sábado, 28 de junho de 2014

" JÁ VENHO ... "



Estou de partida ... Parece que  finalmente estou de partida !

Sempre,  antes de qualquer viagem, bate uma ansiedade estranha.
É um misto de curiosidade pelo desconhecido que me espera, é um receio de que algo inesperado possa surgir lá e também cá, com tudo o que fica ...
E é também uma nostalgia, apesar do cansaço instalado, de tudo o que deixo ... pessoas, bichos, coisas ...
Porque afinal tudo isso, bom ou mau, é a minha realidade diária, é o aparentemente certo na minha vida, é a minha rotina.

O Homem é um animal de hábitos, e tendo embora um lado bem aventureiro de viajante, dentro de mim, uma ânsia da novidade, uma necessidade saudável de quebrar rotinas, que afinal penso ser inerente a quase todos ou todos os seres humanos, sempre se me aperta um nó no peito, na hora de fechar a porta de casa e olhar p'la última vez os meus gatos, que sem a noção do tempo ( espero ), continuarão a aguardar que eu volte da rua ... na hora de desligar o telemóvel, porque o avião já aquece os reactores ... no momento em que passo a ser eu, só eu, eu comigo mesma apenas, frente a todas as emoções, dúvidas, decisões, escolhas, com os olhos bem abertos, os ouvidos bem despertos, o coração bem disponível, vazio de tudo o que seja negativo e angustiante, se possível ...

E pronto !

O mais que eu vir, que eu viver, que eu experienciar, como uma infantil aprendiz de vida, totalmente desarmada, e vazia de pré-concepções e juízos, de alma lavada, coração receptivo e sequioso, e uma cabeça povoada de sonhos e fantasias ... contarei na volta, com o entusiasmo de todas as histórias plenas de ingenuidade, bonomia e pureza, sempre bebidas  em  deslumbramento, pelos  marinheiros  de primeira viagem !!!...

Por cá, fiquem em paz, com tudo de bom nas vossas vidas ... e, ATÉ  BREVE !!!...
Porque eu ... JÁ  VENHO !!!

Anamar

domingo, 22 de junho de 2014

" BREVE PARTIREI ..."



Cheirava a chuva, na mata, hoje ... Cheirava sobretudo a terra molhada, enquanto o ar desanuviado de poeiras estava leve, puro, fresco !
Tinha havido uma renovação, porque a água que tombou copiosa dos céus, neste segundo dia de Verão, fizera uma faxina por lá.

Passei e não encontrei vivalma, não obstante ser domingo, não obstante não ser fim de semana de praia ... Restaram-me os pássaros volteadores, os insectos batendo asas de queratina por entre o restolho ressequido aqui e ali, ou as borboletas em bailados diáfanos de elfos, na busca de pólens à discrição ...
Talvez as pessoas tivessem receado que as chuvas a destempo, mais que as orvalhassem ... as encharcassem mesmo.

Lembrei as abençoadas chuvas tropicais, lembrei o que são as borrascas em terra de calor a sério, e de chuva a sério também!
Já tomei grandes aguaceiros, estrondosamente fortes, curtos, saborosos.  Já apanhei com grandes trovoadas bem por cima da cabeça, enquanto me sentia privilegiada, e me deleitava por poder atravessar a tempestade ribombante, dentro daqueles mares cálidos de águas dormentes e preguiçosas, enquanto as luzes rasgavam o firmamento, desenhando lasers nunca igualados.

Estranhamente também aí, as pessoas fogem, correm a abrigar-se não sei do quê, nem para quê ...
Do que afinal, sendo uma bênção da Natureza, apenas nos relembra o gosto que é, estarmos vivos !
E nas águas, que por reflectirem o céu  se tornam plúmbeas, me envolvi como em manto doce, me aninhei como em alcova de amante ... e absorvi até à alma, longamente, o cheiro salgado do mar ... o cheiro adocicado da terra úbere!...

Breve partirei ...
Breve procurarei as terras magnânimas ... uma vez mais.  Vou encontrar o centro da Terra, vou procurar aquela estrada invisível que corta oceanos, atravessa continentes, e fala uma única língua, a única que liga os mundos ... todos os mundos ... a universal !
Breve verei a multitude das cores da paleta do Mestre, breve me extasiarei com os verdes, os azuis, os ocres, os castanhos, os dourados e os prateados das orlas de vai-vem ...
Breve vou absorver todos os cheiros que não se descrevem, todos os sons e os silêncios, todos os cânticos e todas as vozes ...
E verei rostos que não conheço, mas que de repente ficam meus ... Olharei outros tantos sorrisos ladinos, de outras tantas crianças  como todas ... porque as crianças são todas iguais, e os seus sorrisos desarmados, são sempre de querubins !...
E verei os sóis a acordarem e a deitarem-se, entre os laranjas, os fúchsias e o recorte  negro das palmeiras esguias e dos coqueiros despenteados ... E a  lua, que em quartos ou  plena, torna o mar numa poalha de prata ...
As estrelas povoar-me-ão os sonos, porque ponteiam os céus escurecidos ... e os sentires, todos,  montam vigília e sentinela, para que nenhuma emoção se perca por lá, e para que a verdade e a autenticidade das terras do café, do cacau, dos escravos e das senzalas,  que ecoam pelas encostas e perpassam pela mata, me devassem, me penetrem e me preencham ... em plenitude !...

Puro hedonismo, no sonho, no desejo, na alma de viajante que transporto em mim ... porque "só existe um êxito : a capacidade de levar a vida que se quer" - Morley, Cristopher


QUEM SOMOS

O mar chama por nós, somos ilhéus
Trazemos nas mãos sal e espuma
cantamos nas canoas
dançamos na bruma

Somos pescadores-marinheiros

de marés vivas onde se escondem
a nossa alma ignota
o nosso povo ilhéu

A nossa ilha balouça ao sabor das vagas

e traz a espraiar-se no areal da História
a voz do gandu
na nossa memória ...

Somos a mestiçagem de um deus que quis mostrar

ao universo a nossa cor tisnada
resistimos à voragem do tempo
aos apelos do nada

Continuaremos a plantar café cacau

e a comer por gosto fruta-pão
filhos do sol e do mato
arrancados à dor da escravidão


OLINDA BEJA  ( poetisa natural de S.TOMÉ E PRÍNCIPE )


Anamar

quinta-feira, 19 de junho de 2014

" MEC ... excelente, como sempre !..."

Divulgando o que merece, aqui está um autor que sempre me surpreende pela forma lúcida, objectiva, clara, sensível, com que aborda os temas.

Não queria que este texto se perdesse na turba das crónicas, notícias, colunas de opinião, e tanto outro disseminar de informação da nossa profusa comunicação diãria.
Assim, publico-o aqui, no meu cantinho, para que possa ser saboreado, usufruído, reflectido por quem a ele aceder, e tenha alguns minutos do seu precioso tempo  para  que  nele  se possa   " passear "  e  quem  sabe ... deleitar !...




Quero fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.

Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido....Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria.

Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem.

A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje.

Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá tudo bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?

O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.

O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não dá para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir.

A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira.

E valê-la também.

Miguel Esteves Cardoso

Anamar

sábado, 14 de junho de 2014

" VIAJANDO NOS SONHOS ... "



Uma viagem é um sonho que sai do universo onírico,  torna-se palpável,  materializa-se, ganha substância ...

Ao contrário dos sonhos, a viagem tem o antes, o durante e o depois.  Começa a programar-se, e com isso "descola" na nossa mente.
Enriquece-se em tudo aquilo que lhe adicionamos mentalmente, numa preparação meticulosa, desejadamente diversificada, intencionalmente multifacetada.
Transforma-se num sonho monitorizado, com asas que nos começam a crescer na alma.
Do alto do galho onde a sonhámos, atrevemo-nos a ensaiar voos, por espaços e horizontes, em direcção a sóis que se põem e nascem fulgurantes, em mapas desconhecidos ...
Temos connosco a expectativa do não conhecido, aureolada pela curiosidade, ânsia, vontade e liberdade sonhadas.
Até porque os espaços longínquos que nos espreitam, e nos fogem na realidade quotidiana, sempre se condimentam nas cores, nos sons, nos sabores, na luz, nos cheiros, nas gentes e quase sempre nos silêncios da interioridade que nos despertam, do intimismo p'ra onde nos conduzem ... porque nos emergem o melhor que possuímos ...

Para mim, são o regresso ao âmago, ao avesso do meu direito, são o retorno à purificação dos sentires embiocados, são o retomar da viagem uterina rumo a outras essências, outro chão e outra verdade ...
São reencontro comigo ... do que sou, mas não sou aqui ... São redescoberta do equilíbrio ... São partida p'ra novas chegadas, para o autêntico, o verdadeiro ... são mergulho no que importa ... finalmente !!!

E por isso escolho o verde, o mar, o sol, a lua, a areia e a rocha, pássaros e flores, vento e trovoadas ... escolho a brisa e os silêncios, a genuinidade das gentes, perfumada com as flores de  acácias, com o aroma das especiarias e da terra molhada, impregnado  na pele encharcada pelo aguaceiro torrencial ...
E não escolho o betão, nem as casas, nem os bairros, os fumos e os horizontes quebrados, o sol que se esconde, pedindo licença aos espaços exíguos libertados por entre as torres.
Não escolho museus, palácios, ruas, cacofonia alucinante de vozes e gritos sibilantes, que me agridem o coração.
Não escolho os destinos onde a mão do Homem trabalhou, sofisticou, enfeitou, artificializou ... não escolho os caminhos onde a sua pegada se afundou, não escolho os espaços que ele polui e destrói ...
Fujo das metrópoles, as grandes cidades não me movem, a sua laboriosa concepção, também não ... a sua  arquitectura trabalhada e presumida, as maravilhas da tecnologia ou os "milagres" megalómanos do seu ressurgimento, menos ainda !...
E nunca me arrependo !!!...

