-se ...

Madrugada fora, encostada às grades daquela cama, só olho.
Olho incrédula, perguntando-me onde é que aquele corpo definhado encontra ainda assim tanta força, para não desistir de arrancar toda a roupa da cama, as fraldas, os resguardos, a camisa de noite ... segundo após segundo ... continuadamente,  numa fúria e numa sanha de jornada imparável ?!
Escuto o desnexo das frases, o descomando da verborreia, os impropérios nunca ouvidos na boca da minha mãe ... em vida.
Sim, porque hoje ela está morta ... obviamente !

E é mera sobrevivência doída, o que a obriga a continuar.
É mera prepotência da vida, autoritária e brincalhona, miseravelmente brincalhona e sádica, indiferente e arbitrária,  que lhe retira a dignidade que lhe era devida, a reduz a um grotesco  e desesperante amontoado de pele e osso, sem escolha ... que se arrasta no tempo, que se prolonga artificialmente ... E ela sabe-o !

Sempre que alguma lucidez desce, é uma agonia.  É uma dor sem tamanho ( porque é dor da alma e do coração ), é carne viva sangrante, a pedir que não lhe mintam.  A pedir que lhe digam que na verdade não há futuro à sua frente, que tem que esperar, esperar apenas que os desígnios se decidam e lhe dêem alívio.
Como se nós pudéssemos cometer essa crueldade !...
A pedir que a ajudem a por-se em acordo com aquilo que lhe está a caber ... apesar de sempre ter pedido nunca chegar a este destino ! Poder pacificar-se com o resto da vida que detém ...
Como  se  nós  pudéssemos  dar-lhe  o  alívio  que  injustamente  não  podemos dar-lhe, de  facto !

Estou exausta !
Estou destroçada, revoltada, assustada ... apavorada !

E lembro uma imagem patética do filme "O meu nome é Alice", recentemente exibido nos cinemas.
Um filme importante, marcante, real demais ... Eu diria, imprescindível ! Dramático ... inevitavelmente dramático !!!

A protagonista, uma mulher de cerca de cinquenta anos, professora universitária e paciente de Alzheimer, descobre e acompanha a sua doença desde o início.
Esclarecida que é, conhece claramente todas as limitações futuras a que a doença a remeterá.
Luta sempre, estoicamente, com decisão, objectividade e sem dramas, enquanto ainda lhe é "permitido" ...,
Mas acautelando o desfecho que conhece inevitável, e a que não se quer submeter, regista no computador pessoal que a acompanha diariamente, um "lembrete" decisivo  e patético :  Quando entender como inadiável mais, o ponto final que desejaria na sua degradação, quando entender ter atingido o limite da resistência e se sinta em patamares aviltantes da sua dignidade enquanto pessoa ... lembra a si própria, ter guardado num determinado local, um frasco de medicação que deverá tomar.

E a frase em que ela reafirma para si mesma,  no computador " Não esqueças ... tens que tomá-los todos ... todos !..."  abanou-me de alto a baixo, sacudiu-me, e inquietou-me tanto, por dentro ... que me retirou a paz !...

Esta, a problemática avassaladora,  que, estou certa, perturba e assusta todos nós, quando pensamos na incerteza, no desconhecimento, na dúvida sobre o nosso destino final.
Esta,  a problemática que nos levanta tantas questões éticas, morais, emocionais, pessoais, familiares ... sociais ... jurídicas.
Esta, a questão que traz à mesa das reflexões, o direito pessoal ao livre arbítrio de cada cidadão, sobre a sua própria individualidade.
O que, do meu ponto de vista deverá ser inalienável, respeitado e acatado, desde que esse indivíduo reúna condições de sanidade devidamente comprovadas medicamente, e bem assim liberdade de escolha e decisão !...

Complexo ... muito complexo, sem dúvida !!!  Controverso ... demasiado controverso, seguramente !!!

Estou exausta !!!...

Anamar

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Eu tinha que escrever isto ... "O PAÍS RISÍVEL QUE HABITAMOS "





A minha mãe tem uma pensão de sobrevivência de pouco mais de trezentos euros, incluindo já o complemento de dependência.
Sempre foi doméstica, sempre trabalhou a sério nas tarefas de esposa, dona de casa e mãe ...
E sempre as cumpriu com denodo, numa época em que tradicionalmente as mulheres não exerciam actividades profissionais fora de casa.
O meu pai partiu há vinte e três anos, e desde então, a única fatia de rendimento que coube à minha mãe, foi a pensão auferida em consequência da sua nova condição de viúva.

