quarta-feira, 18 de novembro de 2015

" COMO UMA CONDENAÇÃO "





Cortavam a relva na praceta.
Os sons da rua chegavam-me ao sétimo andar, pela fresta da janela entreaberta, para que o resto deste sol de Outono ainda luminoso e quente ( neste "intermezzo" de regra, de meio de Novembro ), me pudesse inundar a sala.
Breve chegarão os dias escuros, a chuva tamborilará na cobertura do terraço ou escorrerá pelas vidraças.  Breve Dezembro, breve Natal, breve um novo ano ...
E o pingue-pingue do calendário a jorrar dias, datas, anos, numa determinação impiedosa e tirana, sempre irredutível !

O tempo !...

Este tempo que não existe, a empurrar-nos adiante, implacável, na fila imparável em que nos seguimos ...
É uma fila silenciosa, de gentes silenciosas e submissas, em que ninguém ousa contrariar a "ordem normal" .
É uma fila cinzenta, de gentes descoloridas e cinzentas também, que carregam consigo o peso absurdo das memórias ... só das memórias.  Essa, a bagagem que transportamos, enquanto não somos atraiçoados ...
Fernanda Montenegro diz : " Não quero perder a minha memória, porque EU sou a minha memória "!...

A memória ... a nossa identidade, o que nos correlaciona, nos situa, nos refere.
E tão precária, tão a prazo, tão injustamente brincalhona, sempre a olhar-nos com ar de escárnio.
Senhora absoluta dos destinos, algoz de vida, manipuladora da existência ...
Joga de esconde-esconde, trapaceia vezes de mais, ludibria as vontades, desorienta o caminho !
Qual bússola descomandada, qual farol desactivado e imprestável, qual norte sem norte, a memória aliada ao tempo, cria mecanismos e circuitos viciados que conduzem o ser humano a estradas sem luz, a rotundas entontecidas, a túneis escuros sem saída !...

O desgaste físico do Homem, perturba-me, mas entendo que este, como máquina complexa que é, tem associada  a si um prazo de validade.  A deterioração das peças que a constituem parece uma inerência evidente a qualquer mecanismo de utilização permanente.
As engrenagens emperram, os rolamentos enferrujam, os amortecedores tornam-se ineficazes, o envelhecimento instala-se ...
O coração da máquina e os veios de transmissão bloqueiam.
Parece objectivo, compreensível, aceitável ... inevitavelmente !

Agora, a degenerescência do seu centro de comando, a delapidação do seu património essencial, a falência da matriz diferenciadora enquanto ser espiritual, emocional e sensorial que é,  a perda da sua herança pessoal única e intransmissível, a desestruturação do seu arquivo referencial no tempo e no espaço ... são dolorosas, injustas e violentas facécias do percurso a ser trilhado pelo ser humano, com que nos  confrontamos, que não consigo entender, aceitar, sequer conviver pacificamente ...
... provação a que ninguém deveria ser condenado a  sujeitar-se um dia !...

Anamar

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

" UMA CARÍCIA NO PEITO "




E o S.Martinho que não nos falha !...

Se há santo em que tenho obrigação de acreditar, é mesmo nele !
Ano após ano, por mais "entruviscada" que esteja a situação, por maiores negaças e caras feias que o céu, as nuvens e o sol nos venham fazendo ... é inevitável.  Tudo dá a volta, e este "break" climatérico sempre se instala.
Os dias azulam outra vez, a temperatura ameniza, a Natureza deslumbra-nos de novo com o seu traje de gala ...
E de repente apetece passear pelos caminhos, ora cobertos de folhagem dourada como os dias que fazem ...

São envolventes.  Amanhecem transparentes  e diáfanos.  Juram permanecer sempre assim até que a noite suba.  Têm um sol ímpar.  É particular, distinto, indizível !
É um sol que fecha definitivamente a porta às estações luminosas e amenas que já foram, e abre as portadas às sombras, à interioridade, à penumbra dos dias curtos, agrestes, cinzentos e entristecidos que hão-de chegar ...

É um sol que não se define.  Só se sente!...
Porque não há vocábulos no léxico, que nos digam com perfeição, como ele é, de verdade !
Lembra um colo, lembra a doçura de um cachecol em dias frios ... a fofura de um novelo de lã !...
Tem a cumplicidade de um beijo longo, tem a envolvência e a segurança de uns braços queridos ...
Penetra e entranha, numa devassidão consentida ...
Aquece as fímbrias da alma e adoça o coração, com generosidade ...
Dá-se, sem perguntar !...