Desta vez também é assim ...
Busco o paraíso e lamento não trazê-lo comigo, na volta ...

Porque as viagens, como os sonhos, também têm o seu despertar.
Como com eles,  com alguns deles, também lamentamos que se esfumem no tempo, naquele clique injusto de apagar de luz, ao desligar-se o interruptor.
Como eles, alguns deles, foram janela aberta por algum tempo, num interlúdio ou intermezzo de vida, cujo sabor experimentado, desejaríamos perpetuar no nosso coração.
Foram uma nesga entreaberta na porta da monotonia do nosso quotidiano ...
Foram uma nesga de azul, no cinzento plúmbeo em que mergulha quase sempre a nossa realidade ...
Foram uma demão de tinta colorida, no opalino, desvanecido em cada aurora das nossas vidas !!!...



Anamar

sexta-feira, 13 de junho de 2014

"COISAS QUE FICAM ... HISTÓRIAS ANTIGAS "



O  Santo  António,  cartão  de visita e rosto de Lisboa, está de novo no calendário.  No calendário e nas ruas ...

Tenho esse problema mal resolvido na minha vida ...
Seguramente ... porque  se ainda me regressa à memória ano após ano, e me deixa um gostinho de mágoa ténue, é porque não está resolvido na minha cabeça.
Passo a explicar :  desde adolescente, desde os áureos tempos das loucuras, das brincadeiras, dos convívios, na fase irreverente da minha história, e numa altura em que os riscos sociais não eram gravosos ... sempre sonhei festejar uma noite dos "Santos", como se dizia.
Ir a Alfama, percorrer os bairros alfacinhas, madrugada adiante, comer as sardinhas a pingar no pão, o vinho e outros petiscos, ao som das marchas populares, debaixo dos mastros armados nas ruas, com grinaldas e balões, bandeirinhas em papel, ver os tronos nas pracinhas e vielas, visitar as escadinhas, os becos e os pátios ... saltar as fogueiras ... com o cheiro a manjerico a tiracolo ... sempre foi um sonho meu.
A maioria das colegas de faculdade não faltavam, sobretudo as que, sendo da província, estudavam sozinhas em Lisboa, alojadas em residências universitárias ou em casas particulares.
Contavam então histórias inocentes de paródia, de alegria, de irreverência, de saudável convívio, no dia seguinte, ou no outro ... porque o seguinte era o feriado da cidade, e a noite também fora longa, e havia que dormir ...

Eu, nunca tive autorização para ir.  A minha mãe, no seu melhor "estilo de educação", não me permitia alinhar nessas brincadeiras, apesar dos meus pedidos insistentes .

Visse as marchas pela televisão, visse a transmissão dos casamentos na Sé, comprasse um manjerico como mandava a tradição, uma alcachofra para florir, fizesse umas "simpatias" ao Santo, com uma amiguinha vizinha do mesmo prédio ... e já estaria de bom tamanho ...
Até  porque a data, sempre beirava a época de exames, que não se compadeciam com dispersões supérfluas ...

Queimava a alcachofra ( no bico do fogão, porque as fogueiras pertencem às festas ) e deixava-a ao relento para florir, como bom presságio, deitava um ovo num copo com água, para  que nele  se desenhasse ou não, o almejado véu de noiva  ( rsrsrs ), sinal de que, solteira não ficaria ... colocava num prato com água, exposto à madrugada, pequenos papéis dobrados, com nomes de candidatos, para que no dia seguinte, o mais aberto, me desvendasse o esperado nome do futuro namorado ... e pouco mais ...

Essa, a minha "relação" com o santinho casamenteiro, à altura, apesar de, sempre de "olho gordo", eu invejar a liberdade de quem podia brincar noite dentro, numa confraternização e num bairrismo únicos, na noite em que Lisboa se torna menina-gaiteira !

Mas o tempo passa, os anos também, e a época para tudo, esfuma-se ...

Seguiram-se as minhas filhas ...
Essas sim, já não faltavam às festas, na melhor tradição lisboeta, em grupos de amigos e colegas de estudos.
"Vamos aos Santos" ? - ouvia-as combinar pelo telefone ...
E eu, magoada por dentro !...

E nunca percebi, e sempre me interroguei se seria mesmo assim ( e não uma enorme injustiça ao Santo ... ), quando me garantiam no dia seguinte, que a magia, a aura dourada e a mística com que eu emoldurava o evento, estava só na minha cabeça, porque sempre o proibido será o mais desejado ...
Uma grande confusão, uma grande barafunda, sardinhas a preço proibitivo, frias e mal conseguidas, num atendimento péssimo...
Em suma, simplesmente um bilhete postal elaborado e aproveitado para turista consumir  ...
A isso se resumiam os Santos Populares ...

Bom, não posso confirmar nem desmentir .
Acho que vou morrer sem nunca ter feito o gosto ao pé, à boca, aos olhos e ao coração !
O Sto. António sempre irá ser para mim, apenas um registo de imagens desfilando pela televisão, um clima adivinhado mas nunca vivido, de um povo e de uma cidade que jamais toquei de perto ou experimentei, um pulsar desconhecido, de corações foliões que se partilham a compasso, num bairrismo que só eles conhecem, uma mágica ou uma "religião" seguida fervorosamente, sobretudo pelas almas brejeiras de pessoas simples, anónimas, que por tradição, fé e alegria esfuziante, esquecem tudo por uma noite, e vêm p'ra rua brincar !!!...


Anamar

sexta-feira, 6 de junho de 2014

" APONTAMENTOS "



A abóbada das avenidas e pracinhas começou a ficar lilás.
Os jacarandás voltaram a florir, polvilhando com lágrimas roxas, o chão das ruas que pisamos.
É quase Verão, é quase Sto. António ... Lisboa enfeita-se !

Mais um ano passou, é o que isso significa !

Maravilhei-me ao vê-los a azular em explosão de cor, tal como há muitos anos me extasiava, quando numa noite qualquer de Primavera, ao regressar das aulas, o vento de feição me surpreendia com o cheiro do pitosporo da minha praceta.
Aí, eu percebia que o calendário tinha dobrado outra folha, que o hibernante Inverno passara, e que a renovação estava aí, outra vez !...

Mas isso já foi, faz tempo.
Agora já não há pitosporo na praceta, já não há aulas, nem regresso delas, pela meia noite, com frio, chuva, ou bom tempo ... assim, nas tais noites de me cheirar a flor de laranjeira, e de eu sorrir ... a sentir-me agradecida !

Estes sinais da Natureza, estes presentes gratuitos e nunca regateados, esta generosidade suprema, esta harmonia perfeita que só a Vida nos providencia,  é algo inatingível,  e é algo incomparável  à  maior obra de arte produzida pelo Homem, por maior que ela seja ...
Atingi uma fase da minha passagem por aqui, em que me sinto mais e mais marginal da sociedade em que me insiro e dos seus valores, mais e mais desligada dos contextos que ocupo, a nível pessoal, material e social, mais e mais indiferente aos seus conteúdos ...
Por outro lado, sinto-me privilegiada pelo facto de, sem nada pedir ou dar em troca, poder usufruir da maravilha perfeita e equilibrante que desfila frente aos meus olhos, e de que usufruo, só pelo facto de os ter, de ter olfacto, ouvidos e coração.  Em suma, pelo facto de estar viva, simplesmente !...

Não é à toa, que cada vez mais sinto em mim um apelo pelos espaços amplos, pelos horizontes sem limite, pelo silêncio audível das grandes planícies, ou pelo chilreio cúmplice dos pássaros no emaranhado dos bosques ...
Não é à toa que me emociono ao ver as areias brancas, e  todas as cores da esmeralda  à turquesa, dos verdes aos azuis intensos, das águas para lá do nosso continente ...
As cores variegadas dos pássaros, das borboletas, dos insectos em zumbidos ensurdecedores ... dos que conhecemos, e de todos os que vamos conhecer ...
Não é à toa que deixo o sol atravessar-me a pele e envolver-me o coração, com o calor entorpecente ... num convite à modorra e ao voar do sonho ...
Ou que me inebrio com o adocicado de todas as flores, naquele cheiro que não se descreve, apenas se sente, se reconhece,  e nos preenche, como uma poção mágica que nos transportasse a outra dimensão !...
Não é à toa que me deixo solta no vento, deitada no sal das marés ... embalada pelo vai-vem das águas que apenas adormecem , languidamente na areia, com toda a voluptuosidade de bailado dos deuses ...

Não é à toa que, nesta passagem  ( sim, porque eu vim de algum lado, não pertenço bem aqui ... e estou a ir ... seguramente ), mais e mais vou, busco, procuro, fujo ... fujo da insatisfação da minha realidade maçante, decepcionante, cansativa e tão sem graça ... e sucumbo ao sonho ou embrenho-me em realidades outras, que não estas ... e sempre caminho nas asas da imaginação  e do devaneio !!!...

Não é à toa que vou ter saudades, muitas saudades, do azul-violeta das campânulas em cachos pendentes, dos nossos jacarandás ... um dia, quando partir, e não estiver mais cá ... tenho a certeza !!!...

Anamar

quinta-feira, 29 de maio de 2014

" NADA É EXACTAMENTE ..."


