sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

" O NATAL DO NOSSO DESCONTENTAMENTO "




E então é Natal ...

Mais outro Dezembro, mais outro Natal, outro ano em passadas aceleradas para o fim.  E nós, com ele ...
O calendário anuncia, determina, impõe tréguas, paz, conciliação no coração dos Homens, indiferentes.

Um pouco por todo o Mundo a azáfama instala-se no ritmo de sempre.  As luzes há muito se acenderam nas ruas, as vitrinas das lojas vestiram-se com o que de melhor havia no seu interior, num apelo mudo aos passantes.
Compra-se, encomenda-se, marca-se ...
Tem que estar tudo estranhamente a postos,  no que mais parece uma maratona social que deverá ser irrepreensível nos pormenores.  Há uma urgência instalada e sentida.

Por aqui as pessoas dão-se as Boas Festas, indistintamente, numa transcendência magnânima que vem do coração.  Exortam-se os maiores e mais profundos sentimentos de alma, numa generosidade sem contenção ou limite.
Afinal, reina um espírito universal de solidariedade e irmandade.
Pelo menos uma vez no ano, as mãos entrelaçam-se, os corações estreitam-se ... parecemos comungar um insuspeito sentimento de fraternidade ...

É o "reencontro da diáspora", diz Marcelo Rebelo de Sousa, referindo o encontro das famílias que a sorte madrasta teimou em separar e espalhou pelo planeta.
É a busca do convívio daqueles que por aqui vão estando, por vezes pouco presentes ainda assim.
E é a recordação de outros encontros, entre aqueles que não voltarão a encontrar-se, nesta diáspora que é também a vida de cada um ...
E depois há os que não têm mais quem encontrar ... a não ser os que na mesma nau e na mesma odisseia, partilham os temporais de todos os dias .

Enquanto isso, sabemos das bombas.  Sabemos de Aleppo e das suas crianças órfãs e sem sonhos ...
Sabemos dos refugiados nos campos da desesperança ...
Sabemos dos atentados e sabemos dos que morrem, sem bem saber porquê ... Apenas pela desdita de estarem no sítio errado na hora errada ...
Sabemos os amordaçados na voz e na vontade, onde a palavra liberdade é mítica ...
E sabemos África e Ásia naquela manta de retalhos de miséria e infortúnio.  De doença, de provação e de dor ...
E sabemos das cidades agrilhoadas mesmo no coração da "civilização", pelo medo dos fantasmas  da ameaçadora violência sempre iminente, demasiado iminente ...
E sabemos da lotaria que é a vida de quem conta tostões nas contas magras, em meses demasiado compridos ...
E sabemos do frio e do silêncio, em lares de costas voltadas, quando as pessoas já só se desconhecem ...
E de velhos ... centenas de velhos ... largados  na solidão desesperante de hospitais e instituições, e onde a demência é uma aliada e uma misericórdia ...
E sabemos de todos os sozinhos, silenciosos e escuros na alma, com horizontes de sol posto ... numa orfandade de afectos e calor ...

Sabemos tudo isso e ainda assim acreditamos neste Natal !...
Afinal, simplesmente, o Natal do nosso triste descontentamento !!!...

Anamar

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

" E ALEPPO AQUI TÃO PERTO !... "




E Aleppo aqui tão perto !...

Porque afinal o Mundo é pequeno, demasiado pequeno ... bem o sabemos.  E o troar das bombas nos rebentamentos, em noites intermináveis e tenebrosas, chega-nos aqui.  Bate-nos ao coração.  Toca-nos o espírito e desassossega-o, e intranquiliza-o com as danças medonhas dos monstros e da morte esvoaçante.
A escuridão pesada e inimaginável  por nós, os presenteados do destino, assombra os que não dormem, não comem e não vivem,  lá ... talvez à espera do derradeiro momento ... quiçá o do alívio, em cada estrondo que atordoa.

As ruínas do que foi um local de se viver, as portas e as janelas esventradas no que ainda resiste em pé, são fantasmas terríficos de dedos acusadores  ao Mundo do século XXI, que parece adormecido, demasiado indiferente e distante.
Entretanto, como soldadinhos fantoches em guerras de fazer de conta, os civis, homens, mulheres mas sobretudo crianças, indefesos, vivem o horror da incerteza, do medo, do pânico paralisante de bicho acoado em ratoeira armada por loucos em desvario.
E tombam ... tombam a cada hora, a cada minuto, sem saberem por que tombam ...  Sem saberem por que vale tão pouco a sua condição humana !...

Bana relata, na sua inocência de menina de sete anos, o que vê, o que ouve ... ao que assiste, com o pavor de quem não sabe se no momento seguinte ainda o poderá fazer ...
E suplica que rezem, que todos unam preces  para que o Inferno páre, para que o pesadelo termine... para que as bombas parem de cair, arrastando consigo tudo e todos.
O pai foi ferido, perdeu o seu melhor amigo e muitas outras crianças como ela ... só que mais desafortunadas.  Velhos, homens, mulheres com crianças ao cólo, perambulam sem destino por entre escombros que escondem a desgraça.  Não há mais refúgios, não há mais esconderijos !  Só a sorte de cada um ditará o seu destino.
Em desespero, tenta chamar-se a atenção hipócrita do ocidente, das instituições e dos países preponderantes, para o genocídio que acontece a cada dia.
Fazem-se vídeos nas redes sociais. Usam-se os recursos das novas tecnologias para denunciar, sensibilizar e pedir socorro, em despedidas pungentes, de pessoas conscientes de que essas serão as suas derradeiras palavras ao Mundo.

Aleppo é uma cidade fantasma.  Aleppo é um pesadelo tornado realidade, onde a vida é aleatória, onde o sonho não cabe mais, onde a busca da sobrevivência é o único horizonte para os que resistem.

Enquanto isso, o Mundo faz compras de Natal !
Atropela-se, num afã alucinado de consumir, consumir, consumir ... na promoção de um evento cada vez mais desumanizado, esvaziado, alienado.
As cidades iluminam-se profusamente.  As mesas irão rechear-se.  Os risos, a alegria e a abundância  não deixam espaço para outras preocupações ou pensamentos mais altruístas e fraternos.
As consciências repousarão sem demasiados sobressaltos ... tenho a certeza !

Lá, a cidade também se ilumina, por cada explosão acontecida.
Nas mesas desmanteladas, de lares que já o não são, haverá comida, haverá leite ... sequer pão ?
Os choros, os gritos lancinantes, a dor e o desespero alastrarão por entre as sombras agigantadas, até que um silêncio de morte desça ... e com ele traga a paz para os que deixaram de sofrer !

Assim é o Natal  ...
Assim é o Natal também em Aleppo ... aqui tão perto !...



