domingo, 2 de julho de 2017

" VAI-VEM DE MARÉ ..."




Hoje  estou  melancólica.
Sinto-me um pouco perdida no emaranhado da minha vida, como uma aluna frente a um manual sem saber bem encontrar-se no meio de tanta informação a reter.  Uma aluna dispersa, sem bem perceber onde se encontra a ponta da meada a desenlear.

Tenho escrito pouco, tenho reflectido pouco, deixei de me encontrar em tardes longas e desocupadas por aqui, perante mim, perante as minhas ideias, os meus pensamentos, as minhas angústias e preocupações, as minhas dúvidas e perplexidades, os meus sonhos, as minhas lembranças, também dores e sofrimentos ... também alegrias, obviamente.
Deixei de ouvir longamente Énya, em tardes ociosas, enquanto o sol me descia no firmamento frente a esta tribuna, sobre o casario que preguiça até Sintra.
Deixei que a vida me fosse atropelando a um ritmo que as minhas "pernas" já não acompanham ...
Demasiadas coisas acontecendo aqui ao meu lado, como avalanche de torrente que engole e leva das margens, as folhagens distraídas ...
Um turbilhão de sentires, diversos, esparsos, confusos, em atropelos ... que não me folgam e não me param, para sequer os assimilar, interiorizar, incorporar, vivenciar ...
A minha vida mostrou-se um remoinho de rio caudaloso, com a força imparável e cavalgante de águas impiedosas ...
Uma entropia estranha e avassaladora tirou-me os tempos de paragem que me eram vitais ao equilíbrio.
Portas fecharam, portas abriram, esquinas foram dobradas, rotundas estonteantes foram rodadas, ondas encapeladas de incertezas incómodas me enrolaram na areia da rebentação ... quase não me deixando vir à tona, respirar ...
Tudo isso num rompante louco de montanha russa, de voragem temporal, de realidades que não batem à porta para se instalarem.

O meu mundo, de dúvidas, encruzilhadas, "nieblas" pairantes  mas sabidas, tem-me amanhecido com madrugadas novas, de novos cheiros, novas cores, novos sons e claridades.
E como alguém que poisasse numa terra que não aprendeu, como alguém que dispusesse de roupagem desmedida, sinto-me desconfortável, desajustada e com uma canseira no coração e na alma, que me desconserta.

É sabido que novas vivências repentinas e inesperadas, sempre deixam o ser humano fragilizado, no vencer de inércias, quase sempre insatisfatórias, contudo cómodas ...
E a minha vida tem-se pautado por um mar flat, agitado repentina e inesperadamente por ondas alterosas de  marés.
Não é, nunca foi, uma vida cinzenta de rotinas e repetições.  Eu própria, convivo mal com tudo o que se repete, se decalca, se instala.
Por personalidade, sou uma alma inquieta  em turbilhão, que lida mal com tons "pastel" ... que prefere "nuances" definidas, bitolas de tudo ou nada, de zero ou cem.
E por isso, cada readaptação a novas vidas dentro da vida, que foi ocorrendo na minha existência, implicou, ajustes, custos emocionais, conflitos interiores com dispêndio acrescido de sofrimento inerente... com desgaste pessoal, com desnorte de rumos ... com fins e recomeços difíceis ...

Cada nova e desconhecida etapa que chega, questiona o pré-existente, agita as águas,  revoluciona o instalado, desencadeia perdas e ganhos, opções, decisões, mudanças.
São períodos de aprendizagem, de crescimento, de mudança, nem sempre ... quase nunca, fáceis !

E tudo isto - quando  então o Outono já assoma , com as primeiras intempéries na vida -  se reveste de dureza acrescida,  com envergadura de desafio titânico ... e se mostra como  um esgotante vai-vem de maré !...

Anamar

domingo, 18 de junho de 2017

" HISTÓRIAS DE UMA TARDE SEM HISTÓRIA ... OU TALVEZ NÃO !..."





35º C dentro de casa !...

Sobrevivo, nem sei bem como !  Esta casa, nascente-poente-terraço por cima, último andar do prédio de sete, revelada uma bênção nos Invernos ... virou forno crematório no despautério desta tarde louca de Junho.

Deitei-me sobre a cama, numa letargia de doer.  Decidi que devo reduzir o metabolismo aos mínimos aceitáveis ... entrei em modo de hibernação.
Aliás, nem imagino que possa ser diferente !  Tornei-me um bicho hibernante.  Suponho que esse estado seja qualquer coisa parecido com isto ...
Simplifico os trajes ... reduzo os trajes ..... ou melhor ... tiro os trajes !

Os gatos pensam como eu, neste momento.  Há que sobreviver à boca da fornalha.
Deitam-se nas áreas em que o  chão é de de mármore, deitam-se no poliban ou no fundo da banheira, barriga para cima, uma pata para cada lado, coladinhos à coluna da sanita, às paredes de azulejos...
Desgraçadamente não podem largar os casacos de pele ... E como me sinto solidária com eles, e lhes lamento a provação !!!

A dor no meu braço é lancinante.  Do ombro à ponta dos dedos é uma faca espetada que se enterra por cada gesto que faço.  Tomo analgésicos, que também eles, parecem hibernantes no efeito ...
A música não me acalma nem me anima.
Como pode uma dor de braço, socar-me o estômago ao ponto de nausear-me ?!

A televisão não dá tréguas.
Traz p'ra dentro de casa o braseiro em que o país se tornou.
As imagens apavorantes de chamas que não se deixam controlar, aquece ainda mais o que me rodeia.
O ar rarefaz-se, o fumo sufoca-me, o terror invade-me ... e transporto-me para o "cenário de operações", como a comunicação social epiteta a cada momento, aquela porta do inferno !...

Todos os canais  em disputa alucinada, escalpelizam, pormenorizam sadicamente, exploram mais e mais todo aquele horror.
Todos dizem o mesmo, todos mostram o mesmo ... dez vezes, cem vezes ... acho que, mil vezes ...

A busca desenfreada e absurda do que foi, do que está a ser, do que poderia não ter sido ... se a Natureza não tivesse como sempre faz, imperado !...

E transporto-me por minutos a outras imagens iguais, repetidas, sempre aterradoras, sempre de sofrimento atroz ... E penso na Califórnia, e penso na Austrália, e penso na Madeira ... quando a bocarra das chamas também desceu, impiedosa e sempre varre  indiferente, tudo o que lhe faz frente ...
E revejo as imagens da floresta com árvores impotentes que se contorcem, com vidas que se incineram ...
E revejo o chão negro que resta, as imagens esfíngicas que sobram ... os animais que fogem sem norte, mas também os que ficam por ali mesmo ... a dor da perda, seja de que ser vivo for ...
E revejo o esgotamento e a exaustão de todos a quem o dever de filantropia, de solidariedade e de fraternidade, empurra lá p'ra frente, leva ao limite do lamber das chamas ...