Nasci no pós-guerra, não  muitos anos  depois da Grande Guerra de 39 / 45 ter terminado.
E nasci no Alentejo pobre, desfavorecido, neste país, afinal  também desfavorecido da sorte.
Não fui filha de latifundiários ;  de meu, tinha apenas o que o trabalho do meu pai, providenciava.
Não faltou nunca, contudo, abastança na mesa. Para o resto, também se ia dando um jeito.
Casa própria não existia, carro nunca tivemos, esbanjamentos não eram possíveis.
E ainda assim, sem nunca o meu pai tirar férias para si próprio, já  propiciava, a mim e à minha mãe, um período de férias no Algarve, em quarto alugado de casa particular, ou de  residencial modesta.
Mais por razões de saúde, hoje lembro bem o espírito da coisa.  A praia faz bem a uma criança !...

A vida corria mansa, sem sobressaltos, bem desenhada nos espíritos.
O meu pai trabalhava como comerciante, tinha  um salário mais ou menos certo ao fim do mês, com ele se contava, com ele se geriam os dias.
Prossegui estudos, avolumavam-se as responsabilidades, mas era pacífico que eu tiraria um curso superior, para o que tivesse jeito e gosto, porque um emprego certo, me esperaria no fim do percurso. 

Fui educada dentro dos moldes sociais, familiares e morais da altura, o que significava  rígidos, sem concessões, com exigência e seriedade, mas sem sustos ou surpresas ... Era assim, e todos sabíamos como era.
Os valores inalienáveis do  respeito, da humildade, da educação, do trabalho, do esforço, da honestidade, da generosidade, do sacrifício e da dedicação, eram trabalhados na família, na micro e na macro-sociedade em que nos inseríamos, nos núcleos profissionais, nos círculos dos conhecidos e amigos, e também dos desconhecidos com quem partilhávamos a vida.
Era estimável que nos pautássemos com dignidade, honradez e rectidão, por forma que em qualquer momento e em qualquer lugar, nunca fôssemos apontados por motivos menos válidos. Sempre pudéssemos andar "de cabeça erguida" ... este, o slogan !

E os que o não eram, aqueles que feriam os valores genericamente vigentes, e defendidos  pelas estruturas sociais definidas, eram facilmente identificáveis.  Não existiam muitos alçapões, moitas ou tocas, onde se pudessem  acoitar.  Não se escudavam  no seio de suspeitos protectores, com nomes sonantes ...
Mais cedo ou mais tarde seriam referenciados,  e marginalizados pela própria sociedade, que não contemporizava e naturalmente os expurgava.
Era exactamente assim !

Formei-me e fui trabalhar.
Talhada tradicionalmente para o casamento, realização óbvia e quase incontornável das mulheres da minha geração, escolhi ser professora, destino consentâneo e ajustável  às tarefas  de mulher e mãe ( algo também demasiado previsível e óbvio, no universo feminino, quase sem excepção ) .
Conhecia perfeitamente a carreira que tinha pela frente, sabia das seguranças profissionais a nível do trabalho, os deveres e as regalias  que o caminho me assegurava.
O meu primeiro vencimento foi de 4$50, como professora eventual, recebido então em dinheiro vivo, num envelope que o Chefe da Secretaria  me entregava , contra a assinatura mensal da Folha de Vencimentos.

Sabia que teria anualmente actualizações do vencimento, depois de ter passado a Professora Agregada, e finalmente a  Efectiva do Quadro.
Sabia que usufruía de diuturnidades com incidência temporal regular, sabia exactamente quantas horas teria que prestar em leccionação efectiva ( não existiam ao tempo, outros "faits divers" ... ), quantas me eram equiparadas  no trabalho de Direcção de Turma, quantas horas iria beneficiando de desconto no cômputo total do horário, à medida que envelhecesse ... sabia qual a valorização exacta que acrescia à minha nota profissional, por  cada ano de leccionação ... Enfim, sabia muitas coisas ... exactamente !!!

E sabia também que, eu que começara a ensinar aos vinte anos, teria o fim da minha carreira e a almejada reforma, quando atingisse  em alternativa, ou 36 anos de serviço ou 60 de idade ...
E também sabia a fórmula exacta com que seriam feitas as contas da minha futura pensão, baseada nos anos de trabalho e nos vencimentos auferidos ...

Depois, também se previa sem grande margem de erro  ( a menos que algum imprevisto gravoso se nos atravessasse na vida ), a curto, a médio e a longo prazo, como iria ser economicamente em termos de estabilidade, de segurança, de gestão, a nossa vida ao longo dos anos, e no seu fim.
Era possível delinearem-se estratégias, assumirem-se responsabilidades, correrem-se riscos ( porque o eram sempre calculados ), fazerem-se opções, escolherem-se caminhos ... porque qualquer um que escolhêssemos era nosso conhecido, qualquer responsabilidade seria honrável, qualquer plano, criteriosa e seguramente analisado antes da decisão, qualquer estrada tinha luz e saída ... e os sonhos ainda eram permitidos !!!...

Os mais previdentes, e normalmente era-se algo previdente, procuravam  fazer ao longo da vida ( porque isso era ainda viável ) , um pé-de-meia, para uma eventualidade na velhice ... como se dizia.
Uma "eventualidade" ... Porque esta não existindo, o resto estaria acautelado.
Havia respostas sociais asseguradas, em termos da assistência à saúde. Precárias, é um facto ... não satisfatórias, é verdade ... mas existiam .

Bom, poderia ficar infinitamente a dissertar, à medida que fosse lembrando, o desenrolar deste filme que nos conduziu aos dias de hoje.
Os dias de hoje, que nós, os que viemos lá de trás, custamos a perceber, a aceitar, a partilhar ...

Mas não vale a pena, pois todos sabemos a realidade que vivemos na actualidade, e todos conhecemos o principal motivo de, os da minha geração, se sentirem peixes fora de água, sem azimute e sem norte ... perdidos, com a sensação de vivermos numa Torre de Babel de valores, regras ou normas ...
O  principal  motivo deste cansativo, destruidor e angustiante  "stato quo ", tem um nome :  insegurança, indefinição, incerteza ... dúvida ... susto ... porque sobrevivemos afinal  em  tempos em que "NADA  É  EXACTAMENTE ..." !!!

Anamar

quarta-feira, 28 de maio de 2014

" O CINZENTO DOS DIAS "



O dia está cinzento, aliás, continua cinzento.
Esta Primavera que daqui a menos de um mês está de saída, eu diria que nunca esteve de entrada.

As pessoas andam como o tempo, cinzentas com tendência a agravamentos súbitos, aqui e ali.
Vive-se, mas não se percebem sinais exteriores de quaisquer resquícios de felicidade ou alegria nos rostos, sequer de realização ...
Bem ao contrário, os rostos são fechados, carregados, pouco dados a bonomia ou gentilezas.
As  palavras,  menos  ainda,  e as  atitudes,  são  de impaciência,  intolerância,  agressividade ,  prepotência  ( sobretudo se se fala "para baixo" ... ), quase gratuita.
As pessoas andam azedas umas com as outras, e com a vida.
A tolerância foi-se, a paciência também, a má vontade e a sacanice à solta, são visíveis, e caminha-se numa espécie de não valer a pena, tipo "perdido por um, perdido por mil ", desesperador !

Diz-se do povo português, um povo triste, e corrobora-se essa afirmação dizendo-se que não é à toa  que o fado é a canção nacional mais fielmente tradutora dos estados de alma, que se poderia ter arranjado.
Pasmamos às vezes, como dobrando a fronteira, numa península tão pequenina, temos dois vizinhos tão abissalmente diferentes, os espanhóis e nós.
A mim, coube-me ser do lado  de cá, para mal dos meus pecados, posso dizer ...

O  que  é facto, é que se sente que a resistência emocional das pessoas, está a esticar até limites impensáveis ;  sente-se que se anda há muito, a viver além das capacidades psicologicamente equilibrantes ; sobrevive-se mais do que se vive, porque nos arrastamos mais do que caminhamos, num deserto em que nem as dunas alteram a paisagem ...
Ela é uniformemente, cansativamente, desinteressantemente igual ... ela é mortal e assustadoramente desmotivante.
Vivemos em automatismos diários, que já nem questionamos.  Fazemos assim, porque é assim !
Programados, chipados, fotocopiados, entramos na engrenagem de manhã, e acabamos à noite.
A qualidade já não é questionada, a razão já não é equacionada, o destino já não é repensado ...
Acreditamos pouco, perdemos há muito, a ingenuidade face a um futuro pouco promissor ...
Parecemos o hamster na roda. Vivemos atordoados, anestesiados, aparvalhados muitas vezes, indiferentes. Doídamente indiferentes ... como um boneco de corda ... até que a corda acabe !!!

E assusta-me, assusta-me tudo isto, porque é extensivo e transversal às gerações todas, atingindo mesmo as faixas etárias mais jovens, num período da vida em que as pessoas deveriam ser combativas, esperançadas, lutadoras com convicção em objectivos válidos, em que as pessoas deveriam desunhar-se nessa luta, com a certeza  de  que  a  vitória lhe seria proporcional, bem como ao esforço dispendido e à fé colocada na aposta ...
Uma fase da vida em que ainda lhes seria permitida e desejável, uma certa dose de ilusão no percurso ...

Mas não !  Os horizontes mostram-se carregados, as fronteiras fechadas, os túneis sem luz.
As alvoradas não se iluminam, e os sóis vivem em ocasos.  As andorinhas não chegam, porque as Primaveras também não !  Claro que só as gaivotas planam por aqui, já que elas não têm rumo ou norte, e apenas aproveitam os golpes da aragem, numa dança oportunista e preguiçosa, para cá e para lá, como as marés que só recuam e avançam, e enjoativamente trazem e levam ... chegam e partem ...

Enquanto isso, a Europa virou mais e mais à direita, nas eleições para o Parlamento, dando um sinal inequívoco do endurecimento das sociedades mandantes, dando um sinal de indiferença, de total ausència de solidariedade e de espírito "de família", para com os povos que só servem para lhes varrer a casa ...

