quarta-feira, 4 de abril de 2018

" CONVICÇÃO "





Enquanto virmos a mesma lua, nunca estaremos tão longe assim ...

Tenho para mim que as vidas se fazem e desfazem, sem na verdade se desfazer aquilo que as povoou, as construíu, as coloriu e as preencheu.
O tempo avança, escoa-se, dobra esquinas, vence horizontes.  Os caminhos da serra permanecem intocados, os córregos que se escondiam entremeio às amoras bravas, persistem.  O gorgolejar das águas escorrentes por entre a penedia, ecoa na mata e o vento que esvoaça para cá e para lá, irá esvoaçar para cá e para lá ao sabor das memórias.
Os sítios são os sítios, para sempre.  E "sempre" é muito tempo ... muito mais do que um Homem vive !
E aquilo que se viver em vida, transformar-se-á em eco, na eternidade !
E a eternidade, essa sim, não tem medidas nem tamanho. Essa sim, tem a medida do "sempre" !

As pessoas encontram-se, cruzam-se, interpenetram as vidas e afastam-se muitas vezes.
As pessoas desfolham sonhos, desenham estórias, pintam esperanças ... As pessoas acreditam ...
E depois, as pessoas perdem-se por aí.  As palavras já não galgam as montanhas.  Os sons já não viajam nas nuvens.  As emoções já não trepam a copa das árvores.
As lágrimas transformam-se em rio de caudal incontrolável.
A linguagem encalha nos escolhos da maré.  E parece não ter mais sentido.
As pessoas que foram muito, que foram quase tudo, desconhecem-se.  E injustamente já não sabem ler no livro do amanhã !

Assim são as vidas de quase todos, acredito.
Mas  porque as vidas se fazem e desfazem, sem  na  verdade se desfazer aquilo que  lhes  pertenceu, também acredito que enquanto virmos a mesma lua no firmamento de breu,  estejamos onde estivermos, nunca estaremos tão longe assim !...

Anamar

quarta-feira, 28 de março de 2018

" REFLECTINDO"



Aqui estou, frente a este casario inexpressivo, frente a este céu só limitado pelas barreiras que os humanos lhe construíram, frente a esta lonjura até onde a minha mente voa.
Aqui estou, como tantas vezes estou, na busca da paz do silêncio.
Já que este meu poiso é o galho de árvore donde o pássaro voeja rumo ao infinito, é o silêncio da falésia inacessível ao Homem, é a mansidão do encontro primordial de mim comigo própria ... sempre o busco, como catarse, como paragem, como local de despojamento e reflexão honesta, procurando despir-me de emoções, de pressões, de condicionalismos, na busca da verdade e da transparência nas minhas reflexões,  na busca de respostas, vezes sem conta, para as minhas angústias, olhando a minha verdade de frente, duma forma isenta, despida e corajosa ...
Sempre o busco na procura da pessoa que eu sou ...

Lá fora está cinzento.  As anunciadas nuvens vão pejando o firmamento.  Afinal é Semana Santa ... seria de bom tom !

Sou humana e os humanos cometem demasiados erros, tentanto quase sempre acertar.
Mas sempre busco, com severidade, explicações para as minhas atitudes e escolhas, sem justificações esfrangalhadas ou panaceias protectoras e tolerantes.
Desde sempre me habituei a reflectir, a analisar, a guerrear-me, se for o caso.  Costumo mesmo ser menos tolerante comigo, do que com os que me rodeiam.  Costumo, sem artifícios ou maquilhagens pôr a nu os meus erros, fragilidades, e incapacidades.  E faço-o sem piedade, com a espada afiada do justiceiro que busca repor o certo.
Não passo a mão na minha cabeça, nem desculpabilizo e aquieto o coração para dormir melhor ...

