quinta-feira, 28 de junho de 2018

" CRÓNICAS DE VIAGEM - OS PUTOS "




Os putos do Príncipe são putos, simplesmente ... crianças iguais e  diferentes de tantas outras de qualquer lugar do mundo.

Os meninos do Príncipe têm uma ingenuidade absoluta no olhar, uma alegria imperturbável presente, uma dádiva esbanjada para com todo  e qualquer um que chega, de longe, e lhes dispensa uma atenção.
Interrompem então a brincadeira que se faz na terra batida, na beira da areia, na sombra das árvores.
Um pneu velho, uma tábua com rolamentos, de carrinho improvisada, um nada qualquer que vira tudo na cabeça de meninos que não têm brinquedos, faz uma festa.
Rotos, sujos, descalços, ranhosos, os meninos brincam simplesmente com eles mesmos.
E riem, riem muito !
Os rostos são do chocolate da terra, e a alvura dos dentes, lembrando a rebentação das marés, ilumina-os no riso rasgado.

São muitos.  São bandos de pássaros livres a voejar ...
Todos são irmãos, primos, ali nascidos, ali partilhados para toda a vida.
Juntos esfolam os joelhos, juntos dividem o pedaço de pão ou da guloseima quando calha.
Juntos olham os irmãos menores, enquanto as mães lavam nos charcos, e juntos carregam à cabeça vasilhas de água, desde a fonte onde ainda não secou, para as precisões da casa.
Acima do que podem.  Acima do razoável.  Como gente grande.  Como gente adulta.
E juntos irão para a escola, pelas manhãs ... já limpos e asseados !

Adoram fotos.  Uma e outra, e mais outra, numa alegria esfuziante e incansável.
E os rostos acendem-se e  gargalham  incrédulos,  quando  se vêem  no registo  das  máquinas ...

As crianças do Príncipe pedem lápis, cadernos, borrachas ... como quem pede tesouros.

Não têm nada ... e não sabem que têm tudo !!!...




Anamar

" CRÓNICAS DE VIAGEM - IMERSÃO "




Conhece-se bem o pessoal recém-chegado à Ilha.

A euforia do primeiro "encontro" ao vivo, pela manhã do dia da chegada, salta nos rostos, nos risos fáceis, nas gargalhadas que reflectem a boa disposição de quem se depara com uma surpreendente maravilha.
As fotografias multiplicam-se nas câmaras, nos telemóveis, numa urgência de disparar pelo mundo de cada um, o espanto da novidade : "acabámos de pisar o Paraíso " !...
Cada canto é um pormenor singular, cada flor, cada recorte da paisagem, cada nesga de céu ou de mar, espreitada mais daqui ou dali, é sempre nova e dará lugar a um registo notável .
E corre-se o risco de o fotografar dez vezes, cem vezes ... que sempre será a primeira vez !...

E é como uma primeira vez que se arquiva nos olhos, no coração e na alma.
Porque o que fica na memória da máquina não tem nada a ver, por perfeito que seja, com o que fica na mente humana para todo o sempre !
Nós gravamos imagem, cor, luz, brilho ... som, claro ...  movimento também, como as máquinas mais sofisticadas o fazem, com fidelidade e perfeição ...
Mas gravamos algo único e particular, que o Homem ainda não conseguiu atribuir a um qualquer aparelho por si construído, por mais apurada que seja a sua tecnologia ... a emoção, o sentimento, aquela coisa singular que nos põe um agradável nó na garganta ou um doce aperto no peito, que nos deixa mudos, a sorrir, ou com as lágrimas em descomando, quando experimentamos uma silente gratidão face à magnânima generosidade com que a transcendência da Natureza e da Vida nos brinda ...
A capacidade da surpresa, do êxtase, do emaravilhamento, só o rosto humano deixa transparecer, só o coração humano é capaz de sentir, só a mente humana é capaz de arquivar !...

E  este  será sempre assim o primeiro dia da abordagem de qualquer um que chega ao Príncipe, juraria !

Depois ... bom, depois é uma doce imersão, calma, quente, silenciosa e muda que rola, que nos toma, que nos envolve e nos confere esta leveza modorrenta, como a melopeia das ondas a espreguiçarem-se pelas areias, ou como o planar das aves lá no alto, vigilantes à sua Ilha.
Depois, é simplesmente a "curtição" de um sonho impressivo e inesquecível, como néctar saboroso que vai descendo sem pressas e nos imerge mais e mais, conferindo-nos uma plenitude que nos vai tirando a vontade de um dia vir a despertar !!!

