segunda-feira, 31 de outubro de 2016

" ORAÇÃO VESPERTINA"




O último pássaro atravessou este céu empalidecido.
Ia sozinho, decidido, rumando ao horizonte, em recorte esfíngico , contra as pinceladas laranja desenhadas num azul diáfano, diluído ... líquido, eu diria ... deste fim de dia.
É um céu de paz e serenidade, este que se desenha frente à minha janela.
É um recolhimento absoluto, esta hora de dormir, em que a Natureza emudece e se apazigua.
Não há perturbação, não há ruído ... é uma hora de privilegiado comprazimento. É uma hora de intimismo perfeito.  De equilíbrio e harmonia.
Em que a beleza que não se descreve é um louvor que se eleva ao infinito.
É uma oração celestial de gratidão pela arquitectura perfeita que nos envolve.
É um enlevo que nos emociona, por tão insignificantes, merecermos tanto !...

Sempre silencio, no recolhimento de claustro de abadia ... nem sei explicar o quanto !
Pareço não querer tocar o que vejo, o que sinto, o que perscruto.  Porque tocando, perturbaria este milagre que se me desenrola perante o olhar ...
Breve, Vénus, a primeira "estrela" do firmamento, se acende, na guarda do rebanho que aí vem, à medida que a escuridão desce.
E uma poalha generosa ponteia e pinta, como nenhum pintor o sabe fazer, esta abóboda de veludo aqui por cima.

Fim de mais um dia que nos foi dado viver ...

Anamar

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

" EU TORNEI-ME GAIVOTA ... "


O bando dá em passar por aqui, nestes fins de dia.
Quando as luzes do céu já se fecharam, quando o cinzento que se estende até onde a vista alcança prenuncia borrasca pela noite que se avizinha, elas passam pressurosas numa urgência lida, de busca de poiso para a pernoita.
Seguem na mesma direcção ... todas ... muitas, ordenadamente, como quem voa sem dúvidas no itinerário ou sequer no destino a alcançar.
Vão determinadas.  Conhecem o objectivo ... e têm urgência.
Afinal a noite aproxima-se, o mar está longe ... e a tempestade anuncia-se ...

São elas, as gaivotas, sobre quem tanto sempre escrevo.

Olho-as, "sigo-as", projecto-me através delas na liberdade de todo um firmamento por minha conta.
De todo um  mundo sem barreiras ou limites que o definam.
As gaivotas despertam-me desejos do que só adivinho e que está para lá do que alcança a mente humana.
Falam-me das asas que não tenho, transportam-me as saudades que me pesam no coração, levam-me recados sem endereço ou morada ...
São estafetas dos sonhos que me moram na alma.  Falam-me dos horizontes sem horizonte da vontade indomável que me habita ...
E dizem-me do mar, morada eterna de meu repouso e sono.
Dele, contam-me os seus segredos salgados e embalam-me na melopeia das ondas que adivinho num desmantelo ... lá longe !
E mostram-me o vento que lhes despenteia as penas, e sempre me desafiam a partir ... embora eu só as veja por detrás da vidraça que  me torna refém de mim mesma ...
Tenho a certeza que passam aqui p'ra me justificarem a imaginação e o devaneio. Para me acicatarem a vontade... p'ra me confrontarem sem remédio, com as minhas raízes e escoras ao chão que habito ...

E contemplo-as longamente ... melancolicamente ... persigo-as com o olhar, até onde a vista mo permite e me espicaça ...
É uma nostalgia errante a que me aperta aqui por dentro, por vê-las partir ...
É uma orfandade doída, a que me deixam no peito quando me percebo, injustamente, mais só ainda ...

E acabo indo ...
E parto no bando, lado a lado, aprendendo a contornar os golpes de ar, aprendendo a preguiçar na orla das nuvens, aprendendo a brincar nos volteios da ventania, desbravando as estradas do céu, saboreando os salpicos das marés, equilibrando-me  no pico das escarpas altaneiras ... e sendo dona dos areais  infinitos, agora que as praias ficaram vazias ...

De repente eu aprendi um caminho, eu rescrevi a minha história ... eu ganhei asas ... eu tornei-me gaivota !!!

Anamar

sábado, 15 de outubro de 2016

" A IRRELEVÂNCIA DO EXISTIR "




Não escrevo ... faz tempo que não escrevo !  Nem consigo achar que valesse a pena fazê-lo.
Parece que já disse tudo o que tinha a dizer.  Parece que secou em mim a cascata que me extravasava, me inundava e me transbordava, abençoadamente, quando punha as letras no papel, quando o coração jorrava e a alma se despia, em alívio ...
Tudo parece ter deixado de fazer sentido !  Tudo ficou  desconhecido !  Eu passei a desconhecer-me, mais e mais ...

Estou a viver uns tempos absolutamente estranhos na minha vida.  Sinto-me como que dormente, amodorrada, adormecida..
Pareço esperar um qualquer nada que não defino.  Pareço esperar uma qualquer esquina, que dobrada, me mostrasse um caminho, uma estrada, um rumo ... um horizonte.
Um horizonte que me definisse vistas ou perspectiva, que daqui, deste ponto onde me encontro não enxergo, não alcanço, não diviso.

