quinta-feira, 17 de março de 2016

" DIVAGANDO "






"As pessoas são como as casas. Precisam de quem as habite " ...

Aquela casa está silenciosamente vazia.
As janelas cerradas não deixam que a luz penetre.  As portas fechadas não deixam que os sons a invadam.
Ainda está repleta, mas está vazia.  O único sinal de vida que ali persiste  é dado por duas plantas sobreviventes à hecatombe da existência.  Continuam a resistir com algumas gotas de água e com a claridade generosa da marquise.
Resta o som dos passos quando por lá ando,  restam as memórias percorridas quando deambulo  de divisão em divisão, feito um zombie dos tempos.
Sobram demasiadas imagens a desenrolarem-se diante de mim, quando me quedo e simplesmente penso ...
Há uma degradação lancinante, naquele espaço.  Há um abandono instalado.  Há um vazio atroz.  Há um silêncio sufocante ...
Àquela casa só sobram recordações de tempos idos.  Hoje, ela é uma tumba de histórias, de pessoas e de emoções.
Andam risos por ali, a esconderem-se pelas esquinas.  Andam  vozes por ali,  a negacear atrás  de  cada porta.  Andam  rostos  a  brincar  de  duendes  na  floresta,  entremeio  ao  arvoredo ...
Juro que os vejo, os oiço ... os escuto mesmo !
Basta-me fechar os olhos, por momentos ...

Mas a casa está silenciosamente vazia.  Escura.  Triste.  Só.  Decrépita.  Doente ...
Aquela casa está agonizante !  Perdeu, obviamente, a alma !...

As pessoas também.

As pessoas precisam habitar-se para estarem vivas.
Precisam povoar-se dia a dia, com sonhos, emoções, projectos, desejos, metas ...
As pessoas precisam abrir as janelas da alma, precisam inundar-se de afectos, lotar-se de amor, preencher-se de vida ... Impregnar-se de pessoas ...

O Homem é um ser gregário.  Não nasceu nem existe,  para ser  um edifício devoluto.
Desabitadas, as pessoas ficam inapelavelmente sós, estiolam e morrem !

Eu não quero saber-me uma casa mofada.
Eu quero escancarar as portadas, abrir as janelas, deixar-me ensurdecer de sons, de cheiros e de cores.
Eu quero deixar o sol e o vento adentrarem-me.
Eu quero que a chuva me abençoe e que a lua me visite, sem esquecimentos.
Quero a música dos pássaros, num embalo dolente, e o afago púdico das borboletas, em beijos roubados.
Eu quero um coração latejando, vivo e transbordante.  Um coração pulsante, que saiba rir, mas não esqueça o que é chorar.  Que saiba emocionar-se, sofrer e ser feliz ...
E  que  o  único  ar  que  me  falte, venha  da  sua  batida  descontrolada  por  vivências  abençoadas ...
Quero uma alma que confie e acredite.
Quero sufocar-me de sonhos ... ainda.
Quero empanturrar-me de vontades ... sempre.
Quero acreditar que continua valendo a pena ...
Quero remoçar-me nas ilusões da juventude ...

Não preciso ter tudo.  Basta-me alguma coisa ...
Mas sobretudo quero saber-me uma casa com gente ...
Quero sentir-me uma casa HABITADA !...

Anamar

domingo, 13 de março de 2016

" POR QUE ESCREVO ? "



Por que escrevo ?  E eu sei lá !
Por que corre o rio p'ro mar,
nasce o sol em cada dia,
canta cedo a cotovia
e não cansa de cantar ?!
Por que acasalam as aves
se chegou a Primavera ?!
Por que despertam as flores,
renascem novos amores
e a Natureza não espera ?!
Alguém pergunta ao pardal
por que salta, em vez de andar ?
Alguém pergunta à gaivota
que notícias traz do mar ?
Alguém sabe por que a serra
sobe e desce de cansada ?
E nas planícies, os trigos
levam vida espreguiçada ?
Nasce a urze pelos montes ...
Entre pedras, o ribeiro ...
A água corre das fontes,
recusa ter horizontes,
desconhece cativeiro !
E a aurora sempre desponta
mesmo da noite mais dura ...
Entre as nuvens, o luar
desce à Terra a iluminar
toda a madrugada escura ...
Não se prende a borboleta,
ou  cala o melro, que trina ...
Se das pedras desabrocha
a flor que rompe a rocha,
é porque era a sua sina !...
Eu escrevo porque respiro ...
e escrevo para respirar...
Como as ondas lá do mar
deixam na praia um suspiro,
com saudade de voltar !...
Escrevo,  porque o que escrevo
e é espólio do meu viver,
se alinha, sem perguntar ...
sempre que estou a escrever !...
E assim sendo, não perguntem ...
porque não sei responder ...
Escrevo, porque ao nascer,
minha mãe ao dar-me o peito
percebeu este meu jeito ...
e deu-me a escrita p'ra viver !...

