sexta-feira, 19 de junho de 2015

" NÃO SEI O QUE FOI ! "




Não me perguntem porquê ... mas de repente, fiquei em paz.
Em paz comigo ... mas sobretudo em paz com o meu coração !

Há momentos na vida, em que ela nos dá sinais !
Não me perguntem porquê ... mas há !

Por outro lado, quando se desce tanto, tanto, que se bateu num qualquer fundo ... diz o povo que depois, só poderá ser a subir.
De facto, há instantes em que claramente se atingiu um limite, um limite de cota positiva, ou um limite de cota negativa.
Há instantes, em que subir mais, não se pode ... mas cair mais, também não !

Hoje, estranhamente, sinto-me assim.
E até tenho medo do que sinto, pois pareço ter finalmente desatolado, pareço ter recebido um complexo vitamínico  qualquer, pareço ter sido injectada de esperança, de força anímica, de confiança ... e consequentemente, inundada de paz !!!

Hoje, pela primeira vez ao fim de muitos, e muitos, e muitos meses, em que os dias me amanheciam cinzentos e anoiteciam negros ... eu acredito que nem tudo se perdeu na minha vida, que estou num momento mágico de superação, de clarividência, de reversão, de aposta e de fé.
Eu acredito ( e digo-o com uma serenidade que não sei onde fui buscar, mas que  baixou claramente no meu caminho ), que estou num momento em que, de consciência tranquila, apenas me cabe esperar.

Esperar um pouco mais.
Não me deixar soçobrar.  Procurar perceber além do curto horizonte que ainda me espreita, e ter fé que outro céu, outro mar, outros sonhos, outra vida, me aguardam mais além !
Acreditar que há-de vir outro tempo.  E que o tempo de borrasca e tempestade brava, de cerração profunda, sem sol no meu firmamento, terminará ...
Simplesmente porque, pior do que está, não poderá ficar, e eu terei forças para vir à tona !

Sempre assim foi na minha vida !  As minhas histórias de luta, visíveis, mas também as invisíveis, foram por mim digladiadas, esgrimidas, enfrentadas e superadas ( por vezes com excessivos custos) ... mas por mim, apenas ... por mim, só por mim .
E fui capaz de muitas coisas, que não pensaria sê-lo.  E fui muito além das forças que julgava ter.  E reformulei-me, e rearticulei-me ... e juntei as peças ... e apanhei os cacos ... e como uma espécie de fénix ( aos trancos e barrancos ), ainda assim renasci ...

Hoje ... não me perguntem porquê ... de repente deixei de ter mais medo do tempo, e da safadeza que ele comete, ao fugir-me .
Logo eu, que quero ainda viver tanto na minha vida !  Logo eu, que pressinto ter direito a mais um lampejo de felicidade !  Logo eu que sou sedenta, sequiosa, impaciente para agarrar o mundo com as mãos !
Logo eu !...

Hoje, não me perguntem porquê ... olhei para trás e fiz as pazes com o meu passado.
Aceitando-me, primeiro que tudo. Redimindo-me das minhas falhas e omissões.
Percebendo-me, e às minhas incapacidades e limitações !
Olhando com serenidade  os dias, as pessoas, as vivências que fizeram parte de mim e da minha estória  ... Recebendo no coração o que foi, sem reclamar do que podia ter sido .
Não chorando pelo que terminou ... mas bendizendo ter acontecido !
O bom e o mau ... numa aprendizagem permanente e incessante !

Hoje, não me perguntem porquê ... reconciliei-me com a minha existência.
Hoje, algo de novo,  acaba de se me anunciar ... uma página experimentou começar a viragem ...
E eu acredito, sinceramente acredito que alguém que nunca me falhou, esteja onde estiver, "percebeu", "sentiu" que o trilho destruidor e sem rumo que eu pisava, tinha que ter um fim, que  a escuridão na minha alma tinha que cessar, que a minha resistência física e anímica  estavam a esfiapar-se ... e abriu-me finalmente uma janela ... soprou-me uma lufada de ar fresco !!!

Há momentos na vida, em que ela nos dá sinais !
Não me perguntem porquê ... mas há !...

Anamar

quarta-feira, 17 de junho de 2015

" O GRANDE DITADOR "




O tempo é o grande decisor.
É o homem da batuta, é ele que dá as directrizes, os comandos, as ordens, assume as determinações.
Ele decide, à revelia das vontades.  Ele resolve.  Manda e desmanda, mostra, ensina ...
Premeia e castiga.
E é sempre impiedoso e autoritário.
Nada o demove, com nada se compadece ...

Por aqui andamos, ao sabor dos seus caprichos.
Tanto nos ilumina a vida ... como, pirracento, nos desagua no coração, uma tempestade devastadora.
Quando estamos felizes, aziaga-nos a felicidade !  Não descansa enquanto não acaba com ela.
"Não há bem que sempre dure"... diz o povo.
Também, diz ainda o povo que "não  há mal que  nunca  acabe".
Só que esse tempo é sempre tão longo, tão longo, que parece não ter fim ... e o seu estrago também não !
Ensombra-nos a existência, e parece rir da "partida", com indiferença e distanciamento !
Coloca-nos no "mato sem cachorro", como baratas tontas, às cabeçadas ao destino !...

O tempo escreve, rescreve e apaga.  Sem perguntar nada.  Sem pedir opinião.  Indiferente às mazelas. Distante da hecatombe  !
E como um ditador, faz e não justifica ...

Assim é o meu tempo, neste momento da minha vida ...
Brinca a cada momento.  Obscurece-me o coração e extirpa-lhe as mais bonitas emoções, que eu jurava  não mais de lá sairiam.
Agride-me e destrói-me , numa manobra de amortecimento do espírito, colocando-me num estádio sonolento de vigília, face à vida.
Quase deixo de sentir, quase estou incapaz de me envolver com a minha própria história ... quase me descomprometo da realidade.
E sinto-me estranhamente irreconhecível.  Identifico-me a custo, e sinto-me como alguém em hibernação fora de estação ... desligada, apagada ... semi-morta !
"Zombie", em cada dia que passa ... como se não percebesse sequer se é manhã, se é noite, se a noite já repegou outra manhã ...
Prisioneira, tolhida de liberdade, amputada do livre arbítrio sobre as minhas escolhas !...

E ele passando ... avançando !
De ampulheta na mão, olha-me de lado ... sobranceiro ... altivo ... insensível, disfarçando o riso amarelo de escárnio ...
Ditador ... um ditadorzinho de meia tigela !
Porém, poderoso, dono e senhor ... gélido e impassível ... como todos os ditadores !!!
Reféns ... nada mais que reféns ... Eis o que somos, neste jogo desleal, desigual e absurdo, de poder ...

Este é o meu tempo !
Este é o tempo que vivo !
Este é o tempo que me mata, todos os dias um bocadinho !
Este é o tempo que me tiraniza, e de que estou farta, absolutamente farta !!!...

Anamar

domingo, 14 de junho de 2015

" VÓMITO "





Aquilo que vou escrever é absolutamente chocante, controverso ... se calhar revoltante.
Sobretudo para quem o leia pela rama, se ligue à leitura superficial do texto, se prenda ao significado simplista das frases .

Não importa !
Como afirmo na apresentação deste blogue, escrevo-o fundamentalmente para mim, coerentemente com o meu pensar e sentir.
Imune  a  preocupações de censura, ou a opiniões dissonantes ( até porque as pessoas que a ele acedem, quase nunca, ou nunca, fazem comentários sobre o que lêem ... ).  Sequer ainda, a  juízos de valor.

Estou mergulhada num processo irremediavelmente destrutivo  e sem outro tipo de solução, alternativa, ou saída.
Costuma dizer-se que "o que não tem remédio, remediado está" !  É um pouco assim de facto, embora pelo menos, o direito aos sentimentos e às emoções, qualquer ser humano tenha.

Tenho a minha mãe, com 94 anos, semi-acamada, sem mobilidade, com demência progressiva, e com um coração que "preso por arames", parece aguentar tudo ...
Tenho à minha frente, todos os dias e /ou noites, um quadro terrífico de alucinação, de descompensação cerebral, de descomando do resto da racionalidade que aquela cabeça determina.
A minha mãe ... aquela que o foi, obviamente que há muito aqui não está.
E esta, a que raramente me conhece, mas sobre quem lança a raiva de por mim ser "controlada", é uma caricatura triste, é uma figura patética, é um esgar de ser humano ... é uma tristeza ... num "espectáculo" de vida, a que ninguém deveria ter obrigação de assistir.

A impotência que sinto, face à sua destruição como pessoa, a raiva que sinto contra uma degradação irreversível, a mágoa e a dor que me assolam face a um "apodrecimento" incontrolável, deixam-me em desespero, em ódio e em revolta,  vivem comigo de dia, e pernoitam comigo na almofada que não consegue conciliar-me o sono ...
Porque "viver", não é apenas acordar, respirar, e adormecer de novo.
Porque viver não deveria rimar com sofrimento, com dor ... com piedade e comiseração ... com solidão de alma ...

E digo para mim mesma : " eu não quero acabar assim ... eu não posso acabar assim !!!"
Nenhum ser humano deveria ... ninguém mereceria ... NÃO  É  JUSTO OU POSSÍVEL !!!

Que é feito da dignidade, que é feito da essência, que é feito da "vida", centelha da luz que distingue o Homem dos outros seres irracionais ?