Anamar

" CRÓNICAS DE VIAGEM - DIA ZERO "


" É  sempre muito bom ir !
Voltar tem sentir, cor e cheiro !... "


O meu sonho de que vos falei, concretizou-se.
Regressei do Príncipe há pouco mais de vinte e quatro horas.  E de lá, onde escrevi estas Crónicas de Viagem, trouxe estes textos que partilho aqui neste meu canto.
Espero que os apreciem.


" DIA  ZERO "





Voando a muitos mil pés de altitude, sobre um céu que não é de "carneirinhos" mas de nuvens densas e compactas, rumo a S. Tomé - Ilha do Príncipe.
As nuvens são claras em castelo prontas a farófias,  e o avião fura-as, penetra-as e desce, desce sobre uma floresta cerrada que já se divisa lá em baixo, cobrindo todo o recorte da costa de mar azul.

O fascínio, o deslumbre, o êxtase, esses serão para depois, quando os pés assentarem naquele solo que não possui um espaço que seja, sem vegetação.
São os caroceiros, as ocas, as colmas, as bananeiras ( cerca de nove espécies diferentes ) moandis, eletrineiras, jaqueiras, fruteiras, cajamangas, maracujás gigantes, papaieiras, e tantas outras cujos nomes não retive, não perguntei, ou não me disseram ...
São a pimenta-rosa, a baunilha, as árvores estranguladoras que se adonam de outras, num parasitismo que as mata, os fetos arbóreos, a matabala, o inhame, a mandioca e um sem número de outras espécies a perder-se  a conta ...
E  claro,  os ex-libris da ilha ... os cafezeiros e os cacaueiros, que a tornaram famosa pelos extraordinários  café e cacau, explorados desde o tempo da escravatura, nas roças, agora cooperativas de agricultores, e exportados para o exterior.   
São as flores, muitas flores, em profusão, das orquídeas aos hibiscos, mergulhados na mata de palmeiras e coqueiros.  São as maravilhosas  (e  cartão de visita da ilha )  rosas de porcelana, inconfundíveis e únicas ! 
Em suma, uma pequena Amazónia secular, milenar, mergulhada na história dos tempos, verde, totalmente verde, onde a água abunda, o calor é complacente e a Natureza generosa !
A semente cai no chão e renasce ... no eterno milagre da vida !...

E o mar que mistura os tons de azul aos verdes também, ao turquesa cristalino ... da prata ao branco da espuma batida, bordeja esta indescritível terra, ora adormecido na modorra da quietude, ora acordado do sono e agitado ...
Os pássaros, mais do que se verem no emaranhado da ramagem, escutam-se, ouvem-se nos trinados dos ninhos no coqueiral, rasando as águas em busca de peixe, na beira das marés, na rebentação no areal ...

A brisa corre solta e leve, tão leve e solta quanto o espírito e a alegria das gentes, nestes rostos chocolate que sempre nos sorriem e recebem. "Leve leve" é o lema repetido, numa terra também apelidada de "esquece o stress" ...
O sol põe-se em cada dia por entremeio da folhagem recortada, lá longe, no horizonte que se veste de fogo, com as cores inenarráveis de África, sobre aquele marzão que torna esta insularidade, sem dúvida, uma bênção dos deuses.

A Ilha do Príncipe não se descreve.  A sua "fotografia" não tem atributos que lhe sejam fiéis e justos no vocabulário humano.  Uma só palavra, vedada aos Homens mas adivinhada por estes, lhe assentará na perfeição, ao tentar descrevê-la : se existe " paraíso ", aqui franqueamos a sua entrada !!!

Anamar

domingo, 17 de junho de 2018

" SONHO ANTIGO "




O Príncipe foi um sonho antigo.
Há quatro anos fui até ao equador, atravessando-o com um pé em cada hemisfério, na minha visita pela primeira vez a S.Tomé e ao Ilhéu das Rolas.  O Príncipe ficou então adiado até melhores dias.
Agora irá concretizar-se, penso.