Anamar

sexta-feira, 11 de março de 2016

" A GRANDE FAMÍLIA "




Eu pertenço à equipa dos "singles".
Digamos que não é bem isso, mas quase.  A "minha gente" de sangue, está um pouco longe.  Alguns quilómetros apenas, mas não aqui, debaixo do meu tecto.

Aqui, comigo, tenho o Chico e o Jonas.  Bastam-me, alegram-me e até me amparam.  Tanto quanto os animais o sabem fazer.
Tenho as "minhas coisas" ( porque sempre nos rodeamos das nossas indefectíveis coisas ... ), os meus livros, a minha música, as minhas fotografias, os meus escritos ... fragmentos de memórias ...
Aquilo que constitui o meu espólio ao longo de alguns, já razoáveis anos.
Tenho as minhas paredes, o meu "ninho" ... tudo onde a minha "pegada" foi deixando rasto.

Mas também tenho o céu à minha frente, dado ... incondicionalmente, pelo privilégio de, vivendo bem alto, não ter muros ou barreiras adiante de mim.
Tenho a minha gaivota, que às vezes traz a "família" se a borrasca assoma do lado do mar.
Tenho o plátano das traseiras, que começa agora a engalanar-se de roupagem verde, já que o sol espreita e a Primavera está aí ... e que há meses atrás se doirou de folhagem quente e melancólica ... Ciclicamente ...

Tenho também o gato farrusco nos terraços lá de baixo, que não é de ninguém e é de todos os que o olham ... nem que seja assim, bem de cima, como eu.
Sempre sorrio  se da janela  o vislumbro, "esparramado" ao sol, com a felicidade dos que são livres, e sempre me interrogo apreensiva se o não vejo, por dias ... "Será que ?!..."

Bom, depois tenho os pores de sol ... porque a minha vista o alcança até que ele dorme, lá para os lados de Sintra.
São inenarráveis, todos os dias.  São uma aguarela indescritível que a Natureza me pinta, generosa, para me alindar os tempos.
O casario de desenho irregular e em desalinho urbano, tem dias que me atiça a ira ... "Irra ... que selva esta, sem beleza ou graça !  Cogumelos mal nascidos, sem "rei nem roque" ! "
Mas pronto, nada a fazer ... Emolduram-me inapelavelmente a paisagem, e são os únicos limites que tenho, à vontade e ao sonho !

Descendo à rua encontro depois, os vizinhos.  Um ou outro ... sempre me cruzo com alguns.
No mesmo prédio há mais de quarenta anos, conhecemo-nos desde jovens casais, como marinheiros de primeira viagem quando os rebentos começaram a despontar, depois como pais responsáveis com a prole a avançar na vida ... e já com histórias para contar.
Vimo-nos a maturar e logo depois a envelhecer.
Convivemos com "deserções", por muitas razões.
Partilhamos angústias pelas doenças, pelas dificuldades, pelas "partidas" e pelas preocupações ...
Sempre queremos saber uns dos outros, sempre nos regozijamos pela ventura e sempre nos afligimos pela desventura... Somos afinal extensão da família natural.

Há depois o café de sempre,  para o pequeno almoço tardio. Porque isto de não ter pressas tem as suas vantagens.
Também aqui os frequentadores são os mesmos.  Rostos conhecidos de há anos, no café das mesmas horas.
Consigo saber exactamente quem está de "penetra".  Identifico facilmente os frequentadores de ocasião.
Pergunta-se pelos ausentes, sobretudo se essa ausência já é notória.  E vamos sabendo dos acontecimentos,  Quase sempre de saúde, porque a faixa etária da grande generalidade, já é respeitável.
Tem-se atendimento mais que personalizado ... rsrsrs ... Afinal ganha-se estatuto de antiguidade.  E antiguidade confere privilégios, como sabemos ...
Local de encontro ( há quem apareça apenas porque sabe que aqui estou invariavelmente à mesma hora, numa espécie de  "escritório " inventado ... ), local de leitura quase sempre, local de escrita, às vezes ... local de "fareniente", em que apenas deixo a cabeça vaguear, num alheamento distante, em dias menos felizes ...
Estou como que numa segunda casa, estou numa espécie de novo prolongamento familiar, estou de alguma forma, noutro espaço de afectos ...