Neste momento, dou por mim a olhar os velhos com quem me cruzo.  Olho-os, além de vê-los.
Não consigo olhá-los, que as lágrimas me não caiam.
A velhice é de facto feia, parda, cinzenta ... descolorida !
A velhice não comporta risos, esperança, futuro ... amanhãs ...
A  velhice  é  uma  partida  de  mau  gosto ... é  uma  piada  jocosa  de  humor  negro  e  desrespeitoso !
Os rostos pregueados, romanticamente conotados com "histórias de vida" ... podem, na verdade, não ser motivo de orgulho ... mas tão somente, sinais de uma inevitabilidade desesperada, que tem que se carregar.
Os velhos olham perdidamente o vazio, porque não descortinam nada mais para ver. Param os olhos, muito para além do que os rodeia.  Escarafuncham na vida, quando era vida e não morte !
O olhar opacizado vagueia ... entre o passado e um não-futuro ...
Fogem do sol, e buscam a penumbra ... porque estão a recolher-se ao útero telúrico donde saíram .
Procuram o silêncio, porque o "ruído" com que a vida se veste, é excessivo e descontextualizado do estadio que habitam.
A velhice "fede". Tristemente "fede" ...
É um grito amordaçado em gargantas que já não ousam fazer-se ouvir.
É um cansaço arrastado, que se quer parar, e não é possível.  É um pedido lancinante de arrego, é uma ânsia do colo que não se alcança mais ... é o estertor de quem sufoca no coração e na mente, quando a crueldade de alguns momentos de lucidez lhes devolve a "imagem"...

É duro ler isto ... é duro ouvir isto ... é duro escrever isto ...
Sobretudo quando convivemos impotentemente com esta realidade, exactamente  num "romance" sem fim à vista, um romance que não podemos rescrever, aligeirar, modificar ... que sabemos sem fiabilidade, sem futuro, sem esperança ... sem "happy end" possível !!!...

É isto, o destino ?
É esta "tragédia", o corolário da vida do Homem ?  É isto, o que lhe é concedido ?  É isto, tudo a que tem direito na saga que calcorreou, arrastando seguramente correntes e grilhetas, num percurso esforçado, cansado ... penitente ?

A minha garganta sufoca um grito tão grande, que ultrapassa o além !
A minha garganta queima, com o vómito de fogo que me sobe das entranhas, me entorpece a mente e me cega os olhos ...
O meu coração não se compadece desta realidade crua e dura ... Não consigo !!!


Estarei a ficar louca ???!!!...

Anamar

quarta-feira, 10 de junho de 2015

" NEVER ENDING STORY "






Adiado ... está tudo adiado !
Neste momento, a minha vida, toda ela, tem o estranho adiamento de alimento em banho-maria.   De carne em fogo brando, que não torra e não coze ... mas também não fica crua.
Fica aquela coisa insalubre que não fede nem cheira ...

A minha vida neste momento é um túnel tão escuro, que por o ser, nem se lhe divisa o tamanho.
Nada é, nem deixa de ser.
Tudo está coberto pelas famigeradas "nieblas" de que já tanto falei, que me assustam, que me fecham o horizonte, me tolhem a visão, me embrulham o coração  a ponto de sufocá-lo, e me bloqueiam a mente.

Penso que circulo em roda livre.  Penso que circulo em piloto automático.
Penso que circulo aos encontrões , como robô mal comandado.
Penso que verdadeiramente, não circulo ... arrasto-me adorminhada, naquele estado entorpecente e atordoado de quem se levantou de noite mal dormida, acordado de supetão, sem saber onde está ou para onde vai !

Contudo, a sensação que me invade, e que pertence ao domínio do que se sente e não do que se consciencializa ( porque isso eu já não sou capaz de fazer ), é de pesadelo interminável, é de uma história em círculo, é de um jogo viciado que tem que continuar a ser jogado, é de chuva de Verão, que não dessedenta,  nem sequer refresca ou alivia ...
É como olhar pela janela do carro, com a chuva torrencial a cair impiedosa, e sem que o limpa pára-brisas dê vazão à limpeza ...

Estou acordada, mas em vigília permanente.
E nada mais desgastante para o ser humano, do que não visualizar  na sua vida, três palmos adiante.
Nada mais desgastante do que não conseguir estabelecer planos.  Não perceber o que se vai passar. Não ter mais metas a atingir.
Não poder definir objectivos, prioridades, caminhos ...
Não ter mais direito a sonhar !...

Porque o Homem move-se por objectivos, trabalha por objectivos ... e também vive por objectivos ...
Sem os ter, o Homem entra numa desistência comatosa, em que se desconstrói globalmente ...
E sem sonhos, o Homem deixa simplesmente de viver ... Morre lentamente ...
Mas primeiro apodrece ... vai apodrecendo !...

A incerteza, a dúvida, a angústia,  amarguram e esgotam ... depois revoltam, e depois ainda, anestesiam !
Mas anestesiam mortalmente, como o ansiolítico ou o anti-depressivo que se toma para se "ir levando", para "fazer de conta", para nos permitir olhar à nossa volta  com lentes especiais ... ou ainda como o "doping" milagroso,  que faz o atleta acreditar ter tido a admirável pujança que o projectou merecidamente ao pódium ...
Só que ... tudo de "mentirinha", de panaceia ... de penso rápido ... qual oxigénio que nos permite um último fôlego !...

E  então,  já estamos irreversivelmente a encolher os ombros ... porque já tudo é indiferente.
Não há mais força ... Não há mais vontade ... mais ânimo ... mais fé !
Não vale mais a pena !...

Anamar

domingo, 7 de junho de 2015

" JULGUEI ..."




Julguei que conhecias os caminhos ...
Sim, aquelas veredas que cortam a serra além, que sobem às falésias, e de repente nos deslumbram o mar ...

Julguei que os conhecias,  por os palmilhares vezes sem conta.  Até porque eram caminhos do meu coração ... Não podias esquecê-los na segunda curva da estrada !

Por que cruzámos trilhos, trocámos braçadas de rosas, respirámos o mesmo azul do céu, a mesma neblina do monte ?...
Por que  rimos com o voo do pássaro azul empoleirado no galho ... olhámos até ao firmamento a gaivota rasante, aninhada no vento que perpassa,  para descansar ???
Porquê ? - diz-me lá ...

Tantos códigos de afecto que registamos nesta passagem, e que nos caem do bolso do coração, no primeiro socalco da estrada !...

E as amoras ?!  Será o tempo das amoras adoçarem os caminhos ?
Não sei !  Já perdi a noção desse tempo ... como um  filme que saíu de cena, há muito !

Estranho ... é tudo tão estranho nesta jornada !
É tudo tão frio e tão vazio, que nem o sol que começa a esquentar por estes dias, consegue aquecer ...
Já perdi coisas de mais ...  Distracção  da alma ... tenho a certeza !...
Ou então já não sei jogar neste tabuleiro ...

Nesta altura, Lisboa era linda.  O castelo e as ruinhas  ressomavam a manjericos, a tronos e a festões.
Nesta altura, julguei que a cidade era do tamanho do que eu carregava dentro do peito ...
E as janelas das vielas, com os velhos de atalaia, e as roupas descoradas e tão velhas quanto eles, adormecidas na fresca da tarde, acenavam-me como as velas das faluas cruzando o Tejo, lá ao fundo ... por entre meio do casario !
Julguei que tudo ia ficar ... mas enganei-me outra vez !

Fica-me o quê, então ?

Fica-me o que consigo guardar no sótão da memória.  Ficam-me os risos iluminados dos rostos. Ficam-me  as vozes que a brisa me sopra lá de longe.  Fica-me o eco das fantasias inventadas, porque era Verão, havia sol de mais, e a esperança verde embalava-me no seu regaço ...
Ficam-me as mãos perdidamente vazias, esquecidas das linhas do teu corpo ...
E fica-me a ausência de todos os que amei ...
Fica-me o espaço vazio, sobrante na alma.
Fica-me o silêncio que pesa eternidades, e me assombra as madrugadas desertas ...
E ficam-me demasiados buracos, nos sonhos tricotados  nas noites enluaradas ...

Quem disse que o vazio não pesa ?
O vazio pesa o peso do Mundo !  O vazio tem a cor do desespero, pinta-se de negro como as alvoradas que não querem nascer , ou as velhas embiocadas que choram os mortos ...
Tem aquela cor mate, que é uma mistura inventada entre o vermelho sangue e o branco paz, que são a cor da inquietação  e a cor da saudade ... tenho a certeza !...

E eu que julguei estar viva !...  E afinal, não era  bem assim !... Também não era bem assim !...
Estou por  aqui, é verdade ... Mas olho e não vejo, busco e não encontro, falo e não me oiço, chamo, e a voz atraiçoa-me ... segue sem endereço, como mensagem extraviada ...

Então, resta-me sentar  no penedo adormecido, olhar o sol a descer de mansinho ... e esperar.   Só esperar !...

Anamar

sábado, 6 de junho de 2015

" PORQUÊ ??? "


Estou exausta !
É a terceira noite que não descanso, nem qualitativa, nem quantitativamente.
É o esforço físico e mental, mas é ainda mais, o desgaste psicológico e emocional de ver alguém que foi um ser inteiro, mas inteiro mesmo, autónomo, senhor das suas vontades e decisões ( muito embora as limitações sobretudo locomotoras, lhe restringissem nos últimos tempos, alguma qualidade de vida ) ... jogado numa cama que mais é uma prisão, refém de espaço, refém da ausência de forças e refém  de uma demência, progressivamente a acentuar-se  de noite para noite.

Como é possível, pergunto-me, o ser humano degradar-se a este ponto, em que não é mais nada ... apenas uma máquina, que irá funcionar em desacerto, enquanto houver corda ?!
Como é possível que na verdade o comando cerebral seja a exclusiva central norteadora de tudo, e o coração, apenas a bateria, que descarregando-se, ainda assim faz mexer braços, pernas, olhos, boca, mãos ... e mais nada ?!

A minha mãe é, neste momento, uma aproximação injusta, triste, totalmente desarticulada, de um ser humano.
A minha mãe é uma sombra, um pesadelo, um esgar ... monitorizado a comprimidos, a fraldas, a ritmos impostos, quer alimentares quer de higiene.
E quando "se olha", e o "fusível" está ligado ... desespera, revolta-se, pede clemência e paz ... pede para  partir, porque partir será sinónimo de descanso ... E ela quer descansar !
Ela precisa parar esta luta inglória, que por inércia da vida, ainda é obrigada a travar ...