África é algo muito especial para mim. É um continente mítico e místico que não tem nenhum outro que se lhe iguale. As cores são únicas, os cheiros são inolvidáveis, os sons inesquecíveis ... os silêncios, também ...
Os povos são muito particulares, na sua simplicidade, na sua alegria, na humildade com que aceitam a vida ... aquela vida tão precária que detêm, aquele tão pouco que é a existência que lhes coube ...
Têm a terra com toda a exuberância com que a natureza a prodigaliza, têm aquele mar, aquele céu, aqueles ritmos com que se embalam, têm o vento que corre pelos coqueirais, os cantos indivisos das aves, as cores dos insectos, a melopeia das ondas nos areais ... tudo gratuito, tudo oferecido generosamente ... e não mais !

Mas parece chegar-lhes ...  Não exigem, não entristecem, não se entediam ... não mostram cansaço, dúvida ou ansiedade ...  Têm exactamente o que precisam, e encaram os seus dias de uma forma "leve leve"... slogan que lhes caracteriza a forma de ser.

Assim era Angola, assim foi Zanzibar,  assim foram as Maurícias ... assim foi S.Tomé ...
África é um continente mãe, a matriz da vida neste nosso planeta, acredito.  Ali tudo parece ter começado, ali, a infinitude dos horizontes em fogo, nos pores-de-sol que não existem em mais nenhum lugar do mundo, garante a renovação eterna da vida, esmaga a ousada prosápia humana, mostra  mesmo aos mais atrevidos, a insignificância daquilo que efectivamente somos ...
Recua-nos com toda a obrigatoriedade, à genuinidade da nossa origem !...

Vou numa ânsia de mergulho.  Um mergulho nas águas cálidas e transparentes, mas também um mergulho na terra e nas gentes.
Busco um reencontro com os meus silêncios de alma.
Procuro beber até ao âmago todas as emoções da voz da terra.  Procuro escutar até às profundezas os recados da voz da mata.  Procuro encontrar o sentido do vai-vem da maré, nas franjas largadas nas areias e nas margens ... Procuro gravar em mim, o riso solto da criançada, a luz que emana dos rostos doces  e tímidos das mulheres que lavam debruçadas sobre os charcos ... Os filhos envolvidos nos panos coloridos,  já dormem, no sobe e desce dos corpos ...

Vou numa ânsia de renovação.  Num recarregar do coração e da mente ... que urge.
Vou, também eu, humildemente, não como protagonista de nada, mas com as mãos bem abertas, o espírito sequioso e desarmado, numa espécie de regresso ao que de mais puro, autêntico e esperançoso, eu tenha dentro de mim ... numa catarse primordial e  silenciosa ...
Vou, inevitavelmente e tão só,  SENTIR África !...

Anamar

quinta-feira, 14 de junho de 2018

" TINHA QUE SER ... "




As minhas "miúdas" aniversariam no próximo 15 de Junho, sexta-feira !  Mania das mulheres sempre terem destas originalidades ... 
Com tantos dias do ano, espaçadas de treze anos, entenderam que o 15 de Junho seria delas !  Excentricidades femininas ... eu diria !...
Significa isto, que enquanto que a Vitória completa os seus catorze anos ( à beirinha de entrar numa idade mais responsável, séria e complicada da vida ... acho ), a Teresa inicia-se nestas andanças de apagar velas, ou vela ... mais propriamente... coisa que ainda não domina.

Desta forma, as minhas duas netas resolveram complicar-nos um pouco mais a vida, porque se uma já quase quer ir à discoteca, ter o jantar com os amigos, numa incipiente abordagem nocturna ... a outra, tem a noite como imprópria para qualquer evento ou comemoração, nem que seja apagar a sua própria vela, porque essas horas se coadunam mais, para chupeta na boca, rabugice de sono e ó-ó na almejada caminha.

Assim, a logística destas coisas fica quase irresolúvel !

Juntar as comemorações, juntando a família e os amigos, seria uma ideia.  Contudo, vem a revelar-se como um feito épico... uma impossibilidade inultrapassável.
Para ajudar à festa, uma vive separada da outra pelo Tejo de permeio.  Margem norte, margem sul, com todo aquele  "emocionante", rápido e fácil acesso à ponte, que todos conhecemos, com dificuldade acrescida ao fim de semana ... e com dificuldade mais acrescida ainda, neste tempo beirando o Verão, com o pessoal sedento de praia, mergulhado que tem estado há tempo de mais, na metereologia desanimadora e pouco generosa  que se tem feito sentir ...

