segunda-feira, 20 de junho de 2016

" TWO LIVES "



Está um laranja tão suave ao fundo, no firmamento !...
O sol já se deitou faz tempo.  Sempre o acompanho no seu percurso, até que mergulha nuns arbustos esparsos, lá longe !
É uma hora de recolhimento, mística, silente.
Invariavelmente, sempre sou acudida pelo mesmo pensamento : Quantos dos que o vêem dormir hoje, já não têm o privilégio de o ver abrir a pestana, espreguiçar e reiniciar uma outra jornada, amanhã ?!
Sabendo que sempre, desde os tempos imemoriais que a prosápia humana julga conhecer, sem falta, sem omissão, sem desvio ... ele cumpre o mesmo ritual ... o seu ritual de vida ! Todos os dias !

E como o ser humano é, de facto, ínfimo, nesta grandiosidade de magnificência indescritível !

Nas nossas curtas existências, quase sempre desvalorizamos, esquecemos, distraímo-nos do seu desígnio.
Como se o que deixámos hoje, seguramente, repegássemos intocado, amanhã ...
Num desperdício atoleimado e inconsciente, quase atrevido e provocatório, desafiamos e enfrentamos as leis da Natureza.
Como se nada mudasse e a permanência fosse um garantido princípio de vida ...

Ilusório ...  Nada em cada instante é imutável.  E tudo o que desperdiçámos ou delapidámos, na nossa triste inconsciência, jamais será recuperado, vivido, guardado .

Esta é uma angústia existencial que me atormenta, pois tenho perfeita consciência de ser das piores e mais relapsas alunas da Vida.
Penitencio-me, reflicto, analiso ... oh meu Deus, como analiso !
Chego mesmo a dar-me  ultimatuns ... desenvolvo processos de intenção, sérios e sinceros ... mas ...
Sei exactamente que este laranja do firmamento adormecido, que me deixou há pouco, foi único, irrepetível, particular ... singular .  Poderá haver muitos mais, mas já serão "outros" e não este !
E essa que eu serei então, também será outra, e não esta que hoje o olhou do alto desta janela !
E as emoções, os sentires, as esperanças, as dúvidas, as angústias ... ou tão só os pensamentos particulares e simples que me invadiram ... distintos também !
Este momento, este minuto, este lapso de tempo, terá sido único e exclusivo na minha vida, e fugazmente se terá desvanecido, sem volta !...

E teria sido tão importante que o tivesse esgotado, sorvido, me tivesse entupido com ele, em êxtase total, sem pressas, afobações ... apenas vivendo-o, saboreando-o como algo raro, justo na hora !
Teria sido tão importante que me tivesse empanturrado, impregnando-me da dádiva que é, simplesmente estar viva !...

Mas não !
Dou por mim quase sempre a viver a destempo.  Dou por mim a adiar a vivência plena das coisas para melhores dias, para melhores ocasiões, para alturas mais propícias ... para depois.
Numa espécie de corrida insana atrás do momento que virá, depreciando o que tenho.

Guardo memórias para ver depois, olhar depois, deliciar-me depois.
Guardo fotos, porque um dia terei tempo para um deleite sem pressas.
Arquivo testemunhos antigos, porque chegará a vez de os usufruir com toda a disponibilidade emocional ... Um dia, seguramente !
Repousam no fundo das arcas, recordações escolares das minhas filhas, porque um dia ... sim, um dia então, sentar-me-ei junto delas para rever tudo outra vez ... tenho a certeza !
Os brinquedos aos quilos, ocupam e empoeiram na arrecadação, porque sempre esperaram melhores dias, dias adequados, para serem brincados ...
E não foram !...  As crianças já cresceram de mais, para os acarinharem e lhes darem vida de novo ...

E o tempo segue implacavelmente.
E um dia, quando eu conseguir olhar, enxergando ... quando eu conseguir reunir o discernimento e a força para me acordar ... finalmente ... já não terei tempo para a  emenda do rascunho que foi a minha vida.
Já não terei tempo útil para a passar a limpo ...
Já não conseguirei fazer-me sair do marasmo, do cansaço, da fraude, da insatisfação a que votei a minha existência ... Simplesmente porque a ampulheta esvaziou, e dramaticamente já não terei história p'ra contar !...
Já não terei oportunidade da tal segunda chance ... apesar de sempre a ter pressentido, e de sempre saber que na verdade, a chance de cada um, é apenas a única chance de cada um !...



Anamar

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