Não há muito mais a fazer !  Mesmo os mais sonhadores, crentes e determinados, estou segura, que interiormente estão certos da sua utopia, e estão certos do que ali está realmente a acontecer ...
E o que está a acontecer é que a última chama da "vela interior", está a extinguir-se, lentamente, dolorosamente, agressivamente ... a última centelha de luz é tremeluzente, é titubeante, é asténica ... irá apagar-se ...

Madrugada fora, encostada às grades daquela cama, só olho.
Olho incrédula, perguntando-me onde é que aquele corpo definhado encontra ainda assim tanta força, para não desistir de arrancar toda a roupa da cama, as fraldas, os resguardos, a camisa de noite ... segundo após segundo ... continuadamente,  numa fúria e numa sanha de jornada imparável ?!
Escuto o desnexo das frases, o descomando da verborreia, os impropérios nunca ouvidos na boca da minha mãe ... em vida.
Sim, porque hoje ela está morta ... obviamente !

E é mera sobrevivência doída, o que a obriga a continuar.
É mera prepotência da vida, autoritária e brincalhona, miseravelmente brincalhona e sádica, indiferente e arbitrária,  que lhe retira a dignidade que lhe era devida, a reduz a um grotesco  e desesperante amontoado de pele e osso, sem escolha ... que se arrasta no tempo, que se prolonga artificialmente ... E ela sabe-o !

Sempre que alguma lucidez desce, é uma agonia.  É uma dor sem tamanho ( porque é dor da alma e do coração ), é carne viva sangrante, a pedir que não lhe mintam.  A pedir que lhe digam que na verdade não há futuro à sua frente, que tem que esperar, esperar apenas que os desígnios se decidam e lhe dêem alívio.
Como se nós pudéssemos cometer essa crueldade !...
A pedir que a ajudem a por-se em acordo com aquilo que lhe está a caber ... apesar de sempre ter pedido nunca chegar a este destino ! Poder pacificar-se com o resto da vida que detém ...
Como  se  nós  pudéssemos  dar-lhe  o  alívio  que  injustamente  não  podemos dar-lhe, de  facto !

Estou exausta !
Estou destroçada, revoltada, assustada ... apavorada !

E lembro uma imagem patética do filme "O meu nome é Alice", recentemente exibido nos cinemas.
Um filme importante, marcante, real demais ... Eu diria, imprescindível ! Dramático ... inevitavelmente dramático !!!

A protagonista, uma mulher de cerca de cinquenta anos, professora universitária e paciente de Alzheimer, descobre e acompanha a sua doença desde o início.
Esclarecida que é, conhece claramente todas as limitações futuras a que a doença a remeterá.
Luta sempre, estoicamente, com decisão, objectividade e sem dramas, enquanto ainda lhe é "permitido" ...,
Mas acautelando o desfecho que conhece inevitável, e a que não se quer submeter, regista no computador pessoal que a acompanha diariamente, um "lembrete" decisivo  e patético :  Quando entender como inadiável mais, o ponto final que desejaria na sua degradação, quando entender ter atingido o limite da resistência e se sinta em patamares aviltantes da sua dignidade enquanto pessoa ... lembra a si própria, ter guardado num determinado local, um frasco de medicação que deverá tomar.

E a frase em que ela reafirma para si mesma,  no computador " Não esqueças ... tens que tomá-los todos ... todos !..."  abanou-me de alto a baixo, sacudiu-me, e inquietou-me tanto, por dentro ... que me retirou a paz !...

Esta, a problemática avassaladora,  que, estou certa, perturba e assusta todos nós, quando pensamos na incerteza, no desconhecimento, na dúvida sobre o nosso destino final.
Esta,  a problemática que nos levanta tantas questões éticas, morais, emocionais, pessoais, familiares ... sociais ... jurídicas.
Esta, a questão que traz à mesa das reflexões, o direito pessoal ao livre arbítrio de cada cidadão, sobre a sua própria individualidade.
O que, do meu ponto de vista deverá ser inalienável, respeitado e acatado, desde que esse indivíduo reúna condições de sanidade devidamente comprovadas medicamente, e bem assim liberdade de escolha e decisão !...

Complexo ... muito complexo, sem dúvida !!!  Controverso ... demasiado controverso, seguramente !!!

Estou exausta !!!...

Anamar

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Eu tinha que escrever isto ... "O PAÍS RISÍVEL QUE HABITAMOS "





A minha mãe tem uma pensão de sobrevivência de pouco mais de trezentos euros, incluindo já o complemento de dependência.
Sempre foi doméstica, sempre trabalhou a sério nas tarefas de esposa, dona de casa e mãe ...
E sempre as cumpriu com denodo, numa época em que tradicionalmente as mulheres não exerciam actividades profissionais fora de casa.
O meu pai partiu há vinte e três anos, e desde então, a única fatia de rendimento que coube à minha mãe, foi a pensão auferida em consequência da sua nova condição de viúva.

Nunca em casa se utilizou o artifício legal a que muita gente deitou mão  na altura, de ser declarada uma qualquer profissão, pela qual ela descontasse para a Segurança Social, a fim de que pudesse ter no fim da vida, uma pensão própria, garante de uma almofada de sobrevivência mais aconchegante.
Era vulgar, alguém declarar ser entidade patronal de costureira, ama de crianças, empregada doméstica ... qualquer coisa... Não viria mal ao mundo, e contornava-se a situação.
Muita gente o fez.  Também lho sugeriram. Mas a minha mãe, presa a uma honestidade absurda, um escrúpulo absoluto e a uma lisura de atitudes, sempre o recusou.
Se o não era, não o podia declarar !!!

E assim fomos indo.
Chegámos ao hoje.  Hoje, em que a minha mãe, nos seus 94 anos, acamada, com fraldas em permanência, medicação em permanência, e toda a panóplia de requisitos inerentes a uma recta final muito complicada, não faz mais face a um orçamento de despesas exuberantemente acima das suas possibilidades.
São os apoios técnicos necessários ( cama articulada, cadeira de rodas, cadeira de banho ... são as fraldas, são os resguardos, os pensos de incontinência ... é o oxigénio, são os sucessivos balões de soro, são os suplementos alimentares ( porque se alimenta mal ), são as vitaminas e toda a gama de análises e medicação,  que diariamente "pingam", de acordo com as flutuações do seu estado de saúde ...
É um começar e não acabar de problemas !
E sem médico de família atribuído ao meu agregado familiar  ( por saída por duas vezes do médico existente ), é uma odisseia, fazer face a esta situação !
É óbvio que a minha mãe teve que coabitar comigo.

Decidi então pedir a comparticipação, a que o utente tem direito, se atestado medicamente, para as fraldas e material afim.
Como a minha mãe não se desloca ao Centro de Saúde, e domicílios, só para Julho ( ! ), fui eu em sua representação, para a fila de marcação de consultas para médico de recurso, pelas 5 h da manhã.
E já não fui a primeira da fila ( !!! ).
Às 8 h são distribuídas as senhas para as consultas, que se iniciam às 9 h.
Contudo, o médico que me foi destinado, parece ser useiro e vezeiro em começá-las mais tarde.
E assim foi. O dr. António Semedo, iniciou-as às 10,30 h.
Expus-lhe  a situação, mas o médico recusou assinar o documento que me permitiria pedir o auxílio económico, argumentando que não conhecia  a utente, E certamente é-lhe "difícil e altamente comprometedor", envolver o seu bom nome,  numa declaração, em que uma velha de 94 anos, acamada, com uma pensão de pouco mais de trezentos euros,  pede ajuda para custear as fraldas de que precisa !!!...

As lágrimas caem-me.
Sinto-me a mendigar algo a que tenho direito, num país, onde pago os meus impostos, onde desconto religiosamente tudo o que inventam ... e onde, se o não fizer, terei as inerentes consequências.
Enquanto isso, os mesmos, sempre os mesmos, saem incólumes de processos irregulares, não transparentes e fraudulentos ... beneficiam de tratamento de excepção e troca descarada de favores ...
Mexem e remexem em negócios sempre proveitosos, de milhões, tantos milhões que nem sequer conseguimos imaginar o que sejam ... nós, que mensalmente temos alguns euros para nos bastar !...
E nada acontece !...

Houve que conseguir outra consulta, outro médico ... e só não outras 5 h da manhã, graças à boa vontade e compreensão de uma administrativa do Centro.
Desta feita, uma médica passou a declaração que deverá então ser entregue na Segurança Social, para apreciação e posterior deferimento ou indeferimento.
Ainda assim, há  que tornear outro "gravíssimo obstáculo" : não pode ser dito que a minha mãe vive agora comigo, porque então, muito embora a minha mãe mantenha ainda a sua casa de que paga renda ... água, luz, telefone ... passa a integrar o meu agregado.  E como eu tenho uma pensão "milionária", o pedido será indeferido !!!...

Mas para entregar o formulário na Segurança Social, também o não posso fazer dirigindo-me simplesmente à instituição.  Não !  Tenho que fazer uma marcação prévia, por telefone, aguardando então a respectiva marcação ( por acaso apenas ( ! ) 12 dias depois ... )
Entretanto, deverei continuar a aguardar no remanso da casa, que me informem da decisão tomada.
Se for "sortuda", eles ajudam-me ... Tenhamos esperança !

A Câmara Municipal da cidade onde vivo, dispõe de um Banco de Ajudas Técnicas, que acorre às necessidades dos autarcas mais carenciados, de acordo com as suas dificuldades ( devidamente comprovadas ), e desde que  as tenha disponíveis.
Dirigi-me por isso,  à Junta da Freguesia a que pertenço, para expor de novo a situação, à Assistente Social.
Mas para tal, a marcação da entrevista ( 3 semanas depois ), é feita apenas às sextas-feiras, em número muito limitado e por ordem de chegada.
Por isso, às 6 h da manhã já aguardava à porta da Junta, e antes de mim, já a D.Luisa, uma infortunada caboverdeana, esperava também.
Aproveitou para me contar todas as desditas da sua triste vida, enquanto dividíamos o degrau da soleira da porta, até que às 9 h nos atendessem no interior, entretanto obviamente encerrado.
Já não havia em pé, posição que nos valesse, e o vento, nesta terra de vento frio e desgovernado, açoitava-nos sem piedade.