De mais longe os amigos às vezes telefonam, joga-se conversa fora, comentam-se as últimas.
Estão longe, mas sempre se mantêm presentes ... sortilégio da amizade !...

E pronto ... faz-se a hora de regressar ...

Afinal os dias são preenchidos de pequenas coisas.
A vida é feita de uma diversificada teia de afectos que deveremos cuidar, que deveremos preservar e privilegiar.
É ela a "grande família" que nos foi disponibilizada para o caminho a palmilhar ... Também apoio, também suporte, também carinho, de certo modo ... Ela é extensão da família real, da biológica, da sanguínea, não escolhida obviamente, e tantas vezes menos presente, pelas imposições reais da existência.
Porque o amor não vem do sangue, não vem de nenhuma regra ou determinação social ... vem do cuidado, do respeito, da troca ... ou seja, " o amor vem de amor " ... é que cada vez mais se não justifica a separatividade que os laços sanguíneos determinam, entre os que são e os que não serão tão credores dos nossos afectos.

Por isso, com ela, com toda a nossa "grande família",  vamos cumprindo o destino, com ela vamos percorrendo o caminho ... com ela vamos fazendo a VIDA !

Anamar

quinta-feira, 10 de março de 2016

" TESTAMENTO VITAL "





Deve ser bom andar lá por cima !...

A tarde fechou com aquele céu cinzento uniforme, sem sol nem nuvens.  Apenas uma abóboda sem princípio nem fim.
Há um recolhimento íntimo na natureza ...
Elas andam bem por aqui.  É um bando displicente  de asas esticadas, bailando indiferente  ao sabor do vento.  Uma ronda de liberdade pelos céus fora, até onde a minha vista alcança.
E chove.  A chuva miúda tamborila na vidraça, a aragem desconfortável agita a folhagem das poucas árvores que se divisam, e o céu é um imenso oceano agitado com ondas incessantes, para cá e para lá.
Elas, as gaivotas, pequenos barcos sem leme nem velas ...

Algumas parecem rasar-me a janela.
Se errassem de rumo, tenho a certeza que viriam povoar este meu ninho de quatro paredes, que às vezes se alteiam, indiferentes à minha solidão.
Se percebessem como as invejo,  deixavam-me partir com elas num destino sem tamanho ou limite ... na medida  do que sonho ...
Iria ver o mundo de cima, cortaria os oceanos, pisaria as terras de sol quente e cheiros doces.
Olharia os infinitos que o não são, desceria vales e subiria montanhas . Pisaria as areias escaldantes dos desertos, porque também eles são espaços de liberdade, num abraço volúvel de dunas inconstantes .

Por enquanto, venho à janela ... Vejo-as por detrás dos vidros, espicho o olhar no desenho dos seus volteios, perco-me sonolenta no encantamento de estar viva e no sonho de voar no pensamento ...
Por enquanto, inspiro fundo o ar volátil e manso, ganho asas no coração e parto ... sempre parto ...
Destinos incertos ... são os meus !...

E sinto um reconforto na alma, porque ainda sou timoneira da minha própria embarcação.
Porque ainda me faço ao leme em mar flat ou alteroso.
Porque ainda me guio na estrela polar dos meus céus.
Porque acordo em cada manhã, acreditando que um sol claro iluminará o meu dia, ou que um céu cinzento mas pintalgado de gaivotas livres, encimará as minhas horas.
Porque me faço à vida no crédito das minhas forças, da minha coragem e da minha esperança ...

E sorrio ... interiormente sorrio, no beijo solto e leve com que toco o botão florido nessa noite.
Sorrio pelo privilégio do dia a despontar ...
Na carícia doce com que afago a gratidão que o coração me sopra, por existir, por me saber e por  me amar ...
E vejo-me abençoada, e vejo-me redimida e vejo-me solta, no desalinho das emoções ...

"Tenho saudades de andar" - dizia-me ela, cativa de uma cadeira de rodas ...
"Tenho saudades de ser" - soltava aquela voz encurralada numa cama de hospital.
Rosto macilento, esfíngico, olhos encovados, desesperança no silêncio doído . Tudo tão penumbrento quanto a luz coada pela janela púdica.  Vida suspensa de tubos, de agulhas ... de máscaras ...