E penso neste planeta, casa-mãe-berço, que nos acolhe e que o Homem gratuita e inconsequentemente destrói, em nome da única coisa que lhe faz sentido ... o dinheiro e o poderio ...
Na maior indiferença, irresponsabilidade e leviandade, continua a eleger para os seus destinos, criminosos, bandidos, arrogantes, ignorantes, omissos  e maquiavélicos ...
E a Natureza, destino perfeito que nos foi legado, é agredida, vilipendiada, trucidada ...

E o clima adultera-se, as temperaturas alucinam, os degelos ameaçam, as estações inexistem, as águas subirão, a desertificação prenuncia uma morte anunciada para muitas zonas do planeta ... Paraísos extinguir-se-ão, espécies desaparecerão para sempre ... E um dia, nada restará para contar !!!

35ºC dentro de casa !

Deixem-me ficar com a paz deste poema, com a frescura destas imagens ... com a esperança de um sonho que eu inventei !...

Anamar

quinta-feira, 15 de junho de 2017

" A RIQUEZA DA VIDA "




Hoje amanheci mais rica !

Às 6,20 h de uma madrugada ainda obscurecida mas já anunciadora de um dia radioso e iluminado, o meu clã fortaleceu-se com a chegada da Teresa.
A Teresa é o mais novo elemento do meu grupinho do coração ... os meus agora quatro netos, divididos harmoniosamente em dois casais. O António, quase com 16 anos, a Vitória com 13, o Frederico com quase 10 e agora a Teresa, que ainda mal abriu a pestana a um mundo que não sabe nem sonha !

Nasceu pequenina, rosadinha, bochechuda e com um apetite invejável.  A Teresa, prevista para o próximo dia de S.João, decidiu apressar o caminho, e presentear-nos com a sua chegada, a tempo de dar os parabéns à prima ... a Vitória, que aniversaria exactamente hoje também !
Raparigas portanto, em consonância !...
Cá p´ra mim, determinadas, resistentes e decididas !
A Vitória assim o é.
É uma pré-adolescente alegre, desinibida, determinada, comunicativa e sempre bem disposta.
É uma jovem responsável e independente, numa família em que está "ensandwichada" entre dois rapazes.  Na vida escolar,  é metódica, organizada e esforçada, e no desporto que privilegia, tem um desempenho louvável e meritório na área da ginástica, mas sobretudo no judo onde tem um futuro promissor, acredito.
A Vitória é uma leoa no coração e na dedicação ao que mais gosta de fazer na vida.

A Teresa, com uma gestação conturbada e preocupante, com parâmetros vitais ao longo dos tempos potenciadores de uma angústia, receio e apreensão em todos nós, e após uma indução do parto de dezassete horas, que obviamente exauriu a mãe, surgiu fresca e fofa, lépida e fagueira a desafiar a vida de frente ...
Pés grandes, prenunciando estatura alta ... dedos compridos em mãos secas e esguias de "pianista ou escritora"... ( ahahah ), boca bem desenhada, pequena e carnuda que promete despautérios e sobressaltos futuros ... uns pulmões que desafiam a robustez de qualquer tímpano ... uma avidez no mamar que não aceita negas ... mostram que a Teresa é afirmativa, lutadora e convicta !...
A mãe já diz : "não gosta de ser contrariada !"... o que me deixa uma perplexidade atroz ! ( ahahah )

Em suma ... a Teresa já mostrou ser uma guerreira, uma lutadora ... quem sabe também, uma sonhadora em potência ?!

E por tudo isto, e porque a riqueza das nossas vidas é por aqui que passa ... e porque são e serão eles o nosso "eco"no amanhã ... é que hoje amanheci mais rica, mais disposta e feliz !
Resta-me desejar que os caminhos a serem percorridos lhes sejam mansos ... que reúnam a força e a coragem para sempre alcançarem os horizontes que as desafiem ... que a tenacidade e a confiança lhes norteiem os dias ... que a esperança e a fé no acreditar, as não abandonem ...
... porque sempre, a Vida será de quem OUSA !

Anamar

sexta-feira, 9 de junho de 2017

" ACHO QUE FOI UMA COISA DE PAIXÃO ... "





Portugal está na moda e Lisboa está um deslumbre !!!

Pude constatar isso ontem, quando, fazendo tempo para uma conferência sobre o Testamento Vital, me passeei sem rumo ou hora, pela baixa pombalina.
A luz e a cor daquela cidade, fazem-nos sentir de facto, "em casa".  Numa casa que não se explica, não se define, não se iguala em lugar algum do mundo !

Rebolando colina abaixo, espreguiçando a sua vaidade no azul do Tejo, de águas mansas e doces, Lisboa é um convite permanente, um desafio inquestionável, uma sedução única ... um caso de amor !
Os cheiros, os sons, a claridade de um sol generoso, são pintura em 3D, feita por Pomar, por Cargaleiro, por Almada, Vieira da Silva ... por Maluda...
A brisa que lhe despenteia os cabelos, perde-nos o olhar na embocadura daquele rio, lá longe, na linha do horizonte, e o sussurro das tágides que por ali deambulam, transporta-nos oniricamente ao tempo em que o Cais das Colunas albergava mais que turistas, gaivotas e sonhos de marinhagem ...

E os olhos perseguem o volteio daquele palmípede residente, acompanham o grasnido das gaivotas e o arrulhar dos pombos naquela praça, donde tantos e tão valorosos nos levaram mais e mais, mundo fora !
E recreava-se sem esforço de imaginação histórica, a azáfama desses tempos.  Ouvia-se o ranger do cordame das naus aportadas.  Sentiam-se a ansiedade dos que partiam ... a coragem também dos que ficavam ...

E estava tudo por lá, que eu garanto !

E havia uma serenidade por entre o "brouhaha" dos passantes.  Havia um silêncio que apagava os desmandos civilizacionais dos excessos.  Havia uma gargalhada descarada, de Lisboa-menina a sentir-se desejada, cobiçada, amada ... como mulher, travessa, provocante e ladina !...

No alto, em coroa de glória, o Castelo assomava.  Os jacarandás em flor neste Junho lisboeta, exibiam o lilás dos seus cachos pendentes, nas praças e nas avenidas.
O "mestre" continua a acenar do Martinho, ou refastela-se pelo Chiado, na saudade de um café na Brasileira ...
O "manto diaphano da phantasia" continua cobrindo a nudez forte da verdade, de um Eça que por ali perambula ... e Camões lembra o que é / foi, ser português ...
O Adamastor desafia os mares, desde o cocuruto de Santa Catarina e o Santo António está aí, para nupciar uma outra vez, com a mulher que sempre lhe é fiel : Lisboa !
Tudo se prepara já.
Os festões, as grinaldas, os balões, os arcos e os tronos, abrem os bairros ao olhar enternecido de quem por eles se passeia.  As marchas descerão às ruas, na ilusão de acontecimento único...
E o cheiro das sardinhas assadas, o aroma dos manjericos e a doçura das quadras de "pé quebrado" que os adornam, remetem-nos mais e mais para a "nossa terra", para a nossa genuinidade, para a nossa verdade !