Por isso, nesta minha família de meia dúzia de "gatos pingados", tudo parece tornar-se sempre, gozadoramente provocador e difícil.... se não, mesmo impossível !
Discute-se  ( parece-me que sem qualquer sucesso ), o "onde", o "quando", o "como" fazer para congregar interesses, conciliar vontades, enfim levar a bom porto o que efectivamente seria engraçado entre as primas ... poderem, desde já e vida fora, vivenciar em partilha com todos nós, a comemoração dos seus nascimentos.

Não sei se é o ser humano que é difícil de ajeitar, se aqui se trata sumariamente da confirmação de que não há de facto, coincidências ...  É  que, com mães complicadas na forma como encaram as coisas, duma maneira sempre espartilhada,  musculada e irredutível, cada uma na sua "intocável" óptica, sem lugar a contemporizações, sem corações p'ra grandes cedências e acertos  entre si, ou as raparigas um dia tomam conta da coisa, ou destas "moitas" não sairá "coelho" ... estou em crer !
É muito cedo para isso, mas penso que a "décalage" temporal entre elas, não irá mesmo viabilizar o alcance desse desiderato, haja em vista que quando a Teresa tiver a idade que agora a Vitória tem, já esta provavelmente é mãe de filhos ...
Isto sou eu, a pensar !... ( rsrsrs )

Assim, estamos de novo encalhados num beco aparentemente sem escapatória.  E se vislumbrámos, lá longe, uma luzinha  promissora  por entre as nuvens encasteladas que por aqui persistem em passar, o que nos animou o coração e encheu a alma de auspiciosa esperança, logo o negrume do céu volta a descer e a envolver a nossa realidade, impedindo a concretização do que seria um passo importante na vida de todos nós : a aproximação das "margens" ...

Portanto, estou em crer que ainda não são as minhas "miúdas", desta feita, a conseguirem  pegar a ponta do novelo para o desemaranhar, a conseguirem colocar bom senso na cabeça dos adultos, a conseguirem tornar uma "família" numa família de verdade !!!...
E é pena !

Talvez um dia possam vir a perceber, a importância de certas coisas na vida !...








Anamar

quinta-feira, 7 de junho de 2018

" SILÊNCIO "




O meu pai faria 116 anos há dois dias atrás.   5 de Junho de 1902, o dia "escolhido" para que viesse ver como isto seria por aqui ...
Viveu noventa anos, teve dois casamentos e dois filhos.  Um de cada ligação.
A segunda, sou eu.  O primeiro, um rapaz com mais dezassete anos que eu, nunca privou da minha companhia, já que adoeceu grave e irreversivelmente, o que levou à sua institucionalização num centro médico adequado à sua enfermidade, exactamente doze dias antes de eu nascer.
Lá se encontra até hoje !

O meu pai, já aqui o referi em textos escritos a propósito, foi alguém que eu amei e respeitei ... muito ... Outra coisa seria impensável de acordo com os valores afectivos familiares vigentes, mas sobretudo, porque ao longo da sua longa vida fez por isso, tendo-a norteado, creio, para me criar da forma mais favorável possível ( até porque, digamos,  havia "perdido" o primeiro filho ).
Tendo eu nascido quando ele já tinha quarenta e oito anos, sempre me tratou mais de acordo com o estatuto de avô, do que de pai .
Era desvelado, exageradamente cuidadoso, protector, carinhoso, tendo por mim aquele amor de "pai com açúcar" que os avós detêm ...
Toda a sua vida se direccionou para que a família mínima que nós três éramos, não passasse dificuldades ou problemas acrescidos.

Sendo viajante de uma firma de ferragens de que também era sócio, passava a maior parte do tempo fora de casa e apenas aos fins de semana, ou de quinze em quinze dias, regressava.
Tudo dependia da zona do país onde se encontrava ... se perto ou longe ...  Na altura, vivíamos em Évora, não possuíamos carro próprio, a empresa também lho não distribuíra, já que não havia nunca tirado a carta para o efeito.
Os transportes eram precários à época, e tudo era consequentemente mais difícil.
De comboio a vapor, de automotora, camioneta "da carreira", carruagem ... ou mesmo de burro nos tempos mais recuados ( sempre ouvi dizer ), o meu pai viajou ...
Quando, ir ali ao lado, era coisa de meios dias ...