O espírito oligárquico, o espírito de depuração de povos, o espírito de marginalização de  parentes pobres, a recusa pela assimilação e integração das economias mais frágeis e desfavorecidas, e antes sim, o aproveitamento e a exploração miserável e insensível dessas mesmas economias, com a consequente inviabilização do seu reerguer e da sua regeneração ...
o acentuar de um fosso de submissão político-social-económica, entre a supremacia dos povos do norte sobre  os do sul da Europa, num manifesto e claro retrocesso na senda que o mundo deveria percorrer neste século XXI ...
uma desumanização bem visível, face ao que seria a procura desejável do enriquecimento pela miscigenação das civilizações, sendo cavadas  inversamente, barreiras e clivagens inultrapassáveis na aproximação dos cidadãos e das culturas ... aproximação essa, que deveria nortear a filosofia dos estados, no sentido de uma  Europa  humanista e de valorização ...

... prevalecem, e antevêem dias muito sombrios e preocupantes, em que o terror de um nazismo renascente, ameaça mergulhar de novo a Europa, num mar de desesperança e morte,  deixando para trás, desde já, as suas estradas inapelavelmente pejadas de estropiados e  de "cadáveres" !!!...

Anamar

sábado, 24 de maio de 2014

" AS ANDORINHAS "



O sol já desceu, e com ele, as andorinhas já foram ...
Há pouco, dançavam  ao sabor da aragem, naqueles volteios rasantes por sobre as águas dos lagos.  Asas esticadas ... o chilreado típico do fim do dia !

Estas tardes melancólicas, mansas e silenciosas, em que os alaranjados do céu redefinem a linha do horizonte, acentuam a penumbra que desce devagarzinho, subindo as paredes, avolumando a sombra esfíngica da solidão, e pintando os sonhos como se fossem aguarelas de cores maceradas e esbatidas.
O sol deixou-se ver, enquanto as nuvens em castelo no firmamento o permitiram, e a sua luz incendiou os novelos brancos e grossos lá longe.
Depois, os contornos já escurecidos das construções sem rei nem roque, impediram-no de iluminar mais, o meu rosto, sentada  que estou, em silêncio, numa imobilidade dormente, em anestesia de alma, com o coração deitado na palma da minha mão ...

Sobre o mar, ele ainda preguiçou, que eu sei !
O mar não limita, não cerra fronteiras, não fecha caminhos.  Depois do mar, há sempre mais mar ...
Tenho a certeza, que até que o céu tenha virado azul escuro, ele continuou por lá !...

Aqui, as pintas de círios acesos neste presépio estranho, começaram a pintalgar este quadro de solidões,  de distância ... de ausências ...
Uma aqui, outra ali ... a fazerem de conta que mais para lá, há vida e há gente !

Os fins de dia , estes fins de dia, são iguais à minha vida... folhas de outono amarelecidas, que esvoaçam  no torpor de uma  aragem cálida, que deslizam no sabor da minha corrente de cansaços, que se escoam dos meus dedos e simplesmente vão ... nunca olham para trás ... nunca me perguntam se eu deixo ...

Os pássaros que cortam os céus com pressa, em pôres-de-sol  já  liquefeitos, transportam nas asas,  fogachos de horizontes próximos, para aléns mais distantes ... Porque são livres e soltos.
As andorinhas bordam os beirais, em  desenho  caprichoso,  de  mágica arquitectura, desafiam a renovação, auspiciam  a  felicidade, a  paz  e a  abundância, nas Primaveras dos nossos amanhãs ...
As andorinhas sempre prometem esperança,  a colorir  os avessos da  nossa  vida ...

Voltaram ... este ano voltaram ...



Anamar

quarta-feira, 21 de maio de 2014

" SERÁ QUE TAMBÉM VOU TER UMA JANELA ?..."



Passo àquela estrada todos os dias.  E todos os dias ela está lá !

De um lado um muro corrido, do outro,  p'raí uma dúzia de casas baixinhas, muito simpes, duas janelas e uma porta, lembrando as casas das nossas aldeias, no Portugal perdido ...
São reminiscências da parte velha da minha cidade, ainda orgulhosamente sobreviventes.
Entre o muro e as casas, uma via com trânsito nos dois sentidos, muito trânsito, nas horas de escoamento da cidade grande.

Passei um dia e a  D. Inácia já lá estava.  Passei dois dias, uma semana, um mês ... um ano ... já anos !

Passava, e os nossos olhares cruzavam-se apenas.
A D. Inácia, com pantufas, xailinho nas pernas, colar de pérolas ao pescoço, estava invariavelmente num dos dois sítios possíveis : ou sentada na rua, numa cadeira junto à porta, nos dias de tempo bom, a espreitar a nesga do sol, ou por detrás de uma das duas janelas ... quando o tempo desabrido, tornava incómoda ou impossível a sua permanência no exterior.
Em qualquer dos casos, a vista de que desfrutava era a dos carros a acelerarem na estrada próxima, a figura fugidia dos passantes silenciosos, o gato livre da vizinha, que vinha espreguiçar-se ao sol ... e o muro cego, do outro lado, impeditivo de o olhar se tornar  invasivo além dele.

A D.Inácia é uma senhora talvez de oitenta anos ... por aí.
Vivia com uma filha que partiu, com doença que sem comiseração,  a não poupou.  Restou-lhe a filha dessa filha, com quem vive na casa baixinha de duas janelas e uma porta.
Esta, não trabalha. Aliás, passa o dia  em pijama e bata de limpeza por cima.  Deve dormir até tarde, vem p'ra rua por pentear, com um ar sujo e totalmente negligenciado.
Vivem de pensões precárias, só as duas, e os cuidados prestados à D. Inácia, são os mínimos.
Esta não comunica. Vive no silêncio. Amorfa, distante, indiferente, anestesiada das dores da alma !...
Diariamente é posta e retirada dos lugares onde a sentam.

O tempo foi indo.
E o tempo atribuíu "estatuto", a esta comunicação surda e muda entre mim e a senhora idosa.
Achei que já era altura de a saudar, ao passar.  Comecei por lhe dar as boas tardes, mas a D. Inácia não reagiu.  Creio que não ouve.
Passei então a acenar-lhe com a mão.  Com o rosto impassível, olha-me, mexe levemente os dedos da mão, parecendo  impossível  poder retirá-la do cólo.

Quando por detrás das vidraças, com o horizonte ainda mais limitado, deixa deslizar o olhar, para longe, sem rumo ou destino,  não interaje com o movimento exterior,  não deixa transparecer emoções ... é um vegetal que ganhou raízes naquele chão ...

Que histórias de vida teria para contar ?
Que memórias guardará de outros tempos, de outras gentes?
O que ocupará o seu coração e a sua mente ?  Será que ainda lembra do riso e da alegria ?
Ou, misericordiosamente, uma cortina de esquecimento, de solidão e desesperança, desceu  e insensibilizou por completo, o espírito da D. Inácia, tão opacizado já, quanto os seus olhos ?!...

Não sei !  Penso que nunca irei saber !...

Hoje, ao atravessar a mata, onde as flores silvestres da Primavera adornam  gratuitamente o manto verde do chão, lembrei o rosto esfíngico da anciã, postado por detrás dos vidros, já que o dia estava frio com chuvas esparsas.
Senti o privilégio da vida ... Da vida e da saúde ... Da saúde e das emoções ...
Aspirei até ao âmago o ar frio e perfumado do campo, o cheiro intenso da terra molhada de fresco, e persegui com o olhar o voo livre dos pássaros, trinando de ramo em ramo ...
Apanhei uma haste de "Bordões de S. José", generosamente florida, e ao passar junto da janela baixinha, deixei-a no parapeito.
A D.Inácia, com o seu xailinho de lã e o colar de pérolas ao peito, como habitualmente manteve-se inerte.
Sem um movimento, sem um esgar, sem um sorriso, sem um aceno ... deixou  apenas  que uma lágrima manhosa se desprendesse  dos olhos distantes e vazios, sem contenção, estou certa, e tivesse escorrido  pelo rosto esquálido e macerado ...

Um nó estrangulou-me a garganta.
Uma mágoa apertou-me por dentro, e queimou-me as entranhas ...

Será que um dia também me vai  restar uma  janela ???...


Anamar

sábado, 17 de maio de 2014

"ESTE MAIO É P'RA ESQUECER ..."



O tempo estivou de vez.
Já não se vislumbram nem ao longe, os dias desabridos, cinzentos e chuvosos, que este ano nos acompanharam até há bem pouco atrás.  Quase os esquecemos.  O Homem esquece depressa !
Agora, o calorzinho  com a doçura do édredon no pino do Inverno, envolve-nos, qualquer brisa já nos é abençoada, o céu mantem-se uniformemente azul transparente, e sobretudo, os cheiros das espécies florais em explosão, fazem um cocktail de perfumes, que nenhuma essência, por muito requintada e trabalhada, alcança ...

A vida, não a vivo ... vou-a vivendo ...
E como numa espécie de passeio no parque, sem destino ou horas, sem finalidade ou determinação, progrido, avanço alameda fora, sentindo o areão estalar sob os pés, usufruindo as sombras, desfrutando das luzernas de sol em meio da copa das árvores, deixando o olhar perseguir, preguiçoso, o volteio dos pássaros, e escutando  a melodia dos seus trinados, numa pauta musical de maestria !