E é um orgulho sentirmo-nos pertencentes a este chão, falarmos esta língua, termos o sorriso aberto e desarmado de corações hospitaleiros, vivermos a simplicidade  de  um povo sem pretensões ou sobranceria, termos a alegria de sermos simplesmente portugueses !

Afinal, aqui neste cantinho de uma Europa desarticulada, neste rectângulo de terra quase a despencar no Atlântico, temos a singularidade apaixonada dos povos latinos, temos o calor que de África nos aquece a alma, temos os sonhos de quem não desiste e a tenacidade de quem acredita !...

Lisboa, ontem, segredou-me tudo isto ao ouvido.
E a paz e uma tranquilidade promissora, tomaram-me e esperançaram-me.

Acho que se tratou mesmo de "uma coisa de paixão " !...

Anamar

terça-feira, 6 de junho de 2017

" ESTE MIX DIABOLIZANTE... "





Escrevo muito pouco, neste momento da minha vida.
Este estado de coisas acompanha-me há tempo de mais, se tivermos em conta que escrever, para mim, é absolutamente vital.  É tão essencial quanto o respirar, o acordar por cada manhã, o sonhar ... enfim, tão essencial quanto simplesmente o viver !...

Considero que os tempos que atravesso são os mais difíceis que alguma vez experienciei.  Sinto a vida com a indefinição de estrada sem sinalética, com a inevitabilidade de pântano sorvedouro, com a desesperança de deserto sem estrela que o norteie, com a escuridão e o frio de cela nas catacumbas ... com a tonteira de vórtice labiríntico que cansa, cansa e não resolve !
Luz, rumo, saída, destino ... não vislumbro !
Sou o animal acuado e acossado numa prisão de tempo, de sonho e de vontade !  Sou o náufrago que se digladia no cansaço da corrente, à espera de resgate que tarda.
E não sou guerreira ou resistente, como as pessoas dizem.  Não sou super-nada no encaminhamento dos meus dias ...
Sou simplesmente uma sobrevivente que esbraceja, nada mais !

E chega este tempo de Verão ... este azul embriagante, este sol luminoso, claro e promissor, este mar que vai e que vai além da vista, além da vontade, da imaginação, da saudade, pelo meio dos continentes, beijando outras águas, buscando outras costas, tocando outros horizontes ...
E com eles, eu vou, na procura de soltar o sonho, na ânsia de encontrar outras histórias, de ver outras gentes e de tornar pleno este invólucro vazio e asténico que carrego neste momento.
E tudo o que já pesa, se torna fardo para o que não há arcaboiço.  Tudo o que penaliza, se agiganta e torna insuportável.  Tudo o que descoloriu, vira cinza de terra queimada, e tudo é uma "judiaria" sádica e gozadora.
E fervilha-me a mente, e pula-me o coração, e esbugalham-se-me os olhos  ...
Olho enesimamente fotos de histórias vividas, de locais tatuados, de lembranças indizíveis,
Recordo com precisão o calor "daquele" sol naquele momento, a carícia "daquela" chuva doce, inesperada em tarde de trópicos, as cores "daquela" mata, "daquele" coqueiral, o pipilar dos pássaros no dealbar de cada dia, o volteio das borboletas em voos imprecisos, os sons e os cheiros gravados no âmago do coração ... E ressinto em mim a carícia dessa leveza vivida, dessa liberdade perscrutada, como embriaguês saborosa e desejada ... e esse nada existir além disso, esse tempo sem tempo, limites ou exigências ...

E este prurido cerebral inquieta-me, as batidas do coração aceleram e tudo se torna mais insatisfatório ainda.  Tudo se torna exponencialmente incompleto, insuficiente, apoucado !
Fugir ... eis o que me assoma ao espírito !... Fazer malas de sonhos, e partir ... por aí, sem rumo, endereço, ou destino ... eis o que me martela os ouvidos !...

E depois, a tortura do tempo a escoar-se... a tragédia dos dias que se sucedem vertiginosamente ... a dúvida e a incerteza do que resta, como resta, até quando resta ?!
A angústia do incerto e inesperado ... o medo das "nieblas" e a incerteza da sua dissipação, em tempo útil de alguma sobra prestável ...
A ânsia da rentabilização da qualidade que AINDA existe ... e a mágoa e o cansaço de alguém em fim de festa que rapa os resquícios doces de pratos em banquetes não usufruídos ...

Assim é, a minha vida hoje !...
Um "mix" diabolizante, quase indecifrável e irresolúvel, de puzzle com grau de complexidade superior ...
Um quebra cabeças meteórico e nostálgico ...
Um labirinto extenuante e exaustivo !
Uma teia esfarrapada sem conserto ou remissão completa !...
Uma prova de um esforço hercúleo, que não sei até quando terei força para enfrentar !...

Anamar

" MIRAGEM "





Aquele mar sem ter fim
já nada sabe de mim,
se sou nascente ou sou foz ...
Se acordo nas madrugadas
e imploro às alvoradas
que me tragam tua voz ...
É um mar que me rouba o sol
quando finda cada dia
e que é um espelho da lua
quando, louca rodopia
no silêncio das marés...
Quando a fadiga adormece,
o dia desce e emudece
e a noite cai-nos aos pés ...
É então que eu olho as estrelas
dormindo no firmamento
com cores doces de enfeitar
outros mundos, outras terras,
outros montes e outras serras,
outras canções de ninar ...
E o mar finge transportar
lá de longe o teu amor,
num embalo enganador ...
Sempre ficaste e eu partia,
cavalgando a ventania
e silenciando a dor !
Vi-o nos teus olhos verdes
com peixes de navegar
Vejo-o no fim do meu sonho,
espelha o meu olhar tristonho,
e nele quero naufragar ...
E aquele mar que é profundo,
traiçoeiro e mentiroso,
faz-me crer que estou contigo
no outro lado do mundo,
onde as ondas só brincavam,
onde o céu era de fogo
e as aves acasalavam ...
Indiferente e impiedoso
aquele mar foi cruzando
os amores que foram meus ...
Pelas marés foi levando
p'ra sempre o que fui sonhando
e jamais me pertenceu !...

Anamar

quarta-feira, 31 de maio de 2017

" ELEGIA DO AGORA "





Deixa eu chegar, amor
ao pé de ti de mansinho
e dizer devagarinho ao teu ouvido
"cheguei" ...
Vim embrulhada nas ondas,
na babugem da maré
Vim trazida pela aragem
que despenteia a ramagem
e cheguei pé ante pé ...
Não assustes o meu sono,
que é de sonho
e tem a cor da alvorada
Não apresses o meu espanto
e o encanto
de me sentir desejada ...
Não aceleres a vida,
pois a graça é a partida
seguida duma chegada ...
Não precipites a sorte,
nem busques demais o norte
na ânsia da caminhada !
Não te importes com o futuro ...
Seja duro ou prazeiroso
é gostoso de viver
Sorve o momento do agora,
pois o futuro, hora a hora
o destino o irá escrever ...
Deixa que a vida se faça,
vive-a como quem abraça
um ramalhete das flores
que atapetam os caminhos,
que encerram em si, carinhos
e renovam os amores !...

