quarta-feira, 26 de novembro de 2014

" OLHANDO P'RA DENTRO DE MIM ..."



E o céu lá longe,  fechou com uma estranha sobreposição de nuvens, como frente de rebentação  no areal deserto.   Por detrás daquela abstracta imensidão, um fogacho laranja iluminava ainda o firmamento  no estertor final do dia !

Era mais um dia de Novembro, deste Novembro pardo, que sempre se veste de  ocres queimados, de vermelhos envelhecidos, ou de verdes  recolhidos,  em tons de musgos beirando o Natal.
As montanhas no firmamento pariam água, água e mais água, neste nosso desconforto de desesperança !
Frio ... já algum frio, que me parece mais interior, ainda assim .
A menos que a solidão seja gelada ... Acho que a solidão é gelada, sim !...

Não há sobre o que escrever, a não ser que eu devasse  janelas que se iluminam, penetre nos espaços de aconchego, me deixe embrulhar em sonhos que sempre voejam por aqui, que não são meus,  mas são levados nas asas estendidas das gaivotas que recuaram.
Desistiram de mar, desistiram de escarpas empoleiradas, desistiram de inventar praias de maré baixa ... e o seu grasnido ecoa em agudos estrepitantes, pelos céus.
Lá de cima, já se deve ver o Natal, a progredir em  passadas largas.  Os azevinhos engalanados enrubescem,  e pingam as bagas encorpadas, ao longo dos caules espinhosos.

Daqui "vejo"  a mata. Vejo a serra penumbrenta, a cheirar a terra molhada, parideira de frutos e tímidas flores de Inverno.  Cheira a carqueja, cheira a lareiras distantes, e cheira à humidade que amarinha pelas pedras e pelos troncos ...  As clareiras escureceram, neste dia apagado há tempo já ...
Os castanheiros bravos deixaram de cuidar dos seus ouriços  entreabertos, que espreguiçaram  as castanhas, a esmo,  pela terra fria ...

Daqui "vejo" o mar. Vejo as falésias e as gargantas profundas das arribas, a contorcerem-se, no açoite impiedoso da rebentação ...
Vejo  o  verde  das  rochas,  tapadas  e  destapadas  pelo  impudor  das  marés.
E vejo o véu deixado na areia molhada, pelo noivado permanente das águas, que sempre chegam e sempre partem ...
Como tudo na vida ...

E chega-me o cheiro.  O cheiro doce e salgado das maresias ancestrais.  O cheiro do pilriteiro maduro, das urzes e das estevas do bosque,  Dos cedros, dos abetos, do gilbardeiro e das roseiras bravas.  E todos os cheiros que eu quiser, porque sou livre de os inventar ...

E chegam-me todas as emoções adormecidas no meu eu.  Reúno os escombros dos sonhos sonhados, e fecho os olhos, numa dolência de recolhimento, de entorpecimento da alma ...  de  cansaço indiferente,  que  já  não  se  subleva,  porque  não  tem  força  para  se  erguer ...

Chega-me  tudo ... tudo  o  que  estranhamente  duvido  ter  sido ... porque  parece  que  nunca  foi .
Chega-me a palidez de sépias antigas, o sombrio de memórias que tiveram cor, e luz, e cheiros e risos ... e murcharam no pé , como um botão de camélia que não teve força para abrir ...
E sinto-me a fenecer, como o sol precário desta tarde, a desistir ...


Anamar

sábado, 15 de novembro de 2014

" TOCANDO EM FRENTE "



A vida encarrega-se ...

De repente, como uma onda alterosa, ela ergue-se e arruma o assunto, que é como quem diz, decide inapelavelmente o que entende ...
Sem que tenhamos capacidade de resposta ou de insurgimento.
Assim, numa curva da estrada, no virar de uma esquina, da noite para o dia, de supetão, surpreende-nos como o salto da serpente emboscada, sem previsão ou acautelamento possível, em ratoeira perfeita.
E transforma-se naquela vaga do tsunami, que todos já vimos em imagens conclusivas.  Mostra-se, vem e varre sem piedade, tudo o que tem pela frente.  Indiferente ao "tudo", mesmo ...

Deve ser isso que consubstancia a afirmação corrente : " O  Homem põe e Deus dispõe" ... e que fará todo o sentido para a maioria das pessoas.
São marés, dizem uns.  Há fases assim, dizem outros ... em que tudo parece desfazer-se em espuma, em que o céu se abate, o chão foge, e em que como areia, tudo nos escapa, de brincadeirinha, por entre os dedos.

E pronto!  Os caminhos ficam todos fechados.  Não adianta !
Resta-nos aquele sentido de preservação e de sobrevivência que nos toma, quando a catástrofe desaba bem por cima das nossas cabeças.
Encolhemo-nos, enrodilhamo-nos qual feto na protecção uterina, imobilizamo-nos ... ficamos quietinhos e esperamos.
Esperamos que talvez a muralha de adversidade que se ergueu à nossa frente, passe ( tem que passar, porque a resistência humana tem limite ), que  talvez o céu brutalmente negro, consiga parir de novo um sol luminoso, que a amenidade subsista à chuva torrencial, e que na terra apareçam novos caminhos na ressaca da destruição.

O Homem encerra em si o princípio da regeneração.  É instinto, é característica de espécie, enquanto ser vivo que é.
"Deus dá a roupa consoante o frio", diz a sabedoria do povo, que não erra.
Como tal, depreende-se que sempre estaremos artilhados com o necessário, nem mais nem menos, para enfrentar os carregos da nossa existência ... ainda que ela se encarregue por nós ... ainda que ela chegue, e dê o golpe de misericórdia !

A vida é dos fortes.  A vida é de quem ousa.  A vida é de quem a enfrenta, dos audazes e lutadores ... E  mais meia dúzia de chavões a propósito, poderiam ser ditos, pressupondo que ... " dos fracos não reza a História".
Deve ser verdade.  Acredito que o seja !

Então e esses ?  Os menos resistentes, ou os menos "equipados", ou os mais cépticos, ou os menos pragmáticos ... ou os menos capazes ?  O que se lhes faz ?

Bom, talvez pela seriação natural imperativa, não tenham mesmo futuro.
Talvez sejam destinados a sucumbir, no apuramento da espécie.
Talvez  a  vida  os  expurgue,  num  processo  selectivo,  natural,  implacável  e  óbvio ... Talvez !...

E a vida redesenha-se, queiramos ou não.  Sempre se redesenha !
E muitos sonhos adiados, sucumbem simplesmente num segundo.  E somos então lançados num vórtice que primeiro nos baralha, depois nos atordoa, e finalmente nos resigna, por impotência !

É frase feita e gasta, mas de facto, cada vez mais, "carpe diem" é a única coisa certa que nos resta, a única que podemos e devemos fazer, por inevitabilidade ...
Tudo o mais é utopia pura !...

E por isso, provavelmente cumprir a Vida ou ser inteligente perante ela, seja simplesmente ... "compreender a marcha e ir tocando em frente"... até porque ... "num dia a gente chega, e noutro vai embora ",  afinal ...

Anamar

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

" UMA MÃO CHEIA DE NADA ..."





Os dias são o que deles fazemos ...
Os dias são o que neles vivemos ... Vivemos ou "vivêmos" ... p'ra se perceber melhor ...

Já gostei muito dos sábados !!!  Eram o meu dia sonhado e inventado, nos sete que desfilam na semana.
Era o dia esperado, criado e recriado nas asas da imaginação.  Mesmo que fossem sábados como hoje ... ou melhor, sobretudo se fossem sábados como hoje, de cara feia, cenho carregado, de escuridão, vento e chuva, distribuídos por quem gere estas coisas ...

Eram sábados com história ... muitas histórias ! Eram sábados de sala iluminada, de vamos ali e voltamos ... golas levantadas já, sábados de correr à chuva em chapéu dividido, com as gotas trazidas nas rajadas do vento  a molharem a meia de licra ( comprometendo a exigência da toilette ), empoleirada nos saltos altos em harmonia.
Eram sábados com vozes, conversas, risos e gargalhadas. Sábados aquecidos no tinto de  copo  de  pé alto,  adoçados  na  cremosidade  do  chocolate,  brindados  no  cálice  de  Limoncello ...
Olhares  cúmplices  e  segredos  trocados.  Eram  sábados  com  alma.  Eram  sábados  com  vida !
E um calor que trepava, amarinhava, e envolvia ... Capaz de  trazer à vida, alguém que partiu ...

Não era esta coisa de silêncio a esfumar-se entre as quatro paredes ... sempre  só as quatro paredes .
Não era este abandono gélido que me perfura até às entranhas.  Este som que não ecoa, estas palavras que não são ditas ... porque não há quem diga palavras, por aqui ...
Não era este frio que atravessa as vidraças, pela ausência de sonho, e me tolhe, me limita, me amarfanha ...
Não era esta ausência de tudo, mas sobretudo da esperança.
Não era o saber-me viva, apenas porque respiro ... ainda !
Não era o mitigar-me com os farrapos das nuvens, olhando o céu que se redesenha a cada golpe de vento.  Como se  a  faxina do firmamento  pudesse soprar-me  para longe,  este peso de nuvem negra sem arco-íris !...

E anoiteceu.  Anoiteceu abruptamente ... insensivelmente ...

E tanto sábado que eu  tinha então, ainda p'la  frente ... e tão pouco sábado que tenho hoje, entre os dedos ...

Ainda "cheiro" os sábados, porque cada hora era uma hora de ser. Cada hora tinha uma batida diferente do coração, e um sorriso específico nos lábios.
Havia os de sol, que eram dourados, só dourados, e havia os de chuva e escuridão que eram doces, apenas doces ...
E eu, era aquela ... de então.  Não esta de hoje, sem identidade definida, vazia, amorfa, indiferente.
Sonâmbula na vida, distante, esquecida ... cansada !

Oiço o grasnido da minha gaivota já perdido no cinzento fechado, aqui por cima.  As asas estendidas e o peito à aragem, levam-na por círculos longínquos, adormentados,  para bem longe da minha janela.
O horizonte limita-me a vista e tolhe-me o pensamento ...

Por que raio ainda existem sábados, nas semanas ?!...

Anamar

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

" POR UM PRATO DE LENTILHAS "



Tudo ficou cinzento, circunspecto, fechado ...
Fechado o tempo lá fora, e fechadas as vidas das pessoas.