Como se pode viver apenas respirando, acordando, dormindo, realizando as mínimas funções vitais ?
As mínimas, garantes apenas da sobrevivência ... Porque viver não pode ser apenas isto, tenho a certeza !
Não experimento emoções, não toco a esperança, não me entusiasmo ou preencho com projectos, futuros, sonhos, ilusões ...
Parece que já esqueci o que é tudo isso !
Apenas sinto um cansaço e um abandono de ser desistente e incrédulo.
E pergunto-me quanto tempo alguém é capaz de se arrastar assim ?!
Estou cansada, brutalmente cansada  sem ânimo ou força para continuar.  Tudo parece ser irrelevante na minha existência. Indiferentemente irrelevante !...
Como se um vento destruidor  de tempestade alterosa, me tivesse pegado em remoinho de dia invernoso, e como folha arremessada, me jogasse num vórtice impiedoso ... E me açoitasse, e me sacudisse, e me atirasse pelas alamedas de jardim esquecido onde ninguém passa ... em rodopio entontecido !...
Qual folha amarelecida de Outono , ignorada numa esquina de ventania.  Varrida pela ignorância da tempestade, com a indiferença absoluta do desconhecido.

Pouco importa quem sou, o que sou, como estou ...
Quem se importa com a folha seca, desprendida daquela árvore que se despiu na aproximação do desabrigo que aí vem ?
Quem sequer sabe que eu ainda existo, só porque ainda estou por aqui ?

Exausta ...
Numa espécie de fim de linha, de volta de estrada ... de fim de caminho !
Vazio ... só vazio à minha volta.  Silêncio absoluto.  Descolorido de fim de dia ...

Mais um.
Apenas mais um a encerrar as portas.
Mais um que jamais poderá retornar e voltar a ser vivido !
Mais um que nunca mais poderá ser reinventado na minha vida !...

Anamar

sábado, 8 de outubro de 2016

" FIM "




Estranhos estes fins de tarde ... Estranhos estes fins de estação ...Estranhos os fins de vida !...

Os dias anoitecem bem mais cedo.  Alaranjam lá ao fundo, escurecem os contornos que se tornam mágicos ... e partem.
A mornidão ainda prevalece, doce, embaladora, envolvida nas cores anoitecidas e dolentes de um Outono recém chegado.
Os silêncios descem, como se a Natureza entoasse uma canção de ninar, de fim de dia.

Junto de mim, Énya lança acordes celestiais, aqui neste meu quarto de solidão e paz.  Por alguma razão a busco, no aconchego da quietude que me rodeia.
Ela "fala-me" na medida certeira do meu estado de espírito.  Ela afaga-me a alma, e aquece-me o coração, com os seus sons de melodia de outra dimensão !.
São assim estes tempos de penumbra, como claustro de abadia.
Silenciosos, dormentes, com a luz velada a coar-se pelas frinchas ...

O fim de qualquer coisa, sempre é estranho.
É um despir do espírito e é uma preparação para outra realidade, com uma roupagem nova.
É uma hora de passagem.  É uma hora de mudança. É uma hora de transição.
Nem sempre queremos deixar o que já foi.  Nem sempre estamos desarmados para receber o que chega.
Há uma violentação do Homem ... se mais não for ... sê-lo-á por inércia a ser vencida.

O Outono da vida é igual.
Encaminha-nos a passos largos e pressurosos para o Inverno que há-de vir.
As luzes da alma reduzem.  Os silêncios prevalecem.  O espírito amodorra.  O corpo cede.  O cansaço providencial avança.
Os comutadores da "grande máquina"  redimensionam as capacidades.  A apatia instala-se.  Há uma resignação latente, no cansaço prevalecente.

Vou-me confrontando mais e mais com tudo isto.  Diariamente.  Com uma violência atroz.  Demasiado longa ...
Para se viver não basta acordar, respirar, comer ... dormir, outra vez.

A minha mãe assim mo lembra, por cada dia em que nos falamos.
E quem sou eu p'ra lhe dizer que terá que entender que a realidade é aquela que a confina a um sofá, uma cadeira de rodas ... uma cama ?
Que autoridade tenho eu, que entro, que saio, que corro, que vou e que venho , para lhe dizer a ela que está frente a uma parede cujos desenhos do papel que a revestem, já sabe de cor e já contou mil vezes ... que tem que aceitar, e ... conformar-se, talvez ?
De que audácia disponho, para lhe falar em pessoas bem novas, reduzidas a um vegetar em vida ? Como se isso a compensasse da sua ... que não o é ?!
Para lhe apelar que pense em tantos quantos, bem ao nosso lado, vivem a conformação da inalterabilidade de uma morte lenta e dolorosa ?
Que atrevimento me toma para lhe dizer, às vezes já cansada e agastada, que deve tentar distrair-se com uma televisão que desliga ... porque está farta?
E que devo responder-lhe quando me diz que todas as noites pede p'ra "se lembrarem dela", porque não quer este fim de uma vida tão longa, a custos tão elevados ?