Mais formulários, mais fotocópias comprovativas, mas o processo só será desbloqueado, depois de eu exibir o comprovativo da entrega prévia na Segurança Social, o que ainda aguarda para acontecer ....
E ... se  tiver sorte. e a Câmara as tiver disponíveis na altura, então talvez possa usufruir do empréstimo de  uma cadeira de rodas e uma cadeira de banho, porque a cama articulada, que se impôs como absolutamente premente quase de um dia para o outro, já eu tive que alugar de imediato.
Pela instalação paguei 90 euros e por dia, pago de aluguer 5 euros !!!

Talvez entretanto nos saia o euromilhões ... Quem sabe ?!

Precisei desabafar !

Esta experiência dolorosa, esta via sacra interminável,  mostrou-me lados inimagináveis da vida.
Lados que pensamos conhecer, mas que na verdade vão muito além do que lemos, do que ouvimos, do que supomos.
Por outro lado, teve o mérito de me desencadear um misto de sentimentos e emoções, também difíceis de definir : solidarizou-me de alguma forma com a mole de cidadãos deste país, que se sentem ( inevitavelmente ) desprotegidos por uma estrutura social que não responde às necessidades mais prementes, aos direitos mais legítimos ... a protecção à saúde.
... num país da Europa, que se quer alinhada com o primeiro mundo !!!
Depois, mostrou-me como é "pedir", junto dos órgãos e das pessoas com capacidades decisórias.
Percebi como é, face a arbitrariedades, injustiças ou insensibilidades, calar um grito, suster um oportuno murro na mesa ...
E senti humilhação, porque é de humilhação mesmo que se trata, por mim e por todos os meus concidadãos que diariamente enfrentam estoicamente esta teia musculada ... quase inultrapassável, na exigência simples dos seus legítimos direitos.
Engoli e engulo ainda, uma revolta incontida, face à desumanização e à indiferença generalizadas.
E digiro cada vez pior, as assimetrias sociais inaceitáveis, que o poder económico determina : os cidadãos de primeira e os cidadãos de segunda, sendo que todos deveriam ser olhados e tratados igualitariamente, pelo estado dito social, que nos governa.

Tenho ainda que referir, por justiça, que no meio de todo este percurso acidentado, e apesar de tudo, de quando em vez, ainda se tropeça em profissionais competentes, interessados e solidários, que se esforçam, mesmo esbarrando em todas as dificuldades que o sistema impõe, e que colaboram com seriedade.
A eles, sem me lerem contudo, presto a minha homenagem.  Bem hajam por isso !

Seguramente não sairei melhor deste processo.  Nem como cidadã nem como pessoa.
Ao contrário, penso que tudo isto está a despertar o que de pior há em mim, provocando-me clivagens irreversíveis a nível pessoal, familiar e social.

Precisei relatá-lo, não só porque fazendo-o, alivio um pouco, mas porque ao escrevê-lo, tento descortinar uma qualquer lógica ... se a houvesse.
Talvez também, com este depoimento, dê eco a muitas vozes, por aí tão desesperadas, desiludidas e perdidas quanto eu !!!

Anamar

sábado, 30 de maio de 2015

" HOJE ESTOU ASSIM ..."




Dou por mim a ter saudades daquela casa.
E dou por mim a sentir um nó estrangulador no peito, quando penso o que foi feito daquela casa.

Quando era Maio e os verdes se mostravam intensos, quando as flores  bordejavam o caminho, alindavam o "altinho", ou revestiam as paredes, com as cores variadas das buganvílias, ou os lilases das glicínias ...
Quando os noveleiros, os agapantos, as azáleas, as sardinheiras, as cinerárias ou as gazânias ( eternas glorificadoras do sol ) abriam, de repente, numa explosão que parecia da noite para o dia ... era uma promessa que voltava a cumprir-se.  Ano após ano, sempre a festa da Natureza se renovava.

Aquela casa também tinha um jacarandá.
Plantei-o com muito carinho, com a expectativa de uma manhã qualquer, poder acordar e  ver-lhe os cachos lilases, em desalinho, como caracóis de menina  rabina,  a adornarem o meu jardim ...
Era novinho, precisava crescer, desenvolver-se, e depois lá viria o dia em que me presentearia ... eu tinha a certeza.
Foi das primeiras árvores a ser cortada ... soube depois.
Nunca o jacarandá floriu, como não floriu mais por ali, um só lampejo de felicidade.

Aquela casa tinha o "rosto" do Gaspar, a imagem do Óscar, a placidez da Rita ...
Não a penso, que os não veja por lá.
O Gaspar, que nos contemplava com uma orelha em cima e a outra em baixo, quando escutava atentamente as conversas que lhe eram dirigidas.  Não nos espantaria, ou melhor ... só nos espantava ele não recalcitrar de seguida ...
Fazia maratonas  em torno da piscina.  Ladrava irritado, empoleirado nas patas traseiras, aos gatos abelhudos que lhe invadiam os "seus" telhados ...

Quando o prendíamos, em hora de sesta soalheira, era a vez  do recreio do Óscar e da Rita.
Ronceiros, como todo o gato que se preza, o Óscar que sempre foi atrevido e provocador, exibia-se a distância segura, num despautério sem tamanho, enquanto a Rita, medrosa que só ela, se escapulia sesgada, na protecção insuspeita das hortenses ...

O Gaspar alucinava então,  reclamando da sua ausência de paz !
Aquele jardim era seu ... Os gatos, que flauteassem pelos telhados que cobriam todo o piso térreo !

E era o que eles faziam, madrugada fora, p'la hora da fresca. Sonhadores, silenciosos, sonolentos mesmo, divagavam, ronronando, atentos aos ruídos e aos movimentos do pinhal.
Sobretudo se a noite era iluminada por uma lua cheia, daquelas !...

Aquela casa também era a "cara" da minha mãe.  Aliás, por justiça, aquele jardim "pertencia-lhe".
Ela limpava, cortava, dispunha as podas que dariam novas plantas ... ela regava ... ela perdia horas infinitas olhando cada botão que abria, cada prenúncio de nova flor ... cada borboto promissor de mais uma alegria ...
Ela trazia para as jarras,  flores frescas,  ela "escutava" as que floresciam no pé ... ela ralhava-me quando eu preguiçava, e não me dispunha a ligar as mangueiras ... "Coitadinhas, estão cheias de sede. Agradecem uma pinguinha de água, com este calor !... "

O tempo foi .  Tempo demais que já foi ...

Dou por mim a ter saudades daquela casa !...
Dou por mim a ter saudades infinitas daquele jardim ... daquele jacarandá que nunca floriu ... dos meus companheiros de ociosidade ...
Todos já partiram !...  Perdas nunca supridas.  Desgostos de alma e coração, nunca sarados ...
Presentes sempre, contudo !

Felizmente a minha mãe já esqueceu as suas flores.
Seguramente morreram à míngua de uma "pinguinha de água", na inclemência do sol já forte que se abate, e na ausência de alma caridosa por perto ... de coração condoído...

Aquela casa agora é silêncio.
Não tem gargalhadas, não tem a voz do Gaspar ou o sussurro ronceiro e mavioso da Rita e do Óscar, sonolentos sobre as telhas quentes ...

E dou por  mim  a lembrar que é Maio ...  Maio sempre volta ... só Maio, sempre volta !!!...

Anamar

sexta-feira, 29 de maio de 2015

" ELUCUBRAÇÕES"




Maio, florido Maio ... não renega o epíteto ... "mês das flores" !

E é verdade que elas espreitam em cada canto, fazendo olhinhos ao sol que também já vai alto e quente.
Dei-me hoje conta que os céus estão mais azuis, pejados de "gotas" orvalhadas de jacarandás ...

O ar de Maio fica mais leve.  O cheiro floral parece chegar-me às narinas.  Ou então, sou eu que o imagino, simplesmente !
Sempre lembro com uma nitidez absoluta, o perfume intenso dos trópicos, na leveza das alvoradas.
São cheiros peculiares, únicos .  É o cheiro de terra parideira, úbere, pródiga, generosa.
São odores adocicados que se levantam da miríade de plantas, uma vegetação luxuriante por todo o lado.

Aliás, as cores, os cheios e os sons, são as pegadas indestrutíveis que retenho das minhas viagens.
Poderei esquecer tudo.  Já baralho com frequência, locais, espaços ... sítios atípicos, ou mais atípicos ( porque nada é atípico quando o mundo é nosso ...).
Mas essas três manifestações da Natureza, que me extasiam e sempre me transportam a um qualquer paraíso ... nunca esquecerei até morrer.
Dou por mim, mergulhada nesse universo, a dizer a meia voz : " que privilégio ... que felicidade poder viver tudo isto !... "

E esses cheiros, transportados pela aragem branda, são os mesmos, de ocidente a oriente.
E essas cores, intensas, feito seiva de vida, são iguais, de Bali a Samaná ...
E esses sons, assobios, apitos, chilreios ... o pipilar, o trinar das aves em desvario, também o são, da Amazónia ao Pantanal, de Zanzibar às Maldivas ...
A melopeia das ondas que o não são, mansinhas, desmanchando-se na orla das areias brancas ... é uma lenga-lenga, é uma canção de ninar, é um embalo entorpecente,  para a alma e para o coração ... P'ra cá ... p'ra lá ... p'ra lá ... p'ra cá ...
Oiço-a, oiço-a tão clara nos meus ouvidos, como se a escutasse de um búzio perdido na praia ...