Uma vida dura, pouco compensada, esforçada e incerta, tornou-o uma pessoa silenciosa.
Com sete anos era marçano de armazém, no Alentejo profundo. Fazia "recados" que lhe pagavam com uma côdea de pão dormido.
Ser o mais velho de cinco irmãos, remeteu-o ao encargo pesado e difícil de se tornar uma espécie de chefe de família, por incumprimento do próprio pai ...
A morte da primeira mulher poucos anos após o casamento e sem que praticamente tivessem coabitado, por doença pulmonar grave desta, que motivou um permanente internamento ... a precoce viuvez com a instabilidade de  ter um bébé a cargo, criado de "andas para bolandas" ... a posterior doença do filho ... tornaram-no amargurado e azedo.  As alegrias, poucas, fizeram dele uma pessoa aparentemente dura, sem que o fosse, pragmática, distante ... como que insensível ... sem sonhos.
Não o era. Apenas não sabia exteriorizar muito mais.
Poderia afirmar sem erro, que o esteio da sua vida foi a minha existência.  Foi poder viver para me / nos proporcionar tudo o que não teve ... vida boa, educação, um futuro condigno.
A sua alegria foi poder assistir à realização do seu desiderato.

Vieram as netas, já então estava reformado.
E agora, com elas, a alegria de um "renascimento".  Agora sim, na vivência do seu real estatuto de avô !

Costumo dizer que o meu pai me atravessou a vida sem se me dar a conhecer.  Sem me falar  das angústias que teria, das mágoas que suportava, dos sonhos que talvez tivesse, do que o atormentava no coração, das suas dúvidas, ansiedades e desejos.
Não lhe lembro o riso ... nunca.  Mas também não lhe lembro as lágrimas que talvez reprimisse ...
Lembro-lhe o carinho ... sempre.  A ternura infinita ...
Foi uma figura silente, que de mansinho, como brisa de fim de tarde, me ecoa até hoje na memória, na alma e na caixinha, aqui bem no meio do meu peito !...

O meu pai teria feito 116 anos há dois dias atrás ...
Entreguei-o à terra, para terminar o seu caminho ... para cumprir o seu desígnio último, nesta morada, para fazer a derradeira e definitiva viagem ... ele, que não foi mais que um caminheiro do destino ... um viajante dos sonhos !...

Anamar

terça-feira, 5 de junho de 2018

" A PASSAGEM "



E há um "portão" que se abre para o oceano ... Uma espécie de cancela que os rochedos definiram, como se de uma porta de entrada se tratasse.
Quem calcorreia a encosta norte da Aguda, serpenteando entre meio de vegetação rasteira brava e bela, chorões, carrasquinhos, urzes e margaridas selvagens, descobre a meio caminho, naquela vereda de pé posto, uma espécie de mensagem sussurrada.  Aquele encontro místico, inesperado, construído pela Natureza, parece querer determinar uma aproximação mítica, mágica e solene, entre o Homem, o Sol, a Lua e o Oceano ... como se um templo ali se tivesse erguido.
Aquela "porta", para mim que a vi e a escolhi, teve o simbolismo inevitável e único, de um ritual de "passagem" !

Afinal, a sul, mas perto, na Foz do Rio Maçãs, se encontra sonolento o Santuário Romano, recém descoberto, de homenagem a estas três divindades, o Templo Romano  "Soli et Lunae".
Crê-se que o mesmo foi erguido em honra do Sol, da Lua e do Oceano, pelos romanos e posteriormente utilizado pelos muçulmanos ... de acordo com os vestígios arqueológicos recentemente identificados e estudados por quem de direito.
Mais tarde, foi ainda ponto de vigia à Barra do Rio Maçãs, que era navegável até Colares.
Enquadra-se ele na mística, vastamente patenteada em todo o lado, pelas terras de Sintra.
Era este Santuário, local de ritos e de culto, numa consagração ao "sol eterno e à lua".
Foi preito de homenagem e respeito  do Homem para com a Natureza e os seus supremos elementos.
Reflecte a pequenez, a humildade e a insignificância face ao Universo. E a sua relação enquanto ser terreno e espiritual.

Este Santuário, é mais uma pegada romana,  ( 27 anos  a. C  ) à semelhança de tantas outras que povoam o território de Cinthya, pejado de mistérios, simbologia e divindades.
As suas primeiras referências remontam ao Séc. XVI, no tempo de D.Manuel I .
Posteriormente acreditou  tratar-se de uma lenda, e só em 2008 veio a ser correctamente localizado, tendo sido então iniciadas as buscas arqueológicas  em 2011, pelas mão do Arqueólogo Cardim Ribeiro, que integra o elenco de especialistas do Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas.