O fim de qualquer coisa, sempre é estranho..

Por que, ao longo das nossas vidas temos que conviver com sucessivos epílogos, sem remédio ou justiça?
Por que nos confrontamos, tendo que aceitá-los e ultrapassá-los com toda uma resiliência de que nem sequer dispomos, tentando minorar-lhe os danos colaterais ?
Por que nos lança a existência, sucessivos desafios de perda e devastação irremediável ?

E há que seguir.
Há que continuar, remediando as escoriações, reunindo os cacos, suturando os rasgões, embora saibamos que não mais seremos os mesmos.
O caminho é longo e pedregoso, os pés retalham-se ao percorrê-lo ... a alma dilacera-se ... o coração sangra ...

O fim de qualquer coisa, sempre é demasiado estranho !  Irremediavelmente estranho !...

Anamar

domingo, 2 de outubro de 2016

" OUTONO OUTRA VEZ ! "




Anoitece mais cedo.  Sente-se bem que os dias encurtaram.  O sol busca o horizonte bem antes do que há escasso tempo atrás.
A sua luz já não é igual.  É uma luz mais doce, mais dormida ... mais mansa.
Parece convidar a um regresso a casa, desvenda o segredo dos primeiros fins de tarde outonais.  E tem a cor desses fins de dia.  Tem os seus silêncios, a sua cumplicidade, a sua interioridade...
É um sol que me fala de saudade, que me fala de solidão, que me fala de abandono.
E do cansaço que me invade, também.
E eu tenho infinita saudade ... de tanta coisa que foi e não é mais.  Saudade de tudo ... indistintamente.  Saudade de mim !...

Eu pensava que depois de se morrer, não se podia morrer mais.
Mas pode !
Pode morrer-se e ir-se morrendo aos poucos outra vez ... Todos os dias um pouquinho.

Aqui por cima, uma gaivota sozinha, aproveita os golpes da aragem na demanda do poiso de pernoita.
Sozinha ... não voa, deambula em balanço de jeito de maré.
É a hora da passagem.  O dia cede lugar à noite, a luz à escuridão, os sons ao silêncio.

Saudade ... esse tormento de passado que se quer tornar presente, em vão !
Esse tumulto de labareda e chama desgovernada !
Essa espada que se enterra indiferente, mais e mais, dilacerando, despedaçando, cortando.  Até às fímbrias da alma ... insensível, distante ... surda !
Essa coisa desobediente e carrasca que não obedece à lógica, à sensatez, ao pragmatismo.  E nos fragiliza e desfaz por dentro.  E mata ... outra e outra vez !

Entretanto o Outono chegou.
Sinto-o, mas acho que já não o descrevo.
Há muitas emoções que percebo indizíveis em mim.  Como se me tivessem embotado o coração.
A vida endurece as pessoas.  Insensibiliza-as.  Amorfiza-as.

Lá longe adivinho a serra, nos verdes-musgo, nos ocres, nos vermelhos e nos castanhos de partida.
Sei-a e cheiro-a, como se lhe calcorreasse as veredas, de novo.  A caruma espalha perfume pelos córregos.
Os ouriços dos castanheiros bravos, dependuram-se, e abandonam o recheio.  Breve, as castanhas a assar,  voltarão a trazer-nos a intimidade de dias conhecidos.

Lá longe ... no fim do meu sonho, está aquela casinha que inventei.  Vejo-a, nas résteas de sol de fim de dia ...
Uma porta, duas janelas, uma lareira que haverá de fumegar, uma cancela de aldraba ferrugenta ... trepadeiras que já não florescem, em fim de estação ... margaridas em bordadura de beira de caminho ... e o areão que estraleja debaixo dos pés ... estrada abaixo ... sobre a arriba ...
E o interior ... ah, o interior também o vejo, pejado de sonhos, de emoções e de afectos ... entre palavras ditas e palavras apenas adivinhadas, em sussurro.  Entupido de esperança e de paz !...
E oiço claramente os acordes de Beethoven,  nas teclas do piano imaginado, nas noites de silêncio !
Porque eu sou livre de inventar ... e uma inveterada sonhadora !...
E aos loucos sempre se perdoa tudo ...

Lá longe ... depois da serra, o mar  braveja em areais que não pisei.
As rendas deixadas na areia, são véus largados que se fazem e desfazem, no capricho das marés.
A brisa que volteia traz histórias de marinheiros ausentes, e as gaivotas brincam de nostalgia de fim de Verão.

Mas tenho a certeza que agora é que se preparam p’ra serem felizes.  As praias ficam desertas, a mansidão dos mares da estação finda dará lugar às borrascas desafiadoras,  o silêncio irá imperar ... e vão restar-lhes as falésias.
E as gaivotas amam as falésias, amam roçagar a crista alterosa das ondas endiabradas, amam o desafio tentador dos ventos desgovernados que aí vêm ...  E amam ser donas das areias vazias e dos céus sem limites ... livres ... mais livres do que nunca !

É assim o Outono !

Sempre me mexe e remexe.  Sempre me envolve numa melancolia adocicada e morna ... como um agasalho promissor que me desse ninho !

Anamar