Por aqui ... bom, por aqui, gosto de sentir o dia clarear.  Gosto de começar a ouvir a passarada na árvore das minhas traseiras, iniciando a labuta de mais um dia.
Gosto daquela cor pálida do céu, entre o azul, o róseo, e o indefinido negrume da noite, que começa a ceder ao romper da madrugada.
E gosto de aspirar profundamente o ar, fresco a essa hora.  Que é leve, que é puro ainda.
Gosto de me abeirar da janela, perscrutar  o silêncio lá fora, sentir a ausência de gente, de movimento, de ruído ... perceber, ainda adormecido, o peso do betão.

E sentir a miragem da liberdade, aqui, onde o fardo  dos dias me sufoca, onde o ar me falta, e onde apenas o sono é retemperador de alguma, pouca  força.
Porque neste momento sinto-me a adoecer a passos largos.   Percebo-me à beira de um abismo que não distingo bem.
Só sei que é fundo, escuro, e que o não consigo evitar ...

Anamar

quarta-feira, 27 de maio de 2015

" SUSPENSA ENTRE DOIS MUNDOS "




Mais uma semana em meio.  O real tempo do tempo, está "perdido" para mim.
Neste momento é como se eu estivesse suspensa no vácuo, à espera de qualquer coisa ... uma bússola, um norte apenas, uma estrada com sentido, um campo com horizonte que o signifique ...

Estou no meio de sonos, mergulhada em pesadelos, com o cansaço atroz de "noite não dormida".
Convivo demasiado perto com a vida e com a morte.  Anseio as duas.  Não sei escolher !
Convivo demasiado perto com o "apodrecimento" de um ser vivo, ainda vivo ...

As asas da morte esvoaçam, esvoaçam por aqui.  Sinto claramente o seu roçagar, pelas madrugadas escuras ....
Povoam os dias, mas povoam muito mais as noites.  São o urubu no galho da árvore lá na savana, olhando a presa.  E esperando.  Esperando a sua vez de descer.
Aterrorizam, profanam, empesteiam o ar, tornam-no irrespirável.
Esvoaçam, esvoaçam.  Apenas, ainda não pousaram !
Até os gatos a sentem.  Obviamente que os gatos a sentiriam ...

Convivo demasiado perto, com a crueza do abandono do corpo por parte do comando cerebral.
E assisto impotente, ao esfiapar de uma vida que já o não é.
É desesperador encarar o presente !  É mais desesperador ainda, projectá-lo para o futuro.
Porque aquele corpo que está naquela cama, já não é o da minha mãe.  É o meu.  Será o meu, um dia ...
Aqueles olhos sem luz, são o apagar dos meus, um dia ...
Aquele rosto sem expressão, perdido num espaço que já não conhece nem identifica, vai muito além do dela ...
É o meu, é o de todos os velhos perdidos no infinito ...

Por que recusa a "ponte" que lhe estendemos ?!
Por que recusa a amarra que lhe deitamos ?!
Por que não quer ver a luz do dia para além das cortinas, perceber o sol imenso, atrevidamente glorioso, lá fora ?!
Por que nega olhar o azul provocador  do céu, parecendo querer confundir o dia e a noite, para que ambos, misturados, formassem o lusco-fusco em que mergulha ?!
Por que já não sabe que as flores engrinaldam os jardins, adoçam o ar com o perfume inebriante, e esbanjam as cores, todas as cores, nos muros, nas janelas, nas ramadas, nos arbustos que amarinham as paredes ?!
Logo ela, que vivia de as olhar, de as plantar, de as regar ... de as acarinhar ?!
Por que rejeita a música, os sons ... e apenas o silêncio a conforta ?!
Por que parece despedir-se a cada instante ?!
Por que tem sempre uma mão perdida no ar, sem orientação definida, como o braço do náufrago fora de água, ou o adeus do viajante, na amurada do navio ?!

Porquê ???

E quando o dia cai e o sol ameaça dormir, este meu tempo sem tempo, afinal vai esgotando o tempo, e a vida vai andando, o cansaço chega p'ra ficar ... as forças vão partindo !

As semanas passam, os meses correm, e atrás deles, os anos !

A inevitabilidade deste caminhar ... A escorrência deste rumo imparável ...
O ontem tão perto do hoje!...  O hoje tão perto do amanhã !!!...

Anamar

domingo, 24 de maio de 2015

" A TRAGÉDIA HUMANA "




O drama do ser humano não é a morte.
O verdadeiro,  pungente,  e  patético  na  sua existência, é  como  chegar lá !

De facto, quando o corpo não é mais nosso, quando o esqueleto é um imprestável monte de ossos, que apenas nos pesa, não nos responde, desarticula-se e dói ... dói horrores ...
quando a mente se torna um fantasma, plana por cima e além de nós, descomandada, e teima em trazer-nos, deformadas, imagens relegadas a um passado muito longínquo, e o coração já só bate ...
... então, deveria ser a hora de partir.

Porque aquilo que nós fomos, não está mais por aqui.
E aquilo em que nos tornámos, é triste, feio, e decrépito.  E nós, não gostaríamos de nos ver assim !

As pessoas que  nos pertenceram, "fugiram-nos". Os locais que conhecíamos, "deixaram de existir".
A nossa realidade não comporta mais, as emoções, os afectos, as ligações que nos prendiam ao que foi a nossa vida, anos e anos, tempos e tempos.
Não há mais fôlego para isso.

O vegetal em que o ser humano se torna, neste contexto, é algo de uma violência, que boicota o entendimento, a compreensão , mais  ainda a aceitação ... sobretudo até, por parte de quem é obrigado a conviver, impotente,  com essa realidade atroz.
A "máquina" vai desligando, aos poucos.  Sente-se uma desistência instalada.  Uma desaposta, um quase desejo de corte.
Hoje deixa-se de interagir neste ou naquele campo, amanhã o simples gesto de abrir os olhos, de levantar uma mão, esticar uma perna, é de tal modo penoso e esgotante, que se procura a paz do silêncio e da quietude.
A estimulação exterior deixa de surtir efeito, e deixa-nos exaustos.  O desinteresse total por tudo o que nos preenchia a vida,  é crescente e agiganta-se.
A luz perturba, os sons incomodam, o  movimento, sinónimo de vida à nossa volta, perde sentido.
Os medos  povoam-nos cada momento.  O medo de ficar, mas também o de partir, degrada, aniquila, corrói, sufoca ... lança um pânico incontrolável.
As imagens distorcidas, lembram as figuras perturbadoras que os espelhos curvos  nos devolvem do real, como um caleidoscópio de fantasminhas diabólicos.

E o tempo passa.
Às vezes passa tempo de mais.  Não existe um comutador de on e off.
E quem assiste à degradação irremediável, injusta, irreversível e destruidora ... ( sobretudo os envolvidos de coração ),  à boa maneira do ser humano, egoisticamente, querem, tentam, insistem, no prolongamento, não da vida, porque já não o é ... mas do sofrimento.
E espicaça-se, e ministra-se, e puxa-se e volta-se ... e esfrega-se, e injecta-se ... e violenta-se ainda mais, um corpo esquálido, onde quase sempre só uma pele ressequida e semi-morta cobre os ossos, que espreitam ameaçadores, por todos os cantos ...
Até à exaustão ... numa manutenção artificiosa de um simulacro de gente.
Algo atentatório da dignidade individual.  Algo aviltante,  totalmente fictício ...

E nunca se deixa que a partida se faça docemente,  sem resistências,  naturalmente, talvez como alívio ... como direito ... como merecido !!!
E nunca se aceita a falência da batalha ... Simplesmente porque ficamos cegos, não queremos enxergar !

A tragédia humana é este sofrimento desestrurador, avassalador, prepotente ... É esta negação até às últimas e mais absurdas consequências, da lei subjacente a todos os seres vivos ( que nisso, como em muita outra coisa ), nos fazem reflectir :  chegar, cumprir  o destino ...partir em paz !...

Anamar

domingo, 17 de maio de 2015

" A EXPONENCIAL DO SOFRIMENTO "



O grau de sofrimento do ser humano não é uma curva exponencial.

É verdade que no início das agressões responsáveis por esse sofrimento, se define exponencialmente, com um declive acentuado.
É a fase em que nos confrontamos com a causa detonadora, que normalmente nos apanha de sopetão.
É a fase em que primeiramente nos surpreendemos, depois nos incredulizamos, depois questionamos o porquê disso acontecer nas nossas vidas ... é a fase de nos sentirmos injustiçados e com raiva.
Iniciamos então um período de negação.  Revoltamo-nos, insurgimo-nos, esbracejamos ...
E a manutenção de um mínimo de equilíbrio, espalda-se num desgaste emocional intenso, que provoca inclusive, sequelas físicas.
É vulgar que as insónias, o choro fácil, o disparatar descontrolado com tudo e todos, contra o mundo em geral .,. nos dominem.
É vulgar que as náuseas, os vómitos e a falta de forças por cada dia que se inicia e que quereríamos não ter que iniciar, se instalem e nos astenizem.

Depois há em simultâneo, um misto de sentimentos e emoções abissalmente contraditórios e destrutivos, que nos tolhem, e que ainda assim, precisamos gerir.
Por um lado, a sensação de uma incapacidade de resposta pessoal face às situações, por outro lado, a sensação de impotência e revolta face à realidade, amarfanham-nos e destroem-nos.

Também, a capacidade de resiliência depende do indivíduo envolvido no processo.
Há quem a tenha elevada, treinada, interiorizada.
E isso varia totalmente de pessoa para pessoa, e tem a ver com inúmeros factores.  Desde logo, a idade, a energia, e a robustez física e mental.
Desde logo, a história de vida de cada um : aquilo que já experienciou, a que foi chamado a suportar, a que não teve alternativa senão suportar e responder.
O seu grau de abnegação, generosidade, disponibilidade interior e dádiva de si próprio, também são factores individuais, superáveis ou não.
Cada ser é uma entidade altamente complexa, fruto de uma ainda maior complexidade de vectores, pessoais, familiares, sociais, éticos, morais, contraditórios, muitas vezes incontroláveis e incomandáveis.

