O Alentejo tinha deitado para a sesta.
A quietude e o silêncio haviam descido à terra. As sombras projectavam-se no chão, e era nelas que o gado que pastoreava se acomodava, na fuga ao calor, insuportável àquela hora ...
A boca de uma fornalha acesa !...
Os únicos verdes ainda viçosos que assomavam, eram das vinhas e dos campos de girassol. Tudo o mais era um braseiro de castanhos, ocres e amarelos queimados.
O restolho e o feno ressequido, eram o que restava das searas já ceifadas.
Os ninhos das cegonhas, agora totalmente abandonados, continuavam encarrapitados nos postes de alta tensão e no alto das árvores esquálidas.
Surgiam-nos aqui e além, charneca fora, lembrando que ali houvera vida há tempo atrás.
Era então Primavera, e o Alentejo, verde e florido ...
Não há sons na paisagem. A dormência abate-se.
O Alentejo respira paz ...
Não mexe uma folha, e apenas o som dos besouros e abelhões que parecem cirandar sem destino, atravessa a planície. Até as cigarras deram uma trégua.
Também os pássaros recolheram. Voltarão, quando a tarde descer e alguma brisa fresca abençoe a terra.
E do chão sobe aquela coisa que é berço, é colo, é útero e é eco ...
É um apelo sem voz ... é a terra que fala ... é o resfolegar do silêncio e da solidão ...
Não se explica ... só se sente !
É como um retorno aos braços da mãe ... É como o abraço do amante ausente. É o ombro, é o afago, é a carícia no cabelo, quando a brisa mansa sopra do montado ...
É um convite ao embalo, como se uma canção de ninar nos desse arrego, nos convidasse a deitar a cabeça e a repousar ... simplesmente a repousar na eternidade, porque o Alentejo é eternidade ...
Volto lá, sempre que o peito sufocado precisa de ar.
Volto lá, sempre que a "fome" me aperta as entranhas, sempre que o coração mingua no peito e a alma fenece e me atormenta.
Volto lá, quando preciso reencontrar as raízes, reavivar as memórias, conferir os espaços ...
Quando preciso achar cada esquina imutável, no sítio exacto onde a deixei.
Quando preciso escutar o som das gerações, no lajedo das calçadas.
Quando preciso rever as sombras que permanecem, ouvir a voz dolente e cantada de todos os que foram... Porque todos já foram ...
Quero encontrar a minha avó com o cabelo em carrapito, avental à cintura, com o negro perene da viuvez ... a chamar-me, ao portão ...
Quero encontrar o meu avô, comigo pela mão, a caminho do chafariz, na hora de dessedentar o Carocho ...
E a minha tia a migar as sopas da açorda, na mesa de pedra ... e o pratinho da romã para o lanche ...
Quero o queijinho seco e as azeitonas retalhadas, roubadas aos punhados, da "tarefa" da despensa, e comidas às escondidas, no terreiro do quintal, por onde as galinhas ciscavam ...
Quero os pirolitos fresquinhos, da cesta mergulhada no poço, junto às avencas que cresciam espontâneas, nos rochedos do fundo ...
E quero que me façam de novo as tranças, me vistam o bibe, e me deixem jogar à "faia", riscada no largo de terra batida em frente à porta ... ou ao berlinde, na sombra das árvores de copa farta ...
E nunca chegam para saciar o que tenho aqui dentro, as horas que por lá fico ...
Nunca mitigo esta fome de reencontro.
Nunca preencho os espaços devolutos do afecto.
Nunca recupero os pedaços da minha identidade, para que possa reconstruir-me outra vez ... que não seja já, hora do regresso ...
E o Alentejo lá fica ... de novo, à minha espera.
De novo, aguardando que a voz da terra ecoe rumo ao horizonte, e me alcance ...
Aqui, deste lado do Tejo ... aqui, nesta terra de ninguém ... aqui, onde a orfandade dói mais !!!...
Não é uma despedida. Não é um fechar de porta. Não é uma partida ...
É, e será sempre, um "até breve" !...
Anamar