Talvez porque a vida já me maltratou largamente, não tenho dificuldade em perceber o outro, em ouvir o outro, em tentar entender a sua justificação ou posicionamento.
E se reconhecer que errei, que maltratei, que injusticei, que não fui correcta, que não assumi a minha inerente responsabilidade ... não tenho dificuldade em, duma forma desarmada, me retratar, me explicar, pedir desculpa, assacando a culpa para mim própria.
Considero que uma retratatação, uma explicação transparente e sincera, sem álibis ou truques, terá tudo para ser entendida, aceite e eventualmente perdoada por boa fé.

Daí que, sendo eu assim comigo mesma  no relacionamento diário com os outros, não há coisa que mais me destrua, amachuque e mortalmente magoe, que, por um lado a intransigência e indisponibilidade do outro face à tentativa de clarificação de uma atitude minha.
Por outro, o balizar-se no reduto defensivo e cómodo da sua trincheira cerrada e intolerante à realidade. Trincheira de ideias feitas, convicções absolutas, verdades insofismáveis !...
Por outro ainda, o circunscrever-se a um posicionamento autista de posse da razão ... uma espécie de cómoda vitimização, de quem teria sido intencionalmente injustiçado e preterido.
Mas no corolário de tudo isto, o que não suporto mesmo e com que convivo muito mal, é a tentativa frequente do outro em desvirtuar os factos, alterar a objectividade dos mesmos, acreditar numa outra verdade que o conforte e lhe permita conviver com ela, pacificando-o e ilibando-o  quantas vezes, da maior fatia de responsabilidade sobre eles.

Essa postura injusta, triste, ofensiva mesmo, já que mexe com a idoneidade de cada um, com a sua sinceridade, boa fé e até mesmo honestidade, deixa-me louca por impotência, por exaustão, por incapacidade de conseguir que me entendam, que me vejam com os olhos da alma, despindo-me até ela, mergulhando até ao âmago de mim mesma, trocando-me o avesso pelo direito p'ra que alcancem o profundo do meu coração, a verdade das minhas palavras, o teor das minhas intenções !...

Mas eu sou humana.  E o ser humano comete demasiados erros ...
Um deles, talvez seja simplesmente continuar a acreditar e a sonhar que ele ainda vale a pena !...

Anamar

terça-feira, 20 de março de 2018

" AS MARGARIDAS SELVAGENS "





Elas já romperam por aí ...
Adivinho-as no alto das falésias, com este sol de Primavera com pressa de chegar, tímidas, humildes, singelas.
São elas, as margaridas não semeadas.  As que assomam quando Março adentra, quando Abril acena com as suas "águas mil"...

Não passeio faz tempo, no alto das ravinas, com o vento a despentear-me, com este azul meio sim meio não, pontilhado por farrapos brancos que se esqueceram de partir.  Com o mar lá em baixo em aguarela de azul e verde, e com as gaivotas vagueando no preguiçamento do costume ...
Vou pouco para além.
Tenho memória de as ver.  A elas, e às flores amarelas sem nome, no meio de outras mais ... mas isso parece fazer parte de uma vida que nem é já bem minha ...

As nossas existências são fatiadas em períodos, em épocas, em realidades.  Cada período, cada época, cada realidade pintou-se com as suas particulares cores.  Encheu-se dos seus particulares sons, palavras e acordes musicais.  Decorou-se com as suas especiais vivências, emoções e sentimentos.

Assim, quando lembramos a meninice, logo somos assaltados por este ou aquele pensamento, este ou aquele rosto, este ou aquele momento ...
Quando avançamos no tempo, a adolescência traz-nos outros sentires e outras emoções diversas.
A idade adulta, da mesma forma, faz-nos atravessar realidades qualitativamente diferentes, caracterizadas e povoadas por personagens diferentes também.
E cada espaço temporal por nós vivenciado nos acende mais e mais memórias, nos firma mais e mais apontamentos, todos pintalgados por aquela risada especial, adoçados por aquela ternura perpassante, sofridos por aquela mágoa que desceu, assaltados por aquele desencanto que nos tomou ...
Por isso não é à toa que neste puzzle da existência, esta peça só encaixa aqui, aquela outra, ali ...
E não é à toa que indelevelmente o colorido deste matiz, é pertença deste momento e jamais de outro.  O sol que brilhou naquele dia, jamais teve o mesmo brilho em mais nenhum outro.  As palavras trocadas então, pertencem só e exclusivamente àquele contexto e são irrepetíveis em mais nenhum outro !...

