quinta-feira, 16 de junho de 2016

" O PESO DA SOLIDÃO "





Passei ontem e ele estava sentado num dos bancos da praceta.  Bancos procurados pelos velhos, pelos sozinhos, pelos que sem outros horizontes, se circunscrevem aos que a praceta lhes determina.

Passei hoje e ele continuava lá. Parecia que simplesmente ali permanecia desde a véspera, desde a antevéspera e desde todos os dias que o avistei, ainda que de longe.
A sua postura era desalentada, a barba crescera, o definhamento físico progredira, o rosto encovara ... os olhos emaciaram.  Uma figura esquálida e alheada.
Uma imagem tão angustiante para mim, que me retirara a coragem da aproximação.

O Luís ( vou chamar-lhe assim ), é meu conhecido há já largos anos. Ambos picávamos o ponto em bica de pequeno almoço tardio, no extinto Escudeiro ... café de uma vida.
Também ele sorvido pela voragem do tempo e da sorte.
Aquelas conversas de tertúlia de ocasião... Nada de importante ... tudo de importante, afinal, como são os assuntos de pessoas solitárias.

O  Luís já ao tempo era viúvo. Uma história de amor comovente, no seu passado.
Uma história de entrega, de partilha, de afecto incondicional.
A mulher, ainda jovem  partira, alguns, poucos anos atrás, vítima de uma doença prolongada, numa agonia que se estendeu aos limites do suportável.  O Luís cuidou e foi guardião daquela vida, enquanto ela não se extinguiu.
Ficou então absolutamente só.
E só continuou, sempre acompanhado da recordação inesquecível da companheira.

Há oito anos, na bica do pequeno almoço tardio ... ainda no Escudeiro ... o Luís, disse, assim do nada, que estava a viver uma história que conhecia demasiado bem.
Também ele contraíra a doença sem esperança ...

Desde então, tem-se debatido tenazmente com o algoz que o enfrenta diariamente.  Com lampejos de esperança  em períodos mais benevolentes, com um desânimo impiedoso em fases de regressão.
E tem sido heróica a luta, que sem desistências trava dia após dia.
O Luís continua absolutamente só,  mais só ainda, porque a ausência de forças, de coragem e mesmo de recursos económicos, o limitam aos bancos da praceta.
Por outro lado, o único neto que tem, que o ama e que devotamente ele ama acima de tudo nesta vida, vive afastado, e o estado de saúde do Luís, impossibilita sequer uma aproximação.
Esse miúdo, hoje com quinze anos sempre foi o único esteio na vida do avô.  Seu orgulho, pelo denodo nos estudos, pela personalidade forte e sã, pelo amor que lhe dedicou, era companheiro de passeios, de aventuras, de histórias, de ensinamentos, numa felicidade de tempos idos !

Hoje, quebrei a inibição que me tem adormentado, e abeirei-me do Luís.
Partilhámos o banco por algum tempo.  O suficiente para ver o seu rosto iluminar-se, para ver um sorriso ténue transfigurá-lo ... o suficiente para ver uma tíbia alegria invadi-lo ... juraria !...

Falou-me de solidão, e falou-me de como ela lhe dói, mesmo fisicamente.  De como ela o sufoca mais do que a falta de ar que o assalta, e o deixa mais e mais prostrado ...
Contou-me que lê alto, que fala alto, para se ouvir ... ouvir alguém ...
Contou-me que dialoga com o vazio da sua casa ... quando o desespero não tem tamanho e amarinha ...
Confidenciou-me que gostaria de acabar sem dar trabalho a ninguém ...
Falou-me de coisas que conheço, e de infinitas outras, que felizmente não conheço ...

Por quanto tempo mais, o Luís descerá à praceta ?
Por quanto tempo mais, as forças lhe manterão ainda o último fogacho de esperança ?
Por quanto tempo mais, conseguirá ganhar ainda, a sua luta desigual, por cada dia que passa?

Vida !...
As suas personagens ... as suas histórias ... cenas das existências de cada um,  em que  até a cidade grande, impessoal e distante, lhes é hostil !...

Anamar

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