Sinto-me adormecida, sonolenta, amodorrada ... dormente.
Dormente traduz melhor a sensação analgesizante com que plano por aqui, numa viagem ao Deus dará, sem lógica ou meta.
Quando questiono a insatisfação que experimento pela vida que detenho, este perfeito fazer de conta não gratificante, desespero-me, entristeço-me, enfureço-me às vezes,  porque tenho a sensação que isto é uma brincadeira de crianças, de mau gosto, é uma provocação gratuita, um jogo viciado que não quero, mas sou obrigada a ir jogando ...

Gostaria que alguém me convecesse do interesse disto por aqui ;  deste acordar, deitar, desta inutilidade arrastada, desta fotocópia de dia após dia, num cinzento atroz, desta falta de ar de respiração que não se tira até ao fundo, desta sufocação de um coração espremidinho no meio do peito, desta torrente tolhida em cada olho, que se degladia p'ra correr ...

Bom, eu sei que faço inveja a muitos, cujo desiderato seria terem para viver, por cada vinte e quatro horas, este meu figurino de vida.
No entanto asseguro-vos que ele me destrói.  E destrói, porque, dando-me um crédito de tempos mortos de análises e reflexões, em que a mente não se compadece, atola-me num lameiro de que não consigo emergir.  É impiedoso, massacrador e não dá descanso.
É um tempo exaustivo de balanço de tudo, de retrospectiva e de análise.
E na minha vida actual, as análises não têm resultados positivos em quase nenhuma vertente.

Mas afinal, o ser humano deveria beneficiar, com a liberdade de gerir a sua existência, sem horas, sem espartilhos temporais ou outros.
Pareceria que, ultrapassado um dos graves problemas da sociedade actual, que advem da correria louca em que o Homem entra de manhã e termina quando se deita, p'ra dormir também a correr ( o que lhe tira qualidade de vida ), pareceria, digo, que metade dos seus problemas de equilíbrio, bem-estar, realização e satisfação pessoais, estariam sanados, na exacta proporção da sua disponibilidade.
E eventualmente esses estadios serão alcançados pela maioria dos mortais, que acreditam que após a retirada da vida activa, possam ter um esquema mais a contento

Eu, contudo, de uma forma irremediavelmente incoerente, funciono ao contrário !

Por um lado, sozinha, tenho cada vez menos paciência para programar o que quer que seja.  Consequentemente, os meus períodos de introspecção e clausura entre as quatro paredes a que me confino, aumentam exponencialmente, e com eles, o amorfismo, a indiferença, o desinteresse e o cansaço, também.
Há alguns anos atrás, ainda achava o máximo, a experiência da autonomia e da liberdade que vivia entusiasticamente, ao viajar só !
A mim, bastava eu.  Via pelos meus olhos, pensava pela minha cabeça, sentia pelo meu coração !
Os silêncios não me atormentavam, a solidão também não !

Por outrolado, a crise económica que atravessamos, sem fim à vista, é absolutamente limitadora de projectos, castradora de iniciativas e realizações.
Tudo implica existir folga económica, desde os programas mais simples, aos mais exigentes.
Até para se ver o mar, a montanha, respirar ar puro, ou usufruir de um sol franco, que não limitado pelos contornos do betão ... se precisa gastar dinheiro !...

E por tudo isso, ou porque envelheço a passos largos, ou porque estou psicologicamente doente, ou porque estou cansada, exaurida, desmotivada ... ou porque não acredito já  em nada que valha a pena, ou porque deixei de sonhar e o meu eu interior desiste a cada momento, fenece e estiola ... não vivo, vou vivendo ... adormecida, sonolenta, amodorrada ... dormente ...

... até quando ??!!...

Anamar

domingo, 11 de maio de 2014

" AMEM-ME OU DEIXEM-ME ! "



Até parece que estive fora.  Até parece que fui de férias.
Não tenho memória de um afastamento tão longo, aqui deste meu espaço !
Mesmo quando viajo, sempre vou artilhada de todos os necessários, para escrever apontamentos, crónicas de viagem, relatos dos locais por onde me perco.

Pois é !
Só que desta feita, estou por aqui, estive por aqui, não saí do mesmo lugar.
Apenas houve alguma coisa que de mim se distanciou, à minha revelia : a vontade, a necessidade, o desejo, o interesse, e até o gosto por debitar o que quer que fosse ... e a valorização reconhecida do que pudesse escrever.   Como  consequência,  a  sua  injustificação !

Escrever sobre mim, incomoda-me, e presumo que incomode os outros.
Aferem-me, analisam-me de lupa, perscrutam-me com olho clínico e crítico.  Os mais próximos acham-me tontinha, olham-me com aquele olhar complacente, com que brindamos os irremediáveis de espírito.
Entendem-me como ingrata face ao destino e à vida, porque afinal,  de acordo com os seus parâmetros avaliadores de pessoas com vida normal ( se se considerar como normal, esta coisa que não se entende bem, mas que se cumpre diariamente ), eu tenho tudo, tudo o que para eles é a visão da felicidade absoluta : eu tenho tempo, eu não tenho limitações de nada, abstractamente falando, eu funciono à minha vontade, com o meu livre arbítrio, fazendo as minhas escolhas a cada momento.
O que se pode querer mais ?
A minha existência é na verdade, o "el dourado", é o desiderato que todos ansiariam alcançar, configura o que todos pediriam a Deus, usufruir.

E portanto, não a aproveitar, não a valorizar, e, blasfémia suprema,  dela me queixar e nela  me sentir infeliz, é uma injustiça e uma ingratidão sem tamanho ... ou é coisa de doidos !
Só os maluquinhos perdem a noção da relatividade das coisas ;  só os supra-egoístas não têm capacidade de enxergar além do seu umbigo e do seu pequeno mundinho ;  afinal, só os comodistas, os incapazes de análises isentas e objectivas, os incapazes de se transcenderem, ou tão simplesmente de irem à luta ... em última análise, só os privilegiados dados a vitimizações balofas, é que se queixam, de barriga cheia !

Talvez !
É  possível que eu seja tudo isso.  É possível que não consiga alterar nada disso, apesar de me degladiar numa dialéctica interior, insana.
É possível que não tenha sucesso, e que me estafe, numa busca serôdia de outra personalidade, ou de outra capacidade de enxergar o mundo com olhos diferentes, que não aqueles em que me forjei.

E não sei  fazer melhor.  De facto, começando por mim própria ( que seria a principal beneficiada ), não encontro bússola que me troque os pólos da mente, que ponha o meu globo a rodar ao contrário, que me inverta os sentimentos aqui dentro do peito, que me projecte outro filme no écran, que me acabe com os "dramas", para os quais "já não há paciência" !...
Não encontro !

E  estou  cansada,  de  facto,  muito  cansada.  E  proporcionalmente  desistente ... existencial  e  mortalmente infeliz !

E como nada muda, e como não mudo nada, e como o tempo passa, corre, some ... e porque como os burros, continuo empancada no mesmo ponto ... e porque nada tenho de interessante para escrever, e porque falar de mim, deste obsessivo pântano donde não saio, é entediante, desinteressante e chato ...
é esgotante, é execrável e inglório ... em suma, é um nojo ...
... e como de tudo o que é entediante, desinteressante e chato, a gente tende a afastar-se, a gente tende a evitar, a gente não é obrigado a aguentar ...

... amem-me ou odeiem-me ... mas deixem-me em paz !!!...

Anamar

quinta-feira, 1 de maio de 2014

" NO TEMPO DAS CEREJAS ! "



1º de Maio !...

Quando penso no 1º de Maio, sempre me ocorre o primeiro 1º de Maio ... o de 74 !
O primordial, o virginal, como o é tudo aquilo em que muito acreditamos e nos enleva !

Era o tempo das cerejas, era um tempo leve, de céu azul, e muito sol.
Estava um dia quente, sim, a anunciar tempos de bonança, que talvez não viessem nunca  a honrar a suspeição, ou tão somente o desejo.

Lembro de ter uma casa nova, onde implementava os preparativos da estreia ... Lembro de ter uma única filha  ( oito meses de menina, com caracóis loiros e rosto de porcelana ), sentada na alcatifa rosa-carne da divisão totalmente vazia ainda, contígua à cozinha, onde eu arrumava, arrumava, arrumava ...
Lembro de que não havia brinquedos que a aliciassem a entreter-se, para que eu pudesse aproveitar a tarde a que me propusera ... E  lembro que nas ruas havia um sonho que voava de galho em galho ...

Lembro que sentia estar a perder qualquer coisa  sumamente importante, como o são as coisas únicas, na vida.  E também, que invejava não engrossar a marcha, vinda de todos os cantos, marcha de todas as raças, de todas as gentes, que se fizera rio único, de caudal gorgolejante e impetuoso.
Rio que inundava as praças, as alamedas e os largos. Rio que não permitia represa !
Um  poema  de  frases soando a liberdade ... vírgula a vírgula ... parágrafo a parágrafo ... escrito por todos nós !

E lembro os cartazes, as bandeiras, os hinos, as cores e as siglas ... as canções-arma, os risos cúmplices partilhados, divididos pelos rostos exaltantes ...  E os abraços dados aos desconhecidos ... a mistura dos suores de todos, os que naquele tempo, eram mais que irmãos ...
Os slogans, as palavras-norte e as palavras-ordem. E os braços no ar, quando o punho fechado, apenas significava vitória ...
Porque, no tempo das cerejas, ter a mesma esperança, rejubilar sem diques ou contenções, com a mesma alegria dos ideais únicos ... era  fraternizarmo-nos, como nunca voltou a repetir-se em tempo algum !...

Que importava ser mais ou menos vermelho ??!!
Que importava ter foice e martelo, ou rosa, ou estrela ... se ainda escorríamos para a mesma foz ??!!!