Anamar

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

" DOENÇA DOS TEMPOS "




As pessoas morrem aos poucos, um bocadinho de cada vez.
A solidão em que uma imensa faixa da população vive, o isolamento a que é votada  mercê do ciclo da vida, marginaliza, obstaculiza e segrega da felicidade muito ser vivente.
As grandes cidades, com o anonimato de que somos vítimas ombro a ombro com as multidões que cruzamos, o ostracismo em células que muitas vezes já foram familiares e hoje pertencem apenas aos que restaram, as torres, os edifícios de muitos fogos com gente circunscrita a espaços demasiado restritos, desapoiada e confinada a mundos demasiado limitados, propiciam estados de alma deteriorantes e destruidores do ser humano.

A vida, com todas as dificuldades reais e exigências inerentes, com todas as angústias desencadeadas pela imposição do cumprimento de necessidades básicas, mesmo que só de sobrevivência ...
A vida, insatisfatória e com penalizações  frequentemente de uma violência desumana, entristece, desmotiva, cansa e angustia todos quantos a atravessam enfrentando os mais dolorosos escolhos ...
As dificuldades e as verdadeiras barreiras quase intransponíveis que se verificam no entendimento das linguagens, na comunicação entre gerações que criaram valores, convicções e formas de sentir totalmente diversas ...
A indisponibilidade que quase todos ostentam, num corre corre, numa lufa-lufa indiferente aos problemas de cada um, aos seus sentires e inquietações ...
A insensibilidade face ao outro, num egoísmo social, num egocentrismo monstruoso e sem tamanho ...
As frequentes desagregações familiares, as clivagens sociais, a progressão dos anos que também arrasta consigo limitações sérias e crescentes, a nível de resistência e de saúde ...
As incertezas em futuros que já se não afiguram tão distantes assim, e que se mostram preocupantes e com prenúncios de tempestades ...
... mergulham em si - em vórtices ciclópicos, em labirintos estonteantes e demenciais - as pessoas, já de si fragilizadas e desgastadas pela verdadeira epopeia que é viver e resistir no dia a dia.

Depois, surge também a dor da solidão afectiva.
Há cada vez mais pessoas que sofrem consigo mesmas.  Pessoas compelidas à sua solidão e ao seu isolamento emocional e afectivo, num processo contranatura, já que o Homem é um ser gregário, um ser de matilha e clã.
Ou por moto próprio, ou mercê de circunstâncias da vida, num desajuste com ela ... os órfãos do amor, do afecto, do amparo, do cólo de que não dispõem, do calor do abraço que anseiam ... são cada vez em maior número, alastrando uma epidemia social de gente sofredora da ausência de carinho e de afecto.
O aumento exponencial de divórcios e separações, a viuvez prematura entre pessoas ainda com invejável qualidade de vida ( mercê do acréscimo da esperança de vida  numa sociedade mais cuidada e com acesso a mais recursos em termos de cuidados de saúde) ... lançam na sociedade uma significativa franja de pessoas avulsas e sós, que, dependendo obviamente das suas personalidades e exigências perante a vida, a aceitam melhor ou pior, mais ou menos pacificamente e a vivem de uma forma mais ou menos feliz ... mormente com infortúnio e insatisfação, constato!

Não se encontram sucedâneos que colmatem esses buracos existenciais.
Não se compra afecto, partilha, cumplicidade, nas lojas que nos vendem quase tudo ...
Não se "encomendam" realizações e finais felizes,  para sonhos ainda tantas vezes sonhados.  Não se amanhece dizendo : "hoje encontro novos caminhos e vislumbro novas estradas !  Hoje, se chorar, vou ter quem pacientemente me seque as lágrimas, me devolva a esperança e a fé em novos e mais generosos horizontes !... "

E ss pessoas vão morrendo aos poucos, um bocadinho de cada vez .
Pelo menos até que ainda tenham um sopro de "vida" no coração e um derradeiro fôlego na alma ...

Mas,  os pôres de sol vão empalidecendo ... Esquecemos como é dançar na chuva ... O olhar opaciza, cansado de se alongar pelos montes, e o ouvido endurece ao canto das aves de outras vidas ...
A debilidade anímica abate-se sobre nós, a força do crer e do querer esvai-se, exaurindo a capacidade do avanço, perdida a aposta no valer a pena ...

Esta implacável "doença dos tempos" alastra e submete, trucida e desmantela !...

Anamar

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

" SONHOS SONHADOS "




Estamos naquele tempo em que o plátano das traseiras se traveste das cores doces de um Outono-Inverno dormente e sorumbático, que nos aconchega.
As folhas verdes já são minoria, quase um achado encontrarem-se.  Os ouros e os ocres avermelhados imperam, em folhagem que se precipita a formar tapete no chão desta praceta, hoje silenciosa.
É domingo, o céu cinza plúmbeo impiedoso aqui por cima, está de um uniforme impávido e sereno.
A chuva precipita-se copiosa, alguns pombos cortam em pressa o firmamento e as gaivotas que recuaram, dançam nas ondas da aragem.
Para lá, onde o céu beija o mar, adivinho um desalinho alteroso ...
Por isso, elas buscaram terra segura.

Aqui, impera uma total ausência de som que me perturbe.  Os gatos dormem e ressonam mesmo, neste dia de desconforto.
À minha frente, o incaracterístico casario desgovernado e ao meu lado, companheira de demasiadas horas de silêncios e solidão, Énya embala-me com o seu inconfundível timbre, em melodias que conheço de cór.

Um dia mais que se abeira do fim.  A escuridão começa a cerrar-se ... e ainda não são cinco da tarde !

Interrogo a vida e o que é vivê-la.
Interrogo esta inépcia inata que tenho para o fazer.
Interrogo esta insatisfação dolorosa de mãos demasiado vazias perante ela.  Como se por entre os dedos me tivessem  fugido o sonho, a vontade e a fé ...
Interrogo esta incapacidade de nortear estes meus rumos sem rumo ... Com menos rumo que o das gaivotas aqui por cima ... que parecem não tê-lo.
Interrogo a lógica de uma existência que simplesmente se arrasta no escoar dos dias.  Pergunto-me como será ... e apavoro-me com o que está por vir ...

E o tempo escoa e submete-me.
E vergo-me perante os seus desígnios inapeláveis.
O pântano, o atoleiro, a areia indefinida e movediça  retiram-me a fé, a coragem e a força de mover as pernas e andar ...
Atordoo-me como numa estrada desconhecida, sem fim ou destino, cansada ... perdida sem itinerário.
Como se simplesmente devesse seguir, penitente ...

Por que não sou simplesmente uma pessoa comum, se sou uma pessoa simples no viver ?!
Por que me rebelo e não me conformo com o percurso tépido que a vida me disponibiliza ?!
Por que me maltrato inventando sonhos maiores do que a realidade mo permite, num desassossego inveterado ?!

Sonhos simples, contudo ... Sonhos justos, acredito ...
Sonhos de linguagem modesta, mas feitos de pequenos / grandes farrapos de emoções.  Feitos de linguagens de amor, de gestos límpidos, transparentes e quentes.  Sonhos pintados das cores envolventes e aconchegantes das doçuras outonais.  Sonhos vazios de solidões,  plenos dos afectos que sempre pairam  nos gestos cúmplices, nas palavras não ditas e só sentidas, nos sorrisos que nos enrubescem as faces, porque enleiam as batidas dos corações ... quando estas se partilham ...