Anamar

quarta-feira, 10 de maio de 2017

OS MEUS " SILÊNCIOS "





Publiquei há dias um livro.  Um livro insuspeito ... de poesia... Todos esperavam um, de prosa.
Uma espécie de pirraça do destino, neste caso o meu destino literário.
Desde que me conheço mais ou menos, que sempre rabisquei nos papéis que me acompanham em permanência,  frases, ideias, textos, crónicas ...
Às vezes coisas terminadas, outras, coisas incompletas  para burilar, para repensar, para "mastigar" e "digerir", se for o caso.
O futuro ? É sempre incerto ! Algumas agradam-me e ficam ... outras têm um fim triste à espera !

De há uns tempos a esta parte,  reincidi, mas em poesia ... nunca lhe dando, contudo,  valor particular. Sempre achei que a minha expressão poética tem muito de "demodée", face às correntes actuais de escrita sem nenhum tipo de preocupação de rima.  Escreve-se quase sempre em texto poético e chama-se-lhe poesia.
Não discuto  nada disto.  Não tenho conhecimentos  literários de estilos e suas características, em profundidade suficiente que possa pronunciar-me.
Fui "formada" com poesia clássica ... vou chamar-lhe assim.  Florbela e os seus sonetos, uma inspiradora musa, sempre presente!
Assim me formatei, e assim comecei a dar pequenos passos neste mundo.
No entanto, sempre volto à mesma. Para mim, um poema tem que ter um ritmo melódico, uma "música" por detrás, um fundo de vai-vem de ondas no areal ...
Sem esse desiderato, dou a coisa por imperfeita e inacabada ... em suma, insatisfatória !

Ainda assim, e continuo surpresa com os acontecimentos, as críticas têm sido generosas e muito positivas! Quase me convenço que ... talvez ... quem sabe... eu esteja a ser redutora e implacável comigo mesma.

Bom, por insistência de amigos que me impediram de delapidar o incipiente entusiasmo inicial, lá publiquei o dito.
De seu nome "Silêncios", porque alberga dentro de si, estados de alma, sentires, emoções que não se descrevem de viva voz ... Que apenas se pressentem e adivinham nos longos silêncios que povoam a minha vida.
Por assim dizer, cada poema "de per si", fala da profundidade do meu "eu"  interior, e conduz o leitor, creio, exactamente à quietude da minha interioridade silenciosa, lá longe, naqueles recônditos lugares algo inacessíveis, que são o meu coração e a minha alma.

Fez-se uma festa ... e isso, foi de facto o grande prémio que me dei.
Dei asas aos sonhos, "viajei" na alegria de ter tido comigo quase todos os amigos, de longe e de perto que me estreitaram no laço de uma amizade que não tem tamanho, idade ou tempo ...
Senti-me menina mimada, acarinhada, embalada nos braços e nos colos de todos os que responderam à "chamada" ...  Foi uma felicidade só !!!
A festa fez-se de flores, fez-se de música, de risos, de sonhos ... e também de lágrimas. Muitas lágrimas correram ...
E esse 2 de Maio virou  uma das datas do meu calendário pessoal ( eu, que sou avessa às calendarizações oficiais impostas socialmente ), a nunca, nunca mais ser esquecida !

As pessoas parabenizam-me pelo sucesso ...
Sucesso ?  Não !  Apenas realização pessoal.  Uma espécie de realização de compromisso de mim para mim, uma espécie de concretização de alguma coisa importante, que se vinha adiando na minha vida ... tão só !

Como diria o Chico ... "Foi bonita a minha festa pá" !!!...

Anamar

" PEDAÇOS "




Os meus pedaços perdidos
andam aí pelo chão
Cada um guarda de mim,
das minhas "estórias" sem fim,
o que lhe coube em quinhão...
Pedaços da minha vida
Retalhos do meu sofrer
fui-os  dando por aí                
em sonhos que já esqueci,
nesta ânsia de viver ...
Dei o sorriso do rosto,
as mágoas do coração
Dei os braços que estreitavam
aqueles a quem amavam
e levantavam do chão ...
Dei o corpo e dei a alma
Dei amor e dei paixão ...
Fui dando bem ao meu jeito
rosas brotadas do peito
e floridas no Verão !
Deixei rastos e caminhos
Deixei marcas e pegadas
Andei estradas, lancei pontes
Busquei novos horizontes
com esperanças acreditadas ...
Isto foi p'ra mim a Vida
Dei-me inteira no amar
Fui vulcão e fui torrente
Sempre caminhei  em frente,
como o rio corre para o mar !...

Anamar

quarta-feira, 26 de abril de 2017

" A DESTEMPO ... "






A  DESTEMPO ...



O destempo do tempo da minha vida
é condenação por mim vivida ...
nunca nada é, se eu quero que fosse ...
É fruta verde de uma árvore que tombou
É flor de um jardim que alguém roubou
É dor enlouquecida amarga e doce

É chuva de Março no Verão,
que promete refrescar a solidão
mas que chega quando é hora de partida ...
É vento do deserto que me embala
descompasso em desespero que se cala
É franja de maré entretecida ...

É búzio abandonado na areia
É turbilhão de maré cheia
que chega e parte, descontente ...
É verso inacabado no meu peito
É loucura esquecida no meu leito
quando o ontem se quer  tornar presente !

E sempre é a destempo o meu viver
Interrogo a razão do meu sofrer
Ironia e brincadeira do destino ...
É pirraça de existência que me foge,
Um passado que esbraceja p’ra ser hoje
Desacerto alucinado e peregrino !...

Anamar

quinta-feira, 30 de março de 2017

" DANÇANDO NA CHUVA "





Sempre achei graça àquele pinheiro no recorte da paisagem lá longe, tendo por detrás apenas o céu, já que tudo o mais lhe fica aos pés.

Pinheiro, abeto ... araucária não me parece ser, continua garboso, ano após ano, absolutamente só, erguido a ventos e temporais.
Eu diria que ele se orgulha de por ali continuar feito um farol erecto, vigilante dos céus bem acima e observador da terra ... bem abaixo.

Deve ter muitas histórias para contar.  Afinal,  ele escuta a conversa dos melros e dos gaios que por aqui perambulam dia após dia.
De longe, observa as andorinhas no afã dos ninhos, e depois, daqui a uns meses, assiste-lhes aos primeiros projectos de voo.
Do alto, alcança a orla do mar que se adivinha, e adormece no balanço do vento que o sacode sem nunca lhe desalinhar as agulhas dos ramos.
É um desafiador, este pinheiro !
É um resistente também.  Verga, verga mas não claudica.
A vetustez do seu tronco atesta-lhe os Verões e Invernos que já lhe passaram.  É um ancião no sobrado da paisagem !...