E depois, tem o brilho resplandecente das auras santificadas, em capelas penumbrentas.
Pinta-se no arco-íris, com tonalidades insuspeitas, e que nenhuma paleta conhece ...
É claro, luminoso ... afaga.  É um sol de despedida e de carícia, que oferece o melhor de si antes de partir ... para que se retenha na memória ...
Tem  o  cheiro  das  castanhas  que  estalam  no  assador,  e  o  alaranjado  dos  diospiros  maduros ...
Tem o calor macio que aquece os velhos silenciosos dos bancos do largo ... adormentados, com a "pirisca" esquecida no canto dos lábios ... inverno à espreita, na esquina da vida !
Tem impregnados em si, os acordes de Chopin, que ecoam em sonatas embaladoras, por claustros imaginados ...

É um sol fugaz, um sol em trânsito, um restante sol de privilégio.
Breve partirá e deixará o sabor  promitente de um regresso futuro ... para quem estiver ainda por aqui !...

Será exactamente quando o S.Martinho voltar a despojar-se da sua capa protectora, e com metade dela, cobrir outro pedinte do caminho ...
Exactamente quando os dias azularem de novo, quando as alamedas se atapetarem saudosamente,  de folhas douradas ...
Exactamente quando "tudo der a volta" ... e nos deitar p'ra dormir ...
Exactamente quando  regressar o tempo das castanhas e a prova do vinho novo ...

Exactamente quando  voltar a ser  Novembro outra vez !!!...




Anamar

sábado, 7 de novembro de 2015

" UM IRRELEVANTE POEMA DE AMOR " - Irrelevante ... como quase todos !...







Os mistérios da minha cama
guarda-os em segredo, o mar
Nas rendas da maré baixa
vens de barco a navegar ...
E o meu corpo que te espera
que te anseia e adivinha,
fecha os olhos e adormece
quando em teu peito se aninha ...
O vento sopra baixinho,
seja nortada ou suão,
promessas do teu amor,
na concha da minha mão...
os gemidos da savana
e o silêncio da caatinga ...
Adoça-me o coração
a água fresca da moringa
que trazes p'ra me prendar ...
quando vens na maré baixa
dentro de mim, naufragar ...
Eram vales e planícies
eram grutas, eram montes ...
foram estradas e caminhos
foram florestas e fontes,
que sabias ... percorrias
pé ante pé, com vagar ...
os mistérios da minha cama
guarda-os em segredo, o mar !...
E ...  amor, vejo os teus olhos
na água pura das nascentes ...
e o fogo do teu olhar,
no vermelho dos poentes
que me foge, que adormece,
que me morre a cada dia ...
Não partas de mim, amor ...
Não me mates de agonia !...

Anamar

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

" OS VELHOS TAMBÉM SE ABATEM "





Sendo que este meu espaço também é informativo, divulgador, cultural, deixo hoje aqui um texto extraordinário, brilhante mesmo,  de Pedro Ferro, alentejano, jornalista e professor, que é totalmente meritório de ser partilhado, mormente com o público do Alentejo, interessado nas suas gentes, tradições, costumes, cultura e sentires.
Ele retrata com total e impressionante fidelidade , uma realidade que nós, os que vivemos o Alentejo no coração e na alma, conhecemos claramente.

A divulgação deste texto, prende-se a uma justa homenagem que Francisco Martins Ramos, também ele alentejano  e  professor catedrático de Antropologia da Universidade de Évora, lhe prestou.

Aqui vai  :

" Os velhos também se abatem "

"Os velhos alentejanos dão muito jeito.  São indispensáveis a cronistas com défice de imaginação e a fotógrafos artísticos carentes de reconhecimento.  Ficam bem nos desdobráveis turísticos : dão vida a uma paisagem desolada ; salientam, pelo contraste sombrio, os recantos caiados onde acoitam a pasmaceira.  A certos turistas da cidade satisfazem a fome acéfala de exotismo : são uma espécie rara em ambiente natural - como o tartaranhão caçador ou a abetarda.

Fazem um jeitão às alcateias políticas de todos os quadrantes e matizes - sobretudo quando, prazenteiramente, o país vai às urnas, como diria Eça.  Não há velhos mais fotografados, nem mais falados.  Não há velhos mais usados.
Sem eles o Alentejo talvez não passasse de um acidente geográfico, como um dia ironizou o então presidente de Câmara Francisco Felgueiras.  Com estes velhos, o Alentejo é um Parque Jurássico de matriz spielberguiana.