E cada dia que passa, a odisseia de se viver um pesadelo sem fim, a sensação de mera sobrevivência que experienciamos, em que a vida "marina" porque não tem outra alternativa, o medo ... ou melhor, o pavor vivido de perto e que nos confronta em permanência com a fragilidade dessa mesma vida, fazendo-nos balançar entre vida e morte anunciada ... dão-nos uma sensação de impossibilidade de avançarmos mais, atordoam-nos, imobilizam-nos psicologicamente, enquanto que ao mesmo tempo nos anestesiam por dentro.
Reagimos pouco, baixamos a capacidade de interveniência, e apenas somos capazes, talvez por defesa, de nos deixarmos ir, exangues, de uma forma inerte, como a folha arrastada pelo caudal da corrente.
Robotizamo-nos, automatizamo-nos, "viajamos" em piloto automático.  Não vivemos ... sobrevivemos !

É então que a curva exponencial do sofrimento humano, aparentemente estagna, e desenha um patamar de cansaço e inércia, no gráfico da vida.

Estou convicta que é isso que explica que  os sobreviventes deambulem atordoados, apáticos, quase distantes, pelo meio dos escombros de um sismo, sem que exprimam já emoções, como se também eles já não existissem ...

É isso que explica que nas maiores  catástrofes da humanidade, o que pareceria improvável, acontece ... as pessoas ultrapassam o limiar do sofrimento, e para além dele, o estado emocional estampa-lhes uma mornidão nos rostos e nos corações, um sonambulismo na alma, que não se percebe se serão de incompreensão, de incapacidade, de indiferença ou de amorfismo, desencadeados pelo choque a que foram sujeitos.

Eu penso que é uma forma talvez irracional, de preservação da espécie ...
Baixando os níveis do sofrimento a valores aceitáveis, o Homem vai afinal, suportando e aceitando situações limite.

E  tudo  isto  porque,  como  alguém  disse ... " a  Vida  é  uma  história  que  sempre  acaba  mal " !...

Anamar

sexta-feira, 8 de maio de 2015

" A PASSAGEM "




Quando for, esperemos que seja de mansinho.
Que seja no lusco-fusco da noite serena, quando os anjos baixam, e viajam no nosso jardim.
Quando os olhos estão cerrados e o coração passeia no roseiral, junto ao mar.  Por lá, andam os meninos com quem joguei ao agarra, com quem dividi a tabuada e apanhei borboletas.
E poderemos continuar a festa ...

Quando for, esperemos que a madrugada esteja cálida, as violetas perfumem o ar, e o sol ainda esfregue os olhos em silêncio, p'ra não perturbar o dealbar de um dia novo.
Quero que alguém me pegue na mão, e comigo atravesse aquela passagem em permeio das ramagens frondosas e frescas, escutando o som dos primeiros pássaros da manhã ... os sons da mata que nunca dorme ...
Os pardais entontecidos estarão a descer aos trigais, os abelharucos a saltar de galho em galho, e os gaios e os melros, a saudarem a Natureza-mãe ...

E será um passeio apetecível, porque é leve.
Os pesos  e as penas ficarão por aqui.  Até as memórias ficarão lá, no início da passagem, porque excedem a carga permitida para quem vai.

Quando for, quero um bando de querubins, de caracóis louros e olhos azuis, tocando uma sonata de Beethoven.  Quero os cheiros do meu chão, as cores do meu canto, e o sussurro da brisa mansa, p'ra cá e p'ra lá ... p'ra lá e p'ra cá ...

E quero que as ondas da maré baixa,  me cantem a canção dos búzios.  Quero perder o olhar nas asas largas das gaivotas espreguiçadas, e quero o sono verde das algas adormecidas ... para me lembrar que houve tempos de esperança ...

Quero o meu cabelo a voejar  em desalinho, solto das imperfeições do ser ...  o meu sorriso infantil a iluminar-me o rosto, e todas as letras que escrevi, empilhadas no maior poema de eternidade ...

Quando for ... espero que seja de mansinho, como a canção de ninar  no berço esquecido, para que eu adormeça sem sustos, sem lágrimas e sem dores ...

Quando for ... espero que seja um regresso ao primordial de mim mesma, ao gineceu que me formou ... ao útero da minha mãe !...

Anamar

quinta-feira, 7 de maio de 2015

" NO LAVAR DOS CESTOS ... "





Há muito que não escrevo.
Há quase duas semanas, o que para mim, representa tempo de mais !
Demasiadas coisas acontecendo ao mesmo tempo, na minha vida !  Demasiadas preocupações, angústias,  aflições, incertezas, mágoas ... Tudo de correnteza sobre mim, sobre a alma e sobre o coração.
Uma avalanche, uma hecatombe ... um tsunami, indiferente e demolidor, que avançou, avançou, e deixou escombros ... restos ... destruição !

Há alturas na vida, em que ela parece brincar connosco.  Em que tudo é posto em causa, em que nos questionamos sobre muita coisa, sobre os valores mais elementares, sobre quem somos, o que fomos ... se valeu, de facto, a pena.
Há alturas na vida em que nos deparamos com um desconhecimento absurdo das  convicções, das certezas, das  verdades que foram nossas.  Verdades que eram garante da nossa existência, eram suporte da nossa lógica de existir, alimento do nosso equilíbrio.

De repente, perguntamo-nos se terá sido mesmo verdade que andámos por aqui, se teremos sido aquele que julgávamos ser, ou se tínhamos de nós mesmos, apenas uma imagem distorcida ... fraudulenta ...
Perguntamo-nos  se não teríamos fabricado  em  nós póprios  um "outro" boneco, desinserido do real, desfocado,  pouco preciso,  e fruto simplesmente de uma mente talvez perturbada, com padrões de auto-aferição deformados,  e bitolas viciadas ...

E postas na mesa as cartas com que jogávamos, tudo parece estranho.
Foge-nos o trilho, ficamos estrangeiros na nossa própria pele, perdidos no nosso próprio chão.
Nada era bem aquilo, afinal !...
Teremos adormecido em algum ponto do caminho ?!

A saúde, ou a falta dela, remete-nos inevitavelmente para a dicotomia angustiante da vida e da morte, que nos confronta sempre, com a impreparação que o ser humano tem,  de entender ... menos ainda, de aceitar.
A precariedade e a fragilidade que nos caracteriza ... face à ideia pueril que nos envolve no período áureo da existência, de alguma "imortalidade" e invencibilidade, desvendam-se-nos, tiram o véu, e mostram-se com toda a crueza e realismo do inevitável ...
Somos pouco, muito pouco mesmo !
Somos mero calhau,  rolado pelas marés ... ao sabor da agressividade das mesmas !  Sem apelo !

O questionar dos afectos ou o seu desmoronar, remetem-nos para a orfandade maior de nos percebermos em solidão, em desamparo, no tombar dos pilares que nos sustentavam e davam significância a esta coisa a que chamamos "existir"...
E percebemos com clareza doída, como o Homem é refém dos mesmos.  Como o Homem, ilhado, não vive ... sobrevive precariamente ...apenas !

E pronto.
Tudo se cogita no "lavar dos cestos", em horas de paragem e balanço.
Tudo se repensa, se avalia, de preferência sem emoção.  Porque esta, sempre deita uma poalha de névoa, perturbadora, sobre pensamentos e reflexões que se querem distanciados, pragmáticos, lúcidos  ... frios de análise.

É  quase  sempre  assim ...  há  muitas  alturas  na  vida  em  que  ela  parece  brincar  connosco !...

Anamar

sábado, 25 de abril de 2015

" OUTRO ABRIL " - 41 anos depois ...





Azul Abril, de céu, de mar
Verde de esperança 
de navegar
Sonhos de sangue
cravos vermelhos
Força de um povo ...
Novos e velhos
no meio da rua,
solta a canção,
senha, memória
e coração ...

Na madrugada que se fez dia,
asas de fogo
Abril abria ...
Um barco à vela,
céu p'ra voar
sem termos medo de naufragar ..
Abril abriu
nossa verdade,
sabermos certa, a liberdade ...
E a fé nascida num Homem novo,
foi voz de Abril
grito de um povo a recusar a servidão ...
Abril chegou, e disse NÃO !...

E hoje, Abril,
esqueceste as notas,
esqueceste a letra do teu poema, que era canção ?!
Calaste as vozes
Cansaste a esperança,
Perdeste o norte, feito criança ?!...
Esqueceste o rumo
Perdeste o chão ?!...

Que te fizeram ?
Eras azul, de céu, de mar ...
Não vais deixar-te amordaçar !...
Por ti ... já fomos ...
Contigo iremos ...
Tua promessa, tudo o que temos ...
Acorda, Abril
Firma a raíz
Dá fruto e flor, neste país ...
Deixa-me o sonho...
Olha o teu povo ...
Que nasça em ti
um ABRIL novo !!!

Anamar

quarta-feira, 22 de abril de 2015

" SAUDADE ..."



" Três erros e um quarto, menina Guidinha ?!"

Ditado  feito,  ditado  corrigido.   Acima  de  três  erros,  ganhava-se  o  direito  às "orelhas  de  burro "...
Assim estava destinado.

A Guidinha tinha dado um quarto de erro acima do determinado.  Um famigerado acento mal colocado,  ou não colocado ...
Contudo a senhora D. Maria Prego, professora no colégio há décadas, parecia ter  esquecido a penalização.  Ou se distraíra intencionalmente, ou talvez fosse uma tentativa do seu subconsciente repor alguma justiça ...
Afinal a menina tinha apenas 7 anos, feitos recentemente.  Entrara numa primeira classe, como todo o mundo à altura, mas entretanto  provara quase logo, dada a sua agilidade para as letras e os números, estar apta a transitar à classe seguinte.
Dominando os conteúdos programáticos exigidos, a senhora D. Maria Prego transferiu-a  para a segunda classe, a partir de Dezembro do próprio ano do ingresso, passando então a frequentá-la com as meninas de 8 anos, em escolaridade normal.  Era portanto,  a "caçula" da classe !

