domingo, 13 de março de 2016

" POR QUE ESCREVO ? "



Por que escrevo ?  E eu sei lá !
Por que corre o rio p'ro mar,
nasce o sol em cada dia,
canta cedo a cotovia
e não cansa de cantar ?!
Por que acasalam as aves
se chegou a Primavera ?!
Por que despertam as flores,
renascem novos amores
e a Natureza não espera ?!
Alguém pergunta ao pardal
por que salta, em vez de andar ?
Alguém pergunta à gaivota
que notícias traz do mar ?
Alguém sabe por que a serra
sobe e desce de cansada ?
E nas planícies, os trigos
levam vida espreguiçada ?
Nasce a urze pelos montes ...
Entre pedras, o ribeiro ...
A água corre das fontes,
recusa ter horizontes,
desconhece cativeiro !
E a aurora sempre desponta
mesmo da noite mais dura ...
Entre as nuvens, o luar
desce à Terra a iluminar
toda a madrugada escura ...
Não se prende a borboleta,
ou  cala o melro, que trina ...
Se das pedras desabrocha
a flor que rompe a rocha,
é porque era a sua sina !...
Eu escrevo porque respiro ...
e escrevo para respirar...
Como as ondas lá do mar
deixam na praia um suspiro,
com saudade de voltar !...
Escrevo,  porque o que escrevo
e é espólio do meu viver,
se alinha, sem perguntar ...
sempre que estou a escrever !...
E assim sendo, não perguntem ...
porque não sei responder ...
Escrevo, porque ao nascer,
minha mãe ao dar-me o peito
percebeu este meu jeito ...
e deu-me a escrita p'ra viver !...

Anamar

sexta-feira, 11 de março de 2016

" A GRANDE FAMÍLIA "




Eu pertenço à equipa dos "singles".
Digamos que não é bem isso, mas quase.  A "minha gente" de sangue, está um pouco longe.  Alguns quilómetros apenas, mas não aqui, debaixo do meu tecto.

Aqui, comigo, tenho o Chico e o Jonas.  Bastam-me, alegram-me e até me amparam.  Tanto quanto os animais o sabem fazer.
Tenho as "minhas coisas" ( porque sempre nos rodeamos das nossas indefectíveis coisas ... ), os meus livros, a minha música, as minhas fotografias, os meus escritos ... fragmentos de memórias ...
Aquilo que constitui o meu espólio ao longo de alguns, já razoáveis anos.
Tenho as minhas paredes, o meu "ninho" ... tudo onde a minha "pegada" foi deixando rasto.

Mas também tenho o céu à minha frente, dado ... incondicionalmente, pelo privilégio de, vivendo bem alto, não ter muros ou barreiras adiante de mim.
Tenho a minha gaivota, que às vezes traz a "família" se a borrasca assoma do lado do mar.
Tenho o plátano das traseiras, que começa agora a engalanar-se de roupagem verde, já que o sol espreita e a Primavera está aí ... e que há meses atrás se doirou de folhagem quente e melancólica ... Ciclicamente ...

Tenho também o gato farrusco nos terraços lá de baixo, que não é de ninguém e é de todos os que o olham ... nem que seja assim, bem de cima, como eu.
Sempre sorrio  se da janela  o vislumbro, "esparramado" ao sol, com a felicidade dos que são livres, e sempre me interrogo apreensiva se o não vejo, por dias ... "Será que ?!..."

Bom, depois tenho os pores de sol ... porque a minha vista o alcança até que ele dorme, lá para os lados de Sintra.
São inenarráveis, todos os dias.  São uma aguarela indescritível que a Natureza me pinta, generosa, para me alindar os tempos.
O casario de desenho irregular e em desalinho urbano, tem dias que me atiça a ira ... "Irra ... que selva esta, sem beleza ou graça !  Cogumelos mal nascidos, sem "rei nem roque" ! "
Mas pronto, nada a fazer ... Emolduram-me inapelavelmente a paisagem, e são os únicos limites que tenho, à vontade e ao sonho !

Descendo à rua encontro depois, os vizinhos.  Um ou outro ... sempre me cruzo com alguns.
No mesmo prédio há mais de quarenta anos, conhecemo-nos desde jovens casais, como marinheiros de primeira viagem quando os rebentos começaram a despontar, depois como pais responsáveis com a prole a avançar na vida ... e já com histórias para contar.
Vimo-nos a maturar e logo depois a envelhecer.
Convivemos com "deserções", por muitas razões.
Partilhamos angústias pelas doenças, pelas dificuldades, pelas "partidas" e pelas preocupações ...
Sempre queremos saber uns dos outros, sempre nos regozijamos pela ventura e sempre nos afligimos pela desventura... Somos afinal extensão da família natural.

Há depois o café de sempre,  para o pequeno almoço tardio. Porque isto de não ter pressas tem as suas vantagens.
Também aqui os frequentadores são os mesmos.  Rostos conhecidos de há anos, no café das mesmas horas.
Consigo saber exactamente quem está de "penetra".  Identifico facilmente os frequentadores de ocasião.
Pergunta-se pelos ausentes, sobretudo se essa ausência já é notória.  E vamos sabendo dos acontecimentos,  Quase sempre de saúde, porque a faixa etária da grande generalidade, já é respeitável.
Tem-se atendimento mais que personalizado ... rsrsrs ... Afinal ganha-se estatuto de antiguidade.  E antiguidade confere privilégios, como sabemos ...
Local de encontro ( há quem apareça apenas porque sabe que aqui estou invariavelmente à mesma hora, numa espécie de  "escritório " inventado ... ), local de leitura quase sempre, local de escrita, às vezes ... local de "fareniente", em que apenas deixo a cabeça vaguear, num alheamento distante, em dias menos felizes ...
Estou como que numa segunda casa, estou numa espécie de novo prolongamento familiar, estou de alguma forma, noutro espaço de afectos ...

De mais longe os amigos às vezes telefonam, joga-se conversa fora, comentam-se as últimas.
Estão longe, mas sempre se mantêm presentes ... sortilégio da amizade !...

E pronto ... faz-se a hora de regressar ...

Afinal os dias são preenchidos de pequenas coisas.
A vida é feita de uma diversificada teia de afectos que deveremos cuidar, que deveremos preservar e privilegiar.
É ela a "grande família" que nos foi disponibilizada para o caminho a palmilhar ... Também apoio, também suporte, também carinho, de certo modo ... Ela é extensão da família real, da biológica, da sanguínea, não escolhida obviamente, e tantas vezes menos presente, pelas imposições reais da existência.
Porque o amor não vem do sangue, não vem de nenhuma regra ou determinação social ... vem do cuidado, do respeito, da troca ... ou seja, " o amor vem de amor " ... é que cada vez mais se não justifica a separatividade que os laços sanguíneos determinam, entre os que são e os que não serão tão credores dos nossos afectos.

Por isso, com ela, com toda a nossa "grande família",  vamos cumprindo o destino, com ela vamos percorrendo o caminho ... com ela vamos fazendo a VIDA !

Anamar

quinta-feira, 10 de março de 2016

" TESTAMENTO VITAL "





Deve ser bom andar lá por cima !...

A tarde fechou com aquele céu cinzento uniforme, sem sol nem nuvens.  Apenas uma abóboda sem princípio nem fim.
Há um recolhimento íntimo na natureza ...
Elas andam bem por aqui.  É um bando displicente  de asas esticadas, bailando indiferente  ao sabor do vento.  Uma ronda de liberdade pelos céus fora, até onde a minha vista alcança.
E chove.  A chuva miúda tamborila na vidraça, a aragem desconfortável agita a folhagem das poucas árvores que se divisam, e o céu é um imenso oceano agitado com ondas incessantes, para cá e para lá.
Elas, as gaivotas, pequenos barcos sem leme nem velas ...