Por isso, o tempo das margaridas selvagens todos os anos chega, quando Março adentra e quando Abril acena com as suas "águas mil" ... Mas não é a mesma coisa ... ainda que eu possa vaguear por além, ainda que eu possa passear no alto das ravinas, com o cabelo em desalinho e com as gaivotas volteando no espreguiçamento do costume ...

As fatias do tempo vão-se cumprindo.  As folhas do livro vão-se desfolhando.  As nossas existências vão-se consumindo ...

Anamar

domingo, 4 de março de 2018

" O LUSCO-FUSCO "


Está uma tarde desanimadora.  Está um tempo de despedir esperançosos.  Afinal, até parecia, mas não, a Primavera não está nem ao virar da esquina !

Ocorreu-me ... tem-me ocorrido, que precisava falar com a minha mãe.  Falar de coisas triviais, coisas com pouca / muita importância ... como por exemplo a chuva que tem caído, o mar que se alçou e levou tudo adiante ...
Ouvi-la falar das imagens da guerra na televisão ... e vê-la condoer-se até à alma, pelas mulheres, pelas crianças ...
Relatar-me as últimas do seu Sporting ... sem arredar pé, como uma leoa que se preza !
Ocorreu-me referir-lhe que me deve lembrar como se faz aquela sopinha boa de feijão com mogango, ou a sericaia de fim de almoço.  Afinal, se não aprendi, já não aprendo ...
Ou mesmo pedir-lhe que me recorde que bolos tínhamos nós, na mesa, na Páscoa que se avizinha, lá no Alentejo de casa de avós em mesa farta ...
Coisas tão simples.  Simples e triviais, que recheavam as nossas conversas quotidianas !

Parece que deixámos de conversar só ontem ... mas hoje, já não a acho.
Que estranho que é,  ter ali sentada à minha frente, uma moribunda formal.  E a outra, aquela com quem deixei tantas coisas p'ra falar, desrespeitosamente já não comparece mais ao encontro...
E no entanto ainda ali está.  Está e não está !

E fica aquela sensação esquisita de uma saudade inacabada, uma incompreensão sem remédio ! Uma sensação de tempo que não se agarrou e já  não se agarra ... num desperdício e distracção absurdos ...

Apetece-me abaná-la.   Chocalhar-lhe aqueles miolos imprestáveis que já só estão.  Nada mais !
Apetece-me ... em vão !  É uma parede intransponível, sem brechas, que tenho à minha frente ...

E fica  aquele sentido mal explicado de impotência e injustiça !  Que raios, havia tanta coisa em pauta para nos dizermos !...
E agora ?  Agora faço como ?

E dou por mim a experimentar uma saudade amarga, quando entendo ... Porque quando pareço não querer entender, acho que ela está lá no sofá, ao cair das tardes ...  eu estou lá, a caminho das aulas, depois de um último beijo e de um último adeus, antes de contornar a esquina  a tempo ainda de a ouvir descer a persiana ... e amanhã é outro dia certo, de vida, em que eu e ela estamos lá ... e havemos de estar, porque eu tenho infinitas coisas para aprender com ela, porque ela sempre foi alguém que nunca me desfeiteou nem falhou.  E por isso, tem que continuar por ali !...

Como podemos ter saudade já, de quem ainda não partiu ?
Como podemos encaixar no nosso coração e na nossa alma, pacificamente, uma inexplicação sem limite, sem tamanho, numa aberração monstruosa ?!

E uma revolta incomensurável, mina-me até às entranhas .  Nunca vou entender nada disto.  Nunca vou aceitar tamanha pirraça do destino...
Ela, que quando era gente, sempre se esperançou que a existência  haveria de ter um respeito misericordioso pela pessoa que sempre foi !!!...

Anamar

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

" SONHAR AINDA É POSSÍVEL ?... "



Na passada quarta-feira, dia 14, viveu-se mais um dia de hipocrisia social, criado pela exploração da hipocrisia comercial.