A menina Guidinha transitara com uma classificação de 20 valores ... mas agora caíra em desgraça !
Aquele maldito quarto de erro !...

O colégio, particular e feminino, era já antigo na cidade.
Era um colégio conceituado e renomado, pela taxa de sucesso.  As alunas  que por lá tinham passado, haviam tido desde sempre, um percurso escolar brilhante, no liceu.
Se existisse um "ranking" de escolas à altura,  o Externato Conde de Monsaraz, na cidade de Évora, seguramente  ascenderia a  um lugar  muito honroso !

As quatro classes ocupavam uma sala exígua, lembra hoje.  Ou pelo menos, no distanciamento do tempo, parece-lhe que assim era.
Eram três ou quatro meninas por cada classe, apenas.
A sala pertencia ao rés-do-chão do prédio habitado pela própria professora e família.  Tinha uma janela com rede de protecção, que dava para o Largo de S.Francisco, frente ao mercado municipal, onde os pais se abeiravam a buscar as meninas, ou a trocar breves palavras com a professora, na hora da saída.
Ao fundo, a casa de banho improvisada, ficava no vão da escada que levava ao piso superior. Consequentemente era baixinha de tecto, a porta também era baixinha ... mas quem a transpunha eram meninas ... igualmente "baixinhas" ... não fazia mal ... ( rsrsrs )
Não era provida de sanitários. A coisa era remediada de outra forma ...
A Guidinha odiava esse pormenor da escola !...

As carteiras, de dois lugares, em madeira, alinhavam-se.
De tampo inclinado, possuíam um buraco para o tinteiro de molhar o aparo, embora no tempo da Guidinha, já existissem as Bic.
Frente a elas, estava o quadro de lousa preta, um mapa de Portugal, das ilhas e das colónias, um crucifixo, e duas fotografias em tamanho grande, lado a lado : Salazar e Craveiro Lopes ...
Havia ainda um relógio de parede, e o ponteiro encostava-se ao quadro.

Também não havia recreio.  Em dias excepcionais, muito de quando em vez, a senhora D. Maria Prego, se bem disposta, deixava as meninas brincarem um pouco, no pátio lá de casa. Era um pátio empedrado, com duas trepadeiras robustas a cobrirem completamente a parede daquela casa solarenga.  Uma glicínia e uma roseira de florzinhas amarelas miúdas, confraternizavam desde sempre.
Esses dias eram então dias de festa no colégio, pela raridade do acontecimento !

A senhora D. Maria Prego era senhora já idosa.  Ou talvez não fosse tanto.
A Guidinha sabe que à época, as mulheres pareciam bem mais velhas do que realmente eram.  Era uma solteirona, seca de carnes, esguia, com o cabelo um pouco grisalho, preso num "pôpo" descido na nuca.
Vestia rigorosamente sempre de escuro, e encarnava a figura típica da perceptora inglesa, no nosso imaginário "torturadora" de criancinhas ...
Era austera não só fisicamente, mas também na postura que assumia. Não ria, era autoritária e pouco dada a brincadeiras.  Conversa não era permitida, e por isso, no Verão, apesar da rede na janela, podia ouvir-se uma ou outra mosca intrometida.

O Externato Conde de Monsaraz era frequentado pela classe alta da cidade, e não era fácil conseguir-se uma vaga nas inscrições das meninas.
A Elisinha, filha do Presidente da Câmara, a Dorinha, filha de um médico conceituado, a Mané cujo pai era um conhecido causídico da cidade, eram algumas das alunas do colégio.
A Guidinha tinha pais mais modestos. O pai era comerciante e a mãe, doméstica, e foi admitida no externato mercê de um pedido da madrinha de baptismo, que era prima da professora.

" Três erros e um quarto, menina Guidinha !"...

Fez-se um silêncio pesado.  A Guidinha estava aterrorizada, apesar da senhora D. Maria Prego ter silenciado, parecendo ter esquecido o castigo.
Não fora uma voz fininha, aparentemente tímida, lá do fundo da sala lembrá-la ... e a Guidinha estaria safa ...

Mas não !...

A senhora D. Maria Prego foi flagrada na sua aparente distracção, e apesar do estatuto algo excepcional da menina ... não teve outro jeito ...
... e a Guidinha sentiu aquelas orelhas de cartão, artesanalmente presas a uma fita, serem-lhe amarradas à cabeça ...

Humilhação das humilhações !  Desgosto dos desgostos !  A mágoa do que sentia já como uma injustiça, apesar dos seus 7 anos, deixava-a sufocada em lágrimas.
A aluna exemplar, com "orelhas de burro" !!!

Os anos passaram.  Muitos e muitos anos !
O episódio "devastador" das "orelhas de burro", nunca foi esquecido na vida da Guidinha.
Até hoje lembra com uma nitidez absoluta, aquela tarde azarada, aquela colega "queixinhas", aquele vexame ... aquele quarto de erro !!!...

Saíu da primária sem dar um único erro.  Saíu, sabendo escrever com correcção, sabendo exprimir-se com clareza, com conhecimentos alicerçados, com hábitos de trabalho, ordem, método e disciplina inalienáveis.
Saíu com uma bagagem que lhe permitia encarar a vida escolar futura, sem sobressaltos. Saíu com um domínio estruturado dos princípios necessários a um percurso académico exigente.
Hoje sabe como foi importante todo o rigor, toda a exigência, toda a seriedade impostos.
Sente-se grata pela forma como foi conduzida, numa fase tão determinante da vida, em que lhe foram facultadas todas as ferramentas que a dotaram com a destreza e as capacidades intelectual e de trabalho, necessárias a responderem a uma vida séria e válida.

O Externato Conde de Monsaraz perde-se na bruma do tempo, a senhora D. Maria Ramalho Prego, há muito terá partido .
Quando vai a Évora, sua cidade de coração, estranhamente ou talvez não, quase sempre a Guidinha se esgueira até ao Largo de S. Francisco, olha longamente aquele edifício, e aquela janela  agora já fechada,  e claro, sem rede que a proteja ...
É como se quisesse "conferir", como se buscasse alguma coisa, como se para todo o sempre ali houvesse um encontro marcado com o passado ...

Lá, já não há meninas, nas  leituras ou nas contas, nos ditados ou nos problemas ...
Lá, também já não há "orelhas de burro", nem as cantorias de roda, ou as gargalhadas do "agarra", em dias de recreios felizes ...

Mas  a Guidinha sente sempre um nozinho na garganta, um calorzinho no coração, enquanto que um sorriso nostálgico de saudade lhe invade o rosto ...
... porque saudade é tudo aquilo que fica, quando já nada existe !...

Anamar

domingo, 19 de abril de 2015

" SUFOCO "





Que falta me faz um ar ...
Que falta me fazem dez centímetros de terra, uma cancela, um caminho que nem precisava ser calcetado, um arbusto com anseios de árvore ... um quintalzinho de cinco por cinco ... um projecto de paraíso !
Que falta me faz, em desespero ... ao menos uma varanda que finja ser um jardim suspenso ... com parapeito onde eu pusesse as sardinheiras, com paredes, onde eu pudesse pendurar os amores-perfeitos ... com tecto, donde eu dependurasse os vasos de junquilhos, de narcisos, de jasmins ...
E uma casinha para passarinhos ... porque de certeza eles iam adorar a minha janela !
Ou então, faria olhinhos às andorinhas, para ver se tinha sorte, e elas, sentindo-me só, talvez me privilegiassem com a sua presença !...

Que falta me faz ir ali, colher uma braçada de alecrim, de giesta, de madressilva, umas pernadas de glicínia ... ou simplesmente apanhar uns cheiros, daquele caco velho, floreira inventada dos meus condimentos ...
Que falta me faz, agarrar um xaile, deitá-lo aos ombros, encarar a brisa, e percorrer os meus cinco por cinco, supondo-me latifundiária de um quintal de sonhos ...

Como eu precisava romper estas paredes, calcorrear estes telhados em voo rasante, passar para lá do além, julgar-me pássaro ... e ir ...
Como eu precisava que o sol me aquecesse a alma e o vento me enfunasse as velas ... e partir ..
Como eu queria tornar-me um grão da areia que o mar traz, o mar leva, rolando nos fundos, percorrendo os continentes ... descobrir os segredos dos búzios que são de todos os mares e de todas as praias ...
Ou ser alga esfarrapada dormindo na orla, largada pela babugem das ondas ... e sonhar ...
Como eu gostaria de ser a borboleta, que mesmo de noite encontra cama debaixo das estrelas, é livre nos caminhos ... e pode escolher ...
Ou, claro ... ser simplesmente a minha gaivota que ciranda por aqui e é dona de todos os céus ... e sorrir ...

Que falta me faz um ar ...
Que falta me faz, meter as mãos no enterroado do chão, deste chão que será berço de todos nós, um dia ...
Que falta me faz ter umas asas cá dentro, empoleirar-me no parapeito, e deixar-me ir, ao sabor da aragem, como se brincasse de  pára-pente.
E assim estaria no topo do mundo, e veria os rios, os lagos, as florestas invioláveis, os oceanos e as casas dos homens... tristes e cinzentas !
E assim,  esticaria os braços pelas madrugadas e apanharia bouquets de estrelas, antes de elas dormirem ...
E veria deitar a lua e amanhecer o sol ...
E seria bússola sem pontos cardeais ...rodando com os girassóis ...

E nunca mais me faltaria o ar, como agora !...

Anamar

sexta-feira, 17 de abril de 2015

" SINTRA "




Ao virar de uma esquina, no meio da ramagem, de repente surge a princesa, altaneira,  no recorte de castelinho de fadas.
A Pena lá se mostrou ...