Li há dias, sei lá onde, que a crise sem fim que atravessamos, quase já perdemos o norte desde quando, teve o mérito de desenvolver criatividades, alternativas, desafiar coragens, espicaçar sonhos, despoletar o arrojo, varrer a preguiça e a acomodação ... e quiçá, desenvolver o que de melhor o ser humano guardava, até insuspeitamente, dentro de si.
A crise empurrou as pessoas, lançou-as no vórtice da incerteza, e como tal, fê-las abrir pára-quedas, esticar as asas, percebendo que teriam que voar.  Coisa que até desconheciam ser capazes de fazer, em alguns casos !!!

Tudo certo. Até aqui, acredito que sim.
Diz o povo que a "necessidade é mestra de engenho".  E o povo nunca erra, que eu sei !

Mas se estes aspectos representam a parte "boa" da crise, ou melhor, a parte menos "má", que dizer-se de todos aqueles que fizeram emergir no ser humano, tudo o que de pior o caracteriza, tudo o que de mais reprovável ele encerra ?

Neste momento, o oportunismo, a má formação, o mau caractismo, a indiferença perante  valores (que de repente sucumbiram ao "salve-se quem puder" ), o inescrupulismo , o trucidar do companheiro, o sacanear do próximo, a mentira, ou então a cómoda  ausência de verticalidade, se essa puder prejudicar e comprometer ... manifestam-se a cada esquina, em cada local de trabalho, em cada grupo social !!...

Que dizer do encolher de ombros, do assobiar p'ro lado ( muito conveniente quase sempre ), ou até mesmo da conivência com situações comprometedoras, pouco claras, ou mesmo reprováveis ... só porque há que garantir os magros níqueis ao fim do mês ... a qualquer preço ??!!

Que dizer-se quando percebemos que as pessoas que julgávamos mais impolutas, verticais e dignas, afinal traziam ao pescoço,  um preço na coleirinha?!!!

Que dizer-se quando percebemos que os reais valores que norteiam o ser humano, são os do oportunismo, os da defesa estrita dos seus interesses, os da sabujice miserável, os da subserviência descarada, o "ficar-se bem no boneco"  ... ainda que no aconchego da sua  consciência, haja um diabinho reprovador e  inclemente ??!!

Que dizer-se então das pessoas instaladas, em lugares de cúpula ( seja ela qual for, e tenham lá chegado sabe-se lá por que meios ), que em manobras kafkianas, prepotentes, sem ética ou rigor, usam e abusam dos privilégios discriminatórios que esses lugares lhes conferem, do seu poder decisório arbitrário, e da sua falta de critério e princípios ... e jogam com os "peõezitos" no xadrês, divertindo-se , mexendo-os a seu prazer, movendo-os e manipulando-os maquiavelicamente, de uma forma aleatória, sem isenção, distante e indiferente ... puxando os seus cordelinhos, retirando os tapetinhos, e abrindo alçapões e ratoeiras ??!!
Conhecem para isso claramente o processo da emboscada, imbuem-se do gozo que dá o jogo do gato e do rato, usam, brincam, sequestram, limitam, desarmam, e reduzem ao silêncio, as presas que lhes caíram na teia ...
E iniciam processos persecutórios, discriminatórios, que destroem a vida das pessoas ...
Processos suicidas, sem defesa, com meandros obscuros e controversos, altamente discutíveis, porque cautelosamente engendrados.

É mais ou menos este, o filme de terror que se vive em muitas empresas, e locais de trabalho, dos mais humildes, às mais renomadas multinacionais, neste momento, neste país, nesta Europa dita civilizada, onde os Direitos do Homem são lei ... dizem !.

Se se cai na graça dos chefes, dos tais deuses de pés de barro que ali estabeleceram o seu reino omnipotente, tudo bem. A paz existe, o convívio privilegia-se, a camaradagem e mesmo a amizade, instalam-se ... até ver.
Mas se por um qualquer infeliz desígnio do destino, o "peãozito" se põe em bicos de pés, discorda ou questiona regras, valores ou determinações  ( mesmo  numa perspectiva pedagógica ) ,  se ainda que com razão, põe em causa posturas, abana estruturas, denuncia irregularidades abafadas, se torna incómodo porque estende o dedo acusatório a interesses instalados, desmascara o que jamais poderia ser desmascarado, "cutuca" vespeiros não convenientes ... mexe na merda ... Ah, então, sem direito a demais explicações, análise ou defesa, é arbitrariamente banido do tabuleiro, e confrontado com a ameaça velada, de não conseguir fazer jogo, em nenhum outro xadrês ...
Ao alcance dum simples "pufftt"... o destino de uma pessoa,  é jogado na sarjeta !...

E assim vai a vida de muitos portugueses ... acreditem !
De facto, "o mar não está p'ra peixe" ... E como há que sobreviver, ou as pessoas emigram nas condições que lhes surgirem, ou se submetem, entram no esquema, engolem sapos, aceitam as descriminações sem levantar "ondas", e tornam-se cegos "yes man" ... aceitam submissamente toda a gama de chantagens ou manipulações, de cabeça baixa ... depõem armas, empacotam os sonhos, as veleidades de justeza, de seriedade, de verdade e de aposta ... de luta, de profissionalismo ... em suma, aceitam "vender" os seus ideais ... por um triste "prato de lentilhas" !!!...

Já o D. Quixote se não deu bem ... e a crise ainda não estava instalada !!!...



Anamar

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

" ERA ASSIM NOVEMBRO "



Começou Novembro.
Novembro, aquele mês com que não convivo pacificamente,  no elenco dos doze, com que cada ano nos brinda !   E ironicamente, ou talvez não, nasci nele !
O que é um facto é que, com ou sem S. Martinho, com mais ou menos sol a brincar de Verão ... quando Novembro chega, o cheiro a Outono  instala-se definitivamente, e o castanho, os laranjas e os amarelos queimados, pintalgam tudo por aí.
Os dias parecem deitar-se para a sesta, num remanso aconchegante que convida a toca.  O  ar adocica, amodorra, o tempo recolhe, preparando a hibernação que se aproxima ...
As árvores despem-se ;  os parques atapetam as suas alamedas com folhas adormecidas, e há uma incontestada sonolência, na alma de todos os seres vivos ...
Até os pássaros emudecem, e os silêncios descem  à Terra !

E  havia aquela casa junto ao lago...
A bordejar-lhe as margens, os canaviais baloiçavam preguiçosos, perante a aragem que começava a refrescar.
Bem perto, a floresta de coníferas, de castanheiros, de plátanos, de zimbros , bétulas, carvalhos e olmos, começava a subir e a adensar-se.  As bagas,  que aprovisionariam as "despensas" de esquilos, martas, arminhos, lemingues e outros ... adornavam os caules. Os cogumelos amontoavam-se na sombra  do arvoredo, e a quietude pairava ...
As luzernas dos raios de sol que até há pouco lhe rasgavam ainda as entranhas, já não se definiam como antes.  Sem dúvida o sol andava bem mais baixo !
Os líquenes e os musgos revestiam troncos  que em permanência viviam na penumbra.   As formações dos gansos selvagens em migração para o sul, eram esquadras aladas, cortando os céus, com determinação e objectividade !...

Toda esta paz e serenidade, era o que de bom Novembro trazia ...

O barco, com os remos esquecidos, indolente, baloiçava imperceptivelmente na amarra de corda que o sujeitava à margem.  Também ele parecia dormitar ...

E percorria-se a mata, de cesta no braço, de cachecol ao pescoço, botas nos pés, embiocados já, numa meiinha de lã.
E eram de mitilos, de amoras, de zimbros, de medronhos, de groselhas, framboesas ou arandos ... de toda a panóplia de frutos vermelhos ... mas também de maçãs, de avelãs, de castanhas e  nozes ... a profusão das compotas a encherem a despensa,  a doçura das  geleias a confortar os corpos, o calor dos licores, a aquecer os espíritos ...
ao serão, quando já sabia bem cutucar as brasas, assar as castanhas no borralho, e ouvir histórias antigas, que saltitavam entre gerações !

Novembro era a luz que diminuía, e se coava, eram os lobos, os alces e os ursos, lá mais longe, que se adivinhavam na montanha.
Eles apareceriam, quando o manto branco cobrisse finalmente tudo !
Até lá, só os sons tão conhecidos, nos chegavam, pelas madrugadas e pelas noites de breu, iluminadas às vezes pela luz da lua !

Deve lá estar, a cabana de madeira !   Aposto que  ainda sai fumo daquela chaminé ! Aposto que a pele de rena ainda jaz no sofá, frente à lareira !  Aposto que as hastes do alce, por cima da porta, continuam a proteger a habitação !... Aposto que os patos bravos e os gansos selvagens cortam os céus com o seu grasnido ...  E que também o uivo do lobo ecoa desde a montanha ...
O barco dormido, baloiça na água ... e todas as bagas de todos os arbustos eclodirão, e rechearão todas as tartes imaginadas ...
Aposto !... Aposto, porque "vejo"  daqui ...  Aposto, porque sonho, e  o sonho é livre !!!

Lá ... era assim, a doçura de Novembro !!!...

Anamar

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

" OLHOS DE GATO ... "



Estou a ver se vejo isto pelos olhos dos gatos ...

Eu tenho dois ... gatos de apartamento.
Agostinho da Silva alimentava os que vagueavam nos telhados circundantes, pelas madrugadas, e vinham ao sótão filosofar com ele, discutir-lhe os estados de alma ... consta.
Porque, não tenho dúvidas ... os gatos são filósofos.  São-no, além de muitas outras coisas que escapam ao entendimento humano.

Olho os meus, e sinto que os injustiço.  Como eu gostaria de ter uma qualquer "porta de serviço", directa para as estrelas, para que eles as pudessem olhar, na frescura das noites !
Porque os gatos preferem as noites.  Por isso são seres místicos e míticos, já que nas noites, os seres que as povoam, são mutantes, não tenho dúvidas.
São seres de silêncios e de penumbra, aquela luz difusa que define com total clareza, contornos que só alguns olhos sabem ver.
E os deles sabem !

O Óscar era feliz nas telhas da Verdizela.   Calcorreava-as de ponta a ponta, de nível em nível, ora para a frente, ora para trás, perscrutando lá de cima, o pinhal, cuidando de perceber os ruídos, apercebendo o resmalhar da folhagem das buganvílias trepadoras, que subiam alto ...
Era um pequeno tigre garboso, recortado na escuridão do firmamento, absorto em contemplação, ou de tocaia aos sons do silêncio.
O Óscar não descia as ramagens, mas às vezes tinha a visita de parceiros mais felizes ... os gatos vadios, gatos de ninguém, gatos de pinhal ... gatos do mundo !
Gatos inteiros, ousados e curiosos de desfrutar o "poleiro" privilegiado do Óscar.
E então era aquela coisa da demarcação de território ... E nessa matéria, ele não dava abébias.  Aqueles telhados eram  seus, afinal !!!

Mas como os meus gatos são gatos de apartamento, o mais que fazem é olhar a lua, que quando é cheia, os endemoninha.  A eles e a mim !...
Semi-cerram os olhos para melhor focarem aquela estrela no infinito ... ( aquela lá longe, que parece piscar-lhes um segredo ).  Ou seguem fixamente o voo provocador dos pombos que os desafiam, ou  olham nostalgicamente a minha gaivota quando poisa perto demais, equilibrando-se ora numa ora noutra pata, numa espécie de sapateado, no altinho dos terraços.
Aí, rilham os dentes, e transformam essas figuras livres e soltas, em presas imaginárias, em caçadas  mais imaginárias ainda ...  até que lhes saiam do horizonte visual ..
Então, retomam a vigília em que passam as horas, sobretudo se o sol abençoar os seus lugares de estar.

Os meus gatos de hoje, os tais que dividem o apartamento comigo, não sabem o que é um quintal, um telhado, um beco mal cheiroso, sequer a sombra protectora de um carro ...
Por isso aspiram, aspiram profundamente, os cheiros que alcançam a nesga da janela do sétimo andar.
Tudo é novo, além das paredes, das janelas e da porta da rua !
Bebem o ar fresco que corre, o vento endiabrado que lhes abana os bigodes, brincam com as gotas da chuva que escorre nas vidraças ... como bênçãos dos céus, num deslumbre absoluto !
E queimam os dias a dormir, ronceiros, nos locais mais inimagináveis da casa, e tentam brincar com bolas, tampinhas, fitas de embrulho em caracóis provocantes ... porque até os ratos, tristemente são a fingir ...
E claro, desafiam-se, surpreendem-se, perseguem-se, lambem-se, mordem-se e enroscam  os corpos numa bola única de pelo ...
E voltam a dormir !!...

O Chico, o pachorrento grandalhão, atreve-se à escada, se consegue passar pelas minhas pernas distraídas, quando entreabro a porta.   E desce-a, apressado, como se conquistasse algum paraíso perdido.
Um dia não dei por ele e ficou fora, no emaranhado de um mundo novo que é o meu prédio de sete andares.  Algum tempo depois, chamava do lado de fora, reivindicando a entrada.
Ficam assim, meio burros, os gatos de apartamento !...
Mas também, o Chico é um pouco tímido, já percebi, e carregado de bonomia.
Já o Jonas, não se atreve.  É um ladino do caraças, um reguilóide movido "a pilhas".  Pequeno de porte, magro, elegante, é um vivaço  com olhos de miúdo safado ... mas um medricas permanente.
Basta uma sapatada do Chico para o meter na ordem, e acalmar a sua hiper-actividade.  Então, que remédio ... brinca sozinho e de tudo faz um brinquedo.
Lembra os filhos únicos, que têm que entreter-se por conta própria ...

E o tempo passa, e estes pobres gatos do "betão", nos redutos musculados que são as nossas casas ( e que sempre achamos serem as suas maiores maravilhas ), não vivem ... vegetam.
Esperam ( se calhar como nós ), apenas que o tempo passe.

É certo que têm o prato cheio, é certo que não sofrem a intempérie e a insegurança da terra de ninguém ... e na generalidade são rodeados de muito carinho e afecto.
É certo que os maltratos da rua,  não os atingem ...
Mas sofrem outros, infligidos à sua condição de seres vivos.
O Homem castra-os ( "trata-os", como as pessoas dizem, para adoçarem o acto ).  Não acasalam, não procriam, portanto.   Há quem lhes extraia as unhas, para que os sofás fiquem incólumes ...
Fazem  pouco  ou  nenhum  exercício  físico,  porque  obviamente  o espaço  de que dispõem  é  limitado.  Em  consequência,  tendem  a  tornar-se  obesos, com  inerentes  problemas  de  saúde ...
Mas  não sofrem depressão  como os humanos, nem problemas existenciais ... porque os gatos, não são dados a essas minudências ...

Tenho pena deles ... dos gatos do "betão" ...

A vertigem do pinheiro, não a conhecem, a emoção da caçada, também não, os instintos da defesa, do ataque e da emboscada,  inatos nos felídeos iguais a si, não os apuram ...
O sabor do vento e da chuva,  a felicidade dos caminhos francos,  os espaços amplos  ou o esconso das ruelas ...nunca virão a saber como são ...
Não apanham pardalitos, lagartixas ou borboletas ...
Não sonham ... não vivem romances tórridos, pelo luar de Janeiro ... nas escapadelas nocturnas !...
"Liberdade", não é palavra do seu léxico ...
Afinal, estes gatos "civilizados" não são mais que pássaros de asas cortadas,  habitando gaiolas douradas e  olhando o infinito perdido !!!...


Anamar

domingo, 26 de outubro de 2014

" DE TUDO UM POUCO ! "




Reincido no tempo !  Salvam-se as castanhas assadas, que estão no tempo, e já fumegam por aí !

Eu, estou com um pé em cada estação.  Tenho um olho guloso na praia que não pisei por cá, este ano...  tenho a ânsia de coração, da renovação que as Primaveras nos trazem ... experimento interiormente a nostalgia e o encasulamento de um Outono meio louco, que padece de sezões ... e pareço precisar urgentemente, do frio e do desconforto que o Inverno promete, para assim aceitar com alguma bonomia,  a vida confinada às quatro paredes deste quarto, aberto como sempre, sobre o casario desordenado duma terra sem história, simpatia ou beleza.
É verdade que o sol se põe ainda entre os laranjas e os vermelhos, é verdade que ainda desenha lindos ocasos lá ao fundo ... mas sente-se tudo fora de ordem ... na Natureza e em nós próprios ...

Ontem, "Os gatos não têm vertigens" ... uma ternura que até estranhamos.  O desempenho magistral duma Maria do Céu Guerra  igual a si própria ... sem beliscadura.  Um filme "naïf", com tanto de verdade, de realismo e de emoção, que nos embala o sonho e ilumina o espírito.
Tantas questões ali respondidas !  Tantos sentimentos ali experimentados !
Fiquei a saber ( e isso aqueceu-me a alma ) ... que não sou velha ... sou "vintage" !!!....   (rsrsrs)

Depois, a arrecadação, lembrando um campo de batalha, onde já não pisava talvez há mais de dois anos.  Uma "conveniente" avaria não reparada da porta, impediu-me o acesso a tralhas de uma vida.
Esta minha arrecadação é ecléctica  no recheio, e guarda histórias contadas ao longo de todo o sempre.

Ela guarda as provas provadas de uma família.  Lá, tudo mora.
O que por já não ter préstimo imediato, não garantiu lugar na casa,  o que guardava expectativas de reutilização um dia, às mãos dos vindouros, e aquilo que ainda se mantém "em trânsito" entre o lá e o cá, como é o caso das malas, de próximas, longínquas viagens, com muito de sonho, e não tanto de realidade ...
Chegou a hora de abrir a porta, de franquear a entrada, de tomar pulso ao poder do tempo sobre as coisas ... e de decidir. Decidir o que fazer à montureira guardada ... Se a redefinir, se continuar deixando-a  ao percurso do tempo, para um dia alguém ser compelido a tomar tal tarefa em mãos ...

Achei que teria que agir.  Porque se nada daquilo me fez falta durante tanto tempo já, não fará seguramente nunca mais !

Olhei as gaiolas e os viveiros dos pássaros que já tive.  Vazias, ferrugentas, parecem apartamentos devolutos sem vida !
Olhei as "toneladas" de livros escolares, dossiers de arquivo, cadernos e testes.  Se nunca mais ninguém  os  utilizou,  caídos  em  desuso,  nada  já  se  adequa ... O  "papelão"  os  aninhou !...
Olhei os suportes de garrafas, sem garrafas.  Vinhos que azedaram, ou se delapidaram de alguma forma .  Ninguém lhes sentiu a falta !
As historinhas infantis e adolescentes, da infância e juventude das minhas filhas e minhas também ! Para essas, garanto um final mais feliz.  Tenho uma menina de dez anos, que felizmente gosta de ler.
Acho que apreciará !
E tenho jogos e peluches e bonecas, e "chorões", e legos, e loicinhas e "pinypons" ... e berços e carrinhos, e toda a panóplia de cangalhada que faria as delícias de um rancho de meninas ...
Tenho dois rapazes e uma rapariga, sendo que o mais novo já fez sete anos ...
Nunca a "arrecadação" desceu, pela escassez do tempo, quiçá pelo "démodé" dos brinquedos !...
Olhei a arca, cheia dos papéis dos sonhos ...
Eu explico :  à medida que as minhas filhas, uma a seguir à outra, aprenderam a fazer riscos, desenhos, colorir, pintar ...
à medida que produziam em série, paisagens ordinariamente providas de casa, sol com olhos, árvores maiores que a casa, flores que eu diria gigantes, e um boneco e uma boneca, por via das dúvidas legendados ... "papá" e "mamã" ...
à medida que esse manancial artístico era produzido, juntamente com os primeiros "os" e "as", e "is", dentro das duas linhas bem juntinhas a conterem as letras entre si, nos primeiros cadernos ...
à medida que as palavras incipientes,  de duas sílabas, as primeiras frases de uma linha, e redacções de três, eram articuladas ...  eu sonhei que um dia, sim, com todo o tempo do mundo, com toda a paciência do mundo, com toda a placidez, eu iria desfrutar ainda enlevada e babada de novo, tudo aquilo ... sendo que o faria com a paz, a serenidade e a disponibilidade que me seriam conferidas pela fase da vida que então viveria ...

Pois bem ...
À semelhança de tudo na nossa existência, adiar é um erro.  Guardar para revivenciar, um logro. Esperar o reencontro com emoções "em marinada", um engano.
Há que esgotar o momento, e nunca deixar para trás. "Agora", é a hora para o que essa hora nos dá. Deixar que o bafio penetre os nossos sonhos ... inadequado.  Viver até à exaustão, uma ordem !
Nunca nada se repete, a vida é permanentemente mutável ... e o significado das coisas, único !
Resta-nos a mágoa irremediável da saudade.  E a saudade é uma realidade inacabada ... que veio "à forra" e nos faz sofrer !
Inevitavelmente !!! Tão inevitavelmente, quanto o é o percurso inapelável e inexorável do tempo !

Decidi que não quero, nem posso fazer da vida uma "arrecadação", como a minha.
Empoeirada, desarrumada, desordenada, escura ... sem luz ou sol que a rasgue.
Com um recheio obsoleto,.. imprestável !  Uma arrecadação de memórias, que foram fugindo em bando, pelos interstícios da porta !
Uma fotografia a sépia, cuja precisão vai sumindo na penumbra !...
Bafienta.  Com um imobilismo ou adormecimento, anquilosantes ... incapacitantes ... mortais !!!...

De tudo um pouco, neste fim de semana "ronceiro" ...
Um fim de semana em que também a hora mudou, para antecipar a noite e a escuridão, a dias de verão que se recusam a invernar ...
Tudo  morno,  um  marasmo  oxidante ... uma  modorra  de  tarde  estival,  pegajosa,  a  destempo !!!

Anamar

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

" ESCORRÊNCIA "




Ando tão indefinida quanto a indefinição do tempo !

Um tempo que põe a mesma árvore que frutifica, a reiniciar a floração, sem se decidir ... põe-nos a nós, de neurónios baralhados, corpos confundidos, feitos "baratas tontas", em encruzilhadas de vida, sem bússola.
Ou em alternativa, que o não é, num marasmo, numa apatia, numa desmotivação e num cansaço de doer.

Um "abanão", dizia-me um amigo, eu precisar urgentemente ... Um abanão !!!

Mas que abanão ?   Que intensidade de abanão precisarei eu, para ver a vida de outra forma, para me ver com outras "lentes", para achar alguma credibilidade nesta coisa que vou desfiando ( "gemendo e chorando, neste vale de lágrimas" - dizia-se na catequese ), vinte e quatro sobre vinte e quatro horas ?
"Para sorrir" ... dizia ele !...
Refém ... sinto-me refém de uma não sei que história sem história,  sinto-me penitente de uma não sei que falta ou pecado, sinto-me ré de um não sei que ilícito ou infracção ...

Dor ...
Um destes dias li um artigo espantoso, sobre a dor.
A dor muda que carregamos e não dizemos. Vem às vezes aos rostos, que não têm a habilidade da camuflagem ...
Vem às vezes à voz menos treinada em desdizer ...
A dor do corpo, quase sempre a menos importante, e depois a outra, a gigante ... a monstruosa ... a da alma, a que está cá dentro e que comanda.
Comanda o dia e comanda também a noite.  Traz-nos ao peito, raivas  incontroláveis.  Traz-nos água aos olhos, desobedientes.  Traz-nos nós que não se desatam, às gargantas que entopem e emudecem.
Ensombra a luz do caminho, e por isso, o assombra irremediavelmente.
Paralisa e tolhe.  Agarra-nos, como as forças da lama de um pântano escuro agarram quem lá fica prisioneiro.


A dor, cuja cura mendigamos e de que ninguém quer ouvir falar, por incómoda, por perturbadora, por massacrante ... Se calhar, até por acusadora ... será ?
A dor que não expomos, porque não é socialmente correcto expô-la, não é prudente no mínimo, ou aconselhável ...
Sequer adequado, encararmos as fragilidades, denunciarmos as dificuldades, exibirmos as nossas merdas, e menos ainda, servi-las de bandeja na praça pública, para repasto de urubus ...
Porque urubus pairam, sempre pairam, desde que cheire a carniça em putrefacção.
Já assim é, na savana africana ...

E isso, é demais ... assim já é demais ! É masoquista, é suicida, é temerário ... é brincadeira de mau gosto, ou perda da noção !
Porque é no mínimo ingénuo acreditar em arrego, esperar uma espécie de protecção ou colo anónimos, acreditar em disponibilidade, interesse ou vontade real, filantropia, afecto de geração espontânea, propiciados a nomes sem rosto ... o nosso .
É no mínimo tonto, fora da realidade ... sem necessidade, dirão os avisados.
E depois, quem é suficientemente insano que grite no escuro, que suba à montanha e clame, ou que abra o buraco no deserto e largue lá o seu desespero, auto-estigmatiza-se, auto-rotula-se ... coloca-se uma etiqueta ...
Desnuda-se, tira a roupa protectora da alma ... e mostra-se vulnerável e frágil.  Mostra-se no seu pior.
Mostra como é tão anormalmente diferente, tão imperfeitamente humano, tão marginalmente "outsider", numa sociedade de sentires calibrados, equilibrados, previsíveis e aconselháveis.
Uma sociedade vocacionada para o sucesso, e para os vencedores ... Não para os perdedores, aqueles que evidenciam uma sobrevivência desequilibrante e desequilibrada !...

E talvez tão tivesse valido a pena !...

E incomoda os outros !

E as pessoas não vivem aqui, para serem incomodadas.
As terapias, individuais ou grupais, como qualquer serviço, pagam-se.   E aliás, custam os olhos da cara a quem delas precise !
A sociedade não tem obrigação de ser psicoterapeuta de causas não suas !
Nela, é cada um por si.  E é esta a realidade.  Não tenhamos veleidades !

Na verdade,  muitos, quase todos  vivem felizmente deslumbrados com a vida.   Vivem numa integração quase perfeita no éden da existência.  Vivem em gratidão permanente.  Vivem em êxtase absoluto, porque acordam e dormem cada dia, todos os dias.
Numa realidade normativa, cumprem sem guerrear, com  razoável satisfação, o inquestionável, destinado a si e aos que amam.
E percebem que é assim, deve ser assim ...  Incorporam essa realidade sem utopias, sonhos megalómanos, devaneios absurdos, exigências doentias, insatisfações despropositadas ... a idiota mania do direito à felicidade ...

São indivíduos estruturados, assertivos, inteligentes, pragmáticos, realistas, saudáveis, não lunáticos, crescidos e não atrofiados emocionalmente, adultos, maduros ... ( sei lá o que estas coisas são !!!... )
e por isso, talvez felizes ... ou mais felizes !

Sabem, é muito engraçado fazer-se uma análise antropológica, social, relacional ... das respostas de cada indivíduo face ao que o perturba, ao que o desagrada e o incomoda. Face a quem vá chapinhar no seu charco cálido e manso ...
Se nos cheira mal, afastamo-nos.  Se nos queimamos, tiramos a mão.  Se nos incomodam, evitamos e podemos mesmo fugir ...
Deve ser legítimo, lógico ... deve ser humano !

E uma escorrência fétida, putrefacta, infecta ... só mesmo de máscara, luvas e viseira ... eu entendo !...

Anamar

domingo, 19 de outubro de 2014

´" É ASSIM QUE EU SOU !..."




É extremamente curioso, o ambiente de um terminal de chegada de aeroporto.
É um mundo dentro do Mundo !...
Seja na multidão que circula, seja na diversidade cultural que desfila, seja no multicolorido da pele, dos trajes, seja nas línguas, nos cabelos, no ar, dos que estão e dos que chegam ... seja nas emoções expressas ou na ausência delas ... seja no ruído de fundo, permanente, seja até nas bagagens que passam ... Tudo é uma curiosidade só !!!

É um espectáculo, estar simplesmente sentado, apenas olhando atentamente, sem urgências, analisando quem, com mais ou menos pressa, chega e parte.
Chega do grande coração intraportas que medeia desde a pista de aterragem à sala das bagagens, por corredores intermináveis, guichets, escadas e passadeiras rolantes ... e parte para o exterior, para a rua, para a grande metrópole ... para a vida lá fora, para o trânsito, para a chuva, o calor ou o vento, para a família ou para os hotéis, para alguém, ou para ninguém .

Os rostos em férias são diferentes dos rostos em trabalho.  O ar tranquilo dos que se adivinham veraneantes, é diverso do ar afobado, do fato e gravata, dos que se adivinham em trabalho.
As mochilas a que quase   se resume a bagagem despreocupada dos mais jovens, contrasta com as várias malas, avantajadas quase sempre, das famílias ou dos viajantes de uma faixa etária que nunca dispensa as "amenities " ...

Os operadores de viagens esperam fastidiosamente a chegada dos clientes.   Exibem mecanicamente o folheto informativo, gracejam entre si.  Às vezes parecem sonolentos.
Aeroporto, para eles, representa trabalho simplesmente.
Já nem curiosidade experimentam pelos rostos que esperam, massa informe que se repete em ondas, pelos dias e pelas noites.

Quem chega e sabe que tem quem o espere, abre um sorriso à porta de acesso, rasga esse sorriso quando encontra o rosto esperado no meio da multidão, e acena efusivamente enquanto empurra em ritmo acelerado, o carrinho da bagagem, pela rampa abaixo, na urgência do abraço, do beijinho, de mais sorrisos e gargalhadas.  Afinal, o chão firme já está debaixo dos pés ...

P'ra mim, um aeroporto sempre é um lugar de emoções.
Está inevitavelmente associado a destinos, a sonhos, a outras realidades, novas vivências e maior riqueza interior ...
A períodos garantidos, de afastamento das rotinas muitas vezes pesadas ...
Está associado a sol com outra cor, a mar generoso, rostos distintos, verde e flores, saberes e sabores, outros cheiros e outro vento ...  outra chuva, aventura e liberdade !
Há sempre um mistério desejado e doce, para além das salas de embarque, que não consigo disfarçar.
Mesmo quando não vou, mesmo quando ali estou apenas por acidente, e não saio do lugar ... o meu olhar guloso e atrevido infiltra-se, sem passaporte, percorre corredores, escadas, passa barreiras, adivinha os assentos de espera, olha a pista com os "monstros" alados em dormência de repouso, e o meu coração de caminheiro inquieto, sem rota definida, de viajante sedento e curioso  - que feito pássaro solto, salta de galho em galho  -  acelera as batidas, e lança-se no espaço, em velocidade de cruzeiro, a muitos mil pés de altitude, para um voo interminável e errante !!!

É assim que eu sou !...



Anamar

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

" HISTÓRIAS SEM HISTÓRIA ..."


O tempo está isto. Está esta coisa que se sabe ...
Mas também, sempre ele tem a culpa de tudo ! Por isso, ri ou chora, adocica ou sopra de fúria, se, e quando quer. Com estados de humor indiferentes aos estados de humor flutuantes, dos simples mortais.

Afinal a gente sempre reclama. Sempre achamos, do que reclamar.
É a humidade, é a chuva, é o sol forte demais, a desuso, é a ventania desabrida, é o ar trovoado que nos azara a cabeça, ou é o cinzento de um céu mal pintado ... Enfim, qualquer coisa é "bode expiatório", qualquer coisa justifica o desconforto, a vontade estranha de fugir, de voar p'ra outros céus,  outro chão ...
Qualquer coisa explica esta estranha ânsia de levantar ferro e zarpar ... zarpar por aí, por onde não houvesse vivalma ...de preferência ... digo eu !

Até os patos estão fora do lago...
Mais de vinte ponteavam há pouco a relva, na bordadura da água.
Cá fora a chuva cai, copiosa, insensível. Tenebrosa.  Toda a noite, toda a madrugada e por todo o dia, vento fortíssimo arremessou torrentes de água contra os vidros das janelas, empoleiradas neste terceiro andar, sobranceiro ao verde frondoso das árvores baixas e da relva do golfe, e frente ao cinzento uniforme e plúmbeo do céu, sem horizonte que o limite.

Está um tempo de borrasca.
O firmamento não tem nuvens ... é uma nuvem !   Inteiro, escuro e triste, desliza açoitado pelo vento, empurrado, como se fosse fumarada enfarruscada de chaminé de fábrica.
As árvores vergam, ameaçando quebrar, a temperatura caíu abissalmente, antecipando um Inverno em Outubro ... e as rajadas ruidosas, assobiam desaconchegando tudo e todos. Fustigando o corpo e macerando a alma !...

O silêncio por aqui, ouve-se ...

À excepção do assobio da ventania que se esgueira por qualquer não detectada frincha, à excepção do tamborilar forte das gotas de chuva nas vidraças, e do lamento queixoso da ramaria ... tudo o mais, é quietude.

Vi-os há pouco , à passagem ... aquele casal, na beira da estrada.
Dividiam uma protecção única, para a chuva impiedosa.  As roupas ainda ligeiras, obedecendo à convenção calendarizada, levantavam as golas, fingindo proteger.
Eu juraria estarem completamente encharcados, porque o vento desordenava o percurso da chuva .
E cingiam os corpos na tentativa de aconchego ... e seguravam o chapéu sem esperança, titubeante aos golpes desabridos ... e tinham os rostos iluminados, radiosos e coloridos do calor terno que os inundava, com  uma felicidade e um sorriso tão rasgado, que desafiava a autoridade dos céus ...
Eu diria que passeavam pelos intervalos das gotas, provocadoramente, desatentos ...
Tão demais o que os unia !!!...Tão de menos a intempérie que os rodeava !!!...

Anoiteceu-me junto às vidraças.
Sou eu, os dois gatos e a cadela, o universo espectador deste fim de dia.
Eles dormem.  Eu, alongo o olhar através da penumbra que desce mais e mais, de instante a instante, apagando os contornos deste quadro sem caixilho.
Espicho os olhos por entre as cordas que despencam dos céus, na tentativa de divisar alguma coisa, alguém ... lá longe ... mais além ..
Uma sombra que entrasse solidão adentro... Uma ária que me trinasse um rouxinol ... Um perfume que me subisse da mata ...
Ou tão só, na esperança  de descobrir onde pára a nesga de azul e os raios de sol ( neste anoitecer castigador ), que eu tenho a certeza, pairavam sobre o chapéu de chuva daqueles dois ...

Anamar

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

" INEVITABILIDADE "




Não sei como será viver-se, tendo como esperança de vida, não  ter esperança de vida ...
Não sei como será acordar-se, e por cada manhã  constatar que  mais uma noite passou,  e voltaram a esquecer-se de nos vir buscar, durante o sono ...
Para o bem ou para o mal !...  Ainda não foi desta ...
Não sei como é, olhar o mundo do poleiro da ramagem,  da emoção daquele galho que já foi nosso, e saber que os voos não se podem fazer com as  asas já cortadas ...

E sentir o fervilhar da vida por aí, ouvir dos projectos e dos sonhos, perceber a pulsação dos que riem, dos que falam e se agitam, e entram, e saem, e caminham ... porque têm caminho à sua frente ...
Conviver com o sorriso feliz e iluminado, dos que têm esperança ... porque têm vida !!!

E  não têm paciência, disponibilidade, vontade ou interesse, para ouvir aquela nossa história que nos garantem, repetida já,  cem vezes ...
E confrontam-nos  constantemente  com a confusão, a imprecisão,  a ausência de nexo da nossa argumentação ...
Eles lá  têm tempo para isso !!...
O tempo deles é precioso demais para o perderem  escutando nada de relevante.  Afinal, têm vidas que os solicitam, e onde  há  tanto  para fazer !...

E reclamam da repetição do repetido, da negligência dos nossos  cabelos brancos em desalinho, da indiferença ou da distância adormecida que nos embala ... porque as emoções nos falham, as forças se esbatem,  o cansaço se instala, a  mente  se  opaciza ,  na proporção da turvação crescente do nosso olhar... e da nossa cabeça !

Não sei como será percebermos que o tempo passou, muito depressa, que o nosso lugar do sofá, é quase só o que nos deixaram ... e que nos cabe viver, ou melhor, sobreviver  sem que façamos grande turbulência, exigências,  ou agitações de maré brava e perturbadora ...
Para que o estorvo que já somos, não se torne insuportável, e a nossa presença  quase já  muda ... inaceitável ...

E verificamos o ar entediado  e saturado com que não ouvem já as mesmas queixas, repetidas mil vezes, que falam das dores, da imobilidade, do desequilíbrio, dos sons  não ouvidos, ou das imagens não definidas ... Do que se confundiu, do que se esqueceu, do que se baralhou ...
Se tudo isso é verdade, é constante, é permanente ... e dói mesmo ?!
Dói no corpo alquebrado, no coração cansado e na alma entristecida ?!

A minha mãe tem noventa e três anos e meio.
Já por aqui falei muito dela.
Já contei como a sua história é de coragem, dedicação, força, tenacidade e persistência.
Nunca foi mulher de capitular face a adversidades e  a  tropeços.  A  sua vida  foi sempre mais a dos outros, em detrimento da própria.  A do meu pai, a minha, a das netas ... também  a dos bisnetos.

Agora garante estar  farta de por aqui andar.
As dores são insuportáveis, diz.  A autonomia desaparece diariamente, porque a decrepitude a incapacita de reger os seus dias, como sempre fez.
O seu sofá  é o mais alto poleiro da ramagem, de onde olha um mundo que já não conhece, já lhe diz pouco, e sobretudo, a cansa... A minha mãe está a querer desistir da caminhada !
Só pede que uma qualquer noite, se lembrem  dela,  por cá.

Olho-a e penso, num misto de emoções que não descrevo ... como será viver-se tendo como esperança de vida, não  ter mais esperança de vida ?!...

Anamar

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

" DELETEM !... "



Estamos naquela hora em que o sol nos foge numa fracção de segundos.  Apenas o tempo de procurar os óculos, para percebermos que ele já foi por hoje, naquele azul diluído num laranja-fogo, lá longe ...
Está a por-se bem mais à esquerda, no meu horizonte visual, por detrás das antenas de telecomunicações encarrapitadas incomodamente no alto de um terraço, frente à minha janela.
Ainda assim, deu p'ra ver que se deitou numa espécie de água de maré baixa, quando o mar recua, e fica aquela serenidade no areal.

Levantei-me não há muito, constatei ...  E pensei como foi curto o meu dia, como se encurtando-o mo anestesiasse, doesse menos, por menos horas ter de confronto comigo mesma.
Porque, de facto, enquanto os sonhos vão e vêm na sala escura do nosso "consciente onírico", tudo desfila à revelia do real, e com sorte, deambulamos por espaços, por pessoas, por momentos que já foram, e que se não foram, muito provavelmente gostaríamos que tivessem sido ...

Estou assim ... não diria desequilibrada ... Não gosto do termo.
"Desestruturada", encaixa na perfeição.
Desestruturada é alguma coisa fora do contexto, fora do enquadramento ... fora da moldura.
Aquele pedaço de pano que esgaçou, sem hipótese de conserto, está totalmente desestruturado.

Um dia fica-se assim.  Quando os olhos, o peito e a mente, não obedecem a ordens.
"Florzinha de estufa", como diria a minha filha, que tem pouca queda p'ra perceber estas coisas fora dos enquadramentos rígidos de racionalidade, pragmatismo e objectividade, na realidade em que se mexe .
Fraca capacidade de resiliência.  "Frescuras" ... diria, se fosse brasileira.  Falta do que fazer ... dir-se-á.  "Vida santa " ... dirão os que analisam de fora ... " que não valorizo".
"Querer mais o quê ?... perguntam-se.
Tontinha, insana ... mal agradecida e parva !!!

Estão desde já, todos perdoados !
Estas coisas, não entende quem quer.  Sim, quem pode.  Quem é capaz.  Quem percebe.  Quem sente, ou sentiu .

Quase me culpabilizo por não ter uma razão comezinhamente palpável, que justifique o esfiapar deste tecido de refugo, que é a minha mente, sobretudo nestes dias coloridos a ocres e vermelhos de Outono, com o sol a dormir por detrás das antenas, só p'ra me desfeitear ...
Uma razão daquelas que fazem estatística.  Que engrossam colunas.  Insuspeita.  De peso.  Uma boa razão, de valer a pena !
Porque nos tempos que correm, só tem direito a lamúrias existenciais, quem sofrer de males maiores, aqueles que atacam as pessoas ditas normais, por azar, acidente, ou destino, nesta época de crise bravia.
Esses sim, mereceriam o nosso respeito, comiseração e solidariedade.

Só  que  há  "males  maiores",  tão  "mortais"  quanto  outros.  Que  uns  entendem ... outros  não !...
Também, não vou agora aqui discutir o sexo dos anjos !

"Em criança não nos despedimos dos lugares.
Pensamos que voltamos, sempre.
Acreditamos que não é a última vez " - diz Mia Couto.

Eu sempre olho para os lugares, bem ao contrário ...  Achando que é de facto a última vez.  Lamentando que o seja, quase sempre.
Por isso também, guardo uma religiosidade solene quando o sol amodorra, e os silêncios possíveis ocupam os espaços vazios por aqui.  Sempre penso, que muitos o vêem deitar sem que o vejam acordar amanhã ...

E pareço ouvir aquele meu amigo ( alguém, já não sei quem foi, dizendo a sorrir, abanando a cabeça desaprovadora ) : "Lá estás tu a ver as coisas dessa forma !  Tens é que pensar, quantos lhe assistem o despertar, isso sim !"

A velha história do copo meio cheio e meio vazio ...  A demagogia à solta !...

Este texto hoje, é um desconchavo mental.  Uma peça de "patchwork" de má qualidade !
Retalhos mal ajambrados, coisa atamancada e perversa ...
É lava de vulcão, cujo vómito súbito seria impensado ...
É tudo, e é nada !  É só um "botar para fora", neste Outono pesado e cansativo.

Querem um conselho ???   "Deletem !... "

Anamar

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

" QUAL DELES ? "




29 de Setembro, Dia Mundial do Coração !...

Qual deles ?

Aquele  que  se  escaqueira,  com  alguma  frequência, e  que  é  responsável  pela  tensão  alta  e  baixa,  taquicardias,  AVCs, tromboses, e  toda  a  panóplia  de  doenças,  que  enchem  toda  a  panóplia  de  manuais  de Medicina ?

Aquele que faz disparar exponencialmente as estatísticas das doenças vasculares em Portugal, quiçá no Mundo?

Aquele que é responsável pelo recheio dos obituários, dos jornais que ainda os publicam ?

Aquele que entroniza anualmente  um S. Valentim qualquer, importado não há muito tempo, lá de fora ... que se nos meteu nos usos e costumes, e que reactiva  em cada Fevereiro, graças às técnicas de marketing e publicidade,  a economia  desta sociedade de consumo em que vivemos, "avermelhando" magicamente por um dia, o cinzentismo instalado  em muitas vidas ?...

Ou o outro ?

Aquele que normalmente não tem conserto, por mais congressos, colóquios, estudos aprofundados que sejam feitos ... por mais sumidades que  eclodam  na comunidade científica ?...

Aquele que não há tratados que o tratem, conselhos que o encaminhem, leis que o orientem, lógicas que o norteiem ?...
Porque ele é libertário, temerário, imprudente, voluntarioso, provocador, surdo e burro ?...

Aquele que não aceita correntes, nem cangas, nem mapas, nem caminhos, nem GPSs ?

Aquele que morre e renasce  constantemente, por um qualquer milagre mal explicado da Vida ?

Aquele que se regenera, que tem um impensável poder de cicatrização dos rasgões que o atormentam, e qual Fénix, renasce das cinzas, quando parecia ser improvável e um acto ciclópico, tal desiderato ?

Aquele que por tudo isto, nos faz sentir  aceitavelmente  estúpidos, gostosamente tontos, impressionantemente  tolerantes,  inexplicavelmente  cegos,  determinantemente ilúcidos ... com a agravante de o sabermos, e gostarmos de o ser ?...

Pois talvez seja simplesmente o Dia Mundial do Coração, " tout court " ... Nada a fazer !!!...

Anamar

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

" QUERO VOLTAR ... "





O avião deixou a Portela, e rumou ... Rumou céus fora, já a noite se abatia sobre Lisboa.

Ela partira ... e ela, ficara.  Não entrou no aeroporto a despedir-se. Odiava despedidas ! Esta, em particular.
Largou-a ainda na rua, de mala de rodinhas deslizando na calçada. Tratou de engolir com força o nó que se lhe apossara da alma, tratou de opacizar os olhos para não perceber que afinal chovia ... meteu a primeira, no carro que não desligara, e seguiu .

Afastou-se dali, rápido.  E enquanto a segunda circular se lhe desenrolava  indiferente, mais indiferente ainda, mais distante da chuva, das luzes, das buzinas, ela se sentia.
Havia uma espécie de amputação no ar.  Uma orfandade definida.  Sentia a opressão que uma violência gratuita e arbitrária, instala no coração.

" É ... não tens a noção desta cidade ... É um amor-ódio que experimento em cada segundo ... não pára nunca !
Sempre um barulho de fundo ... A única semelhança entre as pessoas, é terem braços e pernas ...
Suja e arranjada ao mesmo tempo ... linda e feia ao mesmo tempo ... tanta gente, e tudo tão sozinho !...
Homens lindos e homens horríveis ... Caríssima ... Talvez venhas a gostar de passar temporadas, aqui comigo ... um dia ... Museus lindos, que precisam uma semana para se verem ...
Não !  Não tens a noção do que te falo !...  Multiculturalidade ... Cosmopolitismo ... Nas pessoas, não encontras uma fisionomia semelhante ... Tudo coexiste ... ninguém repara em ti ... Podes morrer, que ninguém dá por falta !... "

As primeiras mensagens, a trazerem o frio e o abandono, de lá ...
As mensagens de resposta, a levarem o cheiro da terra molhada da serra, o azul do céu, os raios do sol que é só nosso ... o verde da esperança e do ânimo ... ainda que a saudade, essa coisa tão próxima, não desentranhe nunca, e mortifique, a cada dia que nasce mais vazio ...
A incerteza, a dúvida, a angústia ! A inevitabilidade , que como todas, não é escolhida, impõe-se...
E depois, há aquela paixão que não se suspeitava. Aquela Lisboa que afinal é muito mais bela, que tem regaço de mãe, e braços de embalar ... Que tem colo, que é ninho, cúmplice e aconchegante ...
Há a gaivota no rio, e o vento que empurra a vela ... há o crepúsculo em Sintra, e há um Outono doce, dourado de plátanos a despirem-se, enquanto o cheirinho das castanhas no assador, sobe, e nos fala da casa ali ... do refúgio a esperar-nos, ali tão perto ...
E há o riso dos amigos, a força dos afectos ... as cumplicidades partilhadas com a mãe, com irmãos, com avós... com crianças ... Com família, que teve de desprender as amarras e deixar-nos  partir ...  
E há até o fado, que é frase feita, mas que é verdadeira.  Bate, e carrega em cada nota o que é ser português, e percebê-lo, por vezes tardiamente, quando nos escorraçam da nossa terra ...
E há o mar salgado ... com as lágrimas de Portugal a encherem-lhe as marés ...
A  nostalgia, é então a única coisa palpável,  que pinta o céu cinzento, lá longe !...

"Angústia... sim ...  Angustiada, vivo ... Talvez  a  confrontar-me em definitivo, com a injustiça de  ter que deixar o meu chão !..."



Anamar

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

" OUTONO "


 

O Outono parece ter chegado.  Mais cedo, afinal.
Depois de um Verão atípico e de uma Primavera que não tivemos, o tempo deu uma volta, os dias acinzentaram, o sol ganhou aquele brilho estranho que se percebe estar a apagar-se, embora ainda seja quente.
Um calor, que não nos espantaria  se de repente ouvíssemos trovejar.

Iniciaram-se as tarefas de preparação da " toca " para o Inverno que há-de vir.
Os putos andam ligados " à corrente ", pelo reinício das escolas.  Como se isso fosse a última maravilha do mundo, e como se os livros que agora afagam, miram e re-miram com curiosidade, não fossem rapidamente motivo de saturação e incómodo ... Não demora !
Os pais andam  obviamente a reboque, às vezes mais ansiosos que os próprios miúdos.

Quem já não tem esses "filmes", mesmo assim anda a sofrer da "síndrome" outonal.
Numa sanha estranha e inexplicável, lança-se à limpeza das casas, a fundo, lança-se à "purga" dos roupeiros, numa ânsia de os extirpar do antigo acumulado, e considerado já de inviável utilização.  Parece pretender-se deitar fora, junto com tudo isso, e com urgência, um pouco do "lixo de alma", pesado, cansativo e sufocante.

Na época da queda da folha, numa das fases de mudança profunda no ano, o ser humano também assume o espírito de equinócio, que desta feita, à semelhança da Natureza, é um período de interioridade, introspecção e  intimismo.
É o período de recolhimento, de hibernação, de adormecimento, de concha.

Eu, pelo menos, sinto assim !

Muito difícil sempre, atravessar este "túnel" !
Muito penoso sempre, arranjar forças para andar adiante.  Mais difícil de ano para ano, parece.
É como um fardo mais e mais pesado, com acumulação de tudo o que de negativo a vida parece encarregar-se de nos adicionar ao percurso, sempre na razão inversa da força anímica de que dispomos, e que enfraquece a olhos vistos.

Mas por outro lado, acredito que o Outono da vida, possa ser um tempo de privilégio para alguns.
Para aqueles que têm ninho, lura, porto, cais, luz, âncora ...
Para aqueles que têm raízes escoradas, referências seguras, que têm sossego no coração e vivem quietude na alma.
Esses devem fazer um tempo de fruição, de bem-estar, de enriquecimento espiritual, de acerto com o "caminho", de pacificação do espírito, de repouso interior, de plenitude gratificante, sem sobressaltos ou angústias, estou certa ...

Imagino aquela casa, bem simples, de quarto e sala, aninhada naquele jardim pequeno, de plantas bravas a bordejar o areão da entrada.
Imagino aquelas duas janelas ladeando a porta, e a cancela em madeira velha franqueando o acesso ... a gemer nas dobradiças ...
as roseiras de rosas singelas, com o  aroma tépido das Santa Teresinha, e as ervas aromáticas perfumando o ar.
Imagino os gatos ronceiros por ali ... Os de dentro e os de fora, em harmonia plena ...
E os pássaros que ficaram, buscando o aconchego. Porque os outros, já não pulam pelos galhos ... Partiram para longe, faz tempo !
Imagino a mesa junto à janela, salpicada de potes com alecrim e madressilva, a esmo ... espaço de escrita ou de leitura, na moldura do jardim lá fora ...
uma música calma, perpassando em surdina, para não espantar o som da aragem nas folhas, nem macular o tamborilar dos salpicos de chuva na vidraça, de quando em vez, em ameaços, apenas ameaços ...
Imagino uma luz acesa, velada, íntima, para não sobressaltar os sonhos, nem dispersar os pensamentos ...
Imagino aquela casa de Outono ... imagino ...

Por que será que imagino aquela casa, que de repente, pelo sonho parece tão minha ... se nunca a vi, se nunca a vivi, se nunca a senti ??!!...

E no entanto, é como se a cheirasse, como se já a tivesse palpado, como se conhecesse com perfeição a rugosidade da madeira da arca, como se soubesse com clareza a intensidade da luz que penetra pela janela ... como se ouvisse com nitidez o estalar do areão do caminho sob os pés que avançam, como se adivinhasse sem erro, os "gatos" daquele prato  do escaparate, como se olhasse a ramagem do cretone que forra o sofá ... e a soubesse minha, de há muito ...
É como se me passeasse por um espaço mais que familiar ... íntimo ... secreto ... e tivesse em mim um calor doce de compotas, num embalo de amarelos, ocres e vermelhos ... de castanhas quase no braseiro ...

Quase sinto a brisa lá fora, lembro as notas  do murmúrio do vento, e os cheiros que vêm voando, e que eu não sei se são salgados ou doces, se vêm do mar ou da serra ...
Tenho um xaile breve pelas costas, tenho o cabelo prateado em corrente líquida de intemporalidade, e tenho um cesto no braço, repleto de rosmaninho ...
Quase sinto ...

Por que será que temos estas coisas ?  Por que será que nos deixamos invadir por desnortes, que são isso mesmo... coisas inexplicáveis de orgias mentais, pura elucubração de demência ??!!...

Serão reminiscências de vidas passadas, ou sonhos de vidas futuras ???!!!...

O ser humano é meio doido,  mesmo !!!...

Anamar

terça-feira, 9 de setembro de 2014

" E SE EU ABRISSE INSOLVÊNCIA ?!... "




Preocupo-me mais, se não me preocupo ...

Eu explico : preocupo-me mais com um estado de letargia e uma postura de indiferença face à vida, do que quando ainda contundo, esbracejo, me indigno, reivindico ... O silêncio, sobretudo o silêncio de alma, é o que mais me aflige.
Porque naquele estado, estou viva, vejo colorido nos dias, tenho esperança, experimento sentimentos, acho que vale a pena, crio metas e objectivos, tenho expectativas que me importam ... encontro razões de vida !  Ainda acredito !
E nada pior que não nos importarmos já, que assimilarmos um amorfismo, uma insensibilidade e um cinzentismo face ao tempo.
Nada pior que condená-lo a um Outono antecipado e perene, fora de época !

E estou nessa !...

Neste momento, e de novo, acho que a minha vida é feita de desperdícios.  Acho que tem sido um caminho perdulário, mal escolhido, mal gerido e mal administrado.
Decididamente eu não dou para gestora, administradora, empresária ...
A vida de cada um é a sua maior empresa e desafio, o seu maior empreendimento.  E obviamente há que saber  levá-lo adiante, com inteligência, determinação, frieza e  clarividência.
Há que administrá-lo com racionalidade, objectividade e sentido prático.  Não pode haver cedências, deslizes, facilitismos.
A vida é real, todos os dias, as emoções só complicam.  Quando entram em cena, quando se sobrepõem e subvalorizam o senso empreendedor do processo, vai tudo "p'ro brejo" !

Portanto, eu não poderia nunca, dar certo ... portanto, eu só poderia obviamente falir o esquema.
Nem sei como me colocam como gerente de um megaprojecto destes !!!...

Cabeça fria na análise das coisas, é tudo menos o que eu tenho, racionalidade nas decisões, também não, clarividência ... com frequência pareço não querer ter, capacidade decisória, menos ainda ...
Aliás, a frequente e sempre presente indefinição e indecisão perante quase tudo, persegue-me com intencionalidade.  Coisa de destino, mesmo !
Tenho  um "peregrino" apelo pelo abismo, omnipotente e omnipresente.  E sempre, entre dois caminhos, sou especialista em escolher o atalho !...

Evidentemente que as minhas "finanças emocionais" têm que estar exauridas, muito mais que os fundos do "Banco mau" ...  Não há Troika por aí que me valha, nem saída que me acuda !
Não há recuperação à vista, nem a curto nem a longo prazo.  As reservas de resistência vão indo, com esta gestão danosa e ineficaz, e a esperança de refundição do processo, afigura-se tarefa titânica e impossível.
Uma auditoria não adianta, porque é linear e adquirido que a responsabilidade é do gestor !
Isso faz, colocarem-se nos cargos, pessoas totalmente desadequadas aos lugares, e sem perfil para o seu desempenho, claro !!!...

E depois há um enorme "handicap" ...  É que não há qualquer possibilidade de renovação ou  rodagem da equipa, porque seria eu, substituída por mim mesma ...
Muito pior que a "Olívia-patroa" e a "Olívia-costureira", da nossa saudosa Ivone Silva,
Por outro lado, eu reconheço ser uma aluna relapsa e desatenta, ou mesmo uma inveterada burra, porque pareço não aprender com os  insensíveis e ríspidos ensinamentos do dia a dia.
Tenho um masoquismo de vida, idiota !  Tenho um olho para entrar com as "jantes" nos buracos, que é obra !   E pareço atrair e cultivar o que me destrói !
Chama-se a isto, uma falta de pragmatismo estúpida demais !!!

O resultado de tudo, é de facto um estado de exaustão, de desencanto e de desistência tal, que me conduz à tal indiferença e letargia insolúveis, de que falava.

E  não  adianta,  porque  quando  o  registo  é  este, "encaracolo",  entro  numa  de "alforreca"  ( como diz a Lena ), fecho para obras, hiberno feito um urso polar, não emigro nas asas das andorinhas porque não posso ... encosto as janelas já que fica um por-de-sol de repente, e penso seriamente : " será que eu não poderia abrir insolvência ???... "

Anamar

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

" SOBREVIVE - SE ... "



A "lei" é a da sobrevivência ... pouco mais !

Nos dias que correm, vivem-se tempos de indefinição, de incerteza, de ansiedade, e por isso, de angústia.
Acho que não se safa ninguém.
Nem mesmo as crianças, que não mais têm  vidas descontraídas e despreocupadas, que as poupem a stresses acrescidos.
De facto, lançadas no emaranhado dos tempos, apanhadas pelo vórtice da vida insegura dos próprios pais, também elas já percebem e vivenciam a necessidade de sobreviver ... um dia de cada vez.
Também elas já percepcionam a aleatoriedade da existência diária, com escassa margem de segurança.

Os jovens, e os entalados na charneira dos trinta e muitos - quarenta e poucos anos, levam em grande maioria, uma vida atípica, maioritariamente de insatisfação, e quase sem alternativas possíveis.
A nível profissional os horizontes são sufocantes, a precariedade acentua-se, os caminhos outros, são inexistentes, a insegurança  é total.
A porta aberta ao mundo é a única saída que ainda deixa ver paisagem lá fora.  E por isso se emigra, em desespero de causa.  Porque verdadeiramente ninguém desejaria trocar a sua realidade conhecida e teoricamente segura enquanto porto de abrigo,  o seu nicho de conforto, pelo menos umbilicalmente afectivo, o seu ar e o seu chão ... pelo desconhecido, pela solidão e pela dureza da integração, onde quer que seja, ainda que seja só nos primeiros tempos, e ainda que represente melhoria significativa da realidade de vida.
O quebrar compulsivo das amarras, a violência do empurrão para a água, pode fazer do nadador, um náufrago, não esqueçamos !

A nível pessoal e familiar as indefinições persistem.  A dificuldade de equilíbrio e estabilização económica, a precariedade e insegurança do mercado de trabalho, adiam quase "sine die" a tomada de decisões de fundo, como seja por exemplo o estabelecimento de uma relação tradicional, a assumpção de filhos nessa relação, a aposta na aquisição de uma habitação para o casal, ou mesmo outras responsabilidades a longo prazo.
Porque nunca se sabe o que  esse "longo prazo" pode acarretar nas vidas das pessoas.

Ou então, as vidas das pessoas assentes diariamente em alicerces frágeis,  implantados em terrenos movediços ou "minados", não chegam sequer a resistir e a tomar consistência.
E assim, os ainda jovens oscilam entre experiências emocionalmente  falhadas, inconseguidas e desestruturantes, e desinvestimentos afectivos ( condenados que estão a sucumbir a curto prazo ). Abandonam  sonhos e projectos de vidas familiares que parecem inexequíveis, e fazem  escolhas  assumidas de vidas de solidão, com  o inerente desencanto, mágoa, frustração e estrago pessoal muitas vezes irreversível.
É isso que  confidenciam existir, é essa a linguagem que partilham entre amigos, quando se encontram e falam das suas experiências pessoais ...
Arrastam-se sem um vislumbre de futuro, eles, que teoricamente terão à  frente  ainda tanto futuro !...
E não vivem ... sobrevivem apenas !...

Os da minha faixa etária vivem "assombrados" e angustiados, num susto permanente com este mar encapelado em que são obrigados a navegar.
Criados e formados em parâmetros bem conhecidos e definidos, com regras e princípios com perenidade de segurança, com valores aprendidos e exercidos sem mutabilidade expectável, com uma previsão de futuro calma e tranquila, são agora obrigados a "mexer-se" em novos códigos, em padrões diversos, a aderir a novos "modus vivendi" que não identificam, a pactuar com novas e desconhecidas realidades ...

Não se sentem confortáveis nos novos fatos que têm que envergar, não se encaixam nos novos figurinos que os rodeiam, com regras que não entendem ... e já não têm estaleca nem saúde,  para enfrentar  a cinetose a que o sobe e desce das marés os sujeita ...
Desesperançados, cansados e com um caminho já precário e fracamente promissor a percorrer, também não vivem ... sobrevivem no cinzentismo e na brisa dos dias !...

Enquanto isto, depois de cem anos sobre a Primeira Grande Guerra e setenta e cinco sobre a  Segunda, a Europa vê de novo, meio adormecida e esquecida, parece, acender-se um rastilho ameaçador mais a leste ( não querendo entender que é num rastilho que começam os grandes incêndios ) ...

Enquanto isto, o Estado Islâmico, insano e bárbaro, assassino e inconsciente, avança em loucura fundamentalista e destruidora, numa ameaça bem clara, galopante, terrífica, imprevisível e de alcance incomensurável, sobre o ocidente ...

Enquanto isto, o ébola alastra e devasta descontroladamente, dizima impiedosamente os mais pobres dos pobres ... os países miseráveis de África ... e revela a impotência, a real incapacidade, a fraca aposta e a ainda clara  ignorância do Homem,  face aos cataclismos naturais que se abatem sobre o Mundo ...

Estranhos dias estes !...
O planeta Terra está,  de facto, a ficar um lugar pouco recomendável e esquisito para se sobreviver ... que direi para viver ?!...

Anamar

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

" A CRISE ESTÁ A AJUDAR A JUNTAR QUATRO GERAÇÕES À MESMA MESA "


A  casa de Isabel Cabral, em Ermesinde, é um exemplo de coabitação, impulsionada pela crise, de várias gerações da família


Encerra-se aqui, a publicação dos cinco artigos, escritos pela jornalista Ana Cristina Pereira do jornal "Público", sobre "as diferentes gerações", e divulgados ao longo de cinco domingos consecutivos.

Porque os achei interessantes, pertinentes  e lúcidos, decidi partilhá-los com todos aqueles que acedam aqui, ao meu espaço.

Anamar


Por força do desemprego, da precariedade e da emigração, pode estar a abrandar o processo de desarticulação das famílias e a aumentar a coabitação de gerações.  Este é o último de cinco textos publicados ao domingo sobre as diferentes gerações.


Maria não larga o telemóvel. Anda encantada com um rapaz e a conversa com ele, parece interminável - trocam mensagens a uma cadência só deles.  "Dizemos coisas sem jeito, mas que para nós fazem sentido ", conta ela, entre risos.  Nada irrita tanto os avós como aquele toque constante.  De vez em quando a avó até lhe diz que gostaria que o telemóvel caísse e deixasse de funcionar.

Só tem 14 anos, Maria António.  Mora com os avós em Santa Eufémia, uma aldeia do concelho de Leiria.  A mãe está em Bergen, a segunda maior cidade da Noruega.  Maria esteve com ela dois anos e meio, mas quis regressar.  Quer fazer um curso técnico-profissional de gestão de quintas e eventos equestres.  E está convencida de que em Portugal as escolas são mais exigentes e os cavalos melhores.  "A minha mãe deixou-me vir.  Ela está triste, mas compreende ."

Mónica António, a mãe, não pensou que lhe custasse tanto deixá-la ao cuidado dos avós.  A 11 de Agosto, estava a colocar a mala na bagageira e já lhe rolavam as lágrimas pelo rosto.  Foi a chorar grande parte da viagem até Lisboa.  Recomeçou o choro mal ouviu, já no avião, falar norueguês.  "Estás no teu país e já não estás.  Já estás a ouvir uma língua de um sítio para o qual não queres voltar."

O avô torceu o nariz.  Tudo aquilo lhe parece um bocado disparatado.  Para ele, adolescente não tem querer ;  quem tem querer é o pai ou a mãe ou ambos, caso ambos se portem como pais, o que não é o caso do pai de Maria.  A mãe pensou muito.  Maria tinha quatro anos quando o avô a levou pela primeira vez à Feira da Golegã e lhe comprou um cavalinho de plástico.  Por volta dos seis começou a pedir para montar.  Monta desde os sete.  Quantos pais podem gabar-se de ter uma filha que, aos 14 anos, sabe o que quer ?"  "Ela está feliz em Portugal ", percebe a mãe.  "É  uma rapariga da terra.  Gosta de tomar banho na nascente, de ir à terra com o avô, de alimentar as galinhas, os perus e as ovelhas.  Se tiver equitação, passa horas a limpar as cocheiras."

Que não haja equívocos.  As famílias, sublinha o sociólogo Manuel Villaverde Cabral, não são democráticas, embora sejam menos autoritárias, menos impositivas, do que há 30 ou 40 anos.  As idades continuam a pesar, até "pelas diferenças de formação e do papel que cada grupo etário desempenha na sociedade e dentro da própria família."

As relações entre as gerações podem variar conforme a classe social, a zona de residência, o posicionamento político, a escolaridade, a orientação sexual e outros factores.  O uso do telemóvel, porém, será quase sempre um ponto de descontinuidade.  Dir-se-ia que os mais novos não se cansam de o usar.  Mandam em média 100 mensagens de telemóvel por dia - segundo um estudo feito pelo Instituto Superior Técnico e pelo Instituto de Telecomunicações no ano lectivo de 2010-2011.  Às vezes, parece que querem só testar o canal de comunicação.  "Estás aí ?"  "Onde estás ?"  "Está tudo bem ?"

Quando Mónica era adolescente, havia dois telefones lá em casa e ambos tinham um cadeado a impedir chamadas não autorizadas.  Qualquer conversa podia ser ouvida.  Agora, Maria tem telemóvel na mão e destreza nos dedos.  O avô, de 68 anos, a avó, de 62, adoram-na, mas não compreendem aquela ligação à máquina.  Os pedidos para sair são outra tormenta.  Têm medo que algo lhe aconteça.  A mãe explica-lhes " que tem de se confiar, que ajuda soltar a corda com limites."

Era outro o Portugal da juventude dos avós.  Há 50 anos, 91% dos casamentos realizavam-se sobre a égide da Igreja Católica, o marido provia o sustento e ditava as regras ;  a mulher era responsável pelo governo da casa e, tal como os filhos, devia-lhe obediência - só 18% delas trabalhavam fora.

No calendário das relações entre gerações, vale contar um antes e um depois de Maio de 1968, que começou por ser uma contestação estudantil em França e se tornou  no que Villaverde Cabral descreve como " o cume do movimento antiautoritário que varreu o mundo".  Nos países democráticos e não só, " a contestação da família patriarcal, da repressão sexual e das desigualdades de género fizeram diminuir o autoritarismo."

Depois de 25 de Abril de 1974, Portugal tratou de recuperar o atraso.  As mulheres atiraram-se de cabeça para o mercado de trabalho.  Diminuíram os casamentos, aumentaram os divórcios, diminuíram os nascimentos, aumentou a esperança média de vida.  É essa, resume Villaverde Cabral, " a modernidade da sociedade actual.".  Com tudo isso " a noção de família foi perdendo a sua personalidade masculina autoritária."  e a própria família perdeu muito do seu peso " como referência social e mesmo pessoal."

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

" ENCERRARAM-NOS O SONHO ... "



Ontem cometeu-se um crime em Sintra.

Porque um crime pode ser tão somente um atentado ao nosso património cultural, um assalto às nossas memórias colectivas, um roubo dos nossos sonhos, um margear compulsivo do nosso imaginário.
Um crime é tudo aquilo que nos vede a criatividade, defraude a fantasia, nos cerceie a vastidão da "viagem", nos erga muros ao "passeio" da mente e do coração ... nos ampute a ilusão, de pelo menos por um par de horas, nos sentirmos crianças outra vez ...

O Museu do Brinquedo em Sintra, sem acordo possível entre o proprietário ( já que de uma colecção particular se trata )  e a autarquia, encerrou em definitivo as suas portas e janelas, pelas seis da tarde deste 31 de Agosto de 2014, numa tarde quente e ensolarada, com a vila do romantismo pejada de visitantes, portugueses e estrangeiros, adultos e crianças.
Havia alegria no ar, havia boa disposição, e aquela displicência de quem usufrui o que quer que seja, sem pressas, degustando cada instante.

Desloquei-me intencionalmente a Sintra, inclusive não estando em perfeitas condições de saúde.  Mas fi-lo numa espécie de despedida devida a um espaço, que durante dezassete anos prestou um serviço público absolutamente  ímpar, estou certa.
Isso se percebia claramente pelos rostos, e pelas expressões de apreço e de alegria incontida das muitas crianças que por lá circulavam, encantadas, agradavelmente surpreendidas, a deleitarem-se numa realidade lúdica que não é seguramente a sua  na actualidade, e com uma curiosidade  insaciável e atenta, de ouvirem as histórias e as explicações dos adultos que as acompanhavam.
Esses sim, misturavam numa indefinição de sentimentos,  algo que se percebia doído, emocionado, saudosista, fascinado ... com estupefacção, mágoa e revolta.
No ar pairava uma pergunta indignada : " Porquê ?! "  "Por que não foi possível chegar-se a um consenso e acerto entre as partes implicadas, por forma a que, como acontece em muitos países estrangeiros, se pudesse ter mantido entre nós, um lugar tão peculiar, um serviço público de tanta valia, com um acervo amplamente divulgador da cultura de um povo, das suas raízes, costumes, memórias e histórias ... Tudo o que constitui também  afinal, a nossa identidade cultural ?!
E bem assim,  possuidor  ainda, de um espólio valioso, de peças de origem internacional, com igual importância" !

Por que é que este país tem uma estranha vocação para perder, para se empobrecer, para não se dar valor, para não se cuidar ?!...

Não ouviremos mais, exclamações  encantadas  face a um pião, a um livrinho de histórias, a uma mini tábua de engomar, um servicinho de loiça, um carrinho de bombeiros, um comboio no emaranhado dos  carris, um batalhão de soldadinhos de chumbo, um "Jogo da Glória" de tantas tardes sonolentas, ou um pequeno balde de folha, companheiro de areais perdidos : " oh ... eu brinquei com um exactamente igual !... "  "olha ... eu tive um destes !..."
E o puto a indagar insistente, sobre o paradeiro da dita peça ... e o pai a responder : " deve estar lá para casa da avó !..."

Não ouviremos mais as explicações detalhadas e cuidadosamente possíveis, dos adultos, perante os rostos sedentos da criançada, sobre o que eram as trincheiras da 1ª Grande Guerra, ou sobre os hospitais de campanha, ou o desfile das tropas alemãs pelas ruas de Berlim, com a suástica estampada nos carros de guerra, e a saudação nazi exibida por cada soldado ...  para se ouvir logo a seguir, um puto esperto e informado, argumentar : " olha, olha mãe ... o Hitler !  Vai lá à frente, naquele jipe !..."
... ou o adiar para melhores horas,  do esclarecimento complicado sobre a "múmia" que repousava na vitrina !!!...

Enfim, uma ternura sem tamanho, tudo isto !...

Dei por mim a sorrir.
Dei por mim a recuar no tempo, e a passear-me pelas lembranças doces e distantes da minha meninice.
Do tempo em que a Lolinha, a minha primeira boneca de porcelana, de caracóis  loiros  e olhos azuis, que chorava quando embalada, e que "vive" comigo até hoje ... me entrou pela vida adentro, pela mão do meu pai !...

Outros tempos, outros sonhos, outra vida ...   Outra que eu era !...

Ontem cometeu-se um crime em Sintra.
O Museu do Brinquedo encerrou definitiva e injustamente, numa tarde quente, luminosa, aparentemente indiferente ...  E com ele, encerraram-nos também o sonho !...

Mas a curiosidade das nossas crianças, as recordações dos nossos velhos, e obviamente a memória saudosa de todos nós, não o mereciam !!!...



Anamar