Algumas parecem rasar-me a janela.
Se errassem de rumo, tenho a certeza que viriam povoar este meu ninho de quatro paredes, que às vezes se alteiam, indiferentes à minha solidão.
Se percebessem como as invejo,  deixavam-me partir com elas num destino sem tamanho ou limite ... na medida  do que sonho ...
Iria ver o mundo de cima, cortaria os oceanos, pisaria as terras de sol quente e cheiros doces.
Olharia os infinitos que o não são, desceria vales e subiria montanhas . Pisaria as areias escaldantes dos desertos, porque também eles são espaços de liberdade, num abraço volúvel de dunas inconstantes .

Por enquanto, venho à janela ... Vejo-as por detrás dos vidros, espicho o olhar no desenho dos seus volteios, perco-me sonolenta no encantamento de estar viva e no sonho de voar no pensamento ...
Por enquanto, inspiro fundo o ar volátil e manso, ganho asas no coração e parto ... sempre parto ...
Destinos incertos ... são os meus !...

E sinto um reconforto na alma, porque ainda sou timoneira da minha própria embarcação.
Porque ainda me faço ao leme em mar flat ou alteroso.
Porque ainda me guio na estrela polar dos meus céus.
Porque acordo em cada manhã, acreditando que um sol claro iluminará o meu dia, ou que um céu cinzento mas pintalgado de gaivotas livres, encimará as minhas horas.
Porque me faço à vida no crédito das minhas forças, da minha coragem e da minha esperança ...

E sorrio ... interiormente sorrio, no beijo solto e leve com que toco o botão florido nessa noite.
Sorrio pelo privilégio do dia a despontar ...
Na carícia doce com que afago a gratidão que o coração me sopra, por existir, por me saber e por  me amar ...
E vejo-me abençoada, e vejo-me redimida e vejo-me solta, no desalinho das emoções ...

"Tenho saudades de andar" - dizia-me ela, cativa de uma cadeira de rodas ...
"Tenho saudades de ser" - soltava aquela voz encurralada numa cama de hospital.
Rosto macilento, esfíngico, olhos encovados, desesperança no silêncio doído . Tudo tão penumbrento quanto a luz coada pela janela púdica.  Vida suspensa de tubos, de agulhas ... de máscaras ...

E  tanta luz a jorrar além ...
E tanta música dos pássaros primaveris ...
E um exagero de cheiros, de cores, e deleites a exorbitarem nos sentidos !...
E tantas promessas veladas, desmascaradas na cabeceira dos sonhos !...
E a Vida provocadora no esbanjamento  dos corpos ...  E o insulto da morte demasiado perto e demasiado longe !...

Por enquanto, venho à janela ...
Por enquanto, velejo a minha própria embarcação ...
Por enquanto, vejo a chuva tamborilar pela vidraça ...
Por enquanto, tenho um céu pontilhado de gaivotas na aragem ... em ronda de liberdade !...
Por enquanto ...

Anamar

sábado, 5 de março de 2016

" HOJE "




Hoje tirei o dia p'ra morrer
nesta coisa cansativa de existir,
neste nada tenebroso que é viver,
nesta  louca  vontade de partir ...

E o sol que já parte, inda chegou,
a quem nunca pergunto de onde veio,
é testemunha de uma vida que girou
à volta de uma história que não leio ...
As palavras que se perdem no passado
e os sonhos que ficaram por contar,
são destinos que jamais se vão cumprir
como um rio que não alcança nunca o mar ...

Neste dia impreciso de sentir,
neste tempo confuso de se ser,
neste frio ... no silêncio do vazio
destes tempos que não deixam de doer ...
Hoje, parei  nesta esquina  da vida ...
e alonguei o olhar pl'a  imensidão ...
Depois, olhei-me  e percebi
como companheira a solidão !...

Fiquei com saudades de um futuro
que sei jamais ir conhecer ...
Nesta coisa cansativa de existir
hoje tirei o dia p'ra morrer !...

Anamar

terça-feira, 1 de março de 2016

" AQUELE ABRAÇO ... "





"Breve !...  Preciso de um abraço forte " ! - dizia-me alguém, quando perguntei para quando o nosso café ...
"Abraços bem apertados para vocês" - dizem-se as pessoas nas amizades virtuais, até que o dia seguinte as "reúna" de novo ...

Abraços ...

Um abraço opera milagres, acredito.  Um "ninho", um colo, um olhar aconchegante curam todas as doenças da alma de que o Homem actual padece.
De facto, apercebo cada vez mais ( à medida que os anos correm, à medida que as vidas assumem novas conformações inerentes às realidades que vamos vivenciando, aos diferentes condicionalismos que nos rodeiam ), apercebo, dizia, o isolamento do ser humano, a sua circunscrição a redutos cada vez mais precários, de solidão, de desafectos, de nostalgia e de tristeza .

São dores da alma e do coração, inconfessadas muitas vezes, invisíveis quase sempre, que matam mais que as mazelas físicas facilmente reconhecíveis, para as quais existem exames que as detectam, existem tratamentos adequados, existem fármacos, químicos, tentativas de solução ...

Aquelas, fogem ao controle do Homem, independem da sua vontade, escapam ao seu comando, mesmo ao mais lúcido e avisado.

Não é por decreto, que alguém  passa a colorir uma paisagem que apenas vislumbra a preto e branco...
Não é por  regulamento, que alguém cruza com "o" olhar que lhe aqueceria o coração ...
Não é por vontade ou por ausência dela, que encontra ou não, os braços que a aninhariam em paz e lhe devolveriam vontade de viver ...
Não é por mentalização pessoal, por forte que seja, ou por um elementar golpe de mágica, que se reivindica amor, carinho, companheirismo, cumplicidade ...

A complexidade do viver,  encontra, desencontra, cruza, aproxima e afasta.  Atravessa as pessoas, nas vidas e nos destinos.
São linhas desenhadas numa tela em branco, aleatoriamente, em cruzamentos descoordenados.
Oblíquas entre si, paralelas outras ... indefinidamente ...
Linhas que parecem irradiar de um ponto de fuga, como os raios solares ... linhas que eventualmente convergem, como caminhos reescritos ...

Mas sempre, em qualquer circunstância, o tal abraço apertado, será insubstituível na existência humana .
Em qualquer momento, o seu "regaço" protege e aninha, e defende e ampara ...
"Aquece-nos"  mais, um abraço apertado e silencioso  que nos estreita ao coração de alguém, que a maior e mais elaborada declaração de amor ... que a mais convicta e credível jura de amizade !...
Um abraço é uma linguagem de silêncios.  É uma conversa de pele.  É uma promessa implícita de fidelidade de sentires ...
Um abraço é uma troca de emoções únicas  ... é fecharmos o mundo entre quatro braços ... é a segurança de abrigo quente ... é o que se diz sem dizer-se, porque não é preciso ser dito !...

Que falta nos faz um abraço !!!...

Anamar

sábado, 20 de fevereiro de 2016

" A MINHA QUARESMA "





O Carnaval passou.  No calendário religioso, entrou-se na Quaresma.

Tive formação católica desde menina.  Tradicionalmente, também os meus pais, ou melhor, a minha mãe, cumpriram os preceitos em relação a mim.
O meu pai sempre foi ateu convicto, a minha mãe, "crente", não praticante, contudo.
Como timoneira quase absoluta da nossa curta família, decidiu que eu seria baptizada, que eu assistiria a missas dominicais, e que oportunamente, chegada a idade, eu frequentaria a catequese. Decidiu que mais tarde faria a Primeira Comunhão, o Crisma e a Profissão de Fé.
O meu pai "resistiu" inicialmente ao meu baptismo, que só se concretizou quando eu já tinha 4 anos de idade.
Depois, capitulou e distanciou-se desse percurso.

E eu, sem ser perguntada, lá fui !!!

No liceu, ao tempo, as aulas de Religião e Moral eram integrantes do currículo, e ministradas por um padre.
Em Évora recordo o Padre Manso ... enjoativo que só !...