Sonhos e mais sonhos ... apenas sonhos ...  Simplesmente sonhos sonhados !

Anamar



terça-feira, 15 de novembro de 2016

" GRATIDÃO "





12 Novembro 2016



" Gratidão "


Nasci neste dia e foi destino
a minha sina ser escrita na maré ...
neste caminhar pé ante pé
a minha vida ser cansaço e desatino ...

Mas os amigos que são amparo e são bordão
não me abandonaram no caminho
e foram tantos e transbordaram do carinho
que me fez reviver o coração !

E por isso as flores da madrugada,
gotas de uma chuva abençoada
que colhi, aspergiram a minh'alma

E uma profunda e doce gratidão,
contas de amor enfiadas num cordão,
foi a paz que me envolveu na tarde calma !

Anamar

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

" REZA, AMÉRICA !... "





" Um privilegiado de recorte fascista a liderar o descontentamento popular e a transformá-lo em poder pessoal.  Se precisávamos de mais sinais, este foi o último.  É para aqui que o mundo ocidental se está a dirigir " -  Daniel Oliveira

" Os idiotas vão tomar conta do mundo, não pela capacidade, mas pela quantidade.  Eles são muitos ! "  - Nélson Rodrigues


Estas, são apenas duas citações que a madrugada de ontem suscitou, depois de divulgada a notícia bombástica da vitória de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos da América.
O mundo acordou estupefacto, recusando acreditar estar perante a concretização de algo que parecia impensável.
A América amanheceu com uma espécie de outro 11 / 9  neste certamente inesquecível  9 / 11 !
A apreensão instalou-se de ocidente a oriente.  De certa forma, o mundo vivia o início do que poderá tornar-se um pesadelo futuro ...

Odeio a política, os seus meandros sujos e ignóbeis.  Odeio aquilo que a move, aquilo que alimenta os mais torpes desígnios dos que a fazem.
É um campo mal cheiroso e nojento.
Também não venho aqui tecer nenhum considerando novo.  Aliás, quem sou eu para me sentir com autoridade para opinar abalizadamente, a propósito ?
Sei contudo que na vida, queiramos ou não, somos seres forçosamente políticos e que tendo cabeça para pensar, também não fará sentido demitirmo-nos de pelo menos reflectirmos, analisarmos e termos opiniões pessoais sobre os acontecimentos e os assuntos que nos rodeiam e que determinam os desígnios do ser humano neste planeta que habita.
Sei também que tudo já foi destrinçado à exaustão, por todos, que todas as "armas" já foram esgrimidas neste contexto em todos os meios de comunicação social, que todas as análises já foram minuciosamente escalpelizadas e todos os cenários desenhados.
Portanto, trazer à colação este tema, talvez possa parecer pretensioso, redundante e excessivo.
Ainda assim, vou referir algumas questões que me preocupam, algumas interrogações que se me colocam, algumas dúvidas que me angustiam.

Basta ter seguido com alguma atenção a campanha havida para a presidência dos EU, para percebermos que estávamos perante dois candidatos que não seriam solução.  Entre Hillary Clinton e Trump, a escolha configurava-se difícil.
Nunca se trataria de uma escolha perfeita, num país dividido, em partidos também internamente esfrangalhados, mas sim de escolher entre dois males, o que menor fosse.
Nessa conjuntura, Trump deveria então ser assisada e prudentemente banido.
Um candidato notoriamente impreparado, um indivíduo de uma linha assustadoramente radical e extremista, com intuitos xenófobos, persecutórios, inescrupuloso no respeito pelos direitos humanos de que faz tábua rasa, misógino, provocador, louco e inconsequente ... representará seguramente um campo minado, com imprevisíveis consequências em termos futuros.

Como pode um indivíduo que assumiu posturas boçais inqualificáveis e abjectas, de um machismo aviltante e nauseabundo, ser reconhecido como idóneo na chefia de uma nação ?!

Como pode alguém que não reconhece e descredibiliza a luta séria e inadiável a ser travada num esforço colectivo por todos os povos na salvaguarda dos problemas ambientais do planeta, ser designado para chefe superior de uma super potência, com responsabilidades por isso, acrescidas, colocando à frente do direito à vida e à qualidade da existência do ser humano, os interesses do capital e dos lobbies económicos ?!

Como pode alguém assumidamente racista, extremado e emocionalmente intempestivo e desequilibrado - que fala em deportações massivas, que fala na criação de muros entre povos e países, quando o Homem deverá empenhar-se sim, em derrubá-los, numa luta para a integração, a aproximação e a assimilação do seu semelhante - ser colocado à frente dos destinos de um país como a América, com óbvias implicações em todo o equilíbrio e pacificação mundiais ?!

Como pode ter sido investido de poderes de chefe de estado, alguém com uma nem sequer disfarçável proximidade com linhas políticas e sociais suspeitas, perigosas e preocupantes - haja em vista o regozijo e o apoio exuberante pela sua eleição, provenientes de sectores, facções e países que sem dificuldade reconhecemos ?!

Bom, não pretendo alongar-me mais.
Estas foram apenas algumas reflexões que traduzem naturalmente inquietações que serão minhas e seguramente de muitos mais.

Pergunto-me : foi tão ardiloso Donald Trump que se aproveitou da ingenuidade do povo americano ?!
Foi tão perfeitamente artista no vestir dissimulado da pele de cordeiro, mascarando o lobo que ainda não se mostrou ?!
Jogou tão maquiavelicamente com a insatisfação popular, lançando eflúvios entorpecentes sobre todos os que irão acordar forçosa e irremediavelmente tarde ?!

Resta-nos aguardar e continuar atentos  para percebermos o desenvolvimento desta novela de mau gosto.
Até lá, se fosse católica diria : " REZA,  AMÉRICA ! "

Anamar

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

" NADA "




Nada ficou no lugar
ainda que o rio busque o mar
numa correria louca ...
Nada mais ficou igual
depois que esse vendaval
silenciou minha boca.
Nada ficou como era,
já partiu a Primavera
das minhas mãos, que cansaram
quando pela madrugada
os teus olhos que eu amava
dos meus, tristes, se apartaram.
Nada ficou como antes,
sonhos ficaram distantes,
irreais ... inexistentes ...
Foi injustiça da vida
uma chegada e partida
à minha mágoa, indiferentes !
Tu seguiste e eu fiquei ,
num amor que adivinhei
ser fogo fátuo, na estrada
Mas de tudo o que  vivi,
de nada me arrependi,
mesmo não sobrando nada !...

