segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

" AS GUARDIÃS "




" Em Janeiro vai e sobe àquele outeiro.  Se vires terrear põe-te a chorar.  Se vires verdejar, põe-te a cantar "

E verdejava !
O Alentejo estava coberto de um veludo lindo e esperançoso.  O gado pastoreava, relaxado, colhendo o sol luminoso da manhã.
Era uma cama fofa e adormecida, a que os olhos abrangiam, naquela terra sem limites nem horizontes.
As azedas aguarelavam os campos, como se o sol houvesse pincelado a terra.  O resto ficava por conta do ouro das macelas, do pintalgado dos rebanhos e das manadas preguiçosas, adormentadas no calor tímido de Inverno.  Poucas flores, ainda ...
As garças boieiras, as pegas, os grous, as abetardas, uma ou outra rapina planando alto, glorificavam o dia, e os chocalhos ecoavam na planície.  Imperava o silêncio misericordioso.
Até a brisa passava pé ante pé, para não perturbar tanta perfeição !

Abro o primeiro sorriso, quando as vejo.
No cimo de um poste de alta tensão, olham sobranceiras, a planície, aos seus pés.
Estas guardiãs do Alentejo ainda vão ter que me explicar o que fazem por aqui, fora de época, neste Janeiro frio e chuvoso.

A cegonha é senhora da charneca ... Ela é dona da planície ...
Como eu, ela é fiel e retorna, sempre retorna ao lugar onde nasceu, onde as raízes a prendem ...
O mesmo poste, a mesma árvore, a mesma chaminé de tijolo erguida lá longe ... o mesmo telhado de monte  abandonado ... as mesmas penedias junto à albufeira ...
Desta vez não tiveram pressa de partir, parece.
Foram ficando, de mansinho, como que esquecidas de outros rumos, de outros céus ... de outros destinos !...

Curiosamente hoje, o Alentejo foi uma vez mais, hospitaleiro.
Recepcionou-me  com  um dia primaveril, com céu radioso, azul e limpo, e um sol doce a envolver-me ...  Parecendo  dar-me  as  boas  vindas.   Seguramente  a  dar-me  as  boas  vindas !

Tanto já escrevi sobre o Alentejo, e sempre tanto tenho para dizer ...
Esta terra, afinal, é "aquela" terra ...
É o meu chão, é o meu ar, é a minha paz e repouso ... Iguais aos que cá deixei há muitos anos.
Calcorrear as suas ruas, nunca é exaustivo.  Perder-me nas mesmas igrejas, nunca é fastidioso.  Olhar os mesmos sítios, é simplesmente voltar a casa.  Dobrar as mesmas esquinas, é um gostoso chamado ao passado, ao meu passado que retorna ...
E depois, é como se fosse um reencontro com todos os que me precederam no caminho, e que estão por lá ... que eu sei !
A Évora de então, sempre se faz presente, como colo de família que não renega, como berço de sonos embaladores, como abraço de mãe a filhos saudosos !

E é sempre um privilégio voltar.
Voltar e perceber que tudo está lá, nos mesmos lugares, intocado.  Simplesmente como uma arca de enxoval que se desvenda, com as mesmas rendas, os mesmos brocados, a mesma alfazema de perfume, a genuinidade do mesmo linho ... apenas amarelecido pelo tempo !...

Évora sempre me acolhe.  O Alentejo sempre me abençoa !...

Há um recado impresso em cada esquina, há um memorial em cada parede adormecida, há uma história reescrita em cada sopro de vento !  Uma espécie de saudação ao  regresso  do  filho  pródigo, uma  espécie  de  brinde  aos  afectos, uma  espécie  de  elegia  às  memórias  idas ...
É sem dúvida uma doce viagem no tempo.  Um retorno a "muitos tempos", uma busca nas tatuagens que os anos teimam, em vão, esbater nas vidas !...
A estrada segue a direito, a planura não ergue fronteiras.  Além daquele outeiro, há mais chão, mais sonho, mais vida ... Não há mais fim ...

E o Alentejo desenrola-se infinitamente aos meus olhos.
Finalmente o coração aquieta-se, e eu sinto-me em paz !...