Pelos 16, 17 anos, atravessei uma crise de misticismo.  Em plena idade "do armário", em plena e difícil adolescência, com problemas existenciais da mais variada ordem a atormentarem-me, com dúvidas, angústias e inseguranças a perturbarem-me, muito só ( porque filha única, em educação excessivamente castradora ), voltei-me perturbadoramente para a Igreja.
Nela encontrava refúgio, respostas, caminhos, ou ... julgava encontrá-los !
Passei a assistir  diariamente à missa, passei a ser de confissões e comunhões com excesso de regularidade ...

Na minha paróquia estava ao tempo, um padre muito novo, muito bonito, muito dinâmico e com um ascendente notável sobre os jovens, que facilmente mobilizava e arregimentava para as iniciativas que implementava.
Tinha uma linguagem vanguardista ... próxima.  Introduziu a missa acompanhada com cânticos à viola, que ele próprio tocava, com adesão e participação óbvia, dos mais novos.  As confissões tornaram-se "conversas" tidas cara a cara ( se o quiséssemos ), na sacristia, o que as tornava menos penalizantes,  obviamente ...
E tinha uma voz perfeitamente arrebatadora e celestial ... que nos transportava, ao cantar, a um qualquer céu que eu não sabia muito bem onde se encontrava !...

E andei por ali uns tempos, oscilando entre estados de alma atormentados  ( que sempre achava pecaminosos, maculados, culpabilizantes ), e a redenção que os Sacramentos da Igreja me repunha, readmitindo-me na essência e pureza do Seu seio, mercê da adequada penitência.
Oscilava, seguramente ... com precária convicção !...

Aos 19 anos, conheci e casei com um homem convictamente agnóstico.  Claro, que apenas no Civil ...
Posteriormente, as minhas duas filhas também não foram baptizadas.
Escolha nossa, na circunstância.  Nada impositivo, coerência de alma, apenas.
Mais tarde, em consciência, teriam total liberdade de escolher sê-lo, na religião católica ou em qualquer outra ... Ou não o serem, simplesmente !...
Afastei-me totalmente da Igreja.
Já então pusera em causa muitas orientações inaceitáveis que perduram até hoje, um conservadorismo absurdo e bafiento,  e um desconhecimento e distanciamento cómodos das realidades objectivas e das dificuldades com que o ser humano se confronta e se debate diariamente .
E não se vislumbrava sequer, por perto, nenhum Papa Francisco !...

Os anos avançaram, a maturidade e o conhecimento também.
A observação, a capacidade de análise, de crítica e de opção, evoluíram.
Procurei-me isenta nas escolhas, livre nas decisões, avisada na observância dos dogmas, dona dos meus caminhos.

Hoje,  no meu laicismo assumido, não professo nenhuma corrente religiosa.  Digo-me agnóstica, porque não nego ... desconheço !
E tenho comigo outras convicções, talvez mais alicerçadas na formação científica que me tem forjado ao longo da vida.

Mas continuo a entrar nas igrejas.
Continuo a admirá-las arquitectonicamente, do ponto de vista histórico, cultural, monumental.
Continuo a sentir-me bem no seu interior, a buscar a paz do seu silêncio, a quietude das suas pedras, a beleza dos seus altares de talha, o cheiro das velas tremeluzentes que se consomem, o eco dos seus claustros, a vetustez das suas imagens compungidas ...
Hoje, só assisto a serviços religiosos, por imposições sociais.
Mas continuo a emocionar-me com a luz coada por frestas e vitrais, com a sonoridade esvoaçante dos seus silêncios profundos .
Hoje, quando entro, silencio, recolho-me ... resguardo-me em mim mesma.
Ocupo  o último banco, onde me sento e fico.  E espero ...  O quê ?  Não sei !...
Talvez já só respostas humanas dentro de mim, e não respostas divinas, às minhas inquietações, às minhas inseguranças e às minhas interrogações .
Procuro a serenidade necessária ao tumulto da existência.
Procuro conciliação comigo e com o mundo.  Falo-me e questiono-me e busco equilibrar-me nas raivas, nos amores, nas decepções e no tumulto de todas as emoções terrenas que me assolam e me dominam ...  De certo modo, ali busco fazer a minha Quaresma interior ...

Quase sempre saio mais leve, mais alinhada, mais reforçada.
O diálogo silencioso comigo terçado, é uma pacificação da alma, é um reforço energético para o espírito, é um encontro ... é um êxtase.

Afinal experimento-o também, da mesma forma, frente ao mar incessante, calmo ou tormentoso ...
Experimento-o também quando olho o firmamento azul, intensamente límpido e lavado, inundado por um sol luminoso e branco ... como hoje ...
Experimento-o quando a brisa gélida de um Inverno promissor de Primavera, que nos trespassa e talvez nos afague, nos convida a festejar, a glorificar a Natureza,  e sobretudo a bendizer o privilégio de estarmos vivos !!!...

Anamar

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

NAS HORAS DOS SILÊNCIOS ... "BE"




O caminho de se ser, é ínvio, pedregoso, dissimulado na beleza da "paisagem" ...
O Homem percorre-o tacteando, colocando com prudência um pé depois do outro, de mansinho, devagarzinho, apalpando, perscrutando ... sentindo cada pedra do caminho, receando cada volta de estrada, cada neblina que se abate na floresta, tomando a medida exacta de cada curva e de cada precipício ...

A gente cresce, esfola os joelhos, perde o sono na dúvida do destino, entontece de rodar em rotundas sem saídas satisfatórias ...
Erra de estrada vezes sem conta, sofre complexidades, magoa-se, desajusta-se à roupagem que carrega.
Avança e recua. Engana e corrige ... ou não ...
E se não ... volta tudo ao princípio.

E continua, calcorreando o que se lhe desenrola, ajoujado ao carrego ...
E interroga-se, e castiga-se, quase se flagela às vezes, e quer desistir, para logo depois se levantar e inevitavelmente seguir ... num esforço continuado de sobrevivência ...

O caminho de se ser, vai-se conquistando dia a dia, vai-se descobrindo hora a hora, vai-se percebendo hoje, para se saber amanhã ...
Jornada lenta, cuidadosa, avisada, na busca do lugar, do nosso sítio, do nosso chão ...

E por cada queda, e por cada vez que se vai ao tapete, novo ânimo é necessário reunir para nos reerguermos e continuarmos.
A aprendizagem vai-se fazendo, adquire-se um "know-how" fundamental, uma segurança maior, um esclarecimento sabedor que nos transmite uma paz e uma tranquilidade nas escolhas, e uma assertividade nas nossas decisões.
Passamos a usar a lucidez e a serenidade possíveis, frente às dificuldades.  Procuramos ajustar as posturas, procuramos dimensionar as respostas, procuramos relativizar as ansiedades.
Doseamos, ou tentamos dosear as emoções, discernindo o que queremos, mas definindo claramente o que não queremos, face à vida.
Desdramatizamos, porque o certo e o errado, passam a ter uma medida humana .
Analisamos, mas julgamos menos.
Afobamo-nos com conta peso e medida, deixando que as pulsações acelerem, só por boas e justas causas ...
Importamo-nos menos.
De repente, o estatuto que atingimos confere-nos um ritmo apropriado, e as vivências saboreiam-se, usufruem-se, deleitam-nos ... sem pressas.

E sentimos o gosto de viver.
E deliciamo-nos outra vez, com as cores dos dias.
Ao mesmo tempo, adquirimos uma imunidade muito própria aos dislates de alguns.  Sorrimos com bonomia, às maldades do mundo.  Aceitamos finalmente, as tréguas que o caminho de se ser, nos prodigaliza !...

Retomamos o gosto das pequenas coisas :  sorvemos de novo, o prazer simples de um dia de sol ou de um dia de chuva...  O calor de uma lareira que crepita, nas horas dos silêncios ...  O eco da serra nos caminhos incógnitos ... A melopeia sonolenta do mar,  em dias de calmaria ... ou o seu bramido imperativo, em dias de tempestade ...
Gostamos de uma boa conversa. Mas amamos igualmente o silêncio que nos reencontra, nos nossos corações ...
Reaprendemos o gosto da romã ... o cheiro da roseira brava ...