Já escrevi várias vezes sobre o dia de S.Valentim, dos namorados e quejandos, importação trazida de outras latitudes, aliás como outras semelhantes que me irritam e arrepiam ... a do Halloween, por exemplo.
Importada, assimilada, encaixada.
Nada de novo que não conheçamos, peritos que somos nas importações fáceis, sem critério e sem demais juízos de valor, de quase tudo o que nada tem a ver connosco, nossas raízes e cultura
.
E aí temos nós, jovens e menos jovens, milagrosamente derretidos como picolé em dia de calorina !
O comércio acena-nos com o êxtase da felicidade afectiva, ao alcance de uma comprazinha ainda que por vezes à última hora, de uma rosinha vermelha, de um qualquer presentinho inevitavelmente decorado com os corações "ensarampados"  (que estampam toda a profusão de cartões e cartõezinhos para qualquer  gosto ),  da caixa de chocolates em coração, do peluche com coração, da caneca com corações ... enfim ...

Cumprido qualquer um desses desideratos, tranquilizam-se os espíritos, porque o alvo a atingir perceberá como o amor é tão importante para nós !...
Os cartões até já trazem as dedicatórias escritas, o que simplifica a coisa ...

Depois ... bom, depois, temos 364 dias para recarregar baterias e  tomar fôlego para a próxima jornada valentinesca ...
As rosas entretanto secam ao ritmo do esquecimento das juras de amor seladas.  Os bombons comem-se e recheiam-nos com mais umas quantas indesejáveis calorias. O resto, repousa por uns tempos nas prateleiras ou desce directo às gavetas.
O amor ... o amor de valer a pena ... o amor espécie em vias de extinção ... esse, o amor a vivenciar, a adubar, a regar ... a valorizar  em suma, confina-se muitas vezes a um processo de intenções, e pouco mais.
Cada vez mais os sentimentos são plastificados, descartáveis, inconsistentes ... recicláveis.  Troca-se de amor com a facilidade com que se troca de projectos, de sonhos, de opiniões.
Estamos no tempo da volatilidade de sentimentos e emoções.  Estamos no tempo da desaposta, às vezes por bem pouco.  Estamos no tempo da desvalorização dos reais valores, em benefício de uma liquidez escorregadia, ajustável, cómoda, de relações de fácil consumo e afectos precários ...
Estamos na época em que parece não haver vagar para partilhar, dividir, saborear a beleza de um pôr de sol a dois, escutar os sons da terra a dois, ouvir o mar ... perdidamente ... dançar um "slow" na cumplicidade dos corpos colados, das mãos entrelaçadas, dos olhos enternecidos ...
Até porque penso que também já parece não haver "slows" ... desgraçadamente !

Bom, este meu texto foi meramente uma sinalização da data.
Nada traz de novo.  Constata, não questiona, não discute.
São meras convicções minhas.  Já as expus em anos anteriores.  A idade só mas reforça e alicerça.  Não mais !
É o que vejo e analiso à minha volta.

Gostaria de auspiciar futuros diferentes para as gerações que aí temos.
Gostaria de poder acreditar que as vidas teriam outros rumos, mais consistentes e de sorrisos simples.
Gostaria !...

O sonho ainda não nos está vedado ... não é ???...

Anamar

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

" DAQUI A POUCO ... "






O Carnaval foi-se.  Daqui a pouco é Quaresma, depois Páscoa, depois é o tempo das cerejas, as mimosas irão florir pelas matas ... Mais um saltinho, e é Verão.  Os dias hão-de azular, o sol amarelecer de ouro tudo em que bater, havemos de suspirar por sombras, por frescura de serra, por água fresca de mar preguiçoso ...
Depois a canícula cederá,  a fruta amadurece e os vermelhos e ocres se instalarão.  As primeiras folhas começarão a tombar, a Natureza a encasular-se pronta a dormir, o recolhimento e o silêncio descem da Terra aos corações ...
As aves começam a partir, o cinza e as névoas envolverão os amanheceres, e as luas irão esconder-se atrás dos castelos de nuvens.  As estrelas dormirão em céus escuros, como manta a cobrir os desvalidos ...
Daqui a pouco a neve branqueia os píncaros, os lobos uivam na montanha ... daqui a pouco os azevinhos cobrem-se de bagas vermelhas, e o calendário dirá que é de novo Natal ...
Daqui a pouco, o ano vira.  Dá mais uma cambalhota na eternidade ... e dá lugar a outro ...
E tudo é já daqui a pouco ...
Hoje, é só mais uma gota das existências, a ser vivida ...