Nunca em casa se utilizou o artifício legal a que muita gente deitou mão  na altura, de ser declarada uma qualquer profissão, pela qual ela descontasse para a Segurança Social, a fim de que pudesse ter no fim da vida, uma pensão própria, garante de uma almofada de sobrevivência mais aconchegante.
Era vulgar, alguém declarar ser entidade patronal de costureira, ama de crianças, empregada doméstica ... qualquer coisa... Não viria mal ao mundo, e contornava-se a situação.
Muita gente o fez.  Também lho sugeriram. Mas a minha mãe, presa a uma honestidade absurda, um escrúpulo absoluto e a uma lisura de atitudes, sempre o recusou.
Se o não era, não o podia declarar !!!

E assim fomos indo.
Chegámos ao hoje.  Hoje, em que a minha mãe, nos seus 94 anos, acamada, com fraldas em permanência, medicação em permanência, e toda a panóplia de requisitos inerentes a uma recta final muito complicada, não faz mais face a um orçamento de despesas exuberantemente acima das suas possibilidades.
São os apoios técnicos necessários ( cama articulada, cadeira de rodas, cadeira de banho ... são as fraldas, são os resguardos, os pensos de incontinência ... é o oxigénio, são os sucessivos balões de soro, são os suplementos alimentares ( porque se alimenta mal ), são as vitaminas e toda a gama de análises e medicação,  que diariamente "pingam", de acordo com as flutuações do seu estado de saúde ...
É um começar e não acabar de problemas !
E sem médico de família atribuído ao meu agregado familiar  ( por saída por duas vezes do médico existente ), é uma odisseia, fazer face a esta situação !
É óbvio que a minha mãe teve que coabitar comigo.

Decidi então pedir a comparticipação, a que o utente tem direito, se atestado medicamente, para as fraldas e material afim.
Como a minha mãe não se desloca ao Centro de Saúde, e domicílios, só para Julho ( ! ), fui eu em sua representação, para a fila de marcação de consultas para médico de recurso, pelas 5 h da manhã.
E já não fui a primeira da fila ( !!! ).
Às 8 h são distribuídas as senhas para as consultas, que se iniciam às 9 h.
Contudo, o médico que me foi destinado, parece ser useiro e vezeiro em começá-las mais tarde.
E assim foi. O dr. António Semedo, iniciou-as às 10,30 h.
Expus-lhe  a situação, mas o médico recusou assinar o documento que me permitiria pedir o auxílio económico, argumentando que não conhecia  a utente, E certamente é-lhe "difícil e altamente comprometedor", envolver o seu bom nome,  numa declaração, em que uma velha de 94 anos, acamada, com uma pensão de pouco mais de trezentos euros,  pede ajuda para custear as fraldas de que precisa !!!...

As lágrimas caem-me.
Sinto-me a mendigar algo a que tenho direito, num país, onde pago os meus impostos, onde desconto religiosamente tudo o que inventam ... e onde, se o não fizer, terei as inerentes consequências.
Enquanto isso, os mesmos, sempre os mesmos, saem incólumes de processos irregulares, não transparentes e fraudulentos ... beneficiam de tratamento de excepção e troca descarada de favores ...
Mexem e remexem em negócios sempre proveitosos, de milhões, tantos milhões que nem sequer conseguimos imaginar o que sejam ... nós, que mensalmente temos alguns euros para nos bastar !...
E nada acontece !...

Houve que conseguir outra consulta, outro médico ... e só não outras 5 h da manhã, graças à boa vontade e compreensão de uma administrativa do Centro.
Desta feita, uma médica passou a declaração que deverá então ser entregue na Segurança Social, para apreciação e posterior deferimento ou indeferimento.
Ainda assim, há  que tornear outro "gravíssimo obstáculo" : não pode ser dito que a minha mãe vive agora comigo, porque então, muito embora a minha mãe mantenha ainda a sua casa de que paga renda ... água, luz, telefone ... passa a integrar o meu agregado.  E como eu tenho uma pensão "milionária", o pedido será indeferido !!!...