Anamar

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

" ORAÇÃO VESPERTINA"




O último pássaro atravessou este céu empalidecido.
Ia sozinho, decidido, rumando ao horizonte, em recorte esfíngico , contra as pinceladas laranja desenhadas num azul diáfano, diluído ... líquido, eu diria ... deste fim de dia.
É um céu de paz e serenidade, este que se desenha frente à minha janela.
É um recolhimento absoluto, esta hora de dormir, em que a Natureza emudece e se apazigua.
Não há perturbação, não há ruído ... é uma hora de privilegiado comprazimento. É uma hora de intimismo perfeito.  De equilíbrio e harmonia.
Em que a beleza que não se descreve é um louvor que se eleva ao infinito.
É uma oração celestial de gratidão pela arquitectura perfeita que nos envolve.
É um enlevo que nos emociona, por tão insignificantes, merecermos tanto !...

Sempre silencio, no recolhimento de claustro de abadia ... nem sei explicar o quanto !
Pareço não querer tocar o que vejo, o que sinto, o que perscruto.  Porque tocando, perturbaria este milagre que se me desenrola perante o olhar ...
Breve, Vénus, a primeira "estrela" do firmamento, se acende, na guarda do rebanho que aí vem, à medida que a escuridão desce.
E uma poalha generosa ponteia e pinta, como nenhum pintor o sabe fazer, esta abóboda de veludo aqui por cima.

Fim de mais um dia que nos foi dado viver ...

Anamar

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

" EU TORNEI-ME GAIVOTA ... "


O bando dá em passar por aqui, nestes fins de dia.
Quando as luzes do céu já se fecharam, quando o cinzento que se estende até onde a vista alcança prenuncia borrasca pela noite que se avizinha, elas passam pressurosas numa urgência lida, de busca de poiso para a pernoita.
Seguem na mesma direcção ... todas ... muitas, ordenadamente, como quem voa sem dúvidas no itinerário ou sequer no destino a alcançar.
Vão determinadas.  Conhecem o objectivo ... e têm urgência.
Afinal a noite aproxima-se, o mar está longe ... e a tempestade anuncia-se ...

São elas, as gaivotas, sobre quem tanto sempre escrevo.

Olho-as, "sigo-as", projecto-me através delas na liberdade de todo um firmamento por minha conta.
De todo um  mundo sem barreiras ou limites que o definam.
As gaivotas despertam-me desejos do que só adivinho e que está para lá do que alcança a mente humana.
Falam-me das asas que não tenho, transportam-me as saudades que me pesam no coração, levam-me recados sem endereço ou morada ...
São estafetas dos sonhos que me moram na alma.  Falam-me dos horizontes sem horizonte da vontade indomável que me habita ...
E dizem-me do mar, morada eterna de meu repouso e sono.
Dele, contam-me os seus segredos salgados e embalam-me na melopeia das ondas que adivinho num desmantelo ... lá longe !
E mostram-me o vento que lhes despenteia as penas, e sempre me desafiam a partir ... embora eu só as veja por detrás da vidraça que  me torna refém de mim mesma ...
Tenho a certeza que passam aqui p'ra me justificarem a imaginação e o devaneio. Para me acicatarem a vontade... p'ra me confrontarem sem remédio, com as minhas raízes e escoras ao chão que habito ...

E contemplo-as longamente ... melancolicamente ... persigo-as com o olhar, até onde a vista mo permite e me espicaça ...
É uma nostalgia errante a que me aperta aqui por dentro, por vê-las partir ...
É uma orfandade doída, a que me deixam no peito quando me percebo, injustamente, mais só ainda ...

E acabo indo ...
E parto no bando, lado a lado, aprendendo a contornar os golpes de ar, aprendendo a preguiçar na orla das nuvens, aprendendo a brincar nos volteios da ventania, desbravando as estradas do céu, saboreando os salpicos das marés, equilibrando-me  no pico das escarpas altaneiras ... e sendo dona dos areais  infinitos, agora que as praias ficaram vazias ...

De repente eu aprendi um caminho, eu rescrevi a minha história ... eu ganhei asas ... eu tornei-me gaivota !!!

Anamar

sábado, 15 de outubro de 2016

" A IRRELEVÂNCIA DO EXISTIR "




Não escrevo ... faz tempo que não escrevo !  Nem consigo achar que valesse a pena fazê-lo.
Parece que já disse tudo o que tinha a dizer.  Parece que secou em mim a cascata que me extravasava, me inundava e me transbordava, abençoadamente, quando punha as letras no papel, quando o coração jorrava e a alma se despia, em alívio ...
Tudo parece ter deixado de fazer sentido !  Tudo ficou  desconhecido !  Eu passei a desconhecer-me, mais e mais ...

Estou a viver uns tempos absolutamente estranhos na minha vida.  Sinto-me como que dormente, amodorrada, adormecida..
Pareço esperar um qualquer nada que não defino.  Pareço esperar uma qualquer esquina, que dobrada, me mostrasse um caminho, uma estrada, um rumo ... um horizonte.
Um horizonte que me definisse vistas ou perspectiva, que daqui, deste ponto onde me encontro não enxergo, não alcanço, não diviso.

Como se pode viver apenas respirando, acordando, dormindo, realizando as mínimas funções vitais ?
As mínimas, garantes apenas da sobrevivência ... Porque viver não pode ser apenas isto, tenho a certeza !
Não experimento emoções, não toco a esperança, não me entusiasmo ou preencho com projectos, futuros, sonhos, ilusões ...
Parece que já esqueci o que é tudo isso !
Apenas sinto um cansaço e um abandono de ser desistente e incrédulo.
E pergunto-me quanto tempo alguém é capaz de se arrastar assim ?!
Estou cansada, brutalmente cansada  sem ânimo ou força para continuar.  Tudo parece ser irrelevante na minha existência. Indiferentemente irrelevante !...
Como se um vento destruidor  de tempestade alterosa, me tivesse pegado em remoinho de dia invernoso, e como folha arremessada, me jogasse num vórtice impiedoso ... E me açoitasse, e me sacudisse, e me atirasse pelas alamedas de jardim esquecido onde ninguém passa ... em rodopio entontecido !...
Qual folha amarelecida de Outono , ignorada numa esquina de ventania.  Varrida pela ignorância da tempestade, com a indiferença absoluta do desconhecido.

Pouco importa quem sou, o que sou, como estou ...
Quem se importa com a folha seca, desprendida daquela árvore que se despiu na aproximação do desabrigo que aí vem ?
Quem sequer sabe que eu ainda existo, só porque ainda estou por aqui ?

Exausta ...
Numa espécie de fim de linha, de volta de estrada ... de fim de caminho !
Vazio ... só vazio à minha volta.  Silêncio absoluto.  Descolorido de fim de dia ...

Mais um.
Apenas mais um a encerrar as portas.
Mais um que jamais poderá retornar e voltar a ser vivido !
Mais um que nunca mais poderá ser reinventado na minha vida !...

Anamar

sábado, 8 de outubro de 2016

" FIM "




Estranhos estes fins de tarde ... Estranhos estes fins de estação ...Estranhos os fins de vida !...

Os dias anoitecem bem mais cedo.  Alaranjam lá ao fundo, escurecem os contornos que se tornam mágicos ... e partem.
A mornidão ainda prevalece, doce, embaladora, envolvida nas cores anoitecidas e dolentes de um Outono recém chegado.
Os silêncios descem, como se a Natureza entoasse uma canção de ninar, de fim de dia.