Os cravos não regateavam peitos ...
Uma força hercúlea pintava de certezas as ruas, os corações, e as almas.   Engalanava-se de vontade, de quixotismo, de sinceridade e de pureza.
Era  Abril, adentro o Maio que começara !... Era a festa que não cessara ... uma semana corrida !

Pela primeira vez,  num coro único de corações, todos, mas todos mesmo, tínhamos a ingenuidade de marinheiros de primeira viagem,  a alegria de putos soltos e livres,  a gargalhada que não comprometia nem assustava, em uníssono com a gargalhada  do  "camarada-irmão",  desconhecido ... ali,  ao  nosso  lado, com  a  mão  no  leme,  que  nem  nós !!!...
Tínhamos o êxtase e o deslumbramento, de ver uma história sonhada, que parecia finalmente saltar da ficção à vida !
Tínhamos a convicção, que passo a passo, atingiríamos a almejada meta !
Tínhamos a determinação dos que sabem o que querem ... ou a inconsciência de que bastava Querer, com aquela força ... para Ter !
Fossem lá dizer-nos que não era assim !!!...

Foi um dia de sol, de céu azul ... um dia quente, que respirava Liberdade !!!...

Foi o tempo das cerejas !

Anamar

segunda-feira, 28 de abril de 2014

" PRAGMATISMO "



Cheguei a uma fase da vida em que já não faço concessões.
Sei o que quero.  E, ou tenho, ou não tenho.  Não faço mais, vida de brincar !

Durante mais de três décadas, nos recuados anos 70,  80  até  2000, assisti de cadeira, ao desfilar da vida  à minha frente, imbuída de um amorfismo que me chegava à alma.
Vivia numa espécie de determinismo, de acomodação, de inevitabilidade.  Não corria riscos, não ousava, não tentava nada, além do figurino compaginado para o que considerava ser, o meu destino.
Foram as décadas que conduziram as minhas filhas até à idade adulta, e enfim, a alguma emancipação.
Digo "alguma", porque acho que os filhos nunca se emancipam de vez, nunca cortam as pontes de ligação entre o cais e a embarcação, que lhes sugerem segurança, que lhes sugerem estarem espaldados  ou aconchegados, pelo menos afectivamente.  Às vezes, não só !

Depois, dei uma volta ao mundo, ao meu mundo, e reverti totalmente o que tinha.
O modelo antigo foi deixado sem sobressalto, dúvidas ou arrependimentos, e a minha vida passou a ter um sub-título : liberdade e independência.
Aprendi a dar poucas satisfações à minha volta, naquela espécie de urgência que sempre tinha de o fazer, a todos quantos me rodeavam, por hábito, submissão ou princípio.  Ou simplesmente porque fui educada assim !
Em termos práticos, passei a entrar, a sair, a ir, e a vir, sem justificativas, e apenas ao sabor da minha vontade ... passei  a  abrir a  porta e a  fechá-la,  às horas que me apetecia ... passei a saborear o que me deu na gana ...
Passei a fazer escolhas, aceitando aprioristicamente, as inerentes consequências.  Passei a jogar, jogos limpos e jogos viciados, e aprendi a identificar as cartas marcadas.
Pratiquei  as  "artes marciais" fundamentais para a luta diária, e também golpes de auto-defesa, mais ou menos elaborados.
Talvez  tenha  perdido  a  graça  da  ingenuidade de antes. Talvez  tenha  radicalizado e endurecido ... quem sabe ?!...
Enfim, comecei a aprender a gerir uma sociedade uni-pessoal,  com todos os riscos, sucessos e fracassos, onde verdadeiramente só os meus gatos me controlavam.

Passei períodos variáveis de felicidade.
Períodos em que a casa me abafava, em que a casa era uma masmorra onde parecia cumprir pena, e outros em que a casa passou a ser o ninho, o refúgio por que ansiava, o lugar onde me acolhia quando a borrasca zurzia cá fora, ou o buraco-trincheira onde me escondia do sol, quando  esse  então me incomodava !
Períodos mais negativos e sofridos, às vezes ... períodos de terapia equilibrante, outras.
Cíclicos ... sem dúvida cíclicos, flutuando entre os zero e os cem por cento de satisfação pessoal, extremada que sou !

Rainha e senhora na gestão do espaço e do tempo, alicercei-me em rotinas, confundi-me em hábitos, em ritmos de que não abdico muito. Sou pouco versátil !
São cómodos, exigem pouco esforço de adaptação, não necessitam vencer a guerra diária da inércia. E eu sou preguiçosa, reconheço.
Aparentemente voltei ao cinzentismo e à falta de exigência de vida. Apenas, agora sou eu que dito autonomamente  as regras do jogo !

E os anos foram passando.  Outra década transcorreu na minha ampulheta.

Hoje habituei-me a estar sozinha, andar sozinha, viajar sozinha.  Obviamente, rir sozinha às vezes, chorar sozinha, muitas outras.
E penso que tudo poderia estar perfeito, não sentisse contudo que perco, o muito de bom com que a vida, nesta minha faixa etária, deveria compensar-me : a alegria da partilha, do diálogo, da dialéctica, do aconchego, do ombro  ...
Até mesmo, da tranquilidade que nos proporciona alguém por perto, alguém portador de uma palavra, alguém que propicie um carinho, sem falha, incondicionalmente, como devem ser os afectos nesta rampa em que começamos já a claudicar...
Rampa em que, maduramente, as ilusões dão lugar à estabilidade, em que a tranquilidade ocupa o lugar da turbulência  das grandes emoções, e da adrenalina da vida a mil à hora ...
Fase da vida em que ao contrário de uma abertura ao exterior, levada a cabo nos períodos da adolescência e da juventude, se inicia um retorno ao nosso âmago, à nossa verdade, à nossa autenticidade !
À valorização, do que de facto  importa !
Em que privilegiamos valores reais, e em que a disponibilidade da alma e do coração, nos embala e adormece, na vida vivida em tons pastel, suaves e doces, como deverá ser o  empedrado da nossa última calçada !!!...

De facto, a  minha sociedade uni-pessoal parece ser de menos !!! ...

Anamar

sábado, 26 de abril de 2014

" FOI BONITA A FESTA, PA ... "



Quarenta anos passaram sobre a Revolução de Abril.
Hoje, este dia 25, corre o risco de se transformar numa efeméride paisagística em termos políticos e sociais, num dia de "pic-nic" democrático, de romantismo e afago nos corações mais revivalistas ...

Todos sabemos, os que viveram as emoções de então, todo o envolvimento e mobilização do país, em torno do acontecido.
A sociedade portuguesa estava transformada num barril de pólvora, onde as condições de vida haviam atingido limites inaceitáveis.
A guerra colonial ferira de morte as estruturas sociais, e fragilizava irreversivelmente, os pilares políticos que a sustentavam.  As arbitrariedades, as injustiças, os crimes cometidos contra os cidadãos que ousavam denunciar o sistema, multiplicavam-se. A "emigração política", exílio auto-infligido por todos quantos eram perseguidos pela repressão do regime, assumia dimensões destruidoras.
O país vivia silencioso, acabrunhado, destroçado ...
E desistente ... era um país cansado !
Éramos  a orla pobre de uma Europa com estatísticas incomparáveis.  Continuávamos aqui, no nosso canto, com o futebol, o fado e Fátima, desempenhando cada um o seu desígnio, na esfera da nossa gente.
Os intelectuais, em surdina, nos bastidores, davam sinais de não dormirem.  A agitação motivada pela insatisfação latente, deflagrava aqui e ali, nos meios estudantis e artísticos, mercê sobretudo, da juventude e da irreverência.
De quando em quando, uma "fumarola" consëguia  fugir às redes do controle repressivo do Estado, e da sua Polícia de Investigação e Defesa, fosse na literatura, na música, nas artes de uma forma geral, na clandestinidade de uma ou outra reunião cultural, de uma ou outra clandestina movimentação política e social.
À censura, sempre atenta, pouco escapava, e muitos eram os "malabarismos" criativos,  engendrados  para se  fugir ao "lápis azul".
Os presos políticos, e os deportados para  fortes e campos de concentração, engrossavam  o número dos que caíam nas malhas do aparelho.  As perseguições eram comuns. A delação também.
Viviam-se tempos de desconfiança permanente, de silêncio ... de túmulo !

E a semente de Abril germinou e deitou raízes.
As raízes crescem na escuridão.  As primeiras folhas verdes, vêm à luz do sol, quando a planta começa a autonomizar-se.
Assim foi também Abril !!!

Ainda que grassando em terreno politicamente pobre, apático, por força das circunstâncias, desinformado, cultural e intencionalmente abandonado, pouco consciencializado, onde o analfabetismo e a baixa instrução eram aproveitados em prol dos interesses do autoritarismo dominante ...
Ainda que marginalizados socialmente, com uma "décalage" assustadora e injusta, entre as classes altas privilegiadas e o grande mar humano, desfavorecido e ignorado, preterido e perseguido ... os cravos vermelhos vieram à luz, nesse dia 25, quando as Forças Armadas, esgotadas, exauridas e delapidadas por uma intervenção militar exasperante, sem fim à vista, nas Colónias, levaram a cabo um golpe mais que perfeito ( depois de uma intentona frustrada, dias antes, com origem nas Caldas da Rainha ), e conseguiram, com mãos limpas, em contornos quase novelescos, derrubar todas as estruturas do regime ...
Conseguiram trazer a alegria às ruas, onde a mobilização popular engrossou as fileiras, numa miscigenação extraordinária  com os militares, e onde se operou o milagre da liberdade renascida, ansiada ao longo de cinquenta  anos de obscurantismo, miséria, repressão, sofrimento e perda de identidade de um país !!!