Acho que me pareço um pouco com aquele pinheiro.
Também como a ele, a vida me balançou nas intempéries do destino.  Também por mim as Primaveras e os Outonos se sucederam.  Conheci os frios das amarguras gélidas dos Invernos, e a promessa das espigas maduras nos Verões dourados.
Os ventos açoitaram-me a alma.  O nevoeiro abateu-se vezes demais.
E eu ali, firme e hirta, teimosa e casmurra, aprendendo a equilibrar-me na tempestade .
Nunca deixei de olhar lá longe, como ele, o pinheiro.  Divisei céus azuis, nesgas de bonança, chilreado de pássaros, sussurro de asas de borboleta ...
Tudo isso foi sobrevivência e aposta de vida.  Tudo isso foi respirar fundo, erguer a cabeça, secar os olhos, arregaçar as mangas e enfrentar ...
Enfrentar a desesperança penumbrenta, vencer os pedregulhos do caminho, desafiar as borrascas que apostavam em roubar-me o sonho ... teimar com o tempo que prometia injustamente fugir-me ...

E caminhar, caminhar ... adiante ... sempre adiante, mantendo a coerência daquilo que sou, encarando as incompletudes da minha dimensão humana, acreditando nas luzernas de um sol espreitador, amando a "primavera" renovadora,  e aprendendo a não mais me molhar na chuva, mas sim a dançar no meio dela ...
E nunca desistir !...

Porque VIVER, é isso ! ...

Anamar

segunda-feira, 6 de março de 2017

" EM JEITO DE BALANÇO ..."




Folheei em retroespectiva as páginas do primeiro volume deste blogue.
Datam de 2007, ano em que de repente, brincando, tacteando, experimentando, dei os primeiros passos neste mundo da blogosfera.
De quando em vez gosto de reler os meus escritos à época, até porque através deles consigo visionar o que eu era, como era a minha realidade, quais os meus anseios, inquietudes, angústias e assomos de felicidade.
Porque eu sou assim, e sempre deixo escorrer através das minhas letras, os meus estados de alma, sem preocupações, maquilhagens, disfarces, máscaras ...
Eu sou de facto assim, e "dispo-me" sem reticências, sem receios de valorações, sem preocupações do socialmente correcto ou incorrecto.

Se de alguma coisa eu sou dona, neste mundo, é das minhas escolhas, decisões, sentires... e livre arbítrio, também ... sem sustos ou pudores.
A idade entretanto vai-me conferindo independência, despreocupação, "estatuto" ... O tal estatuto que eu acredito ser de facto "um posto",  nesta vida.

Já vou em quinze volumes das postagens que aqui deixo.  Passei todas as publicações, comentários e afins, a suporte de papel ( sou da velha guarda, não esqueçam ... e esta coisa da net, da "cloud", "Dropbox", "OneDrive", pouca confiança me dá, dados os "cataclismos" por vezes ocorridos neste mundo virtual ), e com eles elaborei ano após ano, uns livritos que "enfeitam" a minha estante ...

Será herança patrimonial para quem cá ficar e os queira.  Valem o que valem, poderão interessar ou não, aos meus continuadores ... Um dia terão um fim previsível, creio !

Uma das coisas que me chamou a atenção, nesta romagem à que eu era então, foi a hora a que debitava quase sempre, os meus textos. Verifiquei que varava a noite com toda a displicência, que escrevia preferencialmente na calada da madrugada.
Três da manhã, nessa época, era início de serão para mim.  Refiro com frequência que "sono nem vê-lo", e parece ser verdade que a concentração, a paz e o recolhimento eram requisitos acontecidos, potenciais produtores dos meus relatos.
Parece-me também, ser eu então possuidora de um discurso algo esperançoso, interessado, entusiasmado e entusiasmante, frequentemente.  Sinto em mim, olhando hoje o espelho que me reflecte, que aquele estava imbuído de uma postura de crença face ao futuro, de alguma determinação, expectativa doce, de alguma combatividade.
Eu era alguém com garra, convicção, aposta ... vontade !
Eu acho que acreditava mesmo, que a coisa iria adiante, que eu ainda teria muita história p'ra viver e contar ...

Passaram quase dez anos ... Como a tirania do tempo nos confina mais e mais à realidade, e nos corta as asas do sonho !...

Hoje, já constitui um sacrifício ... ou pelo menos uma desaposta, o esticar da noite madrugada fora.
Hoje, o meu discurso remete-me quase sempre, para uma introspecção reflexiva e algo doída, da minha existência.
As minhas palavras parecem ser mais azedas, mais cansadas, menos confiantes e esperançosas. Mais acomodadas, talvez !
Nos meus textos detecta-se, creio, o enrugado de marcas indeléveis e sem remissão, deixadas pelas intempéries da vida, sem perdão ou piedade.
Sinto uma mornidão que me exaspera e desanima.  Sinto falta da loucura, da adrenalina, do riso, da alegria e da "pedalada" que me norteavam então.
Sinto falta daquele valer a pena que insuflava  o meu espírito e velejava no meu coração.
E pergunto-me : pode uma década ser tão carrasca e impiedosa na nossa saúde física e mental ?
Podem os reveses e as desilusões, os sonhos derrubados e incumpridos, deixar tantas marcas, estragos e destroços numa vida ?!...
Podem os anos, confinar-nos a Invernos sem Primaveras que os sucedam ?!...
Podemos deixar que uma desistência instalada nos tome conta, nos avassale e nos adormeça nos anseios legítimos de quem ainda está vivo ???!!!...

Quero horizontes !  Preciso de pôres, seguidos de nasceres de mais sóis e luas  !  Preciso de pintar, outra vez, o céu com estrelas !
Preciso de refrescar a minha capacidade de deslumbre. A minha capacidade de emoção.
Preciso de recolorir o verde da minha esperança !
Preciso ganhar outra vez asas e sabedoria de voo.  Preciso redescobrir as coordenadas de viagem !

Preciso amar outra vez !  Rebentar de paixão !  Rir loucamente e insanamente soltando a criança, a jovem ... a mulher madura que já fui !
Preciso desgrenhar os cabelos no vento, abraçar o azul embalador do mar, conjugar outra vez convictamente, os verbos "querer", "acreditar", "apostar" e ... "VENCER" ...

Meu Deus ... como preciso !!!...

Anamar

quinta-feira, 2 de março de 2017

" OS NINHOS "






"Os ninhos "

Os passarinhos tão engraçados,
Fazem os ninhos com mil cuidados
São para os filhinhos que estão para ter
Que os passarinhos os vão fazer !

Nos bicos trazem coisas pequenas,
e os ninhos fazem de musgo e penas
Depois, lá têm os seus meninos,
Tão pequeninos ao pé da mãe.

Nunca se faça mal a um ninho,
À linda graça de um passarinho !
Que nos lembremos sempre também
Do pai que temos, da nossa mãe !