Anamar

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

" AVULSAS ... "




A tarde caíu melancolicamente lá p'ras mesmas bandas ...
Talvez um pouco mais para a esquerda, lembrando que é Inverno e o sol anda mais baixo.  Sim, porque hoje ele apareceu, aqueceu e iluminou, embora tímido, embora "envergonhado", como "soi dizer-se".
Envergonhado ? Por que se envergonharia o sol, se sempre aparece, mesmo depois do cinzento dos dias, da negrura da vida ?
Por que deveria envergonhar-se, se a chuva deu tréguas e a placidez de uma tarde, eu diria outonal, nos aquietou a alma ?!...

Ao meu lado, Vangelis, tão aconchegante quanto a tarde que desceu ... embala.  Embala e transporta o pensamento para lá de um horizonte que recusa fechar-me o sonho.
Na ramagem do plátano despido, um pássaro em viagem de regresso, mostra uma silhueta já negra, recortada no escurecimento do céu ... E lança na aragem, as últimas notas do dia.

No Facebook, ainda aberta, a página da Mané ... colega, conterrânea, amiga  de  meninice, do Liceu, naquele berço que não me sai da alma ... lá longe, no Alentejo  ...
Aberta  ainda... porque ironicamente, a vida não lhe deu tempo de fechá-la, seguramente ...
Tão cedo se foi, tão cedo partiu, que a porta ficou entreaberta ...

Ironicamente também, porque estava destinado, parece,  que muita vida haveria de correr desde então, e que só nos "encontraríamos" tantos anos depois, que já não houvesse  tempo  de  nos encontrarmos ...
Assim ... para trocarmos  apenas  aquele  abraço !...

Fica a memória.  Sempre nos sobram as memórias, as recordações ... a saudade.  Que é o que fica, depois de tudo o que parte !
A precariedade da vida, que poucas vezes aceitamos considerar ... como "imortais" que quase nos julgamos ...

E depois, é simplesmente assim : uma tarde que cai  melancólica,  num dia de Outono, feito presente em tempos de Inverno ... Vangelis que nos transporta pelo éter, além do momento, na perenidade do ser ... um pássaro nocturno que despede o dia ... Évora, lá longe, com um céu escuro  pontilhado de estrelas, no recorte da Sé, no interior do nosso  coração  ... e frio, aquele frio gélido que nos percorre as veias e nos garante o chão que pisamos, como nosso ... além da eternidade !...

Anamar

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

" HOW CAN I GO ON ?... "



" A saudade é uma tatuagem na alma ... Só nos livramos dela, perdendo um pedaço de nós " ... diz Mia Couto.

A saudade é uma raíz que se afunda, é um espinho que se encrava, sobre o qual a pele se refaz, cobrindo-o, fazendo de conta que não existe mais.
Mas ele continua lá ...
Vai sumindo à vista, mas não dorme nas profundezas do terreno encontrado.
E enquista.  Forma um corpo estranho com o qual temos que conviver, dolorosamente ...
Buscam-se panaceias para atenuar o incómodo, usam-se mezinhas para aplacar a dor.  Mas não adianta, ele continua lá ...
Acordamos com ele e dormimos com ele !

Assim é a saudade.
Tem dias em que dói mais, tem noites em que não nos dá tréguas.  Como um fantasma, deambula, vai, vem, judia da nossa angústia ... mas instala-se ... como o espinho !  Implacavelmente !

É uma tatuagem, de facto.  Extirpá-la, se fosse possível, arrancar-nos-ia um pedaço.  Amputar-nos-ia na alma, a nossa essência enquanto seres humanos !
Mas acredito que não.
A saudade persiste.  Mesmo o tempo, a arma poderosa que aparentemente tudo resolve, a não arranca de dentro de nós.
Então, tentamos sobreviver-lhe.  Fingimos até para nós mesmos, que a ultrapassámos e encontramos  mil justificações para a erradicar do nosso coração ... procuramos argumentos objectivos, pragmáticos, racionais, que justifiquem não sofrê-la ...

Mas como  um ladrão de emboscada, salta sempre quando menos esperamos, da primeira esquina, e impõe-se-nos, invade-nos, devassa-nos e retira-nos a esperança de viver.
Como uma recidiva de doença grave, é cada vez mais agressiva, cada vez mais destrutiva, espantosamente agigantada, como que reforçada pela incubação dentro de nós ...

Como continuar adiante ?
Como readquirir a normalidade possível ?
Como reaprender, uma e outra vez, a caminhar ?
Como fazer de conta uma e outra vez, que nos tornaremos imunes à devastação, ou que iremos inteligentemente saber viver com ela, geri-la nas nossas emoções, exorcizá-la, sobreviver-lhe, tomando nós as rédeas dos sentimentos ?!
Como acreditamos que finalmente temos dentro de nós,  argumentos de vida mais e mais poderosos, válidos e determinantes ?!
Como se os sentimentos admitissem regras, disciplina ou canga !!!