Ainda na Praia das Maçãs  ( Outeiro das Mós ) existe o Tholos, conjunto sepulcral da época do Neolítico e da Idade do Cobre nacional.
De uma campa colectiva  acredita tratar-se.  Um sarcófago, lembrando local de vida e morte, sob o mar de areia e chorões que cobre as dunas !...

A própria Vila de Sintra se fixou no chamado Monte Sagrado, e nela e à sua volta, se dá conta também de locais de cultos célticos e turdestanos.
A serra exerce um inolvidável e eterno fascínio sobre os humanos.  Nela, em noites de lua cheia, continuam a realizar-se rituais mais ou menos desconhecidos e secretos, e a sua sacralização  lunar, é uma tónica ... mesmo para o Homem de hoje ...
O Monte da Lua, com os seus  duendes, os elfos, os titãs, as ninfas e as deusas mitológicas, as gárgulas monstruosas, os tritões e os cavalos de vento que nasciam de éguas fecundadas pelo ar fértil da montanha, continuam a ocupar o imaginário colectivo, rico e fascinante !...

Por tudo isto, e por muito mais ... o que digo e o que calo,  o que racionalizo e o que me preenche o espírito e a alma ... escolhi Sintra, lá longe, entre o "sol eterno" e a lua, com o oceano em leito de repouso infinitamente doce, para a "passagem" ... como um navio a navegar na noite, na minha longa viagem !...


Anamar

domingo, 3 de junho de 2018

" CAPÍTULO ENCERRADO "






Hoje restituí a quem de direito, o que por direito lhe pertencia ...
Os meus pais voltaram ao pó, recolheram-se à terra, misturaram-se com a Natureza que um dia lhes deu a vida !
Os dois juntos, que o foram no bem e no mal, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença ... todos os dias das suas vidas ...
Ali, no meio dos carrasquinhos, das urzes e das estevas, de tudo quanto não pede para nascer ...
Ali, no silêncio das falésias batidas pela brisa que vira vento em dias agrestes, que vira ventania em dias de tempestade ...
E os raios iluminarão as madrugadas quando o trovão ecoar na arriba.
A lua seguirá  o sol.  E quando for plena, acordará as pedras, e as estações irão repetir-se ... e a vida morre e renasce ...
Ali, onde o mar brame lá bem em baixo, aos seus pés ...
E todos os dias as marés subirão para depois descerem. E a chuva miúda lhes sossegará a alma.  Agora, uma só.  Indivisível
Onde os azuis dos céus e das águas se confundem em dias de bonança, e em que o sol bafeja a terra, desde o horizonte onde adormece por cada dia ... até à eternidade ...
Ali, onde as aves devaneiam e as gaivotas e os corvos marinhos apanham os golpes de aragem para ir e vir sobre a imensidão ...
Ali, a noite é de breu e o mar, um espelho de prata.  Nos céus as estrelas poalham.  Vénus fecha o crepúsculo e a Polar orienta na escuridão.  Só as nuvens passam em viagem ...

ali os deixei ...

Não sem antes lhes pedir que me perdoassem, por parecer abandoná-los ... Embora eu saiba que ali mesmo, já eles limpavam as minhas lágrimas ...
Não sem antes lhes prometer companhia, quando a hora chegar e a morada me chame ...
Não sem antes lhes agradecer por tudo ... e o tudo foi tudo mesmo, sem tamanho ou limite ...
Não sem antes lhes pedir protecção ... porque eu sei que braço de pai e mãe é do tamanho do universo ... cobre, abriga, embala ... para todo o sempre ...
E coração de pai e mãe, esse não morre nunca, nem vira pó !

A Terra irá recolhê-los, generosamente nas suas entranhas, e a sua voz primordial e uterina chamá-los-á para a matriz que nunca ninguém sabe ou viu, mas que se adivinha e sente, ali, nas escarpas silenciosas e sós, onde o céu toca a terra ...

E dormirão em paz, sem pressa ou tempo.  Porque tempo não existe.  Tempo é coisa dos Homens !
E eles, tê-lo-ão para sempre !
Será chegada a época do repouso e da contemplação ... da quietude e do sono profundo ... finalmente !...

Uma última flor, amarela de luz, ficou com eles ...
Nela, está todo o amor que lhes devotamos.   Ela representa a sua memória viva dentro de nós ...
Porque o AMOR nunca morrerá !