                               Afonso Lopes Vieira


As andorinhas iniciaram a sua faina no beiral  lá de casa ... contei ontem.
Revimo-las com sorrisos nos rostos e enternecida admiração.  Afinal, auspiciam tempos felizes e promissores aos lares hospedeiros que escolhem.

A minha mãe, com 96 anos à beira de serem cumpridos, tem uma idade mental quase permanente, talvez de uns 5 ou 6.  A demência progressiva que lhe tolda a mente e o raciocínio, transformou aquela mulher decidida, capaz, viva e independente, num simulacro de gente.
Transformou-a numa criança de tenra idade.
Neste momento, a minha mãe adora os patos da lagoa, fala e trata indistintamente os animais com a pieguice e a ingenuidade protectora de uma criança, infantiliza todas as suas posturas e todas as suas conversas.

Já me martirizei demais por tudo isso. Já me angustiei e rebelei demais contra o destino.
Mas como p'ra tudo o que é irremediável, e que ainda por cima se arrasta temporalmente, devemos encontrar estratégias de convivência  por forma  a defendermo-nos psicologicamente, também eu deixei de chorar, de me amarfanhar, de me revoltar, até mesmo de querer entender.

É simplesmente assim, nada se pode fazer além de lhe falar com a máxima doçura, aceitação e paciência.
Os diálogos parecem tirados de um jardim infantil.
Por isso lhe conto vezes sem conta quem é quem, na nossa família tão pequenina.  Por isso lhe repito os nomes de cada um, desde os pais, ao marido, às netas, bisnetos ... ao meu próprio, e lhe reavivo quem ainda vive, quem já partiu e todos os pormenores referentes à sua vida actual e pregressa.
Por isso lhe fiz, a seu pedido, um esquema  com todas as personagens que a atormentam, quando não consegue lembrar ...
E ri, quando diz que "já fez o trabalho de casa" ao ler e reler essa folha ...
E ri, quando me pergunta : "Filha, então tu és o quê, meu ?"... E fica eufórica  quando a esclareço.
"Ah.... agora já sei que és minha filha !  Já não me engano mais !"....

Também se fascinou com a chegada das andorinhas.
Dizia-me hoje que elas haviam voltado porque sabiam que ali iam encontrar as suas casinhas.
Adora ir, na cadeira de rodas, ao terraço ver as sardinheiras em flor ( que a extasiam ), e o avanço dos ninhos em laboriosa construção.

E então do nada, surpreendentemente, com ar de menina levada de bibe e ardósia, começou a declamar-me, sem erro, as primeiras estrofes deste enternecedor poema de Afonso Lopes Vieira, que aprendera na escola, que fazia parte do seu Livro de Leitura e que por momentos a transportou a um passado longínquo e difuso, espantosamente claro, que a deixou tão feliz !

E eu nem sei bem descrever o misto de sentimentos que me tomou ... Estupefacção, ternura, alegria e tristeza ...
Como a mente humana é insondável e como os mecanismos mentais que norteiam o Homem ao longo da sua existência, fogem ao domínio da nossa compreensão e capacidade de entendimento !
É como se houvesse sempre dentro de nós, um eco que persiste e nos coexiste através dos tempos, rumo à Eternidade !

Por momentos,  a minha mãe  voltou a ser menina outra vez !

Anamar

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

" E ASSIM SERÁ ... "




As andorinhas voltaram ...
E se voltaram é porque a Natureza outra vez milagrou.  Se voltaram, é porque a imortalidade do tempo permanece intocada .

Vi-as em volteios determinados na aragem fria que por ora se sente, esperando uma Primavera anunciada com a brevidade do calendário. Rumam aos ninhos que ainda outro dia deixaram, emancipadas que foram, quando, pressurosas e guiadas pelos pais, fugiam do Inverno desconfortante que se aproximava, e norteavam a África, na sua primeira viagem migratória.
Trazem sorte e felicidade aos beirais que escolhem ... diz-se.  Talvez por ser auspiciosa a sua chegada, mostrando que a renovação não cessa, a esperança não morre ...

É sempre um deslumbre e uma emoção, confrontar-me com os mistérios perfeitamente insondáveis e que não se explicam, das leis da sobrevivência natural.
O "código genético" é poderoso e absolutamente imperativo. E quando pensamos que seres infinitamente pequenos e desapetrechados  quando comparados ao ser humano, respondem com uma inquestionável capacidade e uma eficácia espantosa e precisa, ao que a Biologia define para as suas vidas, temos que forçosamente nos sentir mínimos, insignificantes, fascinados !

Olhei-as na afobação da construção de novas "casas" e na reconstrução das já existentes. Olhei-as, na azáfama de projectos decididos, numa alegria de viagens, chilreios, deambulações apressadas, nos golpes de vento da tarde.
Como seriam as histórias que carregam ?  Como serão as lembranças do oceano, do deserto, dos dias e das noites estreladas, das luas e do sol quente e tórrido das terras lá longe ?  Como será esta liberdade de andorinha que vai e que vem, e sempre e só responde à chamada do destino ?

Por aqui, as mimosas começam a engalanar-se do amarelo esperançoso e promissor, simplesmente porque também elas sentem o apelo da continuidade da Vida.  E por cada canto, por cada nesga generosa de verde e terra tudo eclode numa cascata de cores, de cheiros e de sons ...
E assim será, ano após ano nas existências de cada ser. E assim será, numa renovação prometida, até à eternidade dos tempos.

A vida de cada um é a vida de cada um. É a fatia de contemporaneidade que por aqui partilhamos com tudo o que é vivente.  Mas também com tudo o que nos pré-existiu e existirá depois da nossa passagem.
Estamos em trânsito.
Não somos mais que andorinhas arribadoras.  Não passamos de mimosas que floriram, nas suas Primaveras ... ou sopro de brisa fugaz que perpassa pela copa dos pinhais ...
Mas o privilégio de que dispomos pelo facto de ainda continuarmos a cumprir os nossos desígnios por cada dia que nasce e adormece à tardinha, é uma bênção sem tamanho, é um êxtase e um deslumbramento agradecido à Natureza, mãe embaladora, útero generoso, regaço doce e repousante !

Anamar


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

" PARA ALGUÉM QUE AINDA NÃO NASCEU "




( Dedicado à minha neta que virá )

Não sei o teu rosto, no entanto adivinho
que virás com um norte, um rumo e missão
de amparar quem cansado percorre o caminho,
de ajudar a erguer quem se sente no chão ...

E levas em frente a história começada
És uma semente que a vida plantou
Uma árvore de sombra na beira da estrada,
Um sopro de esperança que algum deus soprou ...

És uma criança e já és o universo...
A luz de uma estrela para quem está perdido
A força do amor transportada num verso ...
Não sei o teu rosto e no entanto acredito
que tu vais vir
para as margens unir
em pontes lançadas ...
As estrelas te embalam
no céu escuro se calam,
pelas madrugadas !