E os anos passam e vulnerabilizam-nos em escalada.
E em vez de nos termos tornado hábeis e ardilosos, prevenidos e couraçados face às intempéries ... não !
Parece sim que ficamos mais desprotegidos, mais expostos, menos defendidos ... menos capazes de a enfrentar.
A experiência, afinal, não nos ajuda, a inteligência também não, as manhas dos caminhos nunca servem para a vez seguinte ... e o cansaço, o cansaço real, esse, não se compadece nunca !...

E aos "trancos e barrancos", como um puzzle a que faltam inexoravelmente peças, vamos indo ...
ou confundindo-nos, pensando que vamos ... sem que afinal nunca abandonemos o mesmo lugar ... simplesmente !...

Anamar

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

" AINDA HAVERÁ PRIMAVERAS ! "






As festas terminaram, felizmente !
Esta coisa de terem que se viver por calendário, sejam ou não adversas as condições momentâneas de cada um, de alguma forma, irrita-me.
Mas tudo bem, passaram, e aquele desiderato que se ouve cada vez mais na boca das pessoas ... "oxalá chegue Janeiro, rápido", atingiu-se.
A "síndrome das festas" que parece já ser fenómeno com autoridade comprovada, estará ultrapassada.

A vida segue, desenrola-se dia após dia.  O tempo atmosférico não está lá essas coisas ... e desenvolve-se um inevitável clima introspectivo, de análise e maturação, que se prende com tudo e com nada, com o que nos rodeia e acontece, com esta apregoada época de balanço ...
De facto, rigorosamente como os saldos, também em época certa e segura, lá vem essa onda de "balança" ... essa onda de balança e de balanço, em que somos atirados, queiramos ou não, para alguma reflexão mais pausada, lenta, degustada, ao ritmo da pausa que o tempo das festas nos concedeu.

E reflectimos ...
Eu reflicto ... sobre como cheguei aqui, sobre a que sou aqui e agora, moldada, definida, caldeada em tudo o que tem rodeado a minha existência nos últimos tempos.
Sim, porque eu considero que "os últimos tempos", têm de facto sido, p'ra mim, uma bigorna de crescimento, uma bitola de aferição de limites, de capacidades, de resistência. Uma prova com barreira de fogo !
É hora de me perguntar o porquê de ver a vida, hoje, com outros olhos.
É hora de parar e testar o meu grau de exigência real, com tudo e com todos.
É hora de definir claramente para mim própria, o que quero, o que recuso, no que aposto, o que exijo.
E é hora de perceber que o tempo urge ... e que é hora de ser "hora" ...

Não dá p'ra cair no marasmo, aparentemente cómodo. Não dá p'ra me indiferentizar mais, perante o que me resta no caminho.
Chega de rodar em rotunda, chega de encolher de ombros, chega de indecisões no percurso.
Seja qual for, tem que ser escolhido um ... claro, aberto, franco.
Um caminho com luz, desimpedido de silvas que me tolham os passos, sem excessos de vegetação que o cerrem, um caminho objectivo, sem hesitações ... decidido ...
Porque é "inverno", o tempo urge, e não se compadece com  perdas pelas veredas ...

Hoje pressinto-me uma pessoa mais dura, mais amarga, menos esperançosa.
Hoje sinto-me com tolerância zero face a muitas situações com que me confronto. Que sou obrigada a decidir. Que sou impelida a escolher.
Sinto que talvez já não seja qualquer vendaval que me derruba. Porque escolei as intempéries ... muito !
E de alguma forma encasulei-me numa carapaça, que foi obrigada a ser mais e mais, resistente.
Hoje, já poucas coisas me surpreendem. Menos ainda, me rasteiram !
Cresci. Tardiamente talvez. Demasiado tardiamente !
E todo o crescimento se acompanha de dores. Dores no corpo, mas sobretudo na alma e no coração !
Dores de amputação ... algumas.   Irreversíveis ... outras.
Dores de desilusões e decepções ... em cima de expectativas e sonhos.
Dores de perdas e dores de saudade.   De tanta coisa ... mas sobretudo saudade da inocência que ficou na curva da estrada, saudade dos investimentos esperançosos apostados em dias de amanhã ... saudades sobretudo da pessoa que eu fui ... Uma criança num corpo e numa alma de mulher !