Naquelas falésias imemoriais  que desafiam os tempos, ao contrário do que alguém deixara impresso no muro de pedra ... " AS  MEMÓRIAS  ETERNAMENTE  ALI  VIVERÃO " !





Anamar

sábado, 2 de junho de 2018

" UM CASO DE JUSTIÇA "





Nas minhas deambulações por aqui, abrindo, lendo, relendo ... deparei-me com uma enorme falta minha, perante quem me lê, embora involuntária.
Essa falta exige-me, obviamente, uma retratação e consequente pedido de desculpas.

A página deste blogue onde publico cada texto, exibe em rodapé um item referente aos comentários que cada um queira apor no mesmo.  Sempre olho e quase sempre leio "sem comentários". 
Até porque quando alguém comenta, entendia eu, que deveria ser ali expresso, como algumas, poucas vezes acontece.

Bom, lamento e sempre entendo que a parca interacção entre quem me lê e mim própria, se deverá por certo, ao fraco interesse ou qualidade do que vou postando.
"Paciência"... digo-me, porque sendo eu uma mulher de dialéctica, de tertúlia, de opinião, sempre mantenho alguma expectativa em relação ao feed-back que gostaria de ter.
Mas as pessoas, apesar de visitarem o Filosofices ( o que fica registado ), não são obrigadas a opinar nada, mesmo que o fizessem, como quase sempre acontece, de forma anónima.

Ora hoje, "bisbilhotando" outras insuspeitas funcionalidades do blogue, verifiquei que afinal constam efectivamente, registos de variados comentários, ao longo dos tempos, aos quais, pareço não ter respondido,  sugerindo uma postura incorrecta e desadequada da minha parte. 
Uma deselegância sem tamanho, porque prezo todas as opiniões, mesmo as divergentes, e sempre aprecio os diversos pontos de vista que tornam o ser humano múltiplo e singular.
Fiquei, digamos que pasmada, e de mal comigo mesma.

Apresto-me portanto a pedir aos meus leitores, as mais sinceras desculpas por esta minha "distracção" /ignorância, que parece reflectir sem que o seja, um desinteresse, um descaso, uma profunda incorrecção da minha pessoa.

Não foi esta, claramente a minha intenção !

Mas porque a defendo, acho que a justiça está sempre em tempo de ser reposta !

Agradeço-vos a todos, peço-vos uma vez mais a generosidade da vossa compreensão e tentarei daqui para a frente, manter-me atenta, ser mais cuidadosa e agradecida !

Anamar

sexta-feira, 1 de junho de 2018

" DISSERTAÇÃO "



Escrever é um vício.
Escrever é uma terapia.
Escrever é transportar o sonho além do universo, num voo de ave sem limites.
Escrever é respirar, é saltar a fronteira, é rumar ao infinito.
É falar só comigo ou falar com os outros, e é acrescentar-lhes sonhos, aos sonhos que já detêm.
É chorar para dentro, sem barulho ou esgar.  É rir sem gargalhar, num silêncio por onde as palavras se passeiam.
Escrever traz-nos a alma ao peito e o coração aos lábios. Escrever dá-nos a leveza da borboleta saída do casulo.  Prende-nos às asas das gaivotas que não perguntam rumo. E deixa-nos ir com elas ...
Põe-nos nas mãos o pincel de Van Gogh e nos olhos a acutilância de Gageiro.
Escrever senta-nos ao piano com Beethoven.  Dança-nos com Strauss.
Traz-nos os cheiros incontáveis da fruta madura, dos musgos e das marés ...
Solta-nos o olhar, como o olhar  dos amantes na hora do clímax, quando a fusão os submerge no que não se descreve ... só se sente ...
Escrever é driblar a saudade e ao escrevê-la, exorcisá-la.
É trazer o que já foi ao que agora é, olhando o que será ...
Escrever é lembrar.  É arrancar os mortos ao silêncio do esquecimento, e torná-los vivos, num passe de mágica.
É trazer-me menina a mulher madura, beirando o Inverno da vida ...
É recriar-me.  Reinventar-me.  Tantas vezes quantas eu quiser.
E é dizer-me, só para os que me entendem ... baralhando e voltando a dar  o naipe das cartas, no jogo da vida !
Escrever é dar-me, na maneira mais pura que sei ...

Anamar