E tão pequenina,
menina ladina,
como seiva vivaz
tens o mundo no peito,
qual  amor perfeito,
por favor, traz a paz !...

Anamar

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

" QUERIA ..."



Queria dizer não dizendo,
por preciso não ser mais ...
e que os ais deste lamento
voassem no firmamento
a outros céus e outros mares
Queria chorar não chorando,
por teus ouvidos ouvirem
e sentirem o meu pranto
para lá do universo,
nas galáxias de outro espanto...
Queria ver-te não te vendo,
porque leio a voz do vento
e entendo a canção do mar
que te trazia até mim
nas asas de um querubim,
sem precisar te chamar ...
Queria que o sonho lembrasse
o que há muito já esqueceu,
que o dia se levantasse
e a madrugada guardasse
todo o amor que já foi meu ...

Mas o tempo ... ai o tempo ...
carrasco, dono, verdugo,
um tirano e gozador
Vai levando e vai correndo,
brinca e ri do meu tormento,
indiferente à minha dor !

Anamar

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

" FESTEJANDO ... "




2016 terminou.  2017 abriu um sorriso prometedor e cúmplice...

Sempre assim !
Quando um ano se abeira do fim e já desvendou tudo o que tinha p'ra nos mostrar ... quando não acreditamos mais que algo nos venha ainda a surpreender nesse tempo rançoso que está a expirar e que provavelmente defraudou a expectativa que viemos carregando enquanto a ampulheta ia vasando ... ansiamos que um novo tempo espreite, que novos dias nos recarreguem a esperança, nos alimentem o sonho uma vez mais, nos voltem a dar razão p'ra continuar a viver .

Sempre assim !
Nesta "virada" que ontem se voltou a cumprir,  tenho razões acrescidas para festejar.
Aqui neste meu espaço, que como refiro na sua apresentação, é de intimismo e cumplicidade, é de mim para todos e para ninguém, que existe pela simples paixão da escrita, que carrego desde que me sei gente, atingi os  MIL POSTS partilhados com todos quantos me visitam, me lêem, me comentam.
Todos quantos disponibilizam o seu tempo, o seu carinho, o seu interesse ou mera curiosidade.

A caminhada tem sido longa, ultimamente lenta e sem ânimo  vezes demais, fruto dos tempos que atravesso.
Contudo, continuo a refugiar-me neste canto privilegiado, continuo a assomar-me nesta varanda de afectos, continuo a amparar-me em todos os que anonimamente ( quase sempre sem deixarem outro rasto que não o franquear da "porta" ) por aqui passam ...  e com isso continuo a reerguer-me, a reabilitar-me e a sentir-me viva de novo !

Para todos vós, portanto, também razão e destinatários da minha escrita, o meu OBRIGADA de coração !

Anamar

" CONTO DE NATAL "





Eu tinha um gato e uma gaivota ...  Já todos sabem.

Há para lá de tempo que eles povoam os domínios que o meu olhar alcança, encarrapitada que estou no alto deste sétimo andar.
Neste meu tempo de silêncios, de muros altos e horizontes distantes, neste tempo de muita gente e poucas pessoas ... habituei-me à janela.
Da janela eu sou dona do mundo!  Salto as casas, os telhados, as chaminés e os muros, que não me interessam nada, e voo lá para bem longe, onde as escarpas da serra se divisam, onde as nuvens se passeiam, onde o sol adormece e onde a lua sempre assoma, engalanada de festa.
Monto a cauda dos arco-íris, quando se desenham e participo das "raves" estelares, quando desbundam na agitação feliz dos solstícios.
Tenho a brisa que me afaga o cabelo, tenho o ouro e o vermelho do plátano que em rituais de adormecimento se despe, preparando o sono regenerador, neste Outono já Inverno.
Tenho o som do mar, ora tempestuoso ora doce, no bater e no estreitar dos rochedos com carícias atrevidas ...
Isto, já sem falar na canção dos búzios, que de lá me contam o vaivém das ondas ...
E tenho os cheiros dos musgos e das carumas, dos azevinhos e da humidade sombria que amarinha os troncos, o cheiro das heras e da folhagem tombada que atapeta os caminhos ... que eu não vejo, não escuto e nem cheiro, mas que adivinho, porque os tenho todos guardados na mente e no coração.
E eu sou livre de querer, de inventar ou só de lembrar !

E depois, tenho a minha gaivota que me liga aos céus, e o meu Farrusco preto lá de baixo, que me prende à terra .
E entre este céu e terra vou vivendo, rica de sonhos e de amores.

Só que ...
O meu Farrusco partiu !  Não sei dele faz tempo !
Bem me esgueiro da janela, bem tento variados e possíveis ângulos da vista o poder alcançar ... ingloriamente !
Se chove, esmiúço os recantos do terraço, cantos protectores e de guarida ... em vão !  Se faz sol, esmiúço os muros de espreguiçamento, os parapeitos de sestas ... em vão !
Eu sei que os gatos são aventureiros e independentes.  Nisso, somos bem iguais.  Eu sei que os gatos são irremissivelmente sonhadores, teimosos e livres.  Nisso, somos mais iguais ainda ...
Mas o Farrusco já há muito que é um gato ancião, que eu sei, e a sua provecta idade deveria contê-lo na aventura e no devaneio.  Seria prudente.

Depois, também não é justo que o Farrusco faça isto comigo em plena quadra natalícia ...
Deixar-me com o coração apertado, o olhar perdido e uma orfandade que me atormenta a alma ... não me parece bem, nem coisa adequada  ao coração generoso de gato !...

Não quero acreditar que ele partiu para a Terra do Nunca, sorrateiramente (com a discrição que só eles sabem ter ),  porque nunca vou poder aceitar que ele se cansou do meu terraço, da Terra dos Homens, dos frios Invernos, impiedosos para um gato cujo único tecto é o céu estrelado das noites escuras ... se cansou da barriga vazia e da incerteza dos restos deixados por uma que outra alma caridosa ... se cansou até do amor que cá de cima eu lhe devotava, em segredo ... sem que ele soubesse ...
Porque afinal, nós tínhamos um pacto silencioso de afecto.  Ele era " pertença " minha, há muito !

Hoje, eu vasculhava uma outra vez o terraço do Farrusco ...
Com um  céu escuro e indiferente, que se debulha em água cá para baixo, com o frio gélido do Inverno que resolveu fazer as honras, o desconchavo que nos envolve é total.  O desconforto impera .
As gaivotas, que há pouco deambulavam em voos incertos na aragem, desapareceram em busca de poiso, longe que lhes ficou o mar alteroso.

Desisti de o esperar...

Os gatos são filósofos, sonhadores e poetas ... que eu bem sei.
A esta hora o Farrusco já deve estar na dimensão dos que conversam com a lua, dos que escutam as estrelas e amam a imensidão do Universo !
A esta hora ele, a quem a dimensão do terraço não chegou, voa seguramente na liberdade do vento, trepa os telhados das madrugadas e espreita-me por entre as nesgas das nuvens ... quando elas, de "carneirinhos", esvoaçam lá longe, no limite do meu horizonte ... encarrapitada que estou no alto deste sétimo andar ...

