domingo, 30 de julho de 2017

" UMA VIAGEM DE CORAÇÃO ... "





O montado dormia ...
Afinal é quase Agosto e lá fora sentia-se claramente o bafo dos 40 graus que o termómetro acusava.
Nem uma aragem corria naquele braseiro.  Da terra ardente, levantava aquele halo de Alentejo interior que arfava ao respirar.  O castanho e ocre da charneca  ressequida, estendia-se até onde a vista alcançava.

Nem um som, nem um sussurro, sequer um gemido desprendido dos braços contorcidos dos sobreiros, figuras esfíngicas, sonolentas, resistentes, no recorte de um céu toldado pelo calor.

Sempre que os olho, rendo-me ao respeito, à admiração e à tenacidade.
São árvores guardiãs, algumas ancestrais, fiéis testemunhas de tempos e memórias.
De casca enrugada pela cortiça que as reveste, lembram-me os velhos encarquilhados, de olhos perdidos, com piriscas apagadas no canto dos lábios, que sempre esperam sem pressas, na sossega da fresca, pelos largos modorrentos das nossas aldeias ...
Também eles já são figuras silentes, também eles erguem olhares perdidos e implorantes ao céu, também eles se conformam tenazmente com os destinos ... sem exigências, expectativas, sequer esperanças ...

E ficam ali, pelas tardes dolentes, enquanto as badaladas do campanário vão ecoando, e as horas que recolhem o sol, avançam ...

No montado a tarde cai.  Alguma frescura se compadece ... As aves saem da sesta, para voos rasantes em busca do aprivisionamento para a noite.
As cigarras e os grilos desgarram.  Os cheiros e as cores daquele chão, sobem e abraçam-nos.
É o Alentejo a dar colo e regaço a todos quantos o deixam pulsar nas veias, rumo ao coração ...

Fui lá.
Ontem, fui lá, numa escapada de busca de arrego, de busca de paz e de partilha de afectos.
O monte estava lá, pertinho de Grândola, no âmago de uma terra que é morena e quer molhar os pés no mar, lá no outro lado da encosta.
Casa de amiga, que quando do coração, se torna casa nossa.
Cumplicidades, risos, histórias, conversas intermináveis e tão pingadas umas nas outras  quanto as cerejas o são ... memórias buscadas, dores relembradas e mitigadas pelo afecto que escorria,  numa conversa sem fim, à volta de uma mesa, na fresca do telheiro, na macieza de um sofá preguiçoso ... ou, caminho abaixo, na beira do tanque que refrescava os pés e nos soltava gargalhadas ...

Coisas que só entende quem as experimenta, que só são possíveis e permitidas por quem traz nas costas a sabedoria já doída dos anos, que só se tornam comuns e pressentidas  por amigas da mesma geração, com  linguagens  semelhantes, experiências  de vida  partilhadas  pelos  tempos e pelas épocas ...
Coisas simples, pueris e tão gratificantes, que nos levam outra vez lá atrás, ao fundinho das nossas estradas ...

Coisas de mulheres ... eu diria ... encontradas e partilhadas numa viagem de coração !...

Anamar

domingo, 23 de julho de 2017

" A GAIVOTA QUE GOSTAVA DE VERDI ... "



Abateu-se a tarde sobre a cidade.
Aquela luminosidade doce desceu, a brisa mansa corria.  As ruas estavam pejadas de gente bonita, de todas as raças e cores, que jogavam fora um bem estar de quem nada quer ou espera, num sábado à tarde ... Uma pressa sem pressa, numa cacofonia de palavras largadas, esvoaçantes e soltas em meio dos passantes ...

E eu por lá, ao largo, no largo ...
Verdi haveria de descer ao Chiado, em pleno Largo de S. Carlos, com o teatro à frente e a casa do "Mestre", atrás.
Pessoa circulava por ali. Bem que o sentia no empedrado silente do meu espírito.  Afinal, nascera, vivera, perambulara entre aquelas casas antigas, espreitara vezes sem conta a nesga de rio lá longe, em baixo ... parara pela Brasileira nas tertúlias ociosas, rabiscara versos, letras, palavras, com um cheirinho a céu de Lisboa ...

E depois, havia as gaivotas que em volteios incansáveis, asas estendidas, pescoços esticados, lembravam que o Tejo era vizinho e que a cidade é sua, de direito ...
Pairavam bem ali por cima, numa espécie de recepção e homenagem discreta ... cerimoniando o acontecimento .