Os meus caminhos nunca favorecem vê-la deitada lânguida, espreguiçada no topo da encosta, como ela o sabe fazer ...
Sempre a abordo de nascente.  E desse ângulo, ela encaracola-se e só mostra o que quer.
Calcorreio as veredas, os becos, as escadinhas.
Nos beirais envelhecidos, encarrapitam-se plantinhas atrevidas que espreitam de cima, as ruas estreitas.
E florescem ... espantosamente florescem por sobre as telhas ...
As janelas, de todas as formas, não são simplesmente janelas.  São janelas de estirpe, com carisma. Têm histórias  a contar.  A patine dos anos adoça-as, a graça das cortinas revela-lhes o rosto.
São molduras de vidas, são caixilhos de sonhos.
Há uma cumplicidade contada na penedia, recoberta de musgos ancestrais.
Há segredos subentendidos em cada tronco, por onde as heras trepam com sonhos de infinito.
Há a magia da neblina que esconde e desvenda.

As glicínias e as roseiras aproveitam cada canto, cada muro, cada portão, para se mostrarem plenamente, como donzelas fáceis, porém enganadoras.
As camélias, desenhadas em talhe de arquitecto, num mimoseio de "biscuit", enfeitam parques e jardins ...
As sinetas de anunciar, nas entradas das quintas, os batentes das portas, trabalhados ... os cães empoleirados nos muros, anunciando-se ... ou sonolentos, por hora de sesta ... os gatos ... muitos, com vida boa e repousada, têm alforria total.
Que mais quererá um gato ?!

Tudo isto, é Sintra !...

Adoro perder-me por lá, em caminhos que nem entendo.
Adoro pausar numa qualquer pedra, num qualquer recanto, numa qualquer volta, só para respirar, absorver o ar fresco que emana da serra, descansar as pernas.
Assim, dolentemente, sem horas, sem compromissos, sem encontros, além do meu com Sintra, que tenho a certeza, sempre está à minha espera !

Sintra é um deslumbre, uma surpresa, uma novidade , um assombro ...
Sintra é uma ternura, um encanto, uma canção ... uma dádiva generosa ...
Em cada canto há um recanto inusitado, que não se sonha ou prevê.  Que simplesmente aparece, que se dá, como uma prenda a desembrulhar-se ... a cair-nos no regaço.
Os sons e os silêncios, as cores e os aromas, a brisa que perpassa, que dança nas ramagens de todas as cores e de todas as formas ... desde as que rastejam atapetando e envolvendo, às seculares que sobem e se erguem, diferenciando-se, querendo abraçar a montanha ... Tudo é uma promessa de amor ...

Porque Sintra é amor ... seguramente Sintra é amor !...



Anamar

terça-feira, 14 de abril de 2015

" AS MAIAS, O MAIO - HISTÓRIAS E LENDAS "




Já aí estão as maias outra vez, florindo nos campos, como se o amarelo do sol tivesse acendido a Terra !
É sinal que beiramos outro Maio, é sinal que daqui a pouco é Verão, e um calor gostoso começa a tornar a Natureza úbere, e nos remete a um ventre fértil, em que as entranhas fecundas e pródigas nos mimoseiam com flores, frutos, aromas, cores estonteantes, beleza a rodos... sem regateio !

As maias ou giestas,  eram as flores dos pobres, lá no meu Alentejo.
Não havia mesa na cozinha, escaparate que se prezasse, mesa de cabeceira de sonhos promissores ... que não tivesse uma bilha, uma caneca, um qualquer caco mesmo gatado que as  não contivesse !
Eram pretexto de idas ao campo, de piqueniques de beira de estrada.
Uma braçada das maias  inebriava, penetrava-nos o coração, purificava-nos o ar, entontecia-nos a alma com o  perfume intenso, que trazia a Primavera  adentro de casa !

Largadas no chão,  atapetando caminhos de terra batida, entradas de montes ... soleiras das portas ou em pontos de descanso para sesta desejada ... lá estavam elas, garantindo a frescura, e o odor a paraísos sensoriais ...

Nas ruas, em tempo de procissão, também as maias adoçavam os percursos, para que os santos os calcorreassem em tapete macio.  Por certo arregalariam os olhinhos, de ternura agradecida !

Em  miúda ia apanhá-las ... Era de praxe !
Quando a minha mãe, no primeiro dia de Maio me entrava pelo quarto, mal o sol raiava, com uma amêndoa na mão, para que eu, mesmo adormentada  a comesse ... eu já sabia que era Maio, que eu não podia "deixar entrar" o Maio ... e que as maias já floriam na charneca lá fora !  Não tinha erro !

Sempre refilava pelo despautério.
Sempre achava aquilo, uma enormidade, uma tonteria,  um perfeito absurdo !
Raios !... Mania dos mais velhos trazerem ao presente o passado, com medo que ele fique definitivamente lá ... no passado mesmo !
A amêndoa era a terapêutica preventiva da entrada do Maio no corpo da miudagem, o que prenunciaria preguiça e molenguice  o ano inteiro !...
Era o suspeito "vedante" de uma desgraça dessas !!!...

O tempo passou, e há muito já, que o Alentejo me ficou para trás.
Há muito que as  memórias, as histórias e as lendas são exactamente isso... lembranças doces, histórias inesquecíveis ligadas a sítios e a gentes  que se tornaram míticos ...
Desde sempre, os aromas da terra, a cor inexplicável daquele chão, a grandeza daquela planura sem horizonte ou limite  que se veja,   me impregnaram até ao âmago, com a força de uma tatuagem que não desgruda, com a certeza de uma ligação umbilical indestrutível, com o amor de uma maternidade para toda a vida !

E até hoje, o cheiro das giestas parece perfumar o meu imaginário distante, e dou por mim a sorrir nostalgicamente, quando os olhos alcançam o amarelo outeiro acima, num contraste perfeito  com o azul intenso e luminoso  do céu de Maio ...

Só que eu não sou mais a gaiata de então !...



Anamar

segunda-feira, 13 de abril de 2015

" QUANDO FOI ?? "




"Força, faça força ...  Vá, segure a minha mão e faça força !"

Aguentava-se ... que remédio.  Era muito menina ainda, inexperiente, mas nunca foi de fazer escarcéu,  houvesse  o  que  houvesse.  Tentava  sempre  aguentar  firme, discretamente ...

"Pronto, já cá está.  É uma menina !"

Aliviada, dizia sorrindo : "Ainda bem !  A irmã queria uma menina !  E é perfeitinha ?"

No tempo em que ainda não se sabia que poderia ser uma menina, e em que a "perfeição" se concluía naquele justo instante ...
Pergunta-se  hoje como seria concluir da perfeição, naquele momento ... Dois braços, duas pernas, mãos e pés ... cinco dedos em cada ... ?!

Era assim !

"Chorou" !... Óptimo, excelente ... está feita à vida !...
Engraçado !  Quem lhe falaria então, em produções independentes, bancos de esperma, barrigas de aluguer, partos na água ... sequer fertilização "in vitro" ?!...  Quase escolha por "catálogo" !...
Quem lhe falaria ?!...

E então o tempo passou ... algum tempo ... tempo de mais ...

Quando foi que deixaram de lhe sentar o colo ?
Quando foi que o beijo se tornou rápido, à entrada e à saída da porta ... na visita ... Coloquial ?
Quando deixaram de rir com ela, de lhe contarem histórias, de chorarem mágoas, dividirem desgostos ou  simplesmente "desgostinhos" ?
Quando passou a ficar estranho, apertá-las, estreitá-las, cingi-las a si, a ponto de lhes sentir as batidas do coração ou o calor do peito, sem que sentisse de imediato levantar-se de permeio, o tal mar de ondas agigantadas, sem que sentisse de imediato que a terra abria e afastava duas metades, que só às vezes lançavam pontes ??!!
Quando passou a haver ali o distanciamento doído da vida, que de repente mostra outros, no lugar dos nossos, mostra estranhos no lugar de conhecidos ?!
Quando foi que se desconheceram pela primeira vez, quando foi que a linguagem se tornou ininteligível ... e as braçadas aprendidas já não as guiavam para a mesma margem ?!

Terá sido apenas quando deixou de fazer falta nas cabeceiras, a acalmar pesadelos ?
Terá sido apenas, quando as madrugadas já não precisaram de silenciar choros, o sarampo já havia eclodido, e as letras e as contas não precisaram mais ser perguntadas ?
Terá  sido,  quando  lhes  cresceu  o  pudor de já  se  acharem  gente  grande, e  por  isso,  ridículas ?

E pronto ... não há "rewind" a fazer !
As mãos e os braços desabituam o gesto do afago, o regaço já não sabe fazer colo, os olhos choram para  dentro.
Às vezes a memória empurra uma mão teimosa carente de carícia, obedecendo a um coração que não entende ...
Mas ela recua a meio caminho.  Fica sem jeito.  Esqueceu o trilho, receia o "estranho" em guarda, do outro lado ...
A linguagem emudece, não se solta ... recua além dos três primeiros passos.  O fosso não se atravessa.  Há um arame farpado armadilhado, no meio do percurso ... inexpugnável !...

E só passaram alguns ... demasiados anos !...
Que raios !  Onde poderia ter aprendido outra maneira ?  Será que havia "outra maneira" ?!
Hoje será diferente ?  As gerações serão forjadas noutros moldes ?  Aprenderam noutros livros ?
O tempo tem outra dimensão, que não esta medida imensurável, capaz de transformar alguns poucos anos, num vórtice infinito ?!...

E é segunda-feira.
Uma igual a muitas ... a todas.
E a roda rodando.  E numa roda quando roda, todos os seus pontos sempre retomam as mesmas posições, depois  de  descreverem  a  mesma  circunferência,  sem  princípio  nem  fim ...
E a roda rodando ... cansando ... rodopiando tontamente sem escolha, numa engrenagem imparável ...
O hoje já é ontem ...  O ontem, já tem séculos !...  Já é segunda-feira de novo ...

"Força ... faça força !  Segure a minha mão, e faça força !"...

Anamar