Junto de mim, Énya lança acordes celestiais, aqui neste meu quarto de solidão e paz.  Por alguma razão a busco, no aconchego da quietude que me rodeia.
Ela "fala-me" na medida certeira do meu estado de espírito.  Ela afaga-me a alma, e aquece-me o coração, com os seus sons de melodia de outra dimensão !.
São assim estes tempos de penumbra, como claustro de abadia.
Silenciosos, dormentes, com a luz velada a coar-se pelas frinchas ...

O fim de qualquer coisa, sempre é estranho.
É um despir do espírito e é uma preparação para outra realidade, com uma roupagem nova.
É uma hora de passagem.  É uma hora de mudança. É uma hora de transição.
Nem sempre queremos deixar o que já foi.  Nem sempre estamos desarmados para receber o que chega.
Há uma violentação do Homem ... se mais não for ... sê-lo-á por inércia a ser vencida.

O Outono da vida é igual.
Encaminha-nos a passos largos e pressurosos para o Inverno que há-de vir.
As luzes da alma reduzem.  Os silêncios prevalecem.  O espírito amodorra.  O corpo cede.  O cansaço providencial avança.
Os comutadores da "grande máquina"  redimensionam as capacidades.  A apatia instala-se.  Há uma resignação latente, no cansaço prevalecente.

Vou-me confrontando mais e mais com tudo isto.  Diariamente.  Com uma violência atroz.  Demasiado longa ...
Para se viver não basta acordar, respirar, comer ... dormir, outra vez.

A minha mãe assim mo lembra, por cada dia em que nos falamos.
E quem sou eu p'ra lhe dizer que terá que entender que a realidade é aquela que a confina a um sofá, uma cadeira de rodas ... uma cama ?
Que autoridade tenho eu, que entro, que saio, que corro, que vou e que venho , para lhe dizer a ela que está frente a uma parede cujos desenhos do papel que a revestem, já sabe de cor e já contou mil vezes ... que tem que aceitar, e ... conformar-se, talvez ?
De que audácia disponho, para lhe falar em pessoas bem novas, reduzidas a um vegetar em vida ? Como se isso a compensasse da sua ... que não o é ?!
Para lhe apelar que pense em tantos quantos, bem ao nosso lado, vivem a conformação da inalterabilidade de uma morte lenta e dolorosa ?
Que atrevimento me toma para lhe dizer, às vezes já cansada e agastada, que deve tentar distrair-se com uma televisão que desliga ... porque está farta?
E que devo responder-lhe quando me diz que todas as noites pede p'ra "se lembrarem dela", porque não quer este fim de uma vida tão longa, a custos tão elevados ?

O fim de qualquer coisa, sempre é estranho..

Por que, ao longo das nossas vidas temos que conviver com sucessivos epílogos, sem remédio ou justiça?
Por que nos confrontamos, tendo que aceitá-los e ultrapassá-los com toda uma resiliência de que nem sequer dispomos, tentando minorar-lhe os danos colaterais ?
Por que nos lança a existência, sucessivos desafios de perda e devastação irremediável ?

E há que seguir.
Há que continuar, remediando as escoriações, reunindo os cacos, suturando os rasgões, embora saibamos que não mais seremos os mesmos.
O caminho é longo e pedregoso, os pés retalham-se ao percorrê-lo ... a alma dilacera-se ... o coração sangra ...

O fim de qualquer coisa, sempre é demasiado estranho !  Irremediavelmente estranho !...

Anamar

domingo, 2 de outubro de 2016

" OUTONO OUTRA VEZ ! "




Anoitece mais cedo.  Sente-se bem que os dias encurtaram.  O sol busca o horizonte bem antes do que há escasso tempo atrás.
A sua luz já não é igual.  É uma luz mais doce, mais dormida ... mais mansa.
Parece convidar a um regresso a casa, desvenda o segredo dos primeiros fins de tarde outonais.  E tem a cor desses fins de dia.  Tem os seus silêncios, a sua cumplicidade, a sua interioridade...
É um sol que me fala de saudade, que me fala de solidão, que me fala de abandono.
E do cansaço que me invade, também.
E eu tenho infinita saudade ... de tanta coisa que foi e não é mais.  Saudade de tudo ... indistintamente.  Saudade de mim !...

Eu pensava que depois de se morrer, não se podia morrer mais.
Mas pode !
Pode morrer-se e ir-se morrendo aos poucos outra vez ... Todos os dias um pouquinho.

Aqui por cima, uma gaivota sozinha, aproveita os golpes da aragem na demanda do poiso de pernoita.
Sozinha ... não voa, deambula em balanço de jeito de maré.
É a hora da passagem.  O dia cede lugar à noite, a luz à escuridão, os sons ao silêncio.

Saudade ... esse tormento de passado que se quer tornar presente, em vão !
Esse tumulto de labareda e chama desgovernada !
Essa espada que se enterra indiferente, mais e mais, dilacerando, despedaçando, cortando.  Até às fímbrias da alma ... insensível, distante ... surda !
Essa coisa desobediente e carrasca que não obedece à lógica, à sensatez, ao pragmatismo.  E nos fragiliza e desfaz por dentro.  E mata ... outra e outra vez !

Entretanto o Outono chegou.
Sinto-o, mas acho que já não o descrevo.
Há muitas emoções que percebo indizíveis em mim.  Como se me tivessem embotado o coração.
A vida endurece as pessoas.  Insensibiliza-as.  Amorfiza-as.

Lá longe adivinho a serra, nos verdes-musgo, nos ocres, nos vermelhos e nos castanhos de partida.
Sei-a e cheiro-a, como se lhe calcorreasse as veredas, de novo.  A caruma espalha perfume pelos córregos.
Os ouriços dos castanheiros bravos, dependuram-se, e abandonam o recheio.  Breve, as castanhas a assar,  voltarão a trazer-nos a intimidade de dias conhecidos.

Lá longe ... no fim do meu sonho, está aquela casinha que inventei.  Vejo-a, nas résteas de sol de fim de dia ...
Uma porta, duas janelas, uma lareira que haverá de fumegar, uma cancela de aldraba ferrugenta ... trepadeiras que já não florescem, em fim de estação ... margaridas em bordadura de beira de caminho ... e o areão que estraleja debaixo dos pés ... estrada abaixo ... sobre a arriba ...
E o interior ... ah, o interior também o vejo, pejado de sonhos, de emoções e de afectos ... entre palavras ditas e palavras apenas adivinhadas, em sussurro.  Entupido de esperança e de paz !...
E oiço claramente os acordes de Beethoven,  nas teclas do piano imaginado, nas noites de silêncio !
Porque eu sou livre de inventar ... e uma inveterada sonhadora !...
E aos loucos sempre se perdoa tudo ...

Lá longe ... depois da serra, o mar  braveja em areais que não pisei.
As rendas deixadas na areia, são véus largados que se fazem e desfazem, no capricho das marés.
A brisa que volteia traz histórias de marinheiros ausentes, e as gaivotas brincam de nostalgia de fim de Verão.