Foi uma revolução muito particular...
Foi uma revolução romântica, levada a cabo também por um povo habituado a sofrer, um povo de ideais e fibra, mas também de brandos costumes, de abnegação, de espírito de sacrifício e tenacidade ...
Foi uma revolução adocicada pela esperança, pela convicção, e pela certeza tida de que o pesadelo terminara !...

Desde sempre, Abril foi acarinhado no coração dos portugueses.  Quem o viveu e percorreu os seus caminhos, não o esquecerá !
Não se descreve ... não há como !...
Descrever o antes e o depois de Abril, às gerações de hoje, é uma tarefa inglória !
Historicamente não será difícil. Documentalmente, tudo já foi exaustivamente abordado, dissecado, escalpelizado, contado.
São factos objectivos e incontestáveis.
É contudo risível e descontextual, acreditar-se que se podem, pela narrativa, abrir janelas que presumissem dar-lhes um vislumbre dessas realidades, com fidelidade, ou sequer aproximação.
Efectivamente,  como "soi dizer-se" ... "contado, não se acredita " !... Apenas a vivência das circunstâncias o permite.  E isso é privilégio de uma geração ... a minha !!!

A caminhada de quarenta anos já, foi trilhada.
Adulteraram-se os ideais e a ingenuidade de Abril.  Subverteram-se as suas expectativas !...
Como um grande acontecimento, de uma envergadura extrema, de uma aposta exaustiva, de uma responsabilidade não passível de erro, a descompressão subsequente, confrontou Portugal, com um Portugal embalado nos braços, sem que soubesse muito bem o que lhe fazer, ou por onde começar ... hercúlea que era a tarefa tida pela frente ...

"Grande nau ... grande tormenta" !!!
E como uma mãe de primeira viagem, em que o nascituro lhe cai repentinamente no colo, Portugal foi avançando, errando mais que acertando, porque também a revolução não se acompanhava de livro de instruções, e a massa humana que lhe subjazia,  impreparada, ingénua, titubeante !!!...

As máculas e as cicatrizes foram-se avolumando, as memórias de Abril foram-se desvanecedo, os véus do sonho foram caindo, decepcionados, o espírito dos cravos rubros foi-se defraudando ... à medida que a geração que os regou também vai indo, no vórtice do tempo !...

Hoje, a herança que nos resta, a nós, a estes que fomos para a rua naquele dia, que fomos para o Carmo, para a António Maria Cardoso, que fomos para Caxias, para Monsanto, que percorremos fraternalmente Lisboa, ao som das canções de Abril, que parecia termos o Mundo nas mãos, em presente tão generoso do destino ...
a estes que acreditámos e esperámos ...
o que nos resta, é só já quase, reviver uma efeméride paisagística em termos políticos e sociais, um dia de "pic-nic" democrático, de romantismo e afago nos corações mais revivalistas ...

...é só já quase, procurarmos com uma saudade infinita, aqueles que nós éramos há 40 anos atrás,  numa busca irreal e inútil ... e deixarmos escorrer uma lágrima teimosa, enquanto que o nó da garganta  não desata nunca  mais !!!...
... E  navegar ... navegar !!!...

Anamar

quinta-feira, 24 de abril de 2014

" OS CAMINHOS DE ABRIL ... "



Eis que Abril chegara,
e de repente
uma luz se acendeu na escuridão
O povo acordou, e foi em frente
dizer basta à miséria e à servidão !
Abril abriu em nós fogachos raros,
que nem sequer sabíamos existir,
abriu sonhos, abriu esperança, abriu sorrisos,
e uma indomável força a explodir ...
Abril deu aos rostos  a alegria
em que o nosso sonho confiou,
a alvorada acordou um novo dia,
que em indízível  fé nos inundou !...
Abril  trouxe às gentes, a criança
que na alma embalava um sonho puro ...
Uma criança com um cravo na espingarda,
um menino envolvido numa farda,
homem-gigante, um herói de outro futuro !...




E hoje, quarenta anos estão volvidos ...
O caminho de Abril  foi perdido
às mãos de quem o não viveu então ...
Portugal de joelhos e sofrido,
humilhado, em desespero e vendido,
chora o cravo que murchou no coração !...
Abril adormeceu, ou o mataram ...
profanaram, destruiram, e calaram
seus ideais, os seus valores ... sua razão ...
O povo volta à rua indignado,
e mesmo já sem fé e destroçado,
é um povo que resiste e que diz  "não" !!!...
Prenderam-nos o sonho, e algemam a vontade
Amordaçam-nos a esperança e também a liberdade ...
Tentam de tudo p'ra lhe dar um fim ...
Num estertor cansado de agonia,
vamos reaver a utopia,
e sonhar Abril, ainda assim ...
Porque Abril foi um brinde do destino
que a sorte generosa, ao meu, ditou ...
Poder tê-lo vivido, um privilégio ...
da minha geração, um sortilégio ...
É sem dúvida outra gente,
aquela que por Abril passou !!!...


                                  25  DE  ABRIL  SEMPRE !!!


Anamar

domingo, 20 de abril de 2014

" NO RESCALDO DA PÁSCOA " - lá, no meu Alentejo ...




E a Páscoa terminou !
Terminou, como tudo termina.  Os pratos, os copos e os talheres regressaram aos armários, o resto dos doces prometem engordar-nos ainda por mais alguns dias, a toalha da mesa, mergulhou na máquina.

As saudações, os votos, os desejos, em magnânimos gestos de simpatia, ditos e repetidos a cada esquina, pelas pessoas conhecidas, recolheram por mais um ano.
Irá ouvi-los de novo, quem viver.
A pequenada torce o nariz, perante já só a um restante único dia de férias.  Quem viajou para a província, para famílias distantes, ou simplesmente quem se permitiu um luxozinho de um fim de semana no Algarve, esperando um sol que nunca veio, tem agora pela frente, o frete da viagem.
Os carros cheios ( de gente, de batatas ensacadas, frutas do pomar, mais as chouriças, as alheiras, o queijo ou o presunto, que aconchegarão as mesas nos tempos próximos ), fazem-se à estrada ... que amanhã, é dia de "pica bois" !!!

Entretanto, o Benfica sagrou-se campeão, creio.
Adivinhei-o, pelas buzinadelas de carros em desvario, num gasto de gasolina tresloucado, e p'los gritos de quem, pendurado das respectivas janelas, acena com cachecóis  e bandeiras, ou sopra a plenos pulmões, nas  cornetas ensurdecedoras, numa manifestação colectiva, de insanidade também colectiva !
Salva-se o país, resolvem-se os problemas ... o Éden espera-nos !!!...

A família que chegou, almoçou e já foi. Cumpriu-se a tradição, reviveram-se as memórias, exerceu-se um ritual de praxe ....
O dia ... bom, o dia esteve mais de sexta-feira da paixão, do que de Domingo da Ressurreição.
O cinzento plúmbeo de nuvens carregadas, as gotas de chuva, aqui e ali, transformaram este Domingo de Páscoa, num dia algo taciturno, nostálgico, sombrio mesmo !  O sol esquivou-se o tempo todo, e a Primavera regateou dar o ar da sua graça.

No meu Alentejo, quando eu era menina, a segunda-feira de Páscoa, o dia de amanhã  portanto, era um dia particularmente alegre ... era  um dia de reunião familiar outra vez, de encontro e partilha.
Fazia-se o  picnic  anual  na ribeira, junto à albufeira,  para onde  toda a família convergia,  nos  carros de varais ou de canudo,  puxados pelas mulas ou pelos cavalos,  com as mantas para se cobrir o chão, as toalhas de quadrados para se pôr a "mesa",  os mantimentos acondicionados nas alcofas e nas cestas de verga, o garrafão da boa pinga, as frutas e as iguarias sobrantes da Páscoa.

Sempre era mais do que um carro a fazer-se ao asfalto, porque a família ainda era grande então.
Por isso, a viagem era uma festa !  Desafiavam-se no cortejo, acenavam-se em cumplicidade, desgarravam nas modas que cada um puxava, cantavam-se as "saias" sem memória ...e cada qual  ostentava o sorriso mais feliz que lhe inundava a alma !
Os velhotes de chapéus de aba larga, iam debaixo de guarda-chuvas, grandes e pretos,  porque o sol que nunca nos faltava nesse dia, já esquentava um pouco além da conta.
As mulheres levavam nas cabeças, lenços garridos de flores, e  a  miudagem, ansiosa por chegar, impaciente por iniciar as brincadeiras, e esfomeada porque o ar do campo sempre abria o apetite, não via a hora das águas da albufeira se anunciarem numa clareira de curva da estrada ...

Chegados ao local, iniciava-se a labuta da logística, ou seja, a escolha da melhor sombra, sob os chaparros mais generosos, em meio das maias cheirosas, que já exibiam o dourado da floração.
Dividia-se com amigos, vizinhos e conterrâneos, um terreno planozinho, em leve declínio até às águas da albufeira ...  Dariam jeito, para refrescar os pirolitos, para manter o almeice fresco, para os que gostavam, para lavar as mãos ... ou mesmo para a pequenada chapinhar, enquanto os adultos dormissem a sesta, depois do repasto.

As favas, ricas de coentros e alho, a salada de alface em juliana, o borrego assado com batatinhas coradas ... claro que os inevitáveis pastelinhos de bacalhau  da tia Zézé, as azeitonas retalhadas, os queijos curados, de Évora, o arroz doce bordado a canela,  pelos dedos finos da avó, as queijadas, as merendeiras e os bolos de folha, vindos da mesa do Domingo ... e um bom tinto insuspeito da Adega Cooperativa, mais os pirolitos mergulhados na fresca da água ... tudo, tudo isso, era mais do que um manjar inolvidável dos deuses !!!...