E simplesmente vivemos ... Vivemos, inspirando até ao âmago, este enamoramento generoso que a vida nos permite, com a maturidade dos anos, com a tolerância sábia, aprendida  na  canseira do que ficou para trás ... com a esperança alvoroçada do que virá adiante ...

Porque o caminho de se ser, faz-se, como qualquer caminho ... Simplesmente ... CAMINHANDO !...


Anamar

domingo, 7 de fevereiro de 2016

" CARNAVAL"




"E depois de tudo, o que é uma mentira? 

Apenas a verdade mascarada." ♡♡

Lord Byron




Esta inexplicável coisa de querer ser
por baixo do disfarce, alguém diferente
Brincar de ser feliz, e de parecer
que se sente o que de facto não se sente ...
Esta absurda utopia colectiva,
esta avalanche de loucura breve e tonta,
finge-nos vivermos em três dias
sonhada vida de fazer de conta !...
E a histeria que do triste faz alegre,
e do pateta uma sumidade,
inventa histórias, cria fantasias ,
e da mentira constrói estranha verdade !...
O grotesco e efémero desvario
que cola em despudor um rosto ao teu,
que te dá a ilusão do poderio
que a máscara inventada, prometeu ...
por momentos te faz acreditar
que és aquele que afinal não alcanças...
E nesta miragem que é fugaz,
vives um sonho infantil de crianças !...
Mas o tempo voa e a vida acorda ...
Amanhã já é depois ... e o tudo é nada !
O traje cai por terra, o palco fecha ...
porque tudo não foi mais que uma imensa MASCARADA !!!...

Anamar

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

" AS GUARDIÃS "




" Em Janeiro vai e sobe àquele outeiro.  Se vires terrear põe-te a chorar.  Se vires verdejar, põe-te a cantar "

E verdejava !
O Alentejo estava coberto de um veludo lindo e esperançoso.  O gado pastoreava, relaxado, colhendo o sol luminoso da manhã.
Era uma cama fofa e adormecida, a que os olhos abrangiam, naquela terra sem limites nem horizontes.
As azedas aguarelavam os campos, como se o sol houvesse pincelado a terra.  O resto ficava por conta do ouro das macelas, do pintalgado dos rebanhos e das manadas preguiçosas, adormentadas no calor tímido de Inverno.  Poucas flores, ainda ...
As garças boieiras, as pegas, os grous, as abetardas, uma ou outra rapina planando alto, glorificavam o dia, e os chocalhos ecoavam na planície.  Imperava o silêncio misericordioso.
Até a brisa passava pé ante pé, para não perturbar tanta perfeição !

Abro o primeiro sorriso, quando as vejo.
No cimo de um poste de alta tensão, olham sobranceiras, a planície, aos seus pés.
Estas guardiãs do Alentejo ainda vão ter que me explicar o que fazem por aqui, fora de época, neste Janeiro frio e chuvoso.

A cegonha é senhora da charneca ... Ela é dona da planície ...
Como eu, ela é fiel e retorna, sempre retorna ao lugar onde nasceu, onde as raízes a prendem ...
O mesmo poste, a mesma árvore, a mesma chaminé de tijolo erguida lá longe ... o mesmo telhado de monte  abandonado ... as mesmas penedias junto à albufeira ...
Desta vez não tiveram pressa de partir, parece.
Foram ficando, de mansinho, como que esquecidas de outros rumos, de outros céus ... de outros destinos !...

Curiosamente hoje, o Alentejo foi uma vez mais, hospitaleiro.
Recepcionou-me  com  um dia primaveril, com céu radioso, azul e limpo, e um sol doce a envolver-me ...  Parecendo  dar-me  as  boas  vindas.   Seguramente  a  dar-me  as  boas  vindas !

Tanto já escrevi sobre o Alentejo, e sempre tanto tenho para dizer ...
Esta terra, afinal, é "aquela" terra ...
É o meu chão, é o meu ar, é a minha paz e repouso ... Iguais aos que cá deixei há muitos anos.
Calcorrear as suas ruas, nunca é exaustivo.  Perder-me nas mesmas igrejas, nunca é fastidioso.  Olhar os mesmos sítios, é simplesmente voltar a casa.  Dobrar as mesmas esquinas, é um gostoso chamado ao passado, ao meu passado que retorna ...
E depois, é como se fosse um reencontro com todos os que me precederam no caminho, e que estão por lá ... que eu sei !
A Évora de então, sempre se faz presente, como colo de família que não renega, como berço de sonos embaladores, como abraço de mãe a filhos saudosos !

E é sempre um privilégio voltar.
Voltar e perceber que tudo está lá, nos mesmos lugares, intocado.  Simplesmente como uma arca de enxoval que se desvenda, com as mesmas rendas, os mesmos brocados, a mesma alfazema de perfume, a genuinidade do mesmo linho ... apenas amarelecido pelo tempo !...

Évora sempre me acolhe.  O Alentejo sempre me abençoa !...

Há um recado impresso em cada esquina, há um memorial em cada parede adormecida, há uma história reescrita em cada sopro de vento !  Uma espécie de saudação ao  regresso  do  filho  pródigo, uma  espécie  de  brinde  aos  afectos, uma  espécie  de  elegia  às  memórias  idas ...
É sem dúvida uma doce viagem no tempo.  Um retorno a "muitos tempos", uma busca nas tatuagens que os anos teimam, em vão, esbater nas vidas !...
A estrada segue a direito, a planura não ergue fronteiras.  Além daquele outeiro, há mais chão, mais sonho, mais vida ... Não há mais fim ...

E o Alentejo desenrola-se infinitamente aos meus olhos.
Finalmente o coração aquieta-se, e eu sinto-me em paz !...




Anamar

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

" AVULSAS ... "




A tarde caíu melancolicamente lá p'ras mesmas bandas ...
Talvez um pouco mais para a esquerda, lembrando que é Inverno e o sol anda mais baixo.  Sim, porque hoje ele apareceu, aqueceu e iluminou, embora tímido, embora "envergonhado", como "soi dizer-se".
Envergonhado ? Por que se envergonharia o sol, se sempre aparece, mesmo depois do cinzento dos dias, da negrura da vida ?
Por que deveria envergonhar-se, se a chuva deu tréguas e a placidez de uma tarde, eu diria outonal, nos aquietou a alma ?!...

Ao meu lado, Vangelis, tão aconchegante quanto a tarde que desceu ... embala.  Embala e transporta o pensamento para lá de um horizonte que recusa fechar-me o sonho.
Na ramagem do plátano despido, um pássaro em viagem de regresso, mostra uma silhueta já negra, recortada no escurecimento do céu ... E lança na aragem, as últimas notas do dia.

No Facebook, ainda aberta, a página da Mané ... colega, conterrânea, amiga  de  meninice, do Liceu, naquele berço que não me sai da alma ... lá longe, no Alentejo  ...
Aberta  ainda... porque ironicamente, a vida não lhe deu tempo de fechá-la, seguramente ...
Tão cedo se foi, tão cedo partiu, que a porta ficou entreaberta ...

Ironicamente também, porque estava destinado, parece,  que muita vida haveria de correr desde então, e que só nos "encontraríamos" tantos anos depois, que já não houvesse  tempo  de  nos encontrarmos ...
Assim ... para trocarmos  apenas  aquele  abraço !...

Fica a memória.  Sempre nos sobram as memórias, as recordações ... a saudade.  Que é o que fica, depois de tudo o que parte !
A precariedade da vida, que poucas vezes aceitamos considerar ... como "imortais" que quase nos julgamos ...

E depois, é simplesmente assim : uma tarde que cai  melancólica,  num dia de Outono, feito presente em tempos de Inverno ... Vangelis que nos transporta pelo éter, além do momento, na perenidade do ser ... um pássaro nocturno que despede o dia ... Évora, lá longe, com um céu escuro  pontilhado de estrelas, no recorte da Sé, no interior do nosso  coração  ... e frio, aquele frio gélido que nos percorre as veias e nos garante o chão que pisamos, como nosso ... além da eternidade !...