Uma multidão colorida disputava os lugares sentados que já não existiam, acotovelava as esquinas, abordava o empedrado dos degraus, a soleira das portas, o poleiro das varandas sobranceiras ou, em última análise, simplesmente um pedaço de chão nas pedras da calçada ...
Lisboa fora chamada pelos acordes de um dos eventos culturais mais interessantes, generosos e fantásticos com que anualmente o Festival "Ao Largo"  mima a cidade, por estes meses de um Verão certo e seguro.
Ontem, seria Verdi o "mágico" de serviço, o virtuoso do mundo fantástico da música, o encaminhador do sonho que nos tomaria, ao escutá-lo.
A Orquestra Sinfónica Portuguesa e o Coro do S. Carlos, a soprano Cristiana Oliveira e o barítono Roland Wood, sob a batuta de Andrea Sanguineti, seriam os mentores da nossa evasão, seriam os fazedores do nosso fascínio e da nossa paz, numa viagem além do tempo e do espaço, num maravilhamento que não se descreve ... só se sente ... numa magia sem tamanho, enquanto a noite nos foi tomando conta ...

E Verdi desfilou.
A Traviata, o Rigoletto, a Aida, Macbeth ou Otello ... o Baile de Máscaras, Il trovatore entre outras peças inconfundíveis, culminaram com o tão extraordinário quanto esmagador Coro dos Escravos Hebraicos de Nabucco - Va, pensiero ...
Essas notas, esses acordes, a força dos tons imperativos, doídos, suplicantes dessa ária, sempre arrancam em "pianíssimo" um trauteio irresistível, enquanto que um arrepio nos percorre o corpo e os olhos se tornam involuntariamente húmidos ...

Toda a noite a olhei ...
Sobre a grinalda em pedra que encima as armas reais da Coroa portuguesa, na fachada do edifício de características neoclássicas e inspiração italiana setecentista, profusamente iluminado em festa, ela, aquela gaivota certamente de ouvido apurado, olhos perscrutantes e esmerado sentido estético, se abancou, meneando-se deleitada, ora num pé, ora noutro, bico p'a esquerda, bico p'ra direita, penteou as penas, ou sonhadora e estática simplesmente se quedou ...
Era presença real, imponente, imperturbável ... indiferente ao correr do tempo ...
Desejava talvez, tal como eu, que ele não passasse, para que  não fosse subtraída ao sortilégio que experimentávamos ...
Cá de baixo, eu acho que lhe via os olhinhos ... e julgo não mentir, se disser que ela sorria ...

E nem as notas mais troantes, os compassos mais estridentes, ou o esvoaçar céus fora das vozes fragorosas do coro, a estremeceram, assustaram ou afastaram ...
E ficou  solitária, extasiada, sonhadora ...

Giuseppe Verdi estava no Largo ... e aquela gaivota gostava de Verdi !...



Anamar

quarta-feira, 19 de julho de 2017

" POR JUSTIÇA ... "




" Há uma vila portuguesa entre os melhores destinos medievais da Europa"

Li esta frase nos media e agucei a curiosidade.

Eu, que tenho um fetiche imenso por me perder pelos destinos inóspitos deste país ... eu, que valorizo além da conta render-me à quietude de ruelas tortuosas do nosso interior ... calcorrear o empedrado silencioso das  aldeias mágicas povoadas pela ausência de vivalmas ... eu que sonho ao som dos sinos nas avé-marias dos campanários, e me emociono com os chocalhos de regresso aos estábulos pelo cair da tardinha ...
eu, que sou apaixonada pela autenticidade de gentes e locais sem maquilhagens ou disfarces, e que detesto por isso, as grandes metrópoles, de ritmos alucinantes e ciclópicos ... fui ler, por inteiro, o texto  que a frase supra-citada titulava.

Que vila, neste caso de uma vila se tratava, cumpriria os requisitos desejáveis para ser considerada um dos melhores destinos medievais da Europa ?
Seria o caso de  por lá, eu já me haver perdido alguma vez ?

Curiosa mas não surpreendentemente, pelo menos para mim ( e tenho a certeza, para muitos ), a vila eleita para este desígnio, era exactamente a vila de Marvão !

Pois bem, em Marvão me perdi não uma nem duas vezes ... mas mais, e sempre me pareceram de menos !...

Empoleirada no alto de S. Mamede, ostentando o seu castelo medieval, lá, onde "as águias voam de costas", tomando a perspectiva indiscutível do nosso Aquilino ... Marvão é de facto uma jóia rara no Alentejo interior deste país.
Tão interior  que, paredes meias com os nossos vizinhos espanhóis, é uma janela aberta e franca ao lado de lá, para além daquela linha imaginária que desenha a fronteira dos povos.

Marvão é terra de silêncios, terra de brisa sussurrante entre  meio dos rochedos alcantilados.  É balcão que se assoma planura adiante.  É parada  de mistérios inconfessados e alcova de amores e amantes perdidos nas ruelas sem rumo ou norte ...

Marvão nunca se me explicou.  Tão só se deixou sentir-se...
Mostrou-se, despiu-se, deu-se, gravou-se na minha pele, sem pergunta nem resposta, sem dúvida ou reticência, sem tempo ou idade ...
Marvão foi lenda, foi história, foi marco ... foi destino !...
Marvão foi indelével paixão para todo o sempre !...