Porque  nós  tínhamos  um  pacto  silencioso  de  afecto ... e  os GATOS  não  nos  faltam  nunca !...

Anamar

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

" E É ASSIM ... "




Mais um ano a findar.
Tempo de balanços sobre a vida, "impostos" pelo clima emocional que sempre nos rodeia nesta altura.
É estranha esta época !
Sem que demos por isso, mesmo os mais resistentes, que tentam distanciar-se de todo este circo de emoções em que mergulhamos, acabam capitulando e querendo ou não ... ( que droga !... ), sossobram e deixam que o contexto existencial os fragilize.

Assim sou eu.
E se o Natal é passado mais ou menos rodeado de luzes, barulho e confusão, rodeado de afectos e euforia da criançada ( já pouco criançada ... ) ... se o Natal me atordoa ou até anestesia, a passagem de um ano a outro, a viragem da página, o encerramento de mais um ciclo temporal é um mix incontrolável de estados de alma !
Assim que a descompressão do Natal se inicia e que entramos em contagem regressiva para as últimas badaladas, uma irracional angústia, talvez incoerente e incompreensível, uma melancolia doída começa a sufocar-me as entranhas, oprime-me o peito e aflora-me lágrimas a olhos desobedientes.
Procuro monitorizar as emoções, procuro racionalizar os pensamentos e arrefecer o coração ...
Quase sempre em vão.
Fico uma imprestável  florzinha de estufa, um galho de árvore indefeso abandonado na intempérie, uma concha rolada na maré ... sem remédio ou guarida ... numa solidão de doer, num abandono de comiseração ...
E um peso que não suporto, uma carga que me verga, uma escuridão de cerração compungida, toma-me conta, tolhe-me, derruba-me ... como dia que se abate, sem pôr de sol que o detenha ...

Inevitavelmente, tudo o que foi me visita.  Inevitavelmente, tudo o que é me angustia.  Inevitavelmente, tudo o que será me assusta.
Um céu turbulento de nuvens encasteladas, ameaçando borrasca, espreita-me.  Os raios de um sol tímido de Inverno, esperneiam no meio dos cinzas enegrecidos. O ar gélido açoita-me o rosto e desconforta-me o coração.
Queria fugir e não tenho para onde ... E não tenho como ...
Queria seguir para o sul, nas asas dos gansos selvagens, que têm rumo e destino.
Queria buscar a terra quente e um ninho manso.
Queria partir lá para onde se ouve a música do Universo, e os tempos são de esperança e de fé ...

Ou, pelo menos, queria dormir.
Dormir com a serenidade dos justos.  Dormir com a paz dos que não esperam amanhãs.  Dormir com a resignação do que me é destinado. Sem ambição ou sonho.  Com a certeza do nada, ansiando o tudo ... talvez  ...
E queria aturdir-me com o ruído insuportável do silêncio que me cerca.
Queria esquecer, esquecendo-me ... se o pudesse !
Queria partir na profundidade do sonho que não acorda ...
E seguir na estrada do tempo, colhendo braçadas das flores simples do caminho ... com auroras boreais no horizonte ... acreditando ser feliz !
Queria pintar os céus com todas as estrelas que vivem dentro de mim ... e brincar com as luas e as orvalhadas destas madrugadas de gelo ...

Queria tudo isto ...
Só não queria pensar na efemeridade da existência humana. No soluço sufocado que intermedeia o nascer e o morrer.  Na incapacidade tantas vezes sentida, frente a maré alterosa que derruba e destroça.  No vazio que nos fica nas mãos, quando a areia se nos escoa por entre os dedos ...

Só não queria pensar que a ampulheta esvaziou uma outra vez ...

Anamar

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

" O NATAL DO NOSSO DESCONTENTAMENTO "




E então é Natal ...

Mais outro Dezembro, mais outro Natal, outro ano em passadas aceleradas para o fim.  E nós, com ele ...
O calendário anuncia, determina, impõe tréguas, paz, conciliação no coração dos Homens, indiferentes.

Um pouco por todo o Mundo a azáfama instala-se no ritmo de sempre.  As luzes há muito se acenderam nas ruas, as vitrinas das lojas vestiram-se com o que de melhor havia no seu interior, num apelo mudo aos passantes.
Compra-se, encomenda-se, marca-se ...
Tem que estar tudo estranhamente a postos,  no que mais parece uma maratona social que deverá ser irrepreensível nos pormenores.  Há uma urgência instalada e sentida.

Por aqui as pessoas dão-se as Boas Festas, indistintamente, numa transcendência magnânima que vem do coração.  Exortam-se os maiores e mais profundos sentimentos de alma, numa generosidade sem contenção ou limite.
Afinal, reina um espírito universal de solidariedade e irmandade.
Pelo menos uma vez no ano, as mãos entrelaçam-se, os corações estreitam-se ... parecemos comungar um insuspeito sentimento de fraternidade ...

É o "reencontro da diáspora", diz Marcelo Rebelo de Sousa, referindo o encontro das famílias que a sorte madrasta teimou em separar e espalhou pelo planeta.
É a busca do convívio daqueles que por aqui vão estando, por vezes pouco presentes ainda assim.
E é a recordação de outros encontros, entre aqueles que não voltarão a encontrar-se, nesta diáspora que é também a vida de cada um ...
E depois há os que não têm mais quem encontrar ... a não ser os que na mesma nau e na mesma odisseia, partilham os temporais de todos os dias .

Enquanto isso, sabemos das bombas.  Sabemos de Aleppo e das suas crianças órfãs e sem sonhos ...
Sabemos dos refugiados nos campos da desesperança ...
Sabemos dos atentados e sabemos dos que morrem, sem bem saber porquê ... Apenas pela desdita de estarem no sítio errado na hora errada ...
Sabemos os amordaçados na voz e na vontade, onde a palavra liberdade é mítica ...
E sabemos África e Ásia naquela manta de retalhos de miséria e infortúnio.  De doença, de provação e de dor ...
E sabemos das cidades agrilhoadas mesmo no coração da "civilização", pelo medo dos fantasmas  da ameaçadora violência sempre iminente, demasiado iminente ...
E sabemos da lotaria que é a vida de quem conta tostões nas contas magras, em meses demasiado compridos ...
E sabemos do frio e do silêncio, em lares de costas voltadas, quando as pessoas já só se desconhecem ...
E de velhos ... centenas de velhos ... largados  na solidão desesperante de hospitais e instituições, e onde a demência é uma aliada e uma misericórdia ...
E sabemos de todos os sozinhos, silenciosos e escuros na alma, com horizontes de sol posto ... numa orfandade de afectos e calor ...

Sabemos tudo isso e ainda assim acreditamos neste Natal !...
Afinal, simplesmente, o Natal do nosso triste descontentamento !!!...

Anamar