Anamar

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

" HOW CAN I GO ON ?... "



" A saudade é uma tatuagem na alma ... Só nos livramos dela, perdendo um pedaço de nós " ... diz Mia Couto.

A saudade é uma raíz que se afunda, é um espinho que se encrava, sobre o qual a pele se refaz, cobrindo-o, fazendo de conta que não existe mais.
Mas ele continua lá ...
Vai sumindo à vista, mas não dorme nas profundezas do terreno encontrado.
E enquista.  Forma um corpo estranho com o qual temos que conviver, dolorosamente ...
Buscam-se panaceias para atenuar o incómodo, usam-se mezinhas para aplacar a dor.  Mas não adianta, ele continua lá ...
Acordamos com ele e dormimos com ele !

Assim é a saudade.
Tem dias em que dói mais, tem noites em que não nos dá tréguas.  Como um fantasma, deambula, vai, vem, judia da nossa angústia ... mas instala-se ... como o espinho !  Implacavelmente !

É uma tatuagem, de facto.  Extirpá-la, se fosse possível, arrancar-nos-ia um pedaço.  Amputar-nos-ia na alma, a nossa essência enquanto seres humanos !
Mas acredito que não.
A saudade persiste.  Mesmo o tempo, a arma poderosa que aparentemente tudo resolve, a não arranca de dentro de nós.
Então, tentamos sobreviver-lhe.  Fingimos até para nós mesmos, que a ultrapassámos e encontramos  mil justificações para a erradicar do nosso coração ... procuramos argumentos objectivos, pragmáticos, racionais, que justifiquem não sofrê-la ...

Mas como  um ladrão de emboscada, salta sempre quando menos esperamos, da primeira esquina, e impõe-se-nos, invade-nos, devassa-nos e retira-nos a esperança de viver.
Como uma recidiva de doença grave, é cada vez mais agressiva, cada vez mais destrutiva, espantosamente agigantada, como que reforçada pela incubação dentro de nós ...

Como continuar adiante ?
Como readquirir a normalidade possível ?
Como reaprender, uma e outra vez, a caminhar ?
Como fazer de conta uma e outra vez, que nos tornaremos imunes à devastação, ou que iremos inteligentemente saber viver com ela, geri-la nas nossas emoções, exorcizá-la, sobreviver-lhe, tomando nós as rédeas dos sentimentos ?!
Como acreditamos que finalmente temos dentro de nós,  argumentos de vida mais e mais poderosos, válidos e determinantes ?!
Como se os sentimentos admitissem regras, disciplina ou canga !!!

E os anos passam e vulnerabilizam-nos em escalada.
E em vez de nos termos tornado hábeis e ardilosos, prevenidos e couraçados face às intempéries ... não !
Parece sim que ficamos mais desprotegidos, mais expostos, menos defendidos ... menos capazes de a enfrentar.
A experiência, afinal, não nos ajuda, a inteligência também não, as manhas dos caminhos nunca servem para a vez seguinte ... e o cansaço, o cansaço real, esse, não se compadece nunca !...

E aos "trancos e barrancos", como um puzzle a que faltam inexoravelmente peças, vamos indo ...
ou confundindo-nos, pensando que vamos ... sem que afinal nunca abandonemos o mesmo lugar ... simplesmente !...

Anamar

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

" AINDA HAVERÁ PRIMAVERAS ! "






As festas terminaram, felizmente !
Esta coisa de terem que se viver por calendário, sejam ou não adversas as condições momentâneas de cada um, de alguma forma, irrita-me.
Mas tudo bem, passaram, e aquele desiderato que se ouve cada vez mais na boca das pessoas ... "oxalá chegue Janeiro, rápido", atingiu-se.
A "síndrome das festas" que parece já ser fenómeno com autoridade comprovada, estará ultrapassada.

A vida segue, desenrola-se dia após dia.  O tempo atmosférico não está lá essas coisas ... e desenvolve-se um inevitável clima introspectivo, de análise e maturação, que se prende com tudo e com nada, com o que nos rodeia e acontece, com esta apregoada época de balanço ...
De facto, rigorosamente como os saldos, também em época certa e segura, lá vem essa onda de "balança" ... essa onda de balança e de balanço, em que somos atirados, queiramos ou não, para alguma reflexão mais pausada, lenta, degustada, ao ritmo da pausa que o tempo das festas nos concedeu.

E reflectimos ...
Eu reflicto ... sobre como cheguei aqui, sobre a que sou aqui e agora, moldada, definida, caldeada em tudo o que tem rodeado a minha existência nos últimos tempos.
Sim, porque eu considero que "os últimos tempos", têm de facto sido, p'ra mim, uma bigorna de crescimento, uma bitola de aferição de limites, de capacidades, de resistência. Uma prova com barreira de fogo !
É hora de me perguntar o porquê de ver a vida, hoje, com outros olhos.
É hora de parar e testar o meu grau de exigência real, com tudo e com todos.
É hora de definir claramente para mim própria, o que quero, o que recuso, no que aposto, o que exijo.
E é hora de perceber que o tempo urge ... e que é hora de ser "hora" ...

Não dá p'ra cair no marasmo, aparentemente cómodo. Não dá p'ra me indiferentizar mais, perante o que me resta no caminho.
Chega de rodar em rotunda, chega de encolher de ombros, chega de indecisões no percurso.
Seja qual for, tem que ser escolhido um ... claro, aberto, franco.
Um caminho com luz, desimpedido de silvas que me tolham os passos, sem excessos de vegetação que o cerrem, um caminho objectivo, sem hesitações ... decidido ...
Porque é "inverno", o tempo urge, e não se compadece com  perdas pelas veredas ...

Hoje pressinto-me uma pessoa mais dura, mais amarga, menos esperançosa.
Hoje sinto-me com tolerância zero face a muitas situações com que me confronto. Que sou obrigada a decidir. Que sou impelida a escolher.
Sinto que talvez já não seja qualquer vendaval que me derruba. Porque escolei as intempéries ... muito !
E de alguma forma encasulei-me numa carapaça, que foi obrigada a ser mais e mais, resistente.
Hoje, já poucas coisas me surpreendem. Menos ainda, me rasteiram !
Cresci. Tardiamente talvez. Demasiado tardiamente !
E todo o crescimento se acompanha de dores. Dores no corpo, mas sobretudo na alma e no coração !
Dores de amputação ... algumas.   Irreversíveis ... outras.
Dores de desilusões e decepções ... em cima de expectativas e sonhos.
Dores de perdas e dores de saudade.   De tanta coisa ... mas sobretudo saudade da inocência que ficou na curva da estrada, saudade dos investimentos esperançosos apostados em dias de amanhã ... saudades sobretudo da pessoa que eu fui ... Uma criança num corpo e numa alma de mulher !

Desajeitadamente, cheguei aqui.
Hoje, não sei exactamente o que AINDA quero.  Mas sei claramente o que JÁ não quero !
Hoje sei o que me devo, por uma questão de isenção e justiça,  p'ra comigo mesma !
Hoje sei que não tenho o direito de maltratar-me.  Não tenho o direito de me julgar com severidade excessiva, além daquela com que a Vida já me julga !
Sei que se me empenhar, desbravarei caminhos.
Sei que se acreditar, ainda terei Primaveras à minha espera. Penso que talvez o mereça !...

Hoje,  sei que tenho direito a ser AINDA feliz !...

Anamar

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

" IN MEMORIAM "



Já no seu finzinho,  2015 reservar-me-ia uma inesquecível surpresa.
Assim, do nada, caminhávamos já para a consoada, e mercê das virtualidades das tecnologias que por vezes nos adoçam a vida, chamaram-me de novo à "turma" ...
Eu explico ...

A Rita Laranjeira, um dos poucos nomes que ainda me fazia sentido na memória recuada, alguém de quem tenho fotos num álbum em casa dos meus pais, minha parceira, colega de turma e amiga escolhida então, pelos meus 12 / 13 anos no Liceu Nacional de Évora ... "encontrou-me" por aqui !

Saí de Évora ainda não tinha 13 anos.
Nessa minha cidade de coração, fiz a primária e ingressei no Liceu, que frequentei até ao fim do 3º ano.
Os meus pais rumaram então a Lisboa, e claro, o meu destino abandonou o Alentejo.
Abandonou fisicamente apenas, porque na alma e no coração, sempre continuei ligada a esse chão.
Essas pedras, essas sombras, esse céu que paira sobre Évora e todas as recordações que persistiram, da minha meninice e início da adolescência, continuaram presas à cidade que me viu crescer ... apesar dos laços familiares, por lá, serem inexistentes.
De facto, sempre que rumo ao Alentejo, os "meus sítios" são romagem obrigatória para que aquiete o espírito, numa viagem eternamente gratificante de recolhimento e afecto !
E sempre me emociono, deambulando por ali ... buscando o eco dos meus passos nas calçadas, nas arcadas, nas travessas e alcárcovas ... Não tem jeito !...

Foi como se um baú tivesse então sido reaberto ...
A poeira foi dissipando, as lembranças aclarando aos poucos, os nomes associados a rostos difusos, corporizando-os vagamente ...
E como numa busca espeleológica, fui desencantando pedaços, fragmentos, histórias, peças de um puzzle que foi retomando forma e conteúdo.
E fiquei extremamente feliz !
Não era uma viagem no tempo, mas foi uma viagem na minha história !

Agora, a Rita associou-me a este vosso / nosso Grupo, dos Antigos Alunos do Liceu Nacional de Évora,  de que não quero mais perder-me.
Farei questão que ele me redima no caminho transcurso, farei questão que ele reabilite os afectos esparsos, farei questão que ele me conduza outra vez à "família" ...

Foi também, através dele, que tomei conhecimento de algo muito triste.  Alguma coisa que me parece um pouco "contranatura" ... um pouco "surreal" ... injusta ... quase incompreensível ...
A Mané, a Mané Rocha à época, curiosamente um dos nomes que me permaneceram, um rosto que com algum detalhe me ficou na mente ... foi embora !
Partiu antes da hora ! Deixou, antes de tempo, o lugar vazio na sala de aula !
Na sala, e nos claustros, e na fonte de pedra onde corríamos no jogo desvairado do agarra, e no campo de jogos, onde o "mata" nos afogueava os rostos e nos transpirava a alma ... até que a sineta tocava ...
A Mané, aquela menina de olhos grandes, de franja desenhada, de faces sempre coradas, foi colega escolhida, uma amiguinha de coração, fraternalmente eleita por mim ... nesses recuados tempos ...
Integrava aqueles que se escolhem, porque se escolhem ... porque é assim ... porque a vida tem razões que desconhecemos ...
Busquei os seus olhos na fotografia aqui exibida, já que a franja e a cor do rosto também haviam partido ... a destempo, sei-o bem !

Resta-me esperar que esteja onde estiver, a Mané esteja em paz !
Resta-me endereçar um abraço de profundo pesar, a toda a família da Mané Rocha, sendo certo que ela permanecerá para sempre nos corações de todos nós !...

Anamar

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

" A VIRADA "




A esta hora, o ano já virou na Nova Zelândia e na Austrália.
Vem vindo por aí fora, de fuso horário em fuso horário, a virar páginas do calendário, a acrescentar mais um risquinho na contagem das vidas ...

As pessoas afobam-se, aceleram nesta recta final, parecendo querer agarrar não sei o quê ... antes que acabe e não cheguem a horas ...  Parecendo querer AINDA fazer, o que não fizeram ao longo do ano que agora termina.
Espalham-se votos pelo ar, saudações e desejos aos conhecidos, mas também aos desconhecidos, numa bonomia especial e própria da época.
O ser humano está mais tocado nas emoções, nos sentimentos, e o melhor de si, está logo ali ao pé da boca !
Há uma espécie de redenção interior, uma espécie de beatitude nos corações, e uma expectativa qualquer que não se controla, mas que se percebe ...

Por que acreditamos nós, que num qualquer passe de mágica, o tempo, de repente, fica complacente, fica um bom amigo e nos vai dar uma "mãozinha" daqui para a frente ?!
Por que achamos nós, que nesta repentina necessidade de balanço, de correcção, de planificação ... nesta ânsia de melhoria e de mudança, tudo se vai agora resolver de vez ... porque vem um Ano Novo ?!
Por que sentimos uma necessidade urgente de faxina, de arrumação  na mente e nas vidas ... em carácter irrevogável ?!
Por que queremos atabalhoadamente definir metas, estabelecer objectivos, que agora sim, temos a certeza, vamos cumprir ?!...

Porque a esperança, mesmo para os menos convictos, nunca abandona o Homem nesta sua caminhada !
É ela, que  lado a lado com o sonho, o empurra adiante, lhe ilumina a estrada, lhe acende a existência !...

E o Homem vira criança outra vez, com a virada do ano !
Afinal, ganhou um brinquedo especial ... Ganhou de uma vez só, mais 365 oportunidades novas !...

Hoje, é  inevitável que se recue e se reveja o "filme" da senda já percorrida.
É inevitável que alguma nostalgia desça ...
Que o que já foi e quem já foi, nos assomem  de novo à porta ...
É natural que  as lágrimas corram ... de saudade, de tristeza ... até mesmo de cansaço.  É natural !

Mas é muito importante que se reúna a paz possível, a tranquilidade necessária, para avaliarmos e valorizarmos com maturidade e compreensão, tudo o que já nos foi dado viver, todas as oportunidades boas e más que nos caíram nas mãos, todas as adversidades mas também toda a felicidade, mesmo curta,  que também experienciámos .
Que tenhamos benevolência para connosco mesmos, pela forma às vezes errada como encaminhámos os nossos momentos, como gerimos as nossas opções ...
Que tenhamos tolerância e isenção no nosso próprio julgamento ...
Que percebamos sem excessiva punição e sem arrependimento, a incapacidade ou a falta de força que manifestámos muitas vezes, incapazes de fazer escolhas mais assertivas ... de ir mais além ...
Que não nos julguemos por aquilo que não fomos capazes de fazer, mas nos regozijemos por aquilo que fizemos ...
Que não nos apontemos nem amarguremos  por tudo o que encarámos como "fraqueza", falta de coragem, imperfeição ...
Porque certamente em cada momento, teremos feito aquilo e apenas aquilo de que fomos capazes, aquilo que acreditámos como certo, aquilo que respeitou as nossas convicções e as nossas tentativas de acerto ...
Percebamo-nos simplesmente como humanos ... incompletos, imperfeitos, frágeis !...

E sobretudo sintamo-nos agradecidos à Vida, por todos os ensinamentos, todos os fogachos de felicidade que tivemos o privilégio de viver ...
Agradecidos por termos passado por ela, experimentando nos nossos corações, sentimentos ímpares, como o amor, a amizade, a paixão, a ternura, a alegria, a dádiva ...
Agradecidos por todos os que, cruzando os nossos caminhos, nos acrescentaram pedaços na nossa construção, enquanto seres humanos ...

E NUNCA chorarmos pelo que passou ... mas sorrirmos SEMPRE por ter acontecido !!! ....

FELIZ  2016 !

Anamar

domingo, 27 de dezembro de 2015

" O MEU SONHO DE GAIVOTA "





Olhei-a.
Ela parecia apenas dormir por entre a aragem.  As asas  esticadas, o corpo esguio magistralmente delineado, projectava-lhe a cabeça adiante.  Os olhos miudinhos e sagazes, auscultavam um possível caminho.
Haveria caminho para uma gaivota sobre a cidade ?...

Voltei a olhá-la e ela dançava por entre as chaminés, por cima dos telhados, absorta, distante ... mas sobranceira.
Indiferente ... eu diria, indiferente !
Tenho a certeza que no descolorido do casario, aquela gaivota vislumbrava azul.  Porque sem azul, uma gaivota está amputada no coração !

Lá de cima, no seu voo rasante e ronceiro, seguramente ela cheirava a maresia, adivinhava as falésias, escutava o vaivém da maré, e via o azul ... o azul infinito do marzão sem fundo e sem limite.
Via o azul de um céu de cristal, que só o é, lá, onde o oceano feito amante presente, beija e beija e beija, a terra que lhe estende os braços ...
Havia de sentir a areia fofa, onde o mar rendilha as franjas, havia de perceber a brisa salgada que embrulha as rochas, as algas e todos os seres viventes.
E teria saudades ...

Era uma gaivota solitária, uma gaivota que carregava silêncio.
Uma espécie de andorinha fora da Primavera.
Uma espécie de sopro que não abandonou os lábios.
Uma espécie de sorriso traído pelas lágrimas ...
Era uma gaivota sem liberdade nas asas, sem alegria na alma.  Porque ela tinha alma, que eu sei !

Vagueava, como se vagueia sem norte ou rumo.  Baloiçava, como cambaleia quem já não tem destino ou sorte.  Ia sempre adiante, entre curvas e volteios, entre paredes e cinzento ... como quem busca sem buscar nada.  Como quem tenta esperançar-se, desesperançado.

Segui-a, enquanto a vista deu, enquanto a distância deixou ... enquanto os muros, os becos e os telhados o permitiram.
Queria ter ido com ela ...
Porque também eu sou um fruto fora de época, uma flor dependurada de caule ressequido.
Também eu tenho saudades de lá.
Das águas de infinito onde o sol se deita, onde a lua se espreguiça com lascívia de prata, num leito de veludo ponteado a estrelas.
Queria ter a determinação e a indiferença do seu voo ziguezagueante por cima das copas inventadas, aqui, nesta terra de tristeza !...

O meu olhar perdeu-se na distância impiedosa.
E eu fiquei mais melancólica, no cinzento desta tarde de Inverno indefinido, como sonho não acabado de sonhar, como beijo não acabado de saborear, como amor não consumado no viver !...

Anamar

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

" HOJE ... MAS "




Hoje

Queria escrever-te duas linhas
Queria dar-te emoções que foram minhas
e torná-las nossas, como antigamente ...

Mas

As emoções secaram no meu peito,
As palavras esqueceram qual o jeito
do passado voltar a ser presente ...

Hoje

Queria dar-te as minhas mãos pelo caminho
Envolver-te num abraço de carinho
Colher p'ra ti, outra vez, aquela flor ...

Voltar a ser o teu porto de abrigo
Dar-te um colo, um ninho, um ombro amigo,
Sussurrar-te ao ouvido, o meu amor ...

Hoje

Queria lembrar-te tantas histórias que conheço,
os sonhos como rendas que entreteço,
quais canções de embalo e de ninar ...

Mas

Ficaste naquela curva da estrada
Perdeste o norte da caminhada,
e esqueceste qual o rumo p'ra voltar ...

Hoje

Somos donos dos silêncios que detemos
Somos escravos das palavras que dizemos,
quais pássaros fugidios ... alvoroçadas ...
Como folha arrastada  pelo vento
carrego  comigo este lamento
e com ele, trespasso a madrugada !

Anamar

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

" COMO UM PRESENTE DE NATAL ... "






Liceu Nacional de Évora - MEMÓRIAS


As gaivotas voavam em bando  bem  aqui por cima.
A tarde estava cinzenta, emborrascada, desalinhada.   Elas também.
Parecia não se chocarem  nos céus, apenas por acaso, num remelexo indisciplinado, acompanhado de grasnidos cortantes.
Tinham pressa, as gaivotas, uma estranha pressa de recreio de criançada.  Uma aparente hora de ponta lá pelo alto.
Perdi-me por ali, quieta, apenas olhando e pensando, do alto do meu sétimo andar : como o tempo nos foge !  Como corre célere, dobra esquinas, voa nas rectas, desaparece no nevoeiro, escapa-nos na vida !...

Hoje experimentei viver uma espécie de milagre.  Um milagre de Natal, seguramente !
É certo que os milagres têm tamanhos, talvez.  Talvez tenham graus, julgamos ... mas não deixam de ser milagres !

E entrar na máquina do tempo, recuar mais de meio século, abrir cortinas e espreitar ...
Desencaixotar imagens, reabilitar rostos, desempilhar emoções, faxinar a poeira dos anos como quem abre uma arrecadação de conteúdo meio esquecido, como quem viola um baú arquivado que não cogitávamos arejar ...
Esgaravatar em lembranças algo difusas já, em memórias meio empalidecidas, rebuscar histórias que nos fogem, e querer agarrá-las com desespero, antes que se esvaiam de vez, só de pirraça ...
Virar menina outra vez , pegar na pasta, vestir a bata, calcorrear as ruas, procurando nas calçadas o eco dos meus passos de então ...
Esperar de novo que o sino interrompa as brincadeiras, o jogo do "mata" e do agarra,  no encaminhamento da meninada para as salas ( será que ainda toca ? ... )
Olhar o sr. Francisco , miudinho, mexidinho, pelos claustros ... afobado, no uniforme de botoadura dourada ...

... requer uma robustez de coração, e uma estrutura de alma que não lembra ao Diabo !  ( rsrsrs )

Pois foi o que me aconteceu neste dia cinzento, de gaivotas em algarviada nos céus aqui por cima.

Quando as tecnologias da actualidade  ( que invadem, quantas vezes abusivamente as nossas casas e devassam as nossas vidas além da conta ), resolveram surpreender-me e me deixaram bem no colo, um "embrulho de Natal", com laço de fita e tudo, com estrelinhas em piscadela, recheado de surpresas e emoções, de sorrisos e de afectos resguardados nas memórias, conservados nos tempos, partilhados nos corações, arquivados na vida  ... eu fiquei pasma, enquanto o sorriso enternecido e a lágrima emocionada se atropelavam, na pressa de romper  !...

Sensação de contornos difíceis de definir... Surpresa, alegria, ternura ... saudade !
Sim ... saudade, o sentimento maior de todos eles, sem sombra de dúvida !...

Bem haja a quem tenazmente me "procurou" ao longo dos tempos !





Anamar

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

" WHEN WINTER COMES ..."




Assistir ao declínio de um pai ou de uma mãe, é assistir à pré-figuração do seu próprio fim.
Não se descreve.  Sente-se.  Vive-se !
É um processo de uma violência sem tamanho, no misto de emoções, de estados de alma, de interrogações, de culpas, de dúvidas, de impotências e de medos que nos assaltam e nos atormentam, dia após dia.

Cair-nos nos braços aquela "criança" engelhada, encarquilhada, aquele ser tão indefeso quanto um dia o teremos sido... aquele ser cujos olhos opacizados,  pouco já  exprimem além de ausência, tristeza e indiferença ...

Cair-nos no colo alguém que quase nos volta a caber nele, naquela figura fetal  e desarticulada, esquálida e esfíngica, de ossos cobertos por pele ressequida ... naquelas pernas imprestáveis, naqueles braços que mal nos envolvem o pescoço, naquelas mãos que atontadamente atiram beijinhos para todos e para ninguém, para tudo e para nada ... para um  infinito, quiçá finito na memória que já não tem ...

Escutarmos aquelas palavras desconexas, aquelas frases sem significado, discursos sem linhas de lógica ... encararmos posturas que não reconhecemos, identificamos e jamais lembramos no percurso daquela alma ...

Confrontarmos aquela fragilidade, aquela completa dependência, aquela folha de papel pregueado que o destino amassou e jogou para uma cadeira, que nem consegue mover ...

... são realidades em que mergulhamos, com que convivemos e que temos que aceitar, embora com revolta, embora sem que o percebamos, embora o achemos monstruoso, aviltante e injusto !
Embora seja uma gigantesca maré que avança e avança e avança, bem por cima da nossa cabeça e do nosso coração, com toda a força destrutiva  da sua agressividade, em dor e em desespero .

Uma mãe e um pai foram sempre as figuras maiores das nossas vidas.
Foram sempre os seres ímpares em quem nos revimos, que ansiávamos alcançar, que desejávamos seguir.
Foram sempre as imagens que o espelho da vida  nos devolvia, como referências, como poço de valores, como repositório de ensinamentos e princípios.
Eram figuras agigantadas, intocáveis, quase inquestionáveis. Eram muralhas e fortalezas inexpugnáveis aos nossos olhos.
Uma espécie de "deuses" confinados à condição humana.
Eram entidades que nos pareciam imbatíveis, irretocáveis, inatingíveis ...
E por isso, "imortais", perenes, imunes, invencíveis por todas as intempéries da vida, inclusive a morte, que não ousamos sequer questionar, quando ainda somos crianças.
Talvez por defesa ...
E recusamos sempre nas nossas mentes, esse pesadelo, esse sossobrar, essa finitude do percurso, afastando para tão longe quanto podemos, esse fantasma que sempre pensamos futuro e distante ...

Até que um dia, aquele pai e aquela mãe, se reduzem de repente ao seu real "tamanho", se remetem de repente, à sua pequenez de barro moldado, à sua dimensão de vulnerabilidade irremediável...
E caem-nos, bem nos nossos braços, que nada podem fazer, além  de segurá-los, ampará-los, aquietá-los no seu calor ... talvez embalá-los numa canção de ninar  ...

E surpreendemo-nos, e sempre somos apanhados desprevenidos e incrédulos, chamados que somos então, à dolorosa condição de pais dos nossos pais, na condução dos seus dias finais, no aconchego dos nossos corações ...

E simultaneamente também, bem na nossa frente, como uma imagem desfocada reflectida num espelho - para que o não esqueçamos - estamos nós mesmos, enfrentando um Inverno que se aproxima a passo estugado, com um frio gélido e paralisante, que ameaça descer ... ali, no virar da esquina !...

Anamar

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

" COMO UMA CONDENAÇÃO "





Cortavam a relva na praceta.
Os sons da rua chegavam-me ao sétimo andar, pela fresta da janela entreaberta, para que o resto deste sol de Outono ainda luminoso e quente ( neste "intermezzo" de regra, de meio de Novembro ), me pudesse inundar a sala.
Breve chegarão os dias escuros, a chuva tamborilará na cobertura do terraço ou escorrerá pelas vidraças.  Breve Dezembro, breve Natal, breve um novo ano ...
E o pingue-pingue do calendário a jorrar dias, datas, anos, numa determinação impiedosa e tirana, sempre irredutível !

O tempo !...

Este tempo que não existe, a empurrar-nos adiante, implacável, na fila imparável em que nos seguimos ...
É uma fila silenciosa, de gentes silenciosas e submissas, em que ninguém ousa contrariar a "ordem normal" .
É uma fila cinzenta, de gentes descoloridas e cinzentas também, que carregam consigo o peso absurdo das memórias ... só das memórias.  Essa, a bagagem que transportamos, enquanto não somos atraiçoados ...
Fernanda Montenegro diz : " Não quero perder a minha memória, porque EU sou a minha memória "!...

A memória ... a nossa identidade, o que nos correlaciona, nos situa, nos refere.
E tão precária, tão a prazo, tão injustamente brincalhona, sempre a olhar-nos com ar de escárnio.
Senhora absoluta dos destinos, algoz de vida, manipuladora da existência ...
Joga de esconde-esconde, trapaceia vezes de mais, ludibria as vontades, desorienta o caminho !
Qual bússola descomandada, qual farol desactivado e imprestável, qual norte sem norte, a memória aliada ao tempo, cria mecanismos e circuitos viciados que conduzem o ser humano a estradas sem luz, a rotundas entontecidas, a túneis escuros sem saída !...

O desgaste físico do Homem, perturba-me, mas entendo que este, como máquina complexa que é, tem associada  a si um prazo de validade.  A deterioração das peças que a constituem parece uma inerência evidente a qualquer mecanismo de utilização permanente.
As engrenagens emperram, os rolamentos enferrujam, os amortecedores tornam-se ineficazes, o envelhecimento instala-se ...
O coração da máquina e os veios de transmissão bloqueiam.
Parece objectivo, compreensível, aceitável ... inevitavelmente !

Agora, a degenerescência do seu centro de comando, a delapidação do seu património essencial, a falência da matriz diferenciadora enquanto ser espiritual, emocional e sensorial que é,  a perda da sua herança pessoal única e intransmissível, a desestruturação do seu arquivo referencial no tempo e no espaço ... são dolorosas, injustas e violentas facécias do percurso a ser trilhado pelo ser humano, com que nos  confrontamos, que não consigo entender, aceitar, sequer conviver pacificamente ...
... provação a que ninguém deveria ser condenado a  sujeitar-se um dia !...

Anamar

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

" UMA CARÍCIA NO PEITO "




E o S.Martinho que não nos falha !...

Se há santo em que tenho obrigação de acreditar, é mesmo nele !
Ano após ano, por mais "entruviscada" que esteja a situação, por maiores negaças e caras feias que o céu, as nuvens e o sol nos venham fazendo ... é inevitável.  Tudo dá a volta, e este "break" climatérico sempre se instala.
Os dias azulam outra vez, a temperatura ameniza, a Natureza deslumbra-nos de novo com o seu traje de gala ...
E de repente apetece passear pelos caminhos, ora cobertos de folhagem dourada como os dias que fazem ...

São envolventes.  Amanhecem transparentes  e diáfanos.  Juram permanecer sempre assim até que a noite suba.  Têm um sol ímpar.  É particular, distinto, indizível !
É um sol que fecha definitivamente a porta às estações luminosas e amenas que já foram, e abre as portadas às sombras, à interioridade, à penumbra dos dias curtos, agrestes, cinzentos e entristecidos que hão-de chegar ...

É um sol que não se define.  Só se sente!...
Porque não há vocábulos no léxico, que nos digam com perfeição, como ele é, de verdade !
Lembra um colo, lembra a doçura de um cachecol em dias frios ... a fofura de um novelo de lã !...
Tem a cumplicidade de um beijo longo, tem a envolvência e a segurança de uns braços queridos ...
Penetra e entranha, numa devassidão consentida ...
Aquece as fímbrias da alma e adoça o coração, com generosidade ...
Dá-se, sem perguntar !...

E depois, tem o brilho resplandecente das auras santificadas, em capelas penumbrentas.
Pinta-se no arco-íris, com tonalidades insuspeitas, e que nenhuma paleta conhece ...
É claro, luminoso ... afaga.  É um sol de despedida e de carícia, que oferece o melhor de si antes de partir ... para que se retenha na memória ...
Tem  o  cheiro  das  castanhas  que  estalam  no  assador,  e  o  alaranjado  dos  diospiros  maduros ...
Tem o calor macio que aquece os velhos silenciosos dos bancos do largo ... adormentados, com a "pirisca" esquecida no canto dos lábios ... inverno à espreita, na esquina da vida !
Tem impregnados em si, os acordes de Chopin, que ecoam em sonatas embaladoras, por claustros imaginados ...

É um sol fugaz, um sol em trânsito, um restante sol de privilégio.
Breve partirá e deixará o sabor  promitente de um regresso futuro ... para quem estiver ainda por aqui !...

Será exactamente quando o S.Martinho voltar a despojar-se da sua capa protectora, e com metade dela, cobrir outro pedinte do caminho ...
Exactamente quando os dias azularem de novo, quando as alamedas se atapetarem saudosamente,  de folhas douradas ...
Exactamente quando "tudo der a volta" ... e nos deitar p'ra dormir ...
Exactamente quando  regressar o tempo das castanhas e a prova do vinho novo ...

Exactamente quando  voltar a ser  Novembro outra vez !!!...




Anamar