Mas para entregar o formulário na Segurança Social, também o não posso fazer dirigindo-me simplesmente à instituição.  Não !  Tenho que fazer uma marcação prévia, por telefone, aguardando então a respectiva marcação ( por acaso apenas ( ! ) 12 dias depois ... )
Entretanto, deverei continuar a aguardar no remanso da casa, que me informem da decisão tomada.
Se for "sortuda", eles ajudam-me ... Tenhamos esperança !

A Câmara Municipal da cidade onde vivo, dispõe de um Banco de Ajudas Técnicas, que acorre às necessidades dos autarcas mais carenciados, de acordo com as suas dificuldades ( devidamente comprovadas ), e desde que  as tenha disponíveis.
Dirigi-me por isso,  à Junta da Freguesia a que pertenço, para expor de novo a situação, à Assistente Social.
Mas para tal, a marcação da entrevista ( 3 semanas depois ), é feita apenas às sextas-feiras, em número muito limitado e por ordem de chegada.
Por isso, às 6 h da manhã já aguardava à porta da Junta, e antes de mim, já a D.Luisa, uma infortunada caboverdeana, esperava também.
Aproveitou para me contar todas as desditas da sua triste vida, enquanto dividíamos o degrau da soleira da porta, até que às 9 h nos atendessem no interior, entretanto obviamente encerrado.
Já não havia em pé, posição que nos valesse, e o vento, nesta terra de vento frio e desgovernado, açoitava-nos sem piedade.

Mais formulários, mais fotocópias comprovativas, mas o processo só será desbloqueado, depois de eu exibir o comprovativo da entrega prévia na Segurança Social, o que ainda aguarda para acontecer ....
E ... se  tiver sorte. e a Câmara as tiver disponíveis na altura, então talvez possa usufruir do empréstimo de  uma cadeira de rodas e uma cadeira de banho, porque a cama articulada, que se impôs como absolutamente premente quase de um dia para o outro, já eu tive que alugar de imediato.
Pela instalação paguei 90 euros e por dia, pago de aluguer 5 euros !!!

Talvez entretanto nos saia o euromilhões ... Quem sabe ?!

Precisei desabafar !

Esta experiência dolorosa, esta via sacra interminável,  mostrou-me lados inimagináveis da vida.
Lados que pensamos conhecer, mas que na verdade vão muito além do que lemos, do que ouvimos, do que supomos.
Por outro lado, teve o mérito de me desencadear um misto de sentimentos e emoções, também difíceis de definir : solidarizou-me de alguma forma com a mole de cidadãos deste país, que se sentem ( inevitavelmente ) desprotegidos por uma estrutura social que não responde às necessidades mais prementes, aos direitos mais legítimos ... a protecção à saúde.
... num país da Europa, que se quer alinhada com o primeiro mundo !!!
Depois, mostrou-me como é "pedir", junto dos órgãos e das pessoas com capacidades decisórias.
Percebi como é, face a arbitrariedades, injustiças ou insensibilidades, calar um grito, suster um oportuno murro na mesa ...
E senti humilhação, porque é de humilhação mesmo que se trata, por mim e por todos os meus concidadãos que diariamente enfrentam estoicamente esta teia musculada ... quase inultrapassável, na exigência simples dos seus legítimos direitos.
Engoli e engulo ainda, uma revolta incontida, face à desumanização e à indiferença generalizadas.
E digiro cada vez pior, as assimetrias sociais inaceitáveis, que o poder económico determina : os cidadãos de primeira e os cidadãos de segunda, sendo que todos deveriam ser olhados e tratados igualitariamente, pelo estado dito social, que nos governa.

Tenho ainda que referir, por justiça, que no meio de todo este percurso acidentado, e apesar de tudo, de quando em vez, ainda se tropeça em profissionais competentes, interessados e solidários, que se esforçam, mesmo esbarrando em todas as dificuldades que o sistema impõe, e que colaboram com seriedade.
A eles, sem me lerem contudo, presto a minha homenagem.  Bem hajam por isso !

Seguramente não sairei melhor deste processo.  Nem como cidadã nem como pessoa.
Ao contrário, penso que tudo isto está a despertar o que de pior há em mim, provocando-me clivagens irreversíveis a nível pessoal, familiar e social.

Precisei relatá-lo, não só porque fazendo-o, alivio um pouco, mas porque ao escrevê-lo, tento descortinar uma qualquer lógica ... se a houvesse.
Talvez também, com este depoimento, dê eco a muitas vozes, por aí tão desesperadas, desiludidas e perdidas quanto eu !!!

Anamar