Mas estes velhos têm um único e gravíssimo defeito : não podem ser conservados em azeite.
Quando morrem, perde-se o molde.  É lamentável.  O Alentejo não tornará a ter velhos assim.
Povoam paragens de camioneta.  Pasmam de tédio pelos largos.  Contam "casos".  Lembram "partes".  Remoem "passagens".  Histórias que nenhuma História há-de escrever.  Mastigam um tempo que só a eles pertence e onde se instalam numa cápsula do passado.
Os velhos farejam no ar o crescimento das searas.  Adivinham nas viragens do vento o tempo que vai fazer.  Sentem o Suão e a geada nos ossos.  Têm os olhos cansados e pontadas no coração.  Sabem que a morte não tarda : " Eu sou devedor à terra / a terra me está devendo / a terra paga-me em vida / eu pago à terra em morrendo " - dizem quando se põem a cantar.

Chupam cigarros enrolados à mão.  Cigarros grosseiros como tochas, enrugados como pernadas de sobro.  Sopram um fumo negro, pesado, gordo como um chouriço espanhol, capaz de ser talhado a riscos de navalhinha petisqueira.
Os velhos ficam horas a fio com o mesmo cigarro colado ao canto dos beiços : pedacinhos de mortalha de papel, como esfarrapados pendões de paz, acenam-lhe dos lábios sempre que os queixos se mexem em bocejos cavernosos.

São velhos : sabem de cor e salteado todas as manhas da planície e das covas das azinhagas.  Isso autoriza-os a serem opiniosos.
Ficam envinagrados se os netos os tratam por tu - é camaradagem a que se não habituam, preferindo o respeitoso tratamento de "vossemecê".  Franzem os sobrolhos quando vêem as netas beijar os namorados e dizem "tomara que casem" - só para que não tenham de assistir a tanta falta de vergonha.
Mas ficam babados com as mini-saias e dói-lhes a alma e o resto, de já não terem a tal idade.
Lá na sua ideia, estão convictos de que os moços de agora não passam de uns "bananas" - uns "empalermados" sem nervo, nem heroísmo para apanhar, ali ao alcance da mão, o que no tempo deles tinha de ser conquistado a golpes manhosos, escuridão e alguma cumplicidade : " Ficávamos sentados no chão. / Imóveis. / Só as famílias puxavam cadeiras para as portas. / E conversavam coisas antigas e misteriosas. / ( ... ) Decerto / foi numa noite dessas / que eu pus os dedos sobre o teu peito / e senti os teus seios nascerem debaixo das minhas mãos ", Manuel da Fonseca.

Os velhos dormitam no barbeiro.  Quando despertam tornam ao largo, ao abrigo caiado da parede, à paragem da carreira.  Um pouco antes do sol-posto marcham-se a caminho de casa em busca da ceia e da amaga, a deita.
Lá em casa, os velhos ainda fazem menos do que quando estão aos cantos a apanhar o "olhinho do sol ".  Acham que já fizeram tudo o que tinham a fazer : nem o chapéu tiram da cabeça. Jantam com ele puxado para a nuca, com a soberba de um rei coroado pelo Papa.  Limpam a boca às costas da mão.  E, se as mulheres os contrariam, vão-se deitar sem comer - por caturrice, só para lhes afirmarem que, em 40 e tal anos de casamento, continuam a ser eles os homens lá de casa.
O único gesto a que os velhos se permitem, depois de engolida a ceia, é fechar e devolver à algibeira a navalhinha de lâmina gasta e afiada.  A mesma com que cortaram o moreno pão de trigo às sopas miúdas.

Os velhos são mestres de escárnio e da má-língua.  São "escarneadores" e sabem fingir como ninguém uma incredubilidade que não têm.  Na verdade são cépticos fundamentalistas : à televisão dão o benefício da dúvida, mas dizerem-lhes que o homem foi à lua, é estarem a "mangar" com eles.
São rudes.  Casmurros como mulas.  Venenosos.  Irónicos.  Ásperos como toiros eriçados de picos.  Amargos como piorno.
São frágeis como colmos de trigo.  Ternos como a água dos açudes.  Graves como os abismos da terra.  Altivos como faias.  Solitários como águias.  Sábios como poucos - a perpetuar um tempo e uma geografia da memória que fatalmente lhes escapa das mãos de barro seco.
São o próprio tempo das palavras.  O tempo grande : herdade semeada de outros tempos, sem raízes para no tempo ficar.
Com a razão dos anos que têm, os velhos cospem nas calçadas todo o desprezo pelos tempos modernos.  E quando ficam viúvos, sem trambelho para as coisas domésticas, penduram-se na trave da cozinha.

Afinal, do Alentejo, não são os novos que desaparecem.  Os velhos também se abatem.  Ao efectivo. "

"Público" - 28 de Novembro de 1993

Anamar