Hoje, o dia "enxofrou".  Tem um ar sonolento, displicente e preguiçoso.
Convida à reflexão, sobretudo se estamos sós, com boa música, e muita, muita paz ...
Inevitavelmente lembro o que tenho, do que disponho, o que quero ainda, nesta ampulheta incessante, incansável e obstinada.
E hoje, eu só quero uma coisa: como diz Fernanda Montenegro, hoje eu só quero que a minha memória nunca me atraiçoe, que nunca me retire o caminho de acesso ao baú onde o espólio da minha vida aguarda -  empoeirado já - que eu o revisite, vezes sem conta, com o enamoramento e a gratidão de quem se sente abençoada com a estrada percorrida.
Porque ainda assim, eu sei que da próxima vez, eu faria diferente ...

Da próxima vez, aprenderia a dar às coisas, a importância real que elas têm, sem o drama de sempre as ver a preto e branco ...
Da próxima vez, carregaria no rosto a alegria do riso, ou mesmo só do sorriso. E guardaria as lágrimas só para os dias de tempestade ...
Reuniria todos quantos me fossem importantes, à roda de uma mesa, no aconchego duma lareira ... quando calhasse ... sem me preocupar que amanhã fosse segunda-feira ... ou que a loiça guardada para ocasiões especiais, se poderia partir ... Simplesmente porque essa, seria a ocasião especial ...
Da próxima vez aceitaria chorar, se fosse o caso, de alma despida, no colo dos que amo e me amam ... na certeza do privilégio do amor e da amizade ... 
Faria mais disparates,  e erraria mais, porque errando saberia que se aprende ...
Carregaria sempre comigo um saco inalienável  de sonhos, sem medo dos excessos ou da transgressão do peso...
Seria mais atrevida e ousada, porque esfolar os joelhos pode fazer saudavelmente bem à alma ...
Deitaria na erva, rebolaria nas dunas, saltaria as ondas ... porque tudo isso seria VIVER !...
Andaria descalça, de cabelo ao vento ... dançaria na chuva ... e gargalharia de felicidade ...
Se pudesse fazer tudo outra vez, sorveria o instante, cada instante, embriagar-me-ia nos momentos, solta ... livre ... leve ...
Porque a vida é apenas isso ... instantes indeléveis, momentos abençoados ...
Se pudesse fazer tudo de novo, não cansaria de dizer "obrigada".  Não cansaria de repetir "eu te amo".  Não cansaria de pedir "desculpa" ...
Estenderia as mãos mais vezes,  ofereceria o ombro outras tantas, partilharia  sempre  um colo  grande, generoso e cego ...

... e apanharia muitos, muitos ramos de narcisos !...

Anamar

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

" COMO AS ÁRVORES ... "





Ontem à noite chovia de mansinho.
Chovia com aquela preocupação de não assustar ninguém.  Eram antes, um afago, as gotas que tocavam a vidraça.
Tudo sereno, em bicos de pés, como alguém que se sesga pela frincha da porta, despercebido, sem alvoroço ou turbulência.
Havia apenas um tamborilar leve, uma melopeia ... quase uma música.

Hoje o dia amanheceu despudorado de céu azul, luminoso, com sol a esbaldar-se por aí.  Um glorioso dia de Fevereiro, mês generoso que parece prometer uma Primavera que ainda não dobrou a esquina.
Enquanto iluminou os bancos, arrecadei-o para mim, numa tentativa de que, