quarta-feira, 3 de junho de 2015

Eu tinha que escrever isto ... "O PAÍS RISÍVEL QUE HABITAMOS "





A minha mãe tem uma pensão de sobrevivência de pouco mais de trezentos euros, incluindo já o complemento de dependência.
Sempre foi doméstica, sempre trabalhou a sério nas tarefas de esposa, dona de casa e mãe ...
E sempre as cumpriu com denodo, numa época em que tradicionalmente as mulheres não exerciam actividades profissionais fora de casa.
O meu pai partiu há vinte e três anos, e desde então, a única fatia de rendimento que coube à minha mãe, foi a pensão auferida em consequência da sua nova condição de viúva.

Nunca em casa se utilizou o artifício legal a que muita gente deitou mão  na altura, de ser declarada uma qualquer profissão, pela qual ela descontasse para a Segurança Social, a fim de que pudesse ter no fim da vida, uma pensão própria, garante de uma almofada de sobrevivência mais aconchegante.
Era vulgar, alguém declarar ser entidade patronal de costureira, ama de crianças, empregada doméstica ... qualquer coisa... Não viria mal ao mundo, e contornava-se a situação.
Muita gente o fez.  Também lho sugeriram. Mas a minha mãe, presa a uma honestidade absurda, um escrúpulo absoluto e a uma lisura de atitudes, sempre o recusou.
Se o não era, não o podia declarar !!!

E assim fomos indo.
Chegámos ao hoje.  Hoje, em que a minha mãe, nos seus 94 anos, acamada, com fraldas em permanência, medicação em permanência, e toda a panóplia de requisitos inerentes a uma recta final muito complicada, não faz mais face a um orçamento de despesas exuberantemente acima das suas possibilidades.
São os apoios técnicos necessários ( cama articulada, cadeira de rodas, cadeira de banho ... são as fraldas, são os resguardos, os pensos de incontinência ... é o oxigénio, são os sucessivos balões de soro, são os suplementos alimentares ( porque se alimenta mal ), são as vitaminas e toda a gama de análises e medicação,  que diariamente "pingam", de acordo com as flutuações do seu estado de saúde ...
É um começar e não acabar de problemas !
E sem médico de família atribuído ao meu agregado familiar  ( por saída por duas vezes do médico existente ), é uma odisseia, fazer face a esta situação !
É óbvio que a minha mãe teve que coabitar comigo.

Decidi então pedir a comparticipação, a que o utente tem direito, se atestado medicamente, para as fraldas e material afim.
Como a minha mãe não se desloca ao Centro de Saúde, e domicílios, só para Julho ( ! ), fui eu em sua representação, para a fila de marcação de consultas para médico de recurso, pelas 5 h da manhã.
E já não fui a primeira da fila ( !!! ).
Às 8 h são distribuídas as senhas para as consultas, que se iniciam às 9 h.
Contudo, o médico que me foi destinado, parece ser useiro e vezeiro em começá-las mais tarde.
E assim foi. O dr. António Semedo, iniciou-as às 10,30 h.
Expus-lhe  a situação, mas o médico recusou assinar o documento que me permitiria pedir o auxílio económico, argumentando que não conhecia  a utente, E certamente é-lhe "difícil e altamente comprometedor", envolver o seu bom nome,  numa declaração, em que uma velha de 94 anos, acamada, com uma pensão de pouco mais de trezentos euros,  pede ajuda para custear as fraldas de que precisa !!!...

As lágrimas caem-me.
Sinto-me a mendigar algo a que tenho direito, num país, onde pago os meus impostos, onde desconto religiosamente tudo o que inventam ... e onde, se o não fizer, terei as inerentes consequências.
Enquanto isso, os mesmos, sempre os mesmos, saem incólumes de processos irregulares, não transparentes e fraudulentos ... beneficiam de tratamento de excepção e troca descarada de favores ...
Mexem e remexem em negócios sempre proveitosos, de milhões, tantos milhões que nem sequer conseguimos imaginar o que sejam ... nós, que mensalmente temos alguns euros para nos bastar !...
E nada acontece !...

Houve que conseguir outra consulta, outro médico ... e só não outras 5 h da manhã, graças à boa vontade e compreensão de uma administrativa do Centro.
Desta feita, uma médica passou a declaração que deverá então ser entregue na Segurança Social, para apreciação e posterior deferimento ou indeferimento.
Ainda assim, há  que tornear outro "gravíssimo obstáculo" : não pode ser dito que a minha mãe vive agora comigo, porque então, muito embora a minha mãe mantenha ainda a sua casa de que paga renda ... água, luz, telefone ... passa a integrar o meu agregado.  E como eu tenho uma pensão "milionária", o pedido será indeferido !!!...

Mas para entregar o formulário na Segurança Social, também o não posso fazer dirigindo-me simplesmente à instituição.  Não !  Tenho que fazer uma marcação prévia, por telefone, aguardando então a respectiva marcação ( por acaso apenas ( ! ) 12 dias depois ... )
Entretanto, deverei continuar a aguardar no remanso da casa, que me informem da decisão tomada.
Se for "sortuda", eles ajudam-me ... Tenhamos esperança !

A Câmara Municipal da cidade onde vivo, dispõe de um Banco de Ajudas Técnicas, que acorre às necessidades dos autarcas mais carenciados, de acordo com as suas dificuldades ( devidamente comprovadas ), e desde que  as tenha disponíveis.
Dirigi-me por isso,  à Junta da Freguesia a que pertenço, para expor de novo a situação, à Assistente Social.
Mas para tal, a marcação da entrevista ( 3 semanas depois ), é feita apenas às sextas-feiras, em número muito limitado e por ordem de chegada.
Por isso, às 6 h da manhã já aguardava à porta da Junta, e antes de mim, já a D.Luisa, uma infortunada caboverdeana, esperava também.
Aproveitou para me contar todas as desditas da sua triste vida, enquanto dividíamos o degrau da soleira da porta, até que às 9 h nos atendessem no interior, entretanto obviamente encerrado.
Já não havia em pé, posição que nos valesse, e o vento, nesta terra de vento frio e desgovernado, açoitava-nos sem piedade.

Mais formulários, mais fotocópias comprovativas, mas o processo só será desbloqueado, depois de eu exibir o comprovativo da entrega prévia na Segurança Social, o que ainda aguarda para acontecer ....
E ... se  tiver sorte. e a Câmara as tiver disponíveis na altura, então talvez possa usufruir do empréstimo de  uma cadeira de rodas e uma cadeira de banho, porque a cama articulada, que se impôs como absolutamente premente quase de um dia para o outro, já eu tive que alugar de imediato.
Pela instalação paguei 90 euros e por dia, pago de aluguer 5 euros !!!

Talvez entretanto nos saia o euromilhões ... Quem sabe ?!

Precisei desabafar !

Esta experiência dolorosa, esta via sacra interminável,  mostrou-me lados inimagináveis da vida.
Lados que pensamos conhecer, mas que na verdade vão muito além do que lemos, do que ouvimos, do que supomos.
Por outro lado, teve o mérito de me desencadear um misto de sentimentos e emoções, também difíceis de definir : solidarizou-me de alguma forma com a mole de cidadãos deste país, que se sentem ( inevitavelmente ) desprotegidos por uma estrutura social que não responde às necessidades mais prementes, aos direitos mais legítimos ... a protecção à saúde.
... num país da Europa, que se quer alinhada com o primeiro mundo !!!
Depois, mostrou-me como é "pedir", junto dos órgãos e das pessoas com capacidades decisórias.
Percebi como é, face a arbitrariedades, injustiças ou insensibilidades, calar um grito, suster um oportuno murro na mesa ...
E senti humilhação, porque é de humilhação mesmo que se trata, por mim e por todos os meus concidadãos que diariamente enfrentam estoicamente esta teia musculada ... quase inultrapassável, na exigência simples dos seus legítimos direitos.
Engoli e engulo ainda, uma revolta incontida, face à desumanização e à indiferença generalizadas.
E digiro cada vez pior, as assimetrias sociais inaceitáveis, que o poder económico determina : os cidadãos de primeira e os cidadãos de segunda, sendo que todos deveriam ser olhados e tratados igualitariamente, pelo estado dito social, que nos governa.

Tenho ainda que referir, por justiça, que no meio de todo este percurso acidentado, e apesar de tudo, de quando em vez, ainda se tropeça em profissionais competentes, interessados e solidários, que se esforçam, mesmo esbarrando em todas as dificuldades que o sistema impõe, e que colaboram com seriedade.
A eles, sem me lerem contudo, presto a minha homenagem.  Bem hajam por isso !

Seguramente não sairei melhor deste processo.  Nem como cidadã nem como pessoa.
Ao contrário, penso que tudo isto está a despertar o que de pior há em mim, provocando-me clivagens irreversíveis a nível pessoal, familiar e social.

Precisei relatá-lo, não só porque fazendo-o, alivio um pouco, mas porque ao escrevê-lo, tento descortinar uma qualquer lógica ... se a houvesse.
Talvez também, com este depoimento, dê eco a muitas vozes, por aí tão desesperadas, desiludidas e perdidas quanto eu !!!

Anamar

sábado, 30 de maio de 2015

" HOJE ESTOU ASSIM ..."




Dou por mim a ter saudades daquela casa.
E dou por mim a sentir um nó estrangulador no peito, quando penso o que foi feito daquela casa.

Quando era Maio e os verdes se mostravam intensos, quando as flores  bordejavam o caminho, alindavam o "altinho", ou revestiam as paredes, com as cores variadas das buganvílias, ou os lilases das glicínias ...
Quando os noveleiros, os agapantos, as azáleas, as sardinheiras, as cinerárias ou as gazânias ( eternas glorificadoras do sol ) abriam, de repente, numa explosão que parecia da noite para o dia ... era uma promessa que voltava a cumprir-se.  Ano após ano, sempre a festa da Natureza se renovava.

Aquela casa também tinha um jacarandá.
Plantei-o com muito carinho, com a expectativa de uma manhã qualquer, poder acordar e  ver-lhe os cachos lilases, em desalinho, como caracóis de menina  rabina,  a adornarem o meu jardim ...
Era novinho, precisava crescer, desenvolver-se, e depois lá viria o dia em que me presentearia ... eu tinha a certeza.
Foi das primeiras árvores a ser cortada ... soube depois.
Nunca o jacarandá floriu, como não floriu mais por ali, um só lampejo de felicidade.

Aquela casa tinha o "rosto" do Gaspar, a imagem do Óscar, a placidez da Rita ...
Não a penso, que os não veja por lá.
O Gaspar, que nos contemplava com uma orelha em cima e a outra em baixo, quando escutava atentamente as conversas que lhe eram dirigidas.  Não nos espantaria, ou melhor ... só nos espantava ele não recalcitrar de seguida ...
Fazia maratonas  em torno da piscina.  Ladrava irritado, empoleirado nas patas traseiras, aos gatos abelhudos que lhe invadiam os "seus" telhados ...

Quando o prendíamos, em hora de sesta soalheira, era a vez  do recreio do Óscar e da Rita.
Ronceiros, como todo o gato que se preza, o Óscar que sempre foi atrevido e provocador, exibia-se a distância segura, num despautério sem tamanho, enquanto a Rita, medrosa que só ela, se escapulia sesgada, na protecção insuspeita das hortenses ...

O Gaspar alucinava então,  reclamando da sua ausência de paz !
Aquele jardim era seu ... Os gatos, que flauteassem pelos telhados que cobriam todo o piso térreo !

E era o que eles faziam, madrugada fora, p'la hora da fresca. Sonhadores, silenciosos, sonolentos mesmo, divagavam, ronronando, atentos aos ruídos e aos movimentos do pinhal.
Sobretudo se a noite era iluminada por uma lua cheia, daquelas !...

Aquela casa também era a "cara" da minha mãe.  Aliás, por justiça, aquele jardim "pertencia-lhe".
Ela limpava, cortava, dispunha as podas que dariam novas plantas ... ela regava ... ela perdia horas infinitas olhando cada botão que abria, cada prenúncio de nova flor ... cada borboto promissor de mais uma alegria ...
Ela trazia para as jarras,  flores frescas,  ela "escutava" as que floresciam no pé ... ela ralhava-me quando eu preguiçava, e não me dispunha a ligar as mangueiras ... "Coitadinhas, estão cheias de sede. Agradecem uma pinguinha de água, com este calor !... "

O tempo foi .  Tempo demais que já foi ...

Dou por mim a ter saudades daquela casa !...
Dou por mim a ter saudades infinitas daquele jardim ... daquele jacarandá que nunca floriu ... dos meus companheiros de ociosidade ...
Todos já partiram !...  Perdas nunca supridas.  Desgostos de alma e coração, nunca sarados ...
Presentes sempre, contudo !

Felizmente a minha mãe já esqueceu as suas flores.
Seguramente morreram à míngua de uma "pinguinha de água", na inclemência do sol já forte que se abate, e na ausência de alma caridosa por perto ... de coração condoído...

Aquela casa agora é silêncio.
Não tem gargalhadas, não tem a voz do Gaspar ou o sussurro ronceiro e mavioso da Rita e do Óscar, sonolentos sobre as telhas quentes ...

E dou por  mim  a lembrar que é Maio ...  Maio sempre volta ... só Maio, sempre volta !!!...

Anamar

sexta-feira, 29 de maio de 2015

" ELUCUBRAÇÕES"




Maio, florido Maio ... não renega o epíteto ... "mês das flores" !

E é verdade que elas espreitam em cada canto, fazendo olhinhos ao sol que também já vai alto e quente.
Dei-me hoje conta que os céus estão mais azuis, pejados de "gotas" orvalhadas de jacarandás ...

O ar de Maio fica mais leve.  O cheiro floral parece chegar-me às narinas.  Ou então, sou eu que o imagino, simplesmente !
Sempre lembro com uma nitidez absoluta, o perfume intenso dos trópicos, na leveza das alvoradas.
São cheiros peculiares, únicos .  É o cheiro de terra parideira, úbere, pródiga, generosa.
São odores adocicados que se levantam da miríade de plantas, uma vegetação luxuriante por todo o lado.

Aliás, as cores, os cheios e os sons, são as pegadas indestrutíveis que retenho das minhas viagens.
Poderei esquecer tudo.  Já baralho com frequência, locais, espaços ... sítios atípicos, ou mais atípicos ( porque nada é atípico quando o mundo é nosso ...).
Mas essas três manifestações da Natureza, que me extasiam e sempre me transportam a um qualquer paraíso ... nunca esquecerei até morrer.
Dou por mim, mergulhada nesse universo, a dizer a meia voz : " que privilégio ... que felicidade poder viver tudo isto !... "

E esses cheiros, transportados pela aragem branda, são os mesmos, de ocidente a oriente.
E essas cores, intensas, feito seiva de vida, são iguais, de Bali a Samaná ...
E esses sons, assobios, apitos, chilreios ... o pipilar, o trinar das aves em desvario, também o são, da Amazónia ao Pantanal, de Zanzibar às Maldivas ...
A melopeia das ondas que o não são, mansinhas, desmanchando-se na orla das areias brancas ... é uma lenga-lenga, é uma canção de ninar, é um embalo entorpecente,  para a alma e para o coração ... P'ra cá ... p'ra lá ... p'ra lá ... p'ra cá ...
Oiço-a, oiço-a tão clara nos meus ouvidos, como se a escutasse de um búzio perdido na praia ...

Por aqui ... bom, por aqui, gosto de sentir o dia clarear.  Gosto de começar a ouvir a passarada na árvore das minhas traseiras, iniciando a labuta de mais um dia.
Gosto daquela cor pálida do céu, entre o azul, o róseo, e o indefinido negrume da noite, que começa a ceder ao romper da madrugada.
E gosto de aspirar profundamente o ar, fresco a essa hora.  Que é leve, que é puro ainda.
Gosto de me abeirar da janela, perscrutar  o silêncio lá fora, sentir a ausência de gente, de movimento, de ruído ... perceber, ainda adormecido, o peso do betão.

E sentir a miragem da liberdade, aqui, onde o fardo  dos dias me sufoca, onde o ar me falta, e onde apenas o sono é retemperador de alguma, pouca  força.
Porque neste momento sinto-me a adoecer a passos largos.   Percebo-me à beira de um abismo que não distingo bem.
Só sei que é fundo, escuro, e que o não consigo evitar ...

Anamar

quarta-feira, 27 de maio de 2015

" SUSPENSA ENTRE DOIS MUNDOS "




Mais uma semana em meio.  O real tempo do tempo, está "perdido" para mim.
Neste momento é como se eu estivesse suspensa no vácuo, à espera de qualquer coisa ... uma bússola, um norte apenas, uma estrada com sentido, um campo com horizonte que o signifique ...

Estou no meio de sonos, mergulhada em pesadelos, com o cansaço atroz de "noite não dormida".
Convivo demasiado perto com a vida e com a morte.  Anseio as duas.  Não sei escolher !
Convivo demasiado perto com o "apodrecimento" de um ser vivo, ainda vivo ...

As asas da morte esvoaçam, esvoaçam por aqui.  Sinto claramente o seu roçagar, pelas madrugadas escuras ....
Povoam os dias, mas povoam muito mais as noites.  São o urubu no galho da árvore lá na savana, olhando a presa.  E esperando.  Esperando a sua vez de descer.
Aterrorizam, profanam, empesteiam o ar, tornam-no irrespirável.
Esvoaçam, esvoaçam.  Apenas, ainda não pousaram !
Até os gatos a sentem.  Obviamente que os gatos a sentiriam ...

Convivo demasiado perto, com a crueza do abandono do corpo por parte do comando cerebral.
E assisto impotente, ao esfiapar de uma vida que já o não é.
É desesperador encarar o presente !  É mais desesperador ainda, projectá-lo para o futuro.
Porque aquele corpo que está naquela cama, já não é o da minha mãe.  É o meu.  Será o meu, um dia ...
Aqueles olhos sem luz, são o apagar dos meus, um dia ...
Aquele rosto sem expressão, perdido num espaço que já não conhece nem identifica, vai muito além do dela ...
É o meu, é o de todos os velhos perdidos no infinito ...

Por que recusa a "ponte" que lhe estendemos ?!
Por que recusa a amarra que lhe deitamos ?!
Por que não quer ver a luz do dia para além das cortinas, perceber o sol imenso, atrevidamente glorioso, lá fora ?!
Por que nega olhar o azul provocador  do céu, parecendo querer confundir o dia e a noite, para que ambos, misturados, formassem o lusco-fusco em que mergulha ?!
Por que já não sabe que as flores engrinaldam os jardins, adoçam o ar com o perfume inebriante, e esbanjam as cores, todas as cores, nos muros, nas janelas, nas ramadas, nos arbustos que amarinham as paredes ?!
Logo ela, que vivia de as olhar, de as plantar, de as regar ... de as acarinhar ?!
Por que rejeita a música, os sons ... e apenas o silêncio a conforta ?!
Por que parece despedir-se a cada instante ?!
Por que tem sempre uma mão perdida no ar, sem orientação definida, como o braço do náufrago fora de água, ou o adeus do viajante, na amurada do navio ?!

Porquê ???

E quando o dia cai e o sol ameaça dormir, este meu tempo sem tempo, afinal vai esgotando o tempo, e a vida vai andando, o cansaço chega p'ra ficar ... as forças vão partindo !

As semanas passam, os meses correm, e atrás deles, os anos !

A inevitabilidade deste caminhar ... A escorrência deste rumo imparável ...
O ontem tão perto do hoje!...  O hoje tão perto do amanhã !!!...

Anamar

domingo, 24 de maio de 2015

" A TRAGÉDIA HUMANA "




O drama do ser humano não é a morte.
O verdadeiro,  pungente,  e  patético  na  sua existência, é  como  chegar lá !

De facto, quando o corpo não é mais nosso, quando o esqueleto é um imprestável monte de ossos, que apenas nos pesa, não nos responde, desarticula-se e dói ... dói horrores ...
quando a mente se torna um fantasma, plana por cima e além de nós, descomandada, e teima em trazer-nos, deformadas, imagens relegadas a um passado muito longínquo, e o coração já só bate ...
... então, deveria ser a hora de partir.

Porque aquilo que nós fomos, não está mais por aqui.
E aquilo em que nos tornámos, é triste, feio, e decrépito.  E nós, não gostaríamos de nos ver assim !

As pessoas que  nos pertenceram, "fugiram-nos". Os locais que conhecíamos, "deixaram de existir".
A nossa realidade não comporta mais, as emoções, os afectos, as ligações que nos prendiam ao que foi a nossa vida, anos e anos, tempos e tempos.
Não há mais fôlego para isso.

O vegetal em que o ser humano se torna, neste contexto, é algo de uma violência, que boicota o entendimento, a compreensão , mais  ainda a aceitação ... sobretudo até, por parte de quem é obrigado a conviver, impotente,  com essa realidade atroz.
A "máquina" vai desligando, aos poucos.  Sente-se uma desistência instalada.  Uma desaposta, um quase desejo de corte.
Hoje deixa-se de interagir neste ou naquele campo, amanhã o simples gesto de abrir os olhos, de levantar uma mão, esticar uma perna, é de tal modo penoso e esgotante, que se procura a paz do silêncio e da quietude.
A estimulação exterior deixa de surtir efeito, e deixa-nos exaustos.  O desinteresse total por tudo o que nos preenchia a vida,  é crescente e agiganta-se.
A luz perturba, os sons incomodam, o  movimento, sinónimo de vida à nossa volta, perde sentido.
Os medos  povoam-nos cada momento.  O medo de ficar, mas também o de partir, degrada, aniquila, corrói, sufoca ... lança um pânico incontrolável.
As imagens distorcidas, lembram as figuras perturbadoras que os espelhos curvos  nos devolvem do real, como um caleidoscópio de fantasminhas diabólicos.

E o tempo passa.
Às vezes passa tempo de mais.  Não existe um comutador de on e off.
E quem assiste à degradação irremediável, injusta, irreversível e destruidora ... ( sobretudo os envolvidos de coração ),  à boa maneira do ser humano, egoisticamente, querem, tentam, insistem, no prolongamento, não da vida, porque já não o é ... mas do sofrimento.
E espicaça-se, e ministra-se, e puxa-se e volta-se ... e esfrega-se, e injecta-se ... e violenta-se ainda mais, um corpo esquálido, onde quase sempre só uma pele ressequida e semi-morta cobre os ossos, que espreitam ameaçadores, por todos os cantos ...
Até à exaustão ... numa manutenção artificiosa de um simulacro de gente.
Algo atentatório da dignidade individual.  Algo aviltante,  totalmente fictício ...

E nunca se deixa que a partida se faça docemente,  sem resistências,  naturalmente, talvez como alívio ... como direito ... como merecido !!!
E nunca se aceita a falência da batalha ... Simplesmente porque ficamos cegos, não queremos enxergar !

A tragédia humana é este sofrimento desestrurador, avassalador, prepotente ... É esta negação até às últimas e mais absurdas consequências, da lei subjacente a todos os seres vivos ( que nisso, como em muita outra coisa ), nos fazem reflectir :  chegar, cumprir  o destino ...partir em paz !...

Anamar

domingo, 17 de maio de 2015

" A EXPONENCIAL DO SOFRIMENTO "



O grau de sofrimento do ser humano não é uma curva exponencial.

É verdade que no início das agressões responsáveis por esse sofrimento, se define exponencialmente, com um declive acentuado.
É a fase em que nos confrontamos com a causa detonadora, que normalmente nos apanha de sopetão.
É a fase em que primeiramente nos surpreendemos, depois nos incredulizamos, depois questionamos o porquê disso acontecer nas nossas vidas ... é a fase de nos sentirmos injustiçados e com raiva.
Iniciamos então um período de negação.  Revoltamo-nos, insurgimo-nos, esbracejamos ...
E a manutenção de um mínimo de equilíbrio, espalda-se num desgaste emocional intenso, que provoca inclusive, sequelas físicas.
É vulgar que as insónias, o choro fácil, o disparatar descontrolado com tudo e todos, contra o mundo em geral .,. nos dominem.
É vulgar que as náuseas, os vómitos e a falta de forças por cada dia que se inicia e que quereríamos não ter que iniciar, se instalem e nos astenizem.

Depois há em simultâneo, um misto de sentimentos e emoções abissalmente contraditórios e destrutivos, que nos tolhem, e que ainda assim, precisamos gerir.
Por um lado, a sensação de uma incapacidade de resposta pessoal face às situações, por outro lado, a sensação de impotência e revolta face à realidade, amarfanham-nos e destroem-nos.

Também, a capacidade de resiliência depende do indivíduo envolvido no processo.
Há quem a tenha elevada, treinada, interiorizada.
E isso varia totalmente de pessoa para pessoa, e tem a ver com inúmeros factores.  Desde logo, a idade, a energia, e a robustez física e mental.
Desde logo, a história de vida de cada um : aquilo que já experienciou, a que foi chamado a suportar, a que não teve alternativa senão suportar e responder.
O seu grau de abnegação, generosidade, disponibilidade interior e dádiva de si próprio, também são factores individuais, superáveis ou não.
Cada ser é uma entidade altamente complexa, fruto de uma ainda maior complexidade de vectores, pessoais, familiares, sociais, éticos, morais, contraditórios, muitas vezes incontroláveis e incomandáveis.

E cada dia que passa, a odisseia de se viver um pesadelo sem fim, a sensação de mera sobrevivência que experienciamos, em que a vida "marina" porque não tem outra alternativa, o medo ... ou melhor, o pavor vivido de perto e que nos confronta em permanência com a fragilidade dessa mesma vida, fazendo-nos balançar entre vida e morte anunciada ... dão-nos uma sensação de impossibilidade de avançarmos mais, atordoam-nos, imobilizam-nos psicologicamente, enquanto que ao mesmo tempo nos anestesiam por dentro.
Reagimos pouco, baixamos a capacidade de interveniência, e apenas somos capazes, talvez por defesa, de nos deixarmos ir, exangues, de uma forma inerte, como a folha arrastada pelo caudal da corrente.
Robotizamo-nos, automatizamo-nos, "viajamos" em piloto automático.  Não vivemos ... sobrevivemos !

É então que a curva exponencial do sofrimento humano, aparentemente estagna, e desenha um patamar de cansaço e inércia, no gráfico da vida.

Estou convicta que é isso que explica que  os sobreviventes deambulem atordoados, apáticos, quase distantes, pelo meio dos escombros de um sismo, sem que exprimam já emoções, como se também eles já não existissem ...

É isso que explica que nas maiores  catástrofes da humanidade, o que pareceria improvável, acontece ... as pessoas ultrapassam o limiar do sofrimento, e para além dele, o estado emocional estampa-lhes uma mornidão nos rostos e nos corações, um sonambulismo na alma, que não se percebe se serão de incompreensão, de incapacidade, de indiferença ou de amorfismo, desencadeados pelo choque a que foram sujeitos.

Eu penso que é uma forma talvez irracional, de preservação da espécie ...
Baixando os níveis do sofrimento a valores aceitáveis, o Homem vai afinal, suportando e aceitando situações limite.

E  tudo  isto  porque,  como  alguém  disse ... " a  Vida  é  uma  história  que  sempre  acaba  mal " !...

Anamar

sexta-feira, 8 de maio de 2015

" A PASSAGEM "




Quando for, esperemos que seja de mansinho.
Que seja no lusco-fusco da noite serena, quando os anjos baixam, e viajam no nosso jardim.
Quando os olhos estão cerrados e o coração passeia no roseiral, junto ao mar.  Por lá, andam os meninos com quem joguei ao agarra, com quem dividi a tabuada e apanhei borboletas.
E poderemos continuar a festa ...

Quando for, esperemos que a madrugada esteja cálida, as violetas perfumem o ar, e o sol ainda esfregue os olhos em silêncio, p'ra não perturbar o dealbar de um dia novo.
Quero que alguém me pegue na mão, e comigo atravesse aquela passagem em permeio das ramagens frondosas e frescas, escutando o som dos primeiros pássaros da manhã ... os sons da mata que nunca dorme ...
Os pardais entontecidos estarão a descer aos trigais, os abelharucos a saltar de galho em galho, e os gaios e os melros, a saudarem a Natureza-mãe ...

E será um passeio apetecível, porque é leve.
Os pesos  e as penas ficarão por aqui.  Até as memórias ficarão lá, no início da passagem, porque excedem a carga permitida para quem vai.

Quando for, quero um bando de querubins, de caracóis louros e olhos azuis, tocando uma sonata de Beethoven.  Quero os cheiros do meu chão, as cores do meu canto, e o sussurro da brisa mansa, p'ra cá e p'ra lá ... p'ra lá e p'ra cá ...

E quero que as ondas da maré baixa,  me cantem a canção dos búzios.  Quero perder o olhar nas asas largas das gaivotas espreguiçadas, e quero o sono verde das algas adormecidas ... para me lembrar que houve tempos de esperança ...

Quero o meu cabelo a voejar  em desalinho, solto das imperfeições do ser ...  o meu sorriso infantil a iluminar-me o rosto, e todas as letras que escrevi, empilhadas no maior poema de eternidade ...

Quando for ... espero que seja de mansinho, como a canção de ninar  no berço esquecido, para que eu adormeça sem sustos, sem lágrimas e sem dores ...

Quando for ... espero que seja um regresso ao primordial de mim mesma, ao gineceu que me formou ... ao útero da minha mãe !...

Anamar

quinta-feira, 7 de maio de 2015

" NO LAVAR DOS CESTOS ... "





Há muito que não escrevo.
Há quase duas semanas, o que para mim, representa tempo de mais !
Demasiadas coisas acontecendo ao mesmo tempo, na minha vida !  Demasiadas preocupações, angústias,  aflições, incertezas, mágoas ... Tudo de correnteza sobre mim, sobre a alma e sobre o coração.
Uma avalanche, uma hecatombe ... um tsunami, indiferente e demolidor, que avançou, avançou, e deixou escombros ... restos ... destruição !

Há alturas na vida, em que ela parece brincar connosco.  Em que tudo é posto em causa, em que nos questionamos sobre muita coisa, sobre os valores mais elementares, sobre quem somos, o que fomos ... se valeu, de facto, a pena.
Há alturas na vida em que nos deparamos com um desconhecimento absurdo das  convicções, das certezas, das  verdades que foram nossas.  Verdades que eram garante da nossa existência, eram suporte da nossa lógica de existir, alimento do nosso equilíbrio.

De repente, perguntamo-nos se terá sido mesmo verdade que andámos por aqui, se teremos sido aquele que julgávamos ser, ou se tínhamos de nós mesmos, apenas uma imagem distorcida ... fraudulenta ...
Perguntamo-nos  se não teríamos fabricado  em  nós póprios  um "outro" boneco, desinserido do real, desfocado,  pouco preciso,  e fruto simplesmente de uma mente talvez perturbada, com padrões de auto-aferição deformados,  e bitolas viciadas ...

E postas na mesa as cartas com que jogávamos, tudo parece estranho.
Foge-nos o trilho, ficamos estrangeiros na nossa própria pele, perdidos no nosso próprio chão.
Nada era bem aquilo, afinal !...
Teremos adormecido em algum ponto do caminho ?!

A saúde, ou a falta dela, remete-nos inevitavelmente para a dicotomia angustiante da vida e da morte, que nos confronta sempre, com a impreparação que o ser humano tem,  de entender ... menos ainda, de aceitar.
A precariedade e a fragilidade que nos caracteriza ... face à ideia pueril que nos envolve no período áureo da existência, de alguma "imortalidade" e invencibilidade, desvendam-se-nos, tiram o véu, e mostram-se com toda a crueza e realismo do inevitável ...
Somos pouco, muito pouco mesmo !
Somos mero calhau,  rolado pelas marés ... ao sabor da agressividade das mesmas !  Sem apelo !

O questionar dos afectos ou o seu desmoronar, remetem-nos para a orfandade maior de nos percebermos em solidão, em desamparo, no tombar dos pilares que nos sustentavam e davam significância a esta coisa a que chamamos "existir"...
E percebemos com clareza doída, como o Homem é refém dos mesmos.  Como o Homem, ilhado, não vive ... sobrevive precariamente ...apenas !

E pronto.
Tudo se cogita no "lavar dos cestos", em horas de paragem e balanço.
Tudo se repensa, se avalia, de preferência sem emoção.  Porque esta, sempre deita uma poalha de névoa, perturbadora, sobre pensamentos e reflexões que se querem distanciados, pragmáticos, lúcidos  ... frios de análise.

É  quase  sempre  assim ...  há  muitas  alturas  na  vida  em  que  ela  parece  brincar  connosco !...

Anamar

sábado, 25 de abril de 2015

" OUTRO ABRIL " - 41 anos depois ...





Azul Abril, de céu, de mar
Verde de esperança 
de navegar
Sonhos de sangue
cravos vermelhos
Força de um povo ...
Novos e velhos
no meio da rua,
solta a canção,
senha, memória
e coração ...

Na madrugada que se fez dia,
asas de fogo
Abril abria ...
Um barco à vela,
céu p'ra voar
sem termos medo de naufragar ..
Abril abriu
nossa verdade,
sabermos certa, a liberdade ...
E a fé nascida num Homem novo,
foi voz de Abril
grito de um povo a recusar a servidão ...
Abril chegou, e disse NÃO !...

E hoje, Abril,
esqueceste as notas,
esqueceste a letra do teu poema, que era canção ?!
Calaste as vozes
Cansaste a esperança,
Perdeste o norte, feito criança ?!...
Esqueceste o rumo
Perdeste o chão ?!...

Que te fizeram ?
Eras azul, de céu, de mar ...
Não vais deixar-te amordaçar !...
Por ti ... já fomos ...
Contigo iremos ...
Tua promessa, tudo o que temos ...
Acorda, Abril
Firma a raíz
Dá fruto e flor, neste país ...
Deixa-me o sonho...
Olha o teu povo ...
Que nasça em ti
um ABRIL novo !!!

Anamar

quarta-feira, 22 de abril de 2015

" SAUDADE ..."



" Três erros e um quarto, menina Guidinha ?!"

Ditado  feito,  ditado  corrigido.   Acima  de  três  erros,  ganhava-se  o  direito  às "orelhas  de  burro "...
Assim estava destinado.

A Guidinha tinha dado um quarto de erro acima do determinado.  Um famigerado acento mal colocado,  ou não colocado ...
Contudo a senhora D. Maria Prego, professora no colégio há décadas, parecia ter  esquecido a penalização.  Ou se distraíra intencionalmente, ou talvez fosse uma tentativa do seu subconsciente repor alguma justiça ...
Afinal a menina tinha apenas 7 anos, feitos recentemente.  Entrara numa primeira classe, como todo o mundo à altura, mas entretanto  provara quase logo, dada a sua agilidade para as letras e os números, estar apta a transitar à classe seguinte.
Dominando os conteúdos programáticos exigidos, a senhora D. Maria Prego transferiu-a  para a segunda classe, a partir de Dezembro do próprio ano do ingresso, passando então a frequentá-la com as meninas de 8 anos, em escolaridade normal.  Era portanto,  a "caçula" da classe !

A menina Guidinha transitara com uma classificação de 20 valores ... mas agora caíra em desgraça !
Aquele maldito quarto de erro !...

O colégio, particular e feminino, era já antigo na cidade.
Era um colégio conceituado e renomado, pela taxa de sucesso.  As alunas  que por lá tinham passado, haviam tido desde sempre, um percurso escolar brilhante, no liceu.
Se existisse um "ranking" de escolas à altura,  o Externato Conde de Monsaraz, na cidade de Évora, seguramente  ascenderia a  um lugar  muito honroso !

As quatro classes ocupavam uma sala exígua, lembra hoje.  Ou pelo menos, no distanciamento do tempo, parece-lhe que assim era.
Eram três ou quatro meninas por cada classe, apenas.
A sala pertencia ao rés-do-chão do prédio habitado pela própria professora e família.  Tinha uma janela com rede de protecção, que dava para o Largo de S.Francisco, frente ao mercado municipal, onde os pais se abeiravam a buscar as meninas, ou a trocar breves palavras com a professora, na hora da saída.
Ao fundo, a casa de banho improvisada, ficava no vão da escada que levava ao piso superior. Consequentemente era baixinha de tecto, a porta também era baixinha ... mas quem a transpunha eram meninas ... igualmente "baixinhas" ... não fazia mal ... ( rsrsrs )
Não era provida de sanitários. A coisa era remediada de outra forma ...
A Guidinha odiava esse pormenor da escola !...

As carteiras, de dois lugares, em madeira, alinhavam-se.
De tampo inclinado, possuíam um buraco para o tinteiro de molhar o aparo, embora no tempo da Guidinha, já existissem as Bic.
Frente a elas, estava o quadro de lousa preta, um mapa de Portugal, das ilhas e das colónias, um crucifixo, e duas fotografias em tamanho grande, lado a lado : Salazar e Craveiro Lopes ...
Havia ainda um relógio de parede, e o ponteiro encostava-se ao quadro.

Também não havia recreio.  Em dias excepcionais, muito de quando em vez, a senhora D. Maria Prego, se bem disposta, deixava as meninas brincarem um pouco, no pátio lá de casa. Era um pátio empedrado, com duas trepadeiras robustas a cobrirem completamente a parede daquela casa solarenga.  Uma glicínia e uma roseira de florzinhas amarelas miúdas, confraternizavam desde sempre.
Esses dias eram então dias de festa no colégio, pela raridade do acontecimento !

A senhora D. Maria Prego era senhora já idosa.  Ou talvez não fosse tanto.
A Guidinha sabe que à época, as mulheres pareciam bem mais velhas do que realmente eram.  Era uma solteirona, seca de carnes, esguia, com o cabelo um pouco grisalho, preso num "pôpo" descido na nuca.
Vestia rigorosamente sempre de escuro, e encarnava a figura típica da perceptora inglesa, no nosso imaginário "torturadora" de criancinhas ...
Era austera não só fisicamente, mas também na postura que assumia. Não ria, era autoritária e pouco dada a brincadeiras.  Conversa não era permitida, e por isso, no Verão, apesar da rede na janela, podia ouvir-se uma ou outra mosca intrometida.

O Externato Conde de Monsaraz era frequentado pela classe alta da cidade, e não era fácil conseguir-se uma vaga nas inscrições das meninas.
A Elisinha, filha do Presidente da Câmara, a Dorinha, filha de um médico conceituado, a Mané cujo pai era um conhecido causídico da cidade, eram algumas das alunas do colégio.
A Guidinha tinha pais mais modestos. O pai era comerciante e a mãe, doméstica, e foi admitida no externato mercê de um pedido da madrinha de baptismo, que era prima da professora.

" Três erros e um quarto, menina Guidinha !"...

Fez-se um silêncio pesado.  A Guidinha estava aterrorizada, apesar da senhora D. Maria Prego ter silenciado, parecendo ter esquecido o castigo.
Não fora uma voz fininha, aparentemente tímida, lá do fundo da sala lembrá-la ... e a Guidinha estaria safa ...

Mas não !...

A senhora D. Maria Prego foi flagrada na sua aparente distracção, e apesar do estatuto algo excepcional da menina ... não teve outro jeito ...
... e a Guidinha sentiu aquelas orelhas de cartão, artesanalmente presas a uma fita, serem-lhe amarradas à cabeça ...

Humilhação das humilhações !  Desgosto dos desgostos !  A mágoa do que sentia já como uma injustiça, apesar dos seus 7 anos, deixava-a sufocada em lágrimas.
A aluna exemplar, com "orelhas de burro" !!!

Os anos passaram.  Muitos e muitos anos !
O episódio "devastador" das "orelhas de burro", nunca foi esquecido na vida da Guidinha.
Até hoje lembra com uma nitidez absoluta, aquela tarde azarada, aquela colega "queixinhas", aquele vexame ... aquele quarto de erro !!!...

Saíu da primária sem dar um único erro.  Saíu, sabendo escrever com correcção, sabendo exprimir-se com clareza, com conhecimentos alicerçados, com hábitos de trabalho, ordem, método e disciplina inalienáveis.
Saíu com uma bagagem que lhe permitia encarar a vida escolar futura, sem sobressaltos. Saíu com um domínio estruturado dos princípios necessários a um percurso académico exigente.
Hoje sabe como foi importante todo o rigor, toda a exigência, toda a seriedade impostos.
Sente-se grata pela forma como foi conduzida, numa fase tão determinante da vida, em que lhe foram facultadas todas as ferramentas que a dotaram com a destreza e as capacidades intelectual e de trabalho, necessárias a responderem a uma vida séria e válida.

O Externato Conde de Monsaraz perde-se na bruma do tempo, a senhora D. Maria Ramalho Prego, há muito terá partido .
Quando vai a Évora, sua cidade de coração, estranhamente ou talvez não, quase sempre a Guidinha se esgueira até ao Largo de S. Francisco, olha longamente aquele edifício, e aquela janela  agora já fechada,  e claro, sem rede que a proteja ...
É como se quisesse "conferir", como se buscasse alguma coisa, como se para todo o sempre ali houvesse um encontro marcado com o passado ...

Lá, já não há meninas, nas  leituras ou nas contas, nos ditados ou nos problemas ...
Lá, também já não há "orelhas de burro", nem as cantorias de roda, ou as gargalhadas do "agarra", em dias de recreios felizes ...

Mas  a Guidinha sente sempre um nozinho na garganta, um calorzinho no coração, enquanto que um sorriso nostálgico de saudade lhe invade o rosto ...
... porque saudade é tudo aquilo que fica, quando já nada existe !...

Anamar

domingo, 19 de abril de 2015

" SUFOCO "





Que falta me faz um ar ...
Que falta me fazem dez centímetros de terra, uma cancela, um caminho que nem precisava ser calcetado, um arbusto com anseios de árvore ... um quintalzinho de cinco por cinco ... um projecto de paraíso !
Que falta me faz, em desespero ... ao menos uma varanda que finja ser um jardim suspenso ... com parapeito onde eu pusesse as sardinheiras, com paredes, onde eu pudesse pendurar os amores-perfeitos ... com tecto, donde eu dependurasse os vasos de junquilhos, de narcisos, de jasmins ...
E uma casinha para passarinhos ... porque de certeza eles iam adorar a minha janela !
Ou então, faria olhinhos às andorinhas, para ver se tinha sorte, e elas, sentindo-me só, talvez me privilegiassem com a sua presença !...

Que falta me faz ir ali, colher uma braçada de alecrim, de giesta, de madressilva, umas pernadas de glicínia ... ou simplesmente apanhar uns cheiros, daquele caco velho, floreira inventada dos meus condimentos ...
Que falta me faz, agarrar um xaile, deitá-lo aos ombros, encarar a brisa, e percorrer os meus cinco por cinco, supondo-me latifundiária de um quintal de sonhos ...

Como eu precisava romper estas paredes, calcorrear estes telhados em voo rasante, passar para lá do além, julgar-me pássaro ... e ir ...
Como eu precisava que o sol me aquecesse a alma e o vento me enfunasse as velas ... e partir ..
Como eu queria tornar-me um grão da areia que o mar traz, o mar leva, rolando nos fundos, percorrendo os continentes ... descobrir os segredos dos búzios que são de todos os mares e de todas as praias ...
Ou ser alga esfarrapada dormindo na orla, largada pela babugem das ondas ... e sonhar ...
Como eu gostaria de ser a borboleta, que mesmo de noite encontra cama debaixo das estrelas, é livre nos caminhos ... e pode escolher ...
Ou, claro ... ser simplesmente a minha gaivota que ciranda por aqui e é dona de todos os céus ... e sorrir ...

Que falta me faz um ar ...
Que falta me faz, meter as mãos no enterroado do chão, deste chão que será berço de todos nós, um dia ...
Que falta me faz ter umas asas cá dentro, empoleirar-me no parapeito, e deixar-me ir, ao sabor da aragem, como se brincasse de  pára-pente.
E assim estaria no topo do mundo, e veria os rios, os lagos, as florestas invioláveis, os oceanos e as casas dos homens... tristes e cinzentas !
E assim,  esticaria os braços pelas madrugadas e apanharia bouquets de estrelas, antes de elas dormirem ...
E veria deitar a lua e amanhecer o sol ...
E seria bússola sem pontos cardeais ...rodando com os girassóis ...

E nunca mais me faltaria o ar, como agora !...

Anamar

sexta-feira, 17 de abril de 2015

" SINTRA "




Ao virar de uma esquina, no meio da ramagem, de repente surge a princesa, altaneira,  no recorte de castelinho de fadas.
A Pena lá se mostrou ...

Os meus caminhos nunca favorecem vê-la deitada lânguida, espreguiçada no topo da encosta, como ela o sabe fazer ...
Sempre a abordo de nascente.  E desse ângulo, ela encaracola-se e só mostra o que quer.
Calcorreio as veredas, os becos, as escadinhas.
Nos beirais envelhecidos, encarrapitam-se plantinhas atrevidas que espreitam de cima, as ruas estreitas.
E florescem ... espantosamente florescem por sobre as telhas ...
As janelas, de todas as formas, não são simplesmente janelas.  São janelas de estirpe, com carisma. Têm histórias  a contar.  A patine dos anos adoça-as, a graça das cortinas revela-lhes o rosto.
São molduras de vidas, são caixilhos de sonhos.
Há uma cumplicidade contada na penedia, recoberta de musgos ancestrais.
Há segredos subentendidos em cada tronco, por onde as heras trepam com sonhos de infinito.
Há a magia da neblina que esconde e desvenda.

As glicínias e as roseiras aproveitam cada canto, cada muro, cada portão, para se mostrarem plenamente, como donzelas fáceis, porém enganadoras.
As camélias, desenhadas em talhe de arquitecto, num mimoseio de "biscuit", enfeitam parques e jardins ...
As sinetas de anunciar, nas entradas das quintas, os batentes das portas, trabalhados ... os cães empoleirados nos muros, anunciando-se ... ou sonolentos, por hora de sesta ... os gatos ... muitos, com vida boa e repousada, têm alforria total.
Que mais quererá um gato ?!

Tudo isto, é Sintra !...

Adoro perder-me por lá, em caminhos que nem entendo.
Adoro pausar numa qualquer pedra, num qualquer recanto, numa qualquer volta, só para respirar, absorver o ar fresco que emana da serra, descansar as pernas.
Assim, dolentemente, sem horas, sem compromissos, sem encontros, além do meu com Sintra, que tenho a certeza, sempre está à minha espera !

Sintra é um deslumbre, uma surpresa, uma novidade , um assombro ...
Sintra é uma ternura, um encanto, uma canção ... uma dádiva generosa ...
Em cada canto há um recanto inusitado, que não se sonha ou prevê.  Que simplesmente aparece, que se dá, como uma prenda a desembrulhar-se ... a cair-nos no regaço.
Os sons e os silêncios, as cores e os aromas, a brisa que perpassa, que dança nas ramagens de todas as cores e de todas as formas ... desde as que rastejam atapetando e envolvendo, às seculares que sobem e se erguem, diferenciando-se, querendo abraçar a montanha ... Tudo é uma promessa de amor ...

Porque Sintra é amor ... seguramente Sintra é amor !...



Anamar

terça-feira, 14 de abril de 2015

" AS MAIAS, O MAIO - HISTÓRIAS E LENDAS "




Já aí estão as maias outra vez, florindo nos campos, como se o amarelo do sol tivesse acendido a Terra !
É sinal que beiramos outro Maio, é sinal que daqui a pouco é Verão, e um calor gostoso começa a tornar a Natureza úbere, e nos remete a um ventre fértil, em que as entranhas fecundas e pródigas nos mimoseiam com flores, frutos, aromas, cores estonteantes, beleza a rodos... sem regateio !

As maias ou giestas,  eram as flores dos pobres, lá no meu Alentejo.
Não havia mesa na cozinha, escaparate que se prezasse, mesa de cabeceira de sonhos promissores ... que não tivesse uma bilha, uma caneca, um qualquer caco mesmo gatado que as  não contivesse !
Eram pretexto de idas ao campo, de piqueniques de beira de estrada.
Uma braçada das maias  inebriava, penetrava-nos o coração, purificava-nos o ar, entontecia-nos a alma com o  perfume intenso, que trazia a Primavera  adentro de casa !

Largadas no chão,  atapetando caminhos de terra batida, entradas de montes ... soleiras das portas ou em pontos de descanso para sesta desejada ... lá estavam elas, garantindo a frescura, e o odor a paraísos sensoriais ...

Nas ruas, em tempo de procissão, também as maias adoçavam os percursos, para que os santos os calcorreassem em tapete macio.  Por certo arregalariam os olhinhos, de ternura agradecida !

Em  miúda ia apanhá-las ... Era de praxe !
Quando a minha mãe, no primeiro dia de Maio me entrava pelo quarto, mal o sol raiava, com uma amêndoa na mão, para que eu, mesmo adormentada  a comesse ... eu já sabia que era Maio, que eu não podia "deixar entrar" o Maio ... e que as maias já floriam na charneca lá fora !  Não tinha erro !

Sempre refilava pelo despautério.
Sempre achava aquilo, uma enormidade, uma tonteria,  um perfeito absurdo !
Raios !... Mania dos mais velhos trazerem ao presente o passado, com medo que ele fique definitivamente lá ... no passado mesmo !
A amêndoa era a terapêutica preventiva da entrada do Maio no corpo da miudagem, o que prenunciaria preguiça e molenguice  o ano inteiro !...
Era o suspeito "vedante" de uma desgraça dessas !!!...

O tempo passou, e há muito já, que o Alentejo me ficou para trás.
Há muito que as  memórias, as histórias e as lendas são exactamente isso... lembranças doces, histórias inesquecíveis ligadas a sítios e a gentes  que se tornaram míticos ...
Desde sempre, os aromas da terra, a cor inexplicável daquele chão, a grandeza daquela planura sem horizonte ou limite  que se veja,   me impregnaram até ao âmago, com a força de uma tatuagem que não desgruda, com a certeza de uma ligação umbilical indestrutível, com o amor de uma maternidade para toda a vida !

E até hoje, o cheiro das giestas parece perfumar o meu imaginário distante, e dou por mim a sorrir nostalgicamente, quando os olhos alcançam o amarelo outeiro acima, num contraste perfeito  com o azul intenso e luminoso  do céu de Maio ...

Só que eu não sou mais a gaiata de então !...



Anamar

segunda-feira, 13 de abril de 2015

" QUANDO FOI ?? "




"Força, faça força ...  Vá, segure a minha mão e faça força !"

Aguentava-se ... que remédio.  Era muito menina ainda, inexperiente, mas nunca foi de fazer escarcéu,  houvesse  o  que  houvesse.  Tentava  sempre  aguentar  firme, discretamente ...

"Pronto, já cá está.  É uma menina !"

Aliviada, dizia sorrindo : "Ainda bem !  A irmã queria uma menina !  E é perfeitinha ?"

No tempo em que ainda não se sabia que poderia ser uma menina, e em que a "perfeição" se concluía naquele justo instante ...
Pergunta-se  hoje como seria concluir da perfeição, naquele momento ... Dois braços, duas pernas, mãos e pés ... cinco dedos em cada ... ?!

Era assim !

"Chorou" !... Óptimo, excelente ... está feita à vida !...
Engraçado !  Quem lhe falaria então, em produções independentes, bancos de esperma, barrigas de aluguer, partos na água ... sequer fertilização "in vitro" ?!...  Quase escolha por "catálogo" !...
Quem lhe falaria ?!...

E então o tempo passou ... algum tempo ... tempo de mais ...

Quando foi que deixaram de lhe sentar o colo ?
Quando foi que o beijo se tornou rápido, à entrada e à saída da porta ... na visita ... Coloquial ?
Quando deixaram de rir com ela, de lhe contarem histórias, de chorarem mágoas, dividirem desgostos ou  simplesmente "desgostinhos" ?
Quando passou a ficar estranho, apertá-las, estreitá-las, cingi-las a si, a ponto de lhes sentir as batidas do coração ou o calor do peito, sem que sentisse de imediato levantar-se de permeio, o tal mar de ondas agigantadas, sem que sentisse de imediato que a terra abria e afastava duas metades, que só às vezes lançavam pontes ??!!
Quando passou a haver ali o distanciamento doído da vida, que de repente mostra outros, no lugar dos nossos, mostra estranhos no lugar de conhecidos ?!
Quando foi que se desconheceram pela primeira vez, quando foi que a linguagem se tornou ininteligível ... e as braçadas aprendidas já não as guiavam para a mesma margem ?!

Terá sido apenas quando deixou de fazer falta nas cabeceiras, a acalmar pesadelos ?
Terá sido apenas, quando as madrugadas já não precisaram de silenciar choros, o sarampo já havia eclodido, e as letras e as contas não precisaram mais ser perguntadas ?
Terá  sido,  quando  lhes  cresceu  o  pudor de já  se  acharem  gente  grande, e  por  isso,  ridículas ?

E pronto ... não há "rewind" a fazer !
As mãos e os braços desabituam o gesto do afago, o regaço já não sabe fazer colo, os olhos choram para  dentro.
Às vezes a memória empurra uma mão teimosa carente de carícia, obedecendo a um coração que não entende ...
Mas ela recua a meio caminho.  Fica sem jeito.  Esqueceu o trilho, receia o "estranho" em guarda, do outro lado ...
A linguagem emudece, não se solta ... recua além dos três primeiros passos.  O fosso não se atravessa.  Há um arame farpado armadilhado, no meio do percurso ... inexpugnável !...

E só passaram alguns ... demasiados anos !...
Que raios !  Onde poderia ter aprendido outra maneira ?  Será que havia "outra maneira" ?!
Hoje será diferente ?  As gerações serão forjadas noutros moldes ?  Aprenderam noutros livros ?
O tempo tem outra dimensão, que não esta medida imensurável, capaz de transformar alguns poucos anos, num vórtice infinito ?!...

E é segunda-feira.
Uma igual a muitas ... a todas.
E a roda rodando.  E numa roda quando roda, todos os seus pontos sempre retomam as mesmas posições, depois  de  descreverem  a  mesma  circunferência,  sem  princípio  nem  fim ...
E a roda rodando ... cansando ... rodopiando tontamente sem escolha, numa engrenagem imparável ...
O hoje já é ontem ...  O ontem, já tem séculos !...  Já é segunda-feira de novo ...

"Força ... faça força !  Segure a minha mão, e faça força !"...

Anamar

domingo, 12 de abril de 2015

" A SUPER AVOZINHA "


A minha mãe fez  94 anos.

E fê-los, apesar de tudo, num pico de melhor qualidade de saúde, outra vez.   Desde Setembro que a sua vida se alterou drasticamente, com altos e baixos muito acentuados.
Os períodos negros têm sido muitos, e houve dias em que tentei mentalizar-me que seriam sem retrocesso.
É certo que perdeu muito da sua autonomia.
É certo que "perdeu" a independência da sua casa, e com isso, muita da alegria de viver.
É certo que se tornou uma pessoa mais amarga e desinteressada de tudo ...

Mas apesar dos pesares, continua a ser a "guerreira" de sempre ...  a alentejana de raça, habituada desde criança a uma vida dura, de trabalho e exigência, sem grandes ambições, e aceitação do possível, com satisfação.
Nela se forjou, e é com essas armas que vai chutando as "partidas" com que o dia a dia a presenteia.
Esta mulher, é efectivamente uma força da Natureza !

Quando vou levantá-la para a higiene pela manhã, já ela, sobre a cama, completou a " aula de ginástica" diária ... os exercícios de pernas e braços que se propõe fazer.
Quando não pode ir à rua com as canadianas e pelo braço de alguém, anda no corredor da minha casa, de cá para lá e de lá para cá .
Porque pará-la, algum dia ... só se a vida a apanhar muito distraída ! ...

Que mais poderei dizer ?
Que a invejo, sem dúvida !
E que lamento não ter tido a sorte de ser brindada com as suas qualidades de determinação, força interior, luta, resistência psicológica, garra, paciência e generosidade ...
E gosto por existir, por "caminhar", por amar ... por desafiar o destino, não soçobrar, e sempre o enfrentar e agarrar "pelos cornos" !

Enfim ... a forma deve ter-se quebrado, e ficado por lá !!! ... ( rsrsrs )

Quando um dia se for,  será sem dúvida, o melhor exemplo  deixado  aos descendentes que por cá estão, e ainda conheceram a Bi ...  Uma velhinha impertinente, "eléctrica", que lhes dava montes daqueles beijinhos capazes de sufocar qualquer um ... devota do Sporting e da sua Santa ... uma resistente e uma campeã ...

Em suma, uma "super  avozinha" !!!

Anamar

sábado, 4 de abril de 2015

" OS APÁTRIDAS "





Isto de não se ter terra, tem que se lhe diga !...
Nestas alturas, Natal e Páscoa, época de êxodo do pessoal, isso dá cá uma gastura !...

Viver na grande cidade, sobretudo na capital, confere-nos um estatuto  injusto de "orfandade".
Até as cidades de província, sobretudo do interior, sendo agregados populacionais menores, são menos impessoais, menos incaracterísticas, menos anónimas, mais aconchegantes ... mais regaço e ninho!

Por outro lado, estou crente  que quem nasceu e viveu a sua vida, exclusivamente na capital, será um devoto inveterado do seu chão, sentindo-o  como de facto o é, o único "colo de mãe" que conheceu.
Acaba por estabelecer raízes, laços e cordões que vêm do útero telúrico.
Não anseia logicamente outra realidade, não sente outras necessidades ou premências ... Não conheceu outra terra, de berço.  E a gente ama o que conhece !

A questão coloca-se em quem, tendo nascido no interior, nele criou os seus mais antigos e profundos laços relacionais, nele implantou afectos, nele vivenciou as primeiras emoções ... e depois, fruto do percurso da vida, migrou para a capital, e aí se radicou.

Verdadeiramente, este indivíduo é um indivíduo de fronteira, é um desalojado ... é um "sem terra" !...
E depois, é também um ser desmembrado, dividido, amputado, de alguma forma ... Porque, muito embora toda a sua realidade se processe na grande metrópole,  quase sempre o coração permaneceu por lá, as memórias também, e a saudade continua arreigada àquela terra, de onde, fruto das circunstâncias, foi extirpado !
E sempre  o  seu imaginário mais embalador, para  lá o remete ...

Lá, era a casa dos avós ou mesmo dos pais idosos ...
Lá, era o "paparico" da tia velha, que jurava nos engordaria, aquando da nossa estadia  ...
Lá, ficaram as brincadeiras irreverentes, a época auspiciosa das férias, os amigos, que por serem os primeiros, o eram de coração e para toda a vida ... Os primeiros namoricos ... a emoção do primeiro beijo aceso ...
Lá, eram os dias grandes e ensolarados, a liberdade da rua ... lá, era a sensação da borboleta solta, voejando de flor em flor ...
As  memórias  mais  doces, normalmente  as  da infância e  da  juventude, prendem-se  claramente por lá ...

A vida real, dura e sofrida, a vida adulta, à séria, implacável quase sempre, com os seus inerentes e óbvios desencantos e dificuldades, as responsabilidades pesadas que nos ajoujam ... instalaram-se mais tarde, na grande cidade que nos acolhe.

Esse indivíduo apátrida, vive portanto entre duas referências, dois mundos, duas memórias distintas !
E sempre que pode, quando pode, responde ao chamado do coração.
E o êxodo inicia-se.
É assim nos Natais, é assim nas Páscoas, quase sempre no Verâo !...

Lisboa esvazia-se, e há uma exuberância na migração, uma alegria provocatória e contagiante, uma expectativa infantil, em cada família, em cada pessoa, à medida que os quilómetros da estrada se vencem, e o torrão natal se aproxima !
À medida que o céu de Lisboa nos fica pelas costas ... e o ruído do trânsito incómodo, se substitui pelo zumbido dos insectos, pelo pipilar das aves, pelo sussurro afagante da brisa campestre, à tardinha ... pelo marulhar manso da ribeira !
Pela proximidade  antevista dos rostos queridos, das conversas que se hão-de ter, das gargalhadas que se hão-de soltar, das novidades que se hão-de trocar ...
Somos portanto reais emigrantes, dentro da nossa terra ...
A ansiedade é sem dúvida a mesma !  A felicidade, também !

Mas  depois há ainda uma terceira realidade, a mais doída e a mais dramática de todas.
Respeita  àquele em que nos tornámos, quando  naquela terra que era a nossa, que nos esperava sempre, nos acolhia e aninhava ... já só existe um vazio de doer ...
A família já partiu faz tempo ; os lugares, com o passar dos anos, descaracterizaram-se, já os não conhecemos ;  as casas que foram "nossas", detentoras dos nossos sonhos e ilusões,  foram alienadas, ou já não têm pedra sobre pedra ... e os amigos que lá fizemos, mercê da passagem irrevogável do tempo, do afastamento e da realidade da vida, parecem-nos estranhos ...
A cumplicidade  que nos unia não a sentimos mais ... não com aquela força mobilizadora, que parecia nenhum vento ser capaz de abanar ...
Restaram as imagens esfumadas nos olhos, os sentires já difusos no nosso coração ... as memórias e as recordações felizes, que agora doem ...
E uma lágrima teimosa que espreita, e um nó na garganta que sufoca ... Não mais !

A vida não nos deixou  nenhuma margem ...

Não vale a pena engrossar nenhum êxodo ... porque não temos sequer para onde o fazer !...
Ficamos ... mas ficamos tristes, quietos no nosso canto, a vê-los partir ...  É como se afinal, nenhum pedaço de terra, tivesse sobrado para nós !...

Tristemente, tornamo-nos assim, no  mais "apátrida" entre os apátridas !...



Anamar

quinta-feira, 2 de abril de 2015

" INEVITAVELMENTE ... PÁSCOA ! "





" Que altas, que baixas, em Abril caem as Páscoas "

Toda a vida a minha mãe repetiu esta frase, quando Abril chegava, e ela ainda não tinha olhado o calendário,  a preceito.
"Não sei quando é a Páscoa este ano !..."
Seria certamente por aí, mais semana menos semana ...

Já falei aqui, várias vezes e de várias formas, desta comemoração que para mim guarda memórias.
Memórias temporalmente diferentes, espaçadas no tempo, e consequentemente vividas distintamente.
Retenho muito, com muito carinho, as Páscoas de Alentejo, de casa de avós.
Singelas, doces, felizes.  Páscoas simples, autênticas,  e tão "açucaradas" quanto os doces e os pitéus que as recheavam ... quanto o carinho e o afecto que escorria entre todos, os que nos juntávamos então ( e eram muitos ... quase todos ... )
Tão "açucaradas" quanto o aconchego sabido em casa mais que paterna, que por o ser, deverá sempre ser especial no nosso coração, ser "ninho" primordial, ser cordão umbilical indestrutível.
Tão "açucaradas" quanto o serão sempre  as memórias descomprometidas da criancice e da adolescência, as recordações de férias, o verde dos campos, o matizado das flores pródigas, a cobrirem  todo o chão do Alentejo !
O sol sempre tinha a claridade deste sol de Abil, que brilha em céu claro e translúcido.
O primeiro calorzinho convincente, do ano, instala-se, e sente-se claramente que a Primavera não dispensa vir comer as amêndoas connosco !...
Foram tempos !...

Recordo depois, anos passados, as Páscoas beirãs.
Outra gente, outra realidade, outras vivências.
Páscoas recheadas com família escolhida ... pais, irmãos, cunhados e já filhos a crescerem,  para quem a Páscoa repetiria seguramente o sabor das minhas, muitos anos lá atrás !

A geografia espaçava estas vivências.  O tempo espaçava estas emoções.  Os costumes diversificavam as comemorações.  A vida escolhia figurantes novos,  em cenários diferentes ...
Mas eu, continuava a ser eu, menina-mulher, calcorreando adiante a senda destinada.
O chão era outro, o ar também.  Os cheiros, talvez diferentes.  Os verdes agora eram da montanha, e não da planura sem limites.
A cor, a esmo espalhada, não se fazia rogada, e era igualmente generosa.  Engalanava encosta acima até ao pico da serrania, todo o espaço que a nossa vista alcançava ...

Também aqui, as glicínias penduravam os seus cachos roxos e cheirosos.  A "flor da Páscoa", os jarros, as camélias e as magnólias alindavam os jardins.
E nos campos, também aqui, as giestas, as macelas, as estevas, os dentes de leão, os bordões de S. José, o alecrim, o rosmaninho  e as urzes, não esquecendo as papoilas salpicantes e mil outras, se faziam presentes, ombreando em beleza e em cor, em singeleza e autenticidade, numa explosão de aromas e formas.
Flores sem mão de jardineiro !  Nem por isso menos belas ... Um regalo para a alma !...

Mas era o mesmo Portugal, embrulhado no mesmo céu, resplandecente, com o mesmo sol sempre claro e luminoso ... o sol de Abril que nos chama à Natureza, à renovação, ao renascimento ... à esperança !!!

Tenho saudades ... claro que tenho saudades !
Como costumo dizer ... saudades de tudo, mas sobretudo saudades de mim, da que eu era, e de todos os que, presentes fisicamente então, me continuam no espírito e no coração para todo o sempre !...

" Que altas, que baixas, em Abril caem as Páscoas !" ... a tradição mantém-se !!!...



Anamar

quarta-feira, 1 de abril de 2015

" DO AMOR E OUTRAS COISAS ... "







"Havia um sonho.  Havia uma
esperança.  Havia.  Havia.
Mas o sonho também cansa
e a esperança está vazia.
Havia um sonho e uma esperança
Pois havia. "
                             Joaquim Pessoa



Do amor só sei o que me contaram,
da vida, o que me ensinaram,
e de mim, já pouco sei !...
Os sonhos nunca são como disseram,
as esperanças já não são como se esperam ...
E dos dias ... já cansei !

Havia um sonho que poisava à cabeceira,
um sonho bom, que deitava à minha beira,
que vinha à noite, e comigo amanhecia ...
Era azul como a luz da alvorada,
tinha o perfume de uma mulher desenhada,
deixada só, numa cama ainda vazia !

E era um corpo que sonhava a Primavera,
p'ra florir ...
Corpo de ir, e não de espera,
feito rio que não tem muros e busca o mar ...
Era um ímpeto, um sufoco, um grito fundo,
era um lamento, foi um riso, ou só um esgar ...
Era pássaro velejando em céu profundo,
era barco sem amarras pelo mundo,
sem ter medos ... ou temor de naufragar ...

Foi luz de estrelas, foi centelha,
foi crer, foi querer,  e farol ...
Foi a força de um chamado e de um queixume
Foi fogueira acesa, sem ter lume ...
Morreu no frio do Inverno, sem ter sol !...

E o sonho que ficou na cabeceira,
como a ave que poisou na macieira,
foi só sonho ... não passou de uma quimera !
Era azul como a luz da alvorada,
vinha doce e embalava a madrugada,
mas partiu ... como parte a Primavera !!!...

Anamar

segunda-feira, 30 de março de 2015

" UMA DELÍCIA ... "





Eu tinha que escrever sobre o Arnaldinho !

O Arnaldinho é um menino "levado", de calções ao fundo do bumbum, de boné ao lado, fralda da camisa meio dentro meio fora, e algumas sardas sarapintando-lhe as bochechas sempre afogueadas.
Os olhos grandes, luminosos, mais azuis que céu de Primavera, parecem os do querubim pintado no painel, lá da igreja.
A mãe opta por prender uns suspensórios naqueles calções em queda iminente ... Coisa que enfurece o Arnaldinho.

Leva a vida no corre-corre.  A sua agenda infantil rebenta pelas costuras.
Ele é a bola, ele é o abafa, o carrinho de rolamentos, a troca de cromos, o rio que corre em desatino no limite da terra ...
Ele é ir aos ninhos ... são as laranjas e as tangerinas que o espreitam dos campos da Ti Raimunda, ou as maçarocas do milho já maduro, prontinhas para a fogueira ... Tudo tentações do capeta !...
Os matraquilhos sempre o desafiam, na tasca do Manel.  Mas para isso, é preciso moedas, e só de vez em quando o Arnaldinho encontra algumas, esquecidas no fundo do bolso já furado ...

A fisga pendurada dos calções, o ranho pendurado do nariz, e o suor pendurado do rosto, cola-lhe à testa as farripas da franja mal cortada.
No meio de tudo, arranja de quando em vez, um tempinho para as letras.  Só de quando em vez.
Deveres esquecidos, cadernos rabiscados, com dedadas e nódoas de gordura ... e eis que os castigos na escola o "encontram" vezes de mais.
Os recreios em que só tem ordem de olhar a meninada, uma ou outra reguada, a ponteirada que ferve a cada burrice, deixam o Arnaldinho injustiçado e sofrido, perguntando-se o porquê de tanta "maldade" ...
O tormento que o assola, a infelicidade que experimenta, confundem-no !
Afinal, o seu pecado é apenas sentir-se solto, livre, adorar os campos, o rio, caçar os grilos, os gafanhotos e as borboletas para espalmar no meio do livro de leitura ... O seu pecado é ouvir o tlim-tlim dos berlindes no bolso, a atazanarem-no para a brincadeira, ou o pião com a guita ao jeito da mão ... ou o gorgolejar da água bem perto, entre as pedras, correndo pressurosa e fresca, no despontar do Verão ...
O seu pecado é a malfadada traquinagem  que não lhe larga o coração !...
Resistir-lhes ... é obra, e um puto não é de ferro !...

O Arnaldinho esquece tudo.  Só tem olhos para o céu azul, para a aragem que o despenteia ainda mais, para o calor do sol que o envolve ...
Botas ao ombro, pés na terra quente, mais vermelhusco ainda, no entusiasmo da prevaricação ... ele aí vai !...

Afinal é só um menino, feliz com tanto mundo à sua volta, feliz com os horizontes sem horizonte, que a vida lhe concede !

"Naldoooo !...." grita a mãe em fúria, quando precisa de um "mandado" ...
"Esse menino vai ficar sem orelhas, quando eu o apanhar !..."

E Arnaldinho, fazendo-se de morto, escondido no fundo do galinheiro, só pede que a criação não entre em desvario, e o denuncie.
Com as batidas do coração disparadas, os olhos de menino safado esbugalham-se mais ainda, ameaçando abandonar as órbitas ...  Até as sardas parecem desenhar-se em 3D, querendo saltar das bochechas !!!...

Conheci o Arnaldinho há muitos anos.
Numa terra com rio, com sol, com campo, flores e pássaros soltos.
Numa terra em que a esperança era verde como os campos, e a liberdade voava  nas asas das toutinegras ...
Numa terra com sonhos grandes,  feitos de sonhos pequenos.
Numa terra e num  tempo em que os meninos ainda jogavam ao pião, subiam às árvores, usavam fisgas e caçavam bichinhos.
Numa terra em que a felicidade tinha o tamanho do quintal de casa, e o Mundo era limitado só pelo rio e pelas terras da Ti Raimunda !...

Anamar

domingo, 29 de março de 2015

" QUANDO O HOMEM SE ACHA DEUS "





"Desgraciado ... mal nacido... hijo de la gran puta...haberte llevado a 150 personas inocentes ... entre ellos bebés y también 5 perros que iban a ser adoptados en Alemania...porque no te has tirado tu sólito del avión ?? Ojalá ardas en el infierno mala persona, no se como puede existir gente así en el mundo ... ENFERMO PUDRETE "



Acedi à página de Andreas Lubitz.  Queria ver mais de perto o rosto daquele homem.
Afinal o Facebook serve para isso e muito mais.

Andreas é o jovem alemão de 28 anos, mais mediatizado neste momento, pelas piores razões possíveis.  É ele o autor do acidente macabro, do Airbus A320, numa encosta dos Alpes franceses, na passada terça-feira.
Foi ele, que co-pilotando aquela aeronave, a jogou inexplicavelmente contra a montanha, no coração dos Alpes, tonando-se o autor material da morte de cento e cinquenta pessoas, incluindo muitos adolescentes ( alunos de um liceu alemão, que regressavam de Espanha, de um intercâmbio com outra escola espanhola ), e dois bebés, e ainda de cinco cães que iriam ser adoptados na Alemanha ...

Acedi ... e fiquei fortemente perturbada pelo que li.
Deparei-me com uma torrente de ódio e indignação, com uma página destilando raivas, rancores, fúrias incontroladas, pragas dantescas rogadas, vaticínios odiosos.
Deparei-me com um linchamento público sumário, aterrador, em que nem sequer a razoabilidade, algum decoro nos comentários e moderação da linguagem que a sensibilidade da situação exigiria, foram observados, na cegueira incontida dos depoentes.
Não encontrei um pingo de piedade, sequer uma tentativa de compreensão dos factos, ou a busca de uma nesga de entendimento dos mesmos.
Apenas uma sanha exterminadora !

E  espantosamente, todos aqueles que gritam, vociferam, lançam impropérios, auguram chamas do inferno, inquietude eterna de alma e quejandos, para este homem, o fazem em nome de Deus ... do seu Deus !...
Deus que afinal não esteve presente, naquele fatídico instante ... sabe-se lá por que desígnios !!...
E eu, que sou agnóstica, pergunto-me :  ELE não disse que ninguém pode julga ninguém ?!  ELE não disse que o Homem deverá ser misericordioso e perdoar o seu semelhante ?!  Sobretudo o que mais peca ?!
Com que autoridade o ser humano se arvora julgador e justiceiro, se LHE sobrepõe, e liminar e simplistamente, valora, condena, decide, atira para a fogueira outro Homem ?!
A habitual incoerência e hipocrisia ... certo ?!

E  no entanto, o que aconteceu foi de tal forma insólito e brutal, foge de tal forma aos padrões de humanidade, que configura de facto, um quadro demoníaco ...

Mas tem que ter uma explicação, obviamente.
Ninguém comete um acto de desespero tão tresloucado quanto este, sem que haja uma razão que o explique, um motivo que lhe seja subjacente.
Ninguém atira contra uma montanha um avião repleto de pessoas inocentes, gratuitamente ... por nada ... como quem vai ali à esquina comprar amendoins ...
Ninguém age desta forma em sã consciência, por sadismo, por diversão, por inconsequência ... porque sim !...

A esta hora há já quem diga entre dentes : "Está louca !  Se esta mulher tivesse perdido no acidente, um filho, um pai, uma mãe, um amigo ou parente próximo ... certamente não falaria assim !  este crime não tem desculpas, justificações, atenuantes! "

Pois bem ... que fique claro que não deponho em defesa ou aprovação de Andreas.  Estaria insana se o fizesse.
O que se conhece é de tal forma DEVASTADOR,  DESTRUIDOR,  TERRÍVEL, que apenas busco, procuro, tento descortina e compreender o que levou este jovem, a um definitivo acto suicida, de um desespero sem dimensões, e de uma monstruosidade sem tamanho ...
Porque, seguramente, só alguém profundamente perturbado, doente, em sofrimento interior sem limites, sem saída ou luz à sua frente, seria capaz de o perpetrar !
Só alguém para quem a vida já não fizesse qualquer sentido, alguém que houvesse perdido a noção dos limites, sem nenhum auto-controle dos mecanismos da existência ... Alguém perdido ... totalmente perdido, teria sido capaz !
Esse alguém foi Andreas Lubitz, de quem se sabe agora, estar gravemente doente, em depressão profunda, cumprindo tratamento psiquiátrico ...
Um jovem bonito, com um rosto comum, aparentando alegria e descontracção.  Quase um adolescente ainda, com uma vida à frente, também ele ... Com sonhos certamente, ambições, vontades legítimas ...

Convém reflectir que seguramente muita coisa falhou, neste seu percurso final.
Ninguém esconde o tempo todo uma depressão profunda, nos meios familiar, social e profissional ...
Ninguém disfarça mais próximos, uma perturbação mental dessa envergadura mesmo que tente escudar-se da estigmatização a que infelizmente a sociedade ainda sujeita estes pacientes ...
Sabemos que isso é impossível.  A postura de alguém devastado por esta patologia, denuncia, alerta, avisa.  Dá permanentes sinais.  Acciona mecanismos denunciadores !

Quem conhece esta doença de perto, sabe-o bem !
E também sabe que em consequência, as respostas do doente, poderão ser de dimensão e imprevisibilidade incontroláveis.  As mais gravosas para si e para a sociedade !

Por que não foi protegido atempadamente, Andreas ?!  E por que não foi a sociedade protegida, de Andreas, enquanto indivíduo inimputável, potencialmente perigoso, ou pelo menos enquanto um indivíduo de risco ?!
Quem tem sérias responsabilidades em tudo isto ?
Família ?  Amigos ?  Médicos ?  Profissionais seus colegas ?  A própria empresa empregadora ?...

Acedi à página de Andreas Lubitz.
Quis confirmar que os seus olhos não continham ódio.
Fui arrastada pela avalanche doente de comentários, ali debitados por gente saudável ( ? ), por gente com  respeito  pelos  valores  religiosos  e  morais ( ? ), por  gente  temente a Deus ( ? ) ... ou  por gente  com  uma  sede de julgamento, de vingança  e  de ódio, devastadora  e cega ?!
Ou gente que com toda a leviandade e indiferença, foi rápida a sobrepor-se ao próprio Deus, que ali invoca ?!
Gente  que  tem  pressa  de  encontrar  o  alvo, o  responsável, o criminoso,  para  apaziguar  as consciências  e  dormir  em  paz ?!

Andreas partiu, e arrastou com ele gente demais, que apenas teve a pouca sorte de estar no sítio errado, na hora errada !  Destino ... chamo-lhe eu.
Os pais, quiçá irmãos, quiçá avós ... todos os que lhe queriam bem, continuam por cá.
Será justo que também eles tenham que carregar para sempre o ónus da desgraça ?  Será justo que também eles sintam sobre si o peso do estigma de uma sociedade distante, anónima e hipõcita, o dedo acusador de todos que descartam o seu sofrimento, o inferno da sua dor, só porque são seus, de sangue e coração ?!
Penso que não!

Acedi à página de Andreas Lubitz, e fiquei mal ... muito mal !

Anamar