Anamar

domingo, 9 de julho de 2017

" E QUE ME DEIXEM O LUAR ... "







De que me serve dizer-me
em jeito de me alentar,
que sonho voltar no tempo,
voar nas asas do vento
e deixar-me acreditar
que sou jovem outra vez ...
que tenho o mundo aos meus pés ?...

Que saudades eu vou tendo
dos tempos em que podia
desenhar o arvoredo
das estradas que percorria ...
Pendurava rouxinóis
sobre as águas dos ribeiros ...
Escondia luas e sóis
no alto das ramarias,
entre as folhas dos salgueiros ...

E eu podia, eu podia
inventar a minha história
mesmo do jeito que eu queria ...
E amava, como amava
os amores que eu inventava
e me faziam feliz ...

Hoje, os pingos na vidraça
são chuva doce que abraça
memórias que quero guardar ...
Sussurram ao meu ouvido
que o vivido, está vivido ...
já não faz nenhum sentido ...
que a saudade não o alcança,
que o coração não descansa
de tanta vida lembrar ...
Vida já sem serventia,
barco em meio de ventania
à beira de naufragar ...
E ...
como gaivota poisada,
de asa já morta, fechada,
ergo as mãos a suplicar ...
Sou estrela já apagada,
Sou manhã sem alvorada,
Não me roubem o luar !...

Anamar

domingo, 2 de julho de 2017

" VAI-VEM DE MARÉ ..."




Hoje  estou  melancólica.
Sinto-me um pouco perdida no emaranhado da minha vida, como uma aluna frente a um manual sem saber bem encontrar-se no meio de tanta informação a reter.  Uma aluna dispersa, sem bem perceber onde se encontra a ponta da meada a desenlear.

Tenho escrito pouco, tenho reflectido pouco, deixei de me encontrar em tardes longas e desocupadas por aqui, perante mim, perante as minhas ideias, os meus pensamentos, as minhas angústias e preocupações, as minhas dúvidas e perplexidades, os meus sonhos, as minhas lembranças, também dores e sofrimentos ... também alegrias, obviamente.
Deixei de ouvir longamente Énya, em tardes ociosas, enquanto o sol me descia no firmamento frente a esta tribuna, sobre o casario que preguiça até Sintra.
Deixei que a vida me fosse atropelando a um ritmo que as minhas "pernas" já não acompanham ...
Demasiadas coisas acontecendo aqui ao meu lado, como avalanche de torrente que engole e leva das margens, as folhagens distraídas ...
Um turbilhão de sentires, diversos, esparsos, confusos, em atropelos ... que não me folgam e não me param, para sequer os assimilar, interiorizar, incorporar, vivenciar ...
A minha vida mostrou-se um remoinho de rio caudaloso, com a força imparável e cavalgante de águas impiedosas ...
Uma entropia estranha e avassaladora tirou-me os tempos de paragem que me eram vitais ao equilíbrio.
Portas fecharam, portas abriram, esquinas foram dobradas, rotundas estonteantes foram rodadas, ondas encapeladas de incertezas incómodas me enrolaram na areia da rebentação ... quase não me deixando vir à tona, respirar ...
Tudo isso num rompante louco de montanha russa, de voragem temporal, de realidades que não batem à porta para se instalarem.

O meu mundo, de dúvidas, encruzilhadas, "nieblas" pairantes  mas sabidas, tem-me amanhecido com madrugadas novas, de novos cheiros, novas cores, novos sons e claridades.
E como alguém que poisasse numa terra que não aprendeu, como alguém que dispusesse de roupagem desmedida, sinto-me desconfortável, desajustada e com uma canseira no coração e na alma, que me desconserta.

É sabido que novas vivências repentinas e inesperadas, sempre deixam o ser humano fragilizado, no vencer de inércias, quase sempre insatisfatórias, contudo cómodas ...
E a minha vida tem-se pautado por um mar flat, agitado repentina e inesperadamente por ondas alterosas de  marés.
Não é, nunca foi, uma vida cinzenta de rotinas e repetições.  Eu própria, convivo mal com tudo o que se repete, se decalca, se instala.
Por personalidade, sou uma alma inquieta  em turbilhão, que lida mal com tons "pastel" ... que prefere "nuances" definidas, bitolas de tudo ou nada, de zero ou cem.
E por isso, cada readaptação a novas vidas dentro da vida, que foi ocorrendo na minha existência, implicou, ajustes, custos emocionais, conflitos interiores com dispêndio acrescido de sofrimento inerente... com desgaste pessoal, com desnorte de rumos ... com fins e recomeços difíceis ...

Cada nova e desconhecida etapa que chega, questiona o pré-existente, agita as águas,  revoluciona o instalado, desencadeia perdas e ganhos, opções, decisões, mudanças.
São períodos de aprendizagem, de crescimento, de mudança, nem sempre ... quase nunca, fáceis !

E tudo isto - quando  então o Outono já assoma , com as primeiras intempéries na vida -  se reveste de dureza acrescida,  com envergadura de desafio titânico ... e se mostra como  um esgotante vai-vem de maré !...

Anamar