Desajeitadamente, cheguei aqui.
Hoje, não sei exactamente o que AINDA quero.  Mas sei claramente o que JÁ não quero !
Hoje sei o que me devo, por uma questão de isenção e justiça,  p'ra comigo mesma !
Hoje sei que não tenho o direito de maltratar-me.  Não tenho o direito de me julgar com severidade excessiva, além daquela com que a Vida já me julga !
Sei que se me empenhar, desbravarei caminhos.
Sei que se acreditar, ainda terei Primaveras à minha espera. Penso que talvez o mereça !...

Hoje,  sei que tenho direito a ser AINDA feliz !...

Anamar

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

" IN MEMORIAM "



Já no seu finzinho,  2015 reservar-me-ia uma inesquecível surpresa.
Assim, do nada, caminhávamos já para a consoada, e mercê das virtualidades das tecnologias que por vezes nos adoçam a vida, chamaram-me de novo à "turma" ...
Eu explico ...

A Rita Laranjeira, um dos poucos nomes que ainda me fazia sentido na memória recuada, alguém de quem tenho fotos num álbum em casa dos meus pais, minha parceira, colega de turma e amiga escolhida então, pelos meus 12 / 13 anos no Liceu Nacional de Évora ... "encontrou-me" por aqui !

Saí de Évora ainda não tinha 13 anos.
Nessa minha cidade de coração, fiz a primária e ingressei no Liceu, que frequentei até ao fim do 3º ano.
Os meus pais rumaram então a Lisboa, e claro, o meu destino abandonou o Alentejo.
Abandonou fisicamente apenas, porque na alma e no coração, sempre continuei ligada a esse chão.
Essas pedras, essas sombras, esse céu que paira sobre Évora e todas as recordações que persistiram, da minha meninice e início da adolescência, continuaram presas à cidade que me viu crescer ... apesar dos laços familiares, por lá, serem inexistentes.
De facto, sempre que rumo ao Alentejo, os "meus sítios" são romagem obrigatória para que aquiete o espírito, numa viagem eternamente gratificante de recolhimento e afecto !
E sempre me emociono, deambulando por ali ... buscando o eco dos meus passos nas calçadas, nas arcadas, nas travessas e alcárcovas ... Não tem jeito !...

Foi como se um baú tivesse então sido reaberto ...
A poeira foi dissipando, as lembranças aclarando aos poucos, os nomes associados a rostos difusos, corporizando-os vagamente ...
E como numa busca espeleológica, fui desencantando pedaços, fragmentos, histórias, peças de um puzzle que foi retomando forma e conteúdo.
E fiquei extremamente feliz !
Não era uma viagem no tempo, mas foi uma viagem na minha história !

Agora, a Rita associou-me a este vosso / nosso Grupo, dos Antigos Alunos do Liceu Nacional de Évora,  de que não quero mais perder-me.
Farei questão que ele me redima no caminho transcurso, farei questão que ele reabilite os afectos esparsos, farei questão que ele me conduza outra vez à "família" ...

Foi também, através dele, que tomei conhecimento de algo muito triste.  Alguma coisa que me parece um pouco "contranatura" ... um pouco "surreal" ... injusta ... quase incompreensível ...
A Mané, a Mané Rocha à época, curiosamente um dos nomes que me permaneceram, um rosto que com algum detalhe me ficou na mente ... foi embora !
Partiu antes da hora ! Deixou, antes de tempo, o lugar vazio na sala de aula !
Na sala, e nos claustros, e na fonte de pedra onde corríamos no jogo desvairado do agarra, e no campo de jogos, onde o "mata" nos afogueava os rostos e nos transpirava a alma ... até que a sineta tocava ...
A Mané, aquela menina de olhos grandes, de franja desenhada, de faces sempre coradas, foi colega escolhida, uma amiguinha de coração, fraternalmente eleita por mim ... nesses recuados tempos ...
Integrava aqueles que se escolhem, porque se escolhem ... porque é assim ... porque a vida tem razões que desconhecemos ...
Busquei os seus olhos na fotografia aqui exibida, já que a franja e a cor do rosto também haviam partido ... a destempo, sei-o bem !

Resta-me esperar que esteja onde estiver, a Mané esteja em paz !
Resta-me endereçar um abraço de profundo pesar, a toda a família da Mané Rocha, sendo certo que ela permanecerá para sempre nos corações de todos nós !...

Anamar