E  tanta luz a jorrar além ...
E tanta música dos pássaros primaveris ...
E um exagero de cheiros, de cores, e deleites a exorbitarem nos sentidos !...
E tantas promessas veladas, desmascaradas na cabeceira dos sonhos !...
E a Vida provocadora no esbanjamento  dos corpos ...  E o insulto da morte demasiado perto e demasiado longe !...

Por enquanto, venho à janela ...
Por enquanto, velejo a minha própria embarcação ...
Por enquanto, vejo a chuva tamborilar pela vidraça ...
Por enquanto, tenho um céu pontilhado de gaivotas na aragem ... em ronda de liberdade !...
Por enquanto ...

Anamar

sábado, 5 de março de 2016

" HOJE "




Hoje tirei o dia p'ra morrer
nesta coisa cansativa de existir,
neste nada tenebroso que é viver,
nesta  louca  vontade de partir ...

E o sol que já parte, inda chegou,
a quem nunca pergunto de onde veio,
é testemunha de uma vida que girou
à volta de uma história que não leio ...
As palavras que se perdem no passado
e os sonhos que ficaram por contar,
são destinos que jamais se vão cumprir
como um rio que não alcança nunca o mar ...

Neste dia impreciso de sentir,
neste tempo confuso de se ser,
neste frio ... no silêncio do vazio
destes tempos que não deixam de doer ...
Hoje, parei  nesta esquina  da vida ...
e alonguei o olhar pl'a  imensidão ...
Depois, olhei-me  e percebi
como companheira a solidão !...

Fiquei com saudades de um futuro
que sei jamais ir conhecer ...
Nesta coisa cansativa de existir
hoje tirei o dia p'ra morrer !...

Anamar

terça-feira, 1 de março de 2016

" AQUELE ABRAÇO ... "





"Breve !...  Preciso de um abraço forte " ! - dizia-me alguém, quando perguntei para quando o nosso café ...
"Abraços bem apertados para vocês" - dizem-se as pessoas nas amizades virtuais, até que o dia seguinte as "reúna" de novo ...

Abraços ...

Um abraço opera milagres, acredito.  Um "ninho", um colo, um olhar aconchegante curam todas as doenças da alma de que o Homem actual padece.
De facto, apercebo cada vez mais ( à medida que os anos correm, à medida que as vidas assumem novas conformações inerentes às realidades que vamos vivenciando, aos diferentes condicionalismos que nos rodeiam ), apercebo, dizia, o isolamento do ser humano, a sua circunscrição a redutos cada vez mais precários, de solidão, de desafectos, de nostalgia e de tristeza .

São dores da alma e do coração, inconfessadas muitas vezes, invisíveis quase sempre, que matam mais que as mazelas físicas facilmente reconhecíveis, para as quais existem exames que as detectam, existem tratamentos adequados, existem fármacos, químicos, tentativas de solução ...

Aquelas, fogem ao controle do Homem, independem da sua vontade, escapam ao seu comando, mesmo ao mais lúcido e avisado.

Não é por decreto, que alguém  passa a colorir uma paisagem que apenas vislumbra a preto e branco...
Não é por  regulamento, que alguém cruza com "o" olhar que lhe aqueceria o coração ...
Não é por vontade ou por ausência dela, que encontra ou não, os braços que a aninhariam em paz e lhe devolveriam vontade de viver ...
Não é por mentalização pessoal, por forte que seja, ou por um elementar golpe de mágica, que se reivindica amor, carinho, companheirismo, cumplicidade ...

A complexidade do viver,  encontra, desencontra, cruza, aproxima e afasta.  Atravessa as pessoas, nas vidas e nos destinos.
São linhas desenhadas numa tela em branco, aleatoriamente, em cruzamentos descoordenados.
Oblíquas entre si, paralelas outras ... indefinidamente ...
Linhas que parecem irradiar de um ponto de fuga, como os raios solares ... linhas que eventualmente convergem, como caminhos reescritos ...

Mas sempre, em qualquer circunstância, o tal abraço apertado, será insubstituível na existência humana .
Em qualquer momento, o seu "regaço" protege e aninha, e defende e ampara ...
"Aquece-nos"  mais, um abraço apertado e silencioso  que nos estreita ao coração de alguém, que a maior e mais elaborada declaração de amor ... que a mais convicta e credível jura de amizade !...
Um abraço é uma linguagem de silêncios.  É uma conversa de pele.  É uma promessa implícita de fidelidade de sentires ...
Um abraço é uma troca de emoções únicas  ... é fecharmos o mundo entre quatro braços ... é a segurança de abrigo quente ... é o que se diz sem dizer-se, porque não é preciso ser dito !...

Que falta nos faz um abraço !!!...

Anamar