Os avós dormitavam nas mantas, as muares pastavam por ali, os adultos conversavam, riam, cantavam ... e a criançada perdia-se no esconde-esconde atrás  das moitas de murtas, giestas e alecrins,  ia aos grilos, ou apanhava raminhos das papoilas, das maias, dos malmequeres, da urze,  da esteva, do rosmaninho, e de toda a panóplia de flores silvestres, que os campos primaveris  já ostentavam há muito !

Tantos  anos  volvidos,  continuo  a  emocionar-me,  desencavando  as  memórias  doces  de  então !
Continuo a sorrir nostálgica e melancolicamente, percebendo a marca do tempo em todos nós, nos que há muito "desertaram" ... nos poucos que ficaram, e que são os fiéis depositários disso mesmo ... as memórias, que fazem uma geração, uma identidade, uma terra, um povo !
De facto, era tudo tão genuíno, tão autêntico, tão simples e despretensioso ... tão coração às escâncaras, como o é aquela planície sem fim, sem muros, sem portas ou janelas ... sem peias, limites, ou horizontes !!!...

E que saudades do meu Alentejo !!!...


Anamar

sexta-feira, 18 de abril de 2014

" MEMÓRIA, TRADIÇÃO OU PRAXE ? "




A Páscoa hoje é pretexto ... ou melhor, a Páscoa hoje desencava  memórias, busca emoções, se calhar hábitos antigos, ou talvez um pouco mais ... lembranças doces !...

Sim, doces como o doce intenso das queijadas, dos pintainhos feitos pela tia velha, das amêndoas francesas, e torradas com canela ou chocolate, compradas pelo pai ( As únicas que havia ... Não existia cá, a chinesice da sofisticação de cinquenta mil tipos diferentes, a desafiar os bolsos ... ).

Realmente as Páscoas doces, bem doces, são as da minha infância, lá no Alentejo distante, como quase sempre, as memórias doces, bem doces, sempre correspondem a memórias infantis, o período áureo e privilegiado das vidas.
Todas as vivências do ser humano, são acompanhadas  de cheiros e de sons, além das imagens que resistem ao implacável do tempo.
E quando penso em Páscoas, as que se me iluminam na mente e no coração, são as ensolaradas, são as dos campos verdes e floridos, são as das planuras sem horizonte, com  aromas adocicados no ar, com som de chocalhos no pastoreio, de badaladas de campanários ao longe,  nas aldeias perdidas, de chilreados, trinados e voos rasantes, charneca afora ... de balidos ensonados entre papoilas e macelas, do roçagar da aragem, pelas oliveiras e sobreiros do montado.
São Páscoas preguiçosas, de férias escolares, de roupa estreada, de brincadeiras no largo, de alecrim nos altares das igrejas ( fardadas a preceito ), e das glicínias e jarros brancos nos andores dos santos, na procissão do dia ...

Vieram depois as Páscoas na Beira ... já contei vezes sem conta.

Eram outras,  essas Páscoas. ...
Para trás, ficava a família do Alentejo.  Eram agora outras, as gentes que se sentavam à mesa, era agora outra, a ementa que a recheava ...
O sol e o verde dos campos, persistia.  Apenas, o ar soprava da montanha.
As andorinhas e os outros pássaros regressados, também por ali andavam.  Cegonhas, não ... essas gostam mais do sul.
Os avós e as tias velhas, já não estavam, o pai também  não !
Todos haviam já partido, e levado com eles, a minha meninice.  Agora era a meninice das minhas filhas.
A Páscoa agora era delas.

A ingenuidade e a simplicidade de tempos idos, dera lugar a outros figurinos.
O ensopado de borrego, ou o cabrito no forno,  davam então lugar à chanfana, preferencialmente.
As queijadas, os bolos de folha, as merendeiras, os pintainhos, o bolo de buraco e as amêndoas em pacotinho de papel transparente, davam lugar aos ovos de chocolate recheados de amêndoas, às lampreias de ovos, aos ninhos da Páscoa ... O folar persistia, contudo !
O coelhinho da Páscoa fazia a sua aparição triunfal, ao tempo !...
Tudo já era menos doce para mim ... porque eu virara adulta, afinal !...

Hoje ... bom, hoje a Páscoa é pretexto ...
Pretexto para desencavar memórias, buscar emoções, hábitos antigos, ou talvez ... lembranças doces !...
Ou será simplesmente praxe a cumprir ?!

Hoje, a Páscoa da grande cidade, não tem procissão, nem altares aperaltados.  Não tem glicínias, nem jarros brancos ... nem sequer alecrim, já florido nos arbustos das matas.
Não tem cegonhas à vista, e restam-nos os pombos residentes, porque as andorinhas também não se afoitam muito por aqui.  Tudo é demasiado poluído para elas.
Não há sinos, nem chocalhos, menos ainda macelas e papoilas.  Também não há montado, nem montanhas ... temos o betão, as torres de gente anónima, e a ausência de jardins.
Resta-nos o sol, a fazer malabarismos de esconde-esconde, ao pôr-se por entre os topos dos edifícios desalinhados ...
E temos super e hiper-mercados, atulhados de ovos de chocolate e amêndoas  em série ... e não mais a mercearia do Sr. Manel, com alguns pacotinhos de papel transparente, na montra.

E resta-nos o almoço de domingo, com meia dúzia de gatos pingados em volta da mesa, num sexto ou sétimo andar de um qualquer edifício, com  os  narizes  a  esbarrarem  nas  janelas  dos  prédios  da  frente ... e  onde  as  ausências  ganham  já  largamente,  às  presenças ...
Estas Páscoas, não mais semeiam memórias.  Estas Páscoas não têm cheiros, sons, música, doçura a perpetuarem-nas ...

Restam-nos rostos de crianças sem emoção, entusiasmo, ou mesmo felicidade ... a cumprir-se calendário ...
Porque  de  facto,  tudo  não  passa  disso  mesmo  ...  mais  um  simples  almoço  de  domingo !!!...

Anamar

segunda-feira, 14 de abril de 2014

" MIL COISAS ..."




Mil coisas para fazer ...

Ao que parece, Manuel Forjaz tinha mil coisas para fazer, por dia.  Fazia listas exaustivas de actividades, programava a vida, a mil à hora ...

Deixei de "ter coisas para fazer" por dia, e acomodei-me a amodorrar-me no meu canto, a esperar o dia cair lá fora, a olhar o sol  a  descer nas nuvens ou no céu limpo, azul ou róseo, até tombar na linha que determina estar na hora de fechar as cortinas ...
Indiferentizei-me quase, com o passar das horas,  num desperdício injusto e  aterrador.
Insensibilizei-me, numa espécie de espera de vida a correr.
E como um doce requentado, fora de prazo, vou azedando aos poucos.  Como uma maçã bichada, esquecida na cesta, vou apodrecendo aos poucos ...  Como o atleta esgotado que atira a toalha ao tapete, desisto todos os dias um bocadinho ...

E não faz sentido, não é lógico, não é justo !...
Caracoleta que estou, vou morrer de preguiça  de  me mexer, me agilizar, me interessar, lutar, ou pelo menos esbracejar ... acordar ... viver !!!

E vivo no escuro, no lusco-fusco, na penumbra ... no crepúsculo interior.
E vivo de pescadinha de rabo na boca, em círculos concêntricos e herméticos, sobre si mesmos, sem porta de saída ...
Acordo, olho a paisagem lá fora, vejo o filme a passar, película igual todos os dias ... e não saio da plateia ... não abandono a sala ... nunca ...

Faltam-me razões.  Razões de acordar, razões de rir, razões de sonhar, razões de querer e de crer, também.
Faltam-me  forças para serrar as grades que me prendem por detrás dos jardins, que me enjaulam em gaiola de cansaços ...
Faltam-me motivos que justifiquem que eu espere ... a Páscoa, o Verão ... o Inverno outra vez ...
Faltam-me justificações para que me sobressalte, me surpreenda, me agite, me encante, me emocione ... Justificações para que chore ...
Chore ... choro de vontade, choro de avalanche que rebente diques, choro de excesso, choro de exagero ...
Porque sempre fui uma mulher de excessos.  A minha alma não vive regada apenas ... só vive inundada.
Não  vive  morna ... só  vive  a  queimar.  Não  vive  de  mais  ou menos ... necessita de tudo.  Tudo, até esgotar !...

Não consigo viver de dias pardos.  Ou quero dias de escuridão absoluta, com borrasca demolidora por sobre a cabeça ... ou dias em que o sol me cegue os olhos.
Em que os azuis, os verdes e os prateados do mar, me ofusquem .
Dias,  em  que as cores das  flores  desabrochadas, ganhem  às  cores do  arco-íris,  porque ainda mais belas e variadas ...
Dias em que as borboletas acenam liberdade,  em volteios azougados
Dias em que os cheiros, não cheirem só ...  Mas me sufoquem de aromas entorpecentes ...
Dias  de  conversar  com  os  pássaros, dias  de  adormecer  no  batuque  dos  tambores  na  savana  de  África, dias  de  me  largar  louca, com  os  cabelos  empurrados  pela  brisa  da  tarde ...

Eu tenho urgência !

Urgência de ter mil coisas a fazer por dia, mil sonhos a sonhar por noite, mil palavras a dizer a mil ouvidos de escutar, de ter mãos para agarrar, braços para prender,  boca para sugar ... de ter futuro para alcançar, de ter vida para viver ...
Urgência de renascer, urgência de trilho para andar, ar para respirar, praias para naufragar, montanhas para escalar ... todas as cores para pintar ... qualquer coisa ... qualquer coisa ... mil coisas ...

Porque eu tenho urgência mesmo !!!...

Anamar