Mas tenho a certeza que agora é que se preparam p’ra serem felizes.  As praias ficam desertas, a mansidão dos mares da estação finda dará lugar às borrascas desafiadoras,  o silêncio irá imperar ... e vão restar-lhes as falésias.
E as gaivotas amam as falésias, amam roçagar a crista alterosa das ondas endiabradas, amam o desafio tentador dos ventos desgovernados que aí vêm ...  E amam ser donas das areias vazias e dos céus sem limites ... livres ... mais livres do que nunca !

É assim o Outono !

Sempre me mexe e remexe.  Sempre me envolve numa melancolia adocicada e morna ... como um agasalho promissor que me desse ninho !

Anamar

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

" SETEMBRO "



Lá longe, ao cair da tarde
uma paz me invade
me pega e me embala ...
e cala
os tormentos da vida ...
Como em despedida,
os silêncios meus
se pintam de sombras,
de cores de doçura,
de sonho e candura,
e sobem aos céus
dizendo um adeus
ao dia que parte ...
no cair da tarde ...

Tempo generoso
de fruta e de pão,
ninho e aconchego,
meu sono e sossego,
fechando o Verão !

É assim Setembro ...
é assim que eu lembro
os dias de então !
Dourados momentos
felizes,  plenos ...
quando a quietude me invadia a alma,
o coração esperançoso sorria,
e a mágoa partia ...

Hoje,                                    
o peito cansado e doído,
na tarde se acalma
ao lembrar o que era ...
Era assim Setembro,
no meu coração,
uma Primavera !...

Anamar

terça-feira, 30 de agosto de 2016

" BEM HAJAM ! "



Atingi as 50000 entradas, aqui no meu blogue, e não posso obviamente ficar indiferente a isso.

Começado há uns anos, meio a brincar, meio a sério, tem mantido até hoje as características que intrinsecamente  sempre o nortearam : é fundamentalmente um espaço intimista, um espaço privilegiado de diálogo comigo mesma, de reflexão ... também de escape.

Nesta vida de individualismo feroz e indiferente, de falta de tempo e disponibilidade para partilhas e encontros, de egoísmo e desumanização, a solidão deixa as pessoas mais e mais confinadas a células anónimas, isoladas e esquecidas.  Ilhas no meio de multidões !
Vive-se, sobretudo na cidade grande, num abandono infinitamente maior ao experimentado nas aldeias mais inóspitas e perdidas.
Porque aí, as comunidades, independentemente da sua dimensão, são gregárias, são familiares, são de dimensão afectiva.

Aqui, vive-se o silêncio, o esquecimento e o abandono.
Aqui, sobrevive-se ...

Por isso, este espaço é também um espaço de afectos. Assim o pressinto e assim o entendo.
Os afectos sem rosto, nome ou rótulo que se expressam por todos quantos, anonimamente o buscam, o lêem, com ele talvez se identifiquem.
Resta-me pois registá-lo, congratular-me e agradecer !

Tenho produzido muito pouco nos últimos tempos.
Parece que estou a desaprender a escrever ...
A vida e eu, há largo tempo, não estamos a falar a mesma linguagem ...  A desesperança e o cansaço instalam-se.
Tempos difíceis estes ...

Reitero assim os meus agradecimentos a todos vocês, aí desse lado, nesse universo anónimo do virtual, vocês que por momentos vão cruzando as vossas vidas com a minha, neste destino que se faz e que se cumpre !

BEM  HAJAM !!!

Anamar

sábado, 20 de agosto de 2016

" AQUELE MENINO "




O Kiko fecha o ciclo agosteiro de aniversários, por cada ano.

Há nove anos que está connosco, e é o terceiro de três irmãos em escadinha de três anos, como já contei muitas vezes.
Chamei-lhe uma vez, um "menino light".  De facto, não encontro outro vocábulo que melhor o defina.
O Kiko acorda a sorrir, vive a sorrir, não há o que o apoquente ou faça mudar de humor.
Conversador permanente, inquisitivo, extrovertido, defensor das suas ideias, tem uma preocupação constante em ser pormenorizadamente claro no que expõe.
Reúne e cerca-se de um fã-clube interminável, de adultos a crianças.
Amigos dos pais, amigos dos irmãos, amigos seus, do colégio, do desporto, de todo o lado ... Ninguém consegue ficar indiferente à simpatia cativante daquela criança !
Desinibido, interessado, participativo, é o produto final da "escola" recebida de dois irmãos mais velhos.

Tudo tem sido simples, na educação do Kiko.
Afinal, é o terceiro filho, e os pais, nestas circunstâncias, já "descomprimiram" das ansiedades e obsessões excessivas, com que normalmente educam os primeiros.
Também, a experiência acumulada com as primeiras crianças, mais alguns anos que já passaram entretanto, um acréscimo de maturidade e sabedoria, normalmente facilitam as coisas, e desanuviam esta nova experiência.
Quem beneficia são, em primeira linha, obviamente os miúdos, mas também os pais e a relação de convivência existente entre todos.

Penso por isso, que de alguma forma, o Kiko é possuidor de um certo "know-how" facilitador, por ter sido criado mais solto, por ser chamado a resolver-se, resolvendo as situações, por ter percebido desde sempre, que a divisão de tarefas, a interajuda, a colaboração participativa de todos e a responsabilidade individual, são a chave da felicidade e de uma vida mais simples, equilibrada e inteligente !...

Este ano, no regresso das minhas férias, tinha o Kiko à minha espera, no aeroporto.
Ele a irmã correram a dependurar-se do meu pescoço ... e de imediato, esqueci o cansaço da viagem !!!

O Kiko trazia debaixo do braço, um jornal desportivo, e resolveu aproveitar o meu regresso a casa, para me actualizar sobre as "últimas" do seu Sporting : as transferências de jogadores importantes do plantel do clube, ora a decorrerem ... Mais me informou, de uma forma exaustiva, das suas preocupações com as inerentes conseqências,  monopolizando a minha atenção para o que reportava como muito importante !!!...
Era quase um homenzinho a falar !!!...

Este é o Kiko ... o puto mais bem disposto que conheço, o menino de sorriso franco e aberto, face a tudo o que o rodeia !

Hoje é o seu dia.
Que seja mais um dia feliz, na senda de todos os que a vida lhe reservar ... é o que daqui, embora longe, lhe desejo e vaticino !

UM  BEIJÃO, meu amor !

Anamar

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

" PARTIDA " - dedicado à Lena ... talvez a minha melhor amiga






"Abençoados os que possuem amigos, os que os têm sem pedir, 
porque amigo não se pede, não se compra, nem se vende ...
Amigo, a gente sente ! "

                                  Machado de Assis



Olhei p'ra ti, e pensei
que num dia que eu não sei,
tu vais estar à minha beira ...
E "irmãs" que fomos em vida,
nessa hora de partida
vais velar-me a cabeceira ...
Nos caminhos deste mundo,
tanto desgosto profundo
ajudaste a suportar
E tacteando o destino,
como a um eterno peregrino,
deste a mão no caminhar ...

Os amigos que se escolhem
são irmãos de coração...
companheiros de caminhada
círios a iluminar a estrada,
sempre nos erguem do chão !
São esteios que a vida nos dá
São faróis e são abrigos
São ombros e são bordões
São risos e são canções ...
Simplesmente ... são AMIGOS !...

E o dia será igual ...
Terá céu e terá mar ...
as estrelas irão subir,
a lua deita a dormir,
nunca nada irá mudar !...
E a gente ri, ou chora
com a indiferença da hora ...
Não será essa a razão
que a possa deixar mais triste ...
Não sabe sequer que existe
de partida, um coração !

Anamar

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

" A DESCIDA ÀS PROFUNDEZAS "




Os mistérios insondáveis da  memória humana são algo que me assusta  mais e mais, à medida que a vida se desenrola.
É perturbador mergulharmos nela, como um espeleólogo que busca a profundidade, neste caso, da alma.
Surge como um túnel mal iluminado, que se aprofunda e agiganta.  Surge como uma passagem entre pontos de acesso quase inatingíveis.

Se recuarmos no tempo e tentarmos escalpelizar os lugares que buscamos, com o avanço dos anos, uma cortina entretecida em teia opacizada, vai inviabilizando progressivamente, esse desiderato.
Refiro-me a memórias de passados recentes, porque persistem sobretudo apenas, os mecanismos da memória longínqua, explicáveis à luz da ciência.
A medicina sabe claramente, por que as memórias mais recentes se apagam, e de uma forma aparentemente ilógica, as memórias distantes emergem com uma nitidez e clareza que confundem.

A minha mãe caminha para os noventa e seis anos.
Este fim de semana ficámos juntas.  Conversámos longamente.
Tem demências pontuais.  Tem confusionismo, obscuridade no conhecimento e na linguagem, a acentuarem-se em progressão.
Procuro situá-la, pela conversa.  Procuro referenciá-la, buscando pessoas, lugares, acontecimentos significantes, que vivenciou e lhe foram importantes.
Procuro "escavar"  no seu cérebro, momentos, ocasiões, factos, coisas, emoções, afectos ... lugares.
E como um escafandrista, trazê-los à tona da sua memória, tentando envolvê-la nos resquícios dos registos que possam existir.
Tento deitar-lhe laços, bóias, cordões que a reabilitassem, aqui e agora.

A minha mãe fala com uma nitidez e uma clareza impressionantes, sobre realidades da sua infância e juventude.
Projecta-as na actualidade, indistintamente, sem balizas ou impedimentos, sem triagens ou capacidades interpretativas.
Faz um "mix" desconexo e doloroso, que toma como real e actual.  Uma espécie de filme em rewind.
Sem noção de tempo ou espaço.  Sem noção de passado ou presente.

Em contrapartida, as suas experiências recentes, memórias de um passado próximo, estão totalmente deletadas na sua cabeça.

E é dolorosíssimo, destruidor, aterrador mesmo, assistir ao esforço supremo que exercita, para pescar tudo o que lhe ficou num mar de profundidade inalcançável.
É duma violência sem tamanho o seu "esgaravatar" mental, para tentar alcançar de novo o significado de coisas que lhe foram perfeitamente familiares e queridas.
É desesperador assistir à incapacidade de afastar as cortinas tenebrosas que inapelavelmente lhe cerram a memória, e lhe barram o caminho de acesso aos recônditos da mesma !

A minha mãe sempre amou e sempre se rodeou de plantas e flores, muitas delas, por si plantadas.
Tratava-as, acarinhava-as, desvelava-as com um esmero sem tamanho.
Em cada palmo de terra, dispunha uma sardinheira.  Em cada canto cuidava uma buganvília, uma glicínia, um hibisco ...
Nos últimos anos viveu numa casa com jardim, onde podia para felicidade sua, desfrutar de uma qualidade de vida que a preenchia plenamente.
Lá, a minha mãe apenas lembra que foi feliz.  Como um sabor impreciso que fica, de uma iguaria que já engolimos ...
De lá, tem imagens ténues e esbatidas, como manhãs de nevoeiro, que por mais esforço que façamos, nos impedem de divisar mais além ... com definição ...
Apenas isso !
E quando tento que recue e desencave  uma centelha da felicidade que experimentou, quando tento que abra uma pequena fresta que lhe permita espreitar lá atrás ( como uma cortina que pudesse correr, deixando livre o olhar e deixando a memória saltitar ) ... perde os olhos no vácuo, fecha o rosto para lá da distância, afasta-se ... à medida que as lágrimas lhe escorrem ...

"Tenho tanta pena de não me lembrar !" ... diz.

E eu fico perplexa.  Sinto uma revolta sem tamanho face à injustiça da vida.  Sinto um pavor que me tolhe e domina ...
Será que eu também vou perder as minhas memórias ?
Será que eu também vou perder a minha identidade ?...
Sim, porque nós somos as nossas memórias !
Como é, caminhar de olhos vendados ?  Como é, ter que progredir no escuro, sem norte,  bússola,  estrelas ?   Como  é,  estar  largado,  sem  referências,  sem  rumos,  nortes,  sentidos ???!!!!

Tudo isto me consome.  Todas estas interrogações me atormentam.  Todos estes medos, me povoam.

Os pais partem,  E é quando sentimos a proximidade desse desfecho, que concretizamos que nós mesmos estamos caminhando logo ali atrás, tomando simplesmente lugar na calha que avança ... inexoravelmente !!!

Anamar

sábado, 13 de agosto de 2016

" ESTE INESQUECÍVEL MÊS DE AGOSTO "




Foi um Agosto tão quente quanto o que ora se vive.

Lembro que por esta altura, eu já não me mexia, arrastava-me.  Na cama, não me voltava ... rebolava. Tinha um "barrigão" daqueles, que para olhos sabedores, vaticinava a chegada de um rapagão.
Barriga de primeira gravidez, numa altura em que o controlo do peso não parecia ser coisa preocupante.  Comer por dois ... era ainda o lema !

Ecografias não existiam. O sexo da criança haveria tempo de saber-se.
Menina era o que eu queria ... menino, o que as pessoas afiançavam iria ser.
Pelo sim pelo não, roupinhas em defensiva ..
Nada de muitos rosas ou azul-bébé comprometedores.  Uma coisa assim mais para os azuis escuros, vermelhos, amarelo pintainho que eu detestava, ou mesmo verde, o que era pior ainda !...

E Agosto contemplou o meu desejo.  Uma rapariga com quase três quilos e meio, caíu-me no colo !
Uma menina de porcelana, de cachos loiros e olhos verdes. Uma boneca, para os meus vinte e dois anos ...

Muitos anos já passaram entretanto ...
Esta história já contei vezes de mais !  Mas sempre me enterneço ao relembrá-la ...
Agora ela aí está, mãe por três vezes ... duas delas em Agosto !

Somos uma família mínima, hoje em dia.  Sete pessoas apenas, que se ligam estreitamente por laços de sangue ... Três, a aniversariar em Agosto !

O António, o primogénito da escadinha dos três, não foi de modas.  Escolheu o dia do aniversário da própria mãe, para também ele, conhecer este mundo.
Assim, o 13 de Agosto traz-me o "pack" duplo !

Quando o relógio marca   00 : 00 , sempre  telefono. É tradição cultivada .
A mãe diz-me : " Já são muitos, mãe !"...
O António surge-me do outro lado, com a voz totalmente mudada, nos seus quinze anos.
Voz de homem num rapazinho de corpo espigado, quieto, de poucas palavras.  
" Obrigada, avó" ... em escala de graves... ( rsrsrs )
Idade complicada esta !...

Fiquei meio sem jeito.
Onde está o menino que eu adormeci, para quem tocava os discos infantis, o menino também ele loirinho, em fotocópia impressionante da mãe ??!!!
Por onde ficou aquela criança que me povoa a memória e que não consigo já sobrepor a este jovem, que tenho à frente ???!!!

O tempo !...
O tempo vai contando as histórias, vai fazendo as vidas, vai-nos deixando assim, meio perplexos, atontados, gostosamente estupefactos e enternecidos, como se de repente, sem que o tivéssemos percebido, os caminhos se tivessem desenrolado  à nossa frente, embora à nossa revelia ...

Parabéns Cláudia !  Parabéns António !
Prometo ficar mais atenta, para que não me cresças assim, como se eu não desse por isso, e nem sequer tivesse sido convocada para esse milagre !!!
Dia imensamente FELIZ para os dois !

Anamar

domingo, 7 de agosto de 2016

" CONFISSÃO "




Hoje
Preciso de uma festa urgente ...
Eu preciso de um abraço
preciso de um beijo doce
de um macio toque de pele
de repousar num regaço !
Preciso de um ombro forte
de palavras que me aninhem
de ouvidos que me escutem
de calor que me renasça
de braços que me acarinhem ...

Hoje ...
Preciso de alguém que me mate
a dor desta solidão,
preciso quem me transporte
de novo à vida,
e dê norte ...
me aquiete o coração ...
Preciso de quem me ampare
e reerga da canseira,
quem oriente no escuro
o meu caminho sem rumo ...
Quem se deite à minha beira
e me ame
e me proteja ...
Quem dê colo
e quem dê ninho ao meu coração partido
Me fale outra vez de amor,
p'ra que eu volte a acreditar
que a vida tem um sentido !

Hoje ...
Quero quem me traga uma rosa
orvalhada, do jardim ...
quem me adoce este amargor ...
À minha dor dê um fim
e silencie o meu grito,
ao beijar os lábios meus ...
Quero quem deite na alvorada
a cabeça repousada
e comigo suba aos céus
p'ra catar estrelas e luas,
apanhar sóis e cometas
receber a lua cheia
com tímbalos, aulos,  trombetas ...
Quem comigo ouvir o rio
ou a água da nascente,
quem souber olhar o sol,
a tombar pelo poente ...
Quem desça comigo ao mar
a visitar as marés
Quem comigo naufragar
sem sequer o lamentar,
tendo por guia os meus pés ...
Quero quem fale a minha língua ...
( a das aves lá da serra ... )
quem saiba sujar os pés
com a  poeira da terra ...
e ame só por amar
e bendiga o amor meu ...
Eu preciso quem agarre
a criança que há em mim
e me leve a caminhar
nesta estrada sem ter fim ...
Porque

Hoje ...
Estou exausta
estou sem força
estou sem caminho
e sem chão ...
Preciso de um beijo doce,
de me embalar num regaço ...
de um macio toque de pele
que me acalme o coração ...
preciso de uma festa urgente ...

eu preciso de um ABRAÇO !...

Anamar

" O MENINO QUE ( NÃO ) VENDIA COCOS



Fernando é um menino de 15 anos.  O "maior" de cinco irmãos que vivem "lá longe" .

Todo o santo dia caminha para a praia onde se abriga do sol implacável, na sombra dos coqueiros e dos caroceiros que se espalham p'la orla .
A sua banca é uma grade vazia de garrafas, e o seu negócio são os cocos que vai apanhando no coqueiral.
Quando o sol abate um pouco, coloca-se na linha de passeio de quem busca a frescura das águas mansas, na linha da brisa doce que passa, na paz do silêncio da mata e espera ... só espera.

O Fernando quase não fala.  Está por ali, na esperança de vender um ou outro coco, que não vende ... raramente vende.

No primeiro dia que por lá passei, olhou-me e apontou para os cocos.
"Não gosto" ! - respondi.  E tentei continuar a caminhada.
Estendeu-me a mão em jeito esmolar.  "Não tenho dinheiro comigo" ! - voltei a responder.
Então, de uma forma meio imperceptível, pediu-me "comida" ... e apontou para a boca.
Um sorriso tímido aflorou-lhe o rosto.

Senti assim uma espécie de soco no estômago.  De facto, junto de si, dia após dia, percebi que o Fernando apenas tinha  um recipiente com água, e claro, os cocos ... que seriam para vender.
E contudo, ali ao lado, paredes meias com a sua solidão e abandono, um esbanjamento louco, num hotel onde há de tudo, sem tamanho nem medida ...

Comecei a parar, nos meus passeios diários.  Tentei saber um pouco mais daquele menino que tem a idade do António ... Inevitável associar ...
Não sabe ler, nem escrever, nem contar.  O peso do mundo cai-lhe nas costas ...
Passei a levar-lhe um lanche, diariamente.
O Fernando vive de silêncios.
Sorri timidamente, os olhos brilham-lhe quando me avista e repete apenas : "Gratias, gratias" !...

No dia do meu regresso a Portugal fui despedir-me dele. Dei-lhe um beijo, desejei-lhe a felicidade possível na sua vida ... Pensei incentivá-lo a ir para a escola, mas depois pensei quão absurdo seria fazê-lo !  Quase um atrevimento descabido, no contexto da vida de uma criança que vende cocos na praia, como forma de ajudar a família, ou quem sabe, simplesmente sobreviver ...

Pensamos que conhecemos tudo, que sabemos muita coisa, que já pouco nos pode surpreender.
Mas quando somos confrontados com uma realidade de contornos tão duros, violentos e injustos,  uma realidade tão desinserida, felizmente, das nossas vivências diárias de que reclamamos frequentemente, é que percebemos mais conscientemente a real dimensão das clivagens sociais, por este mundo fora, e como elas roubam indiscriminadamente os sonhos, os direitos e a vida até mesmo a um menino ...

O Fernando pouco terá de seu.  Tem contudo uma alma pura e um coração generoso, que eu sei.
Na concha da sua mão guardou meia dúzia de búzios pequeninos que apanhara na franja da beira mar. Fez questão de mos oferecer, como despedida.
Essa, a sua forma de me retribuir o pouco que com ele partilhei, em troca da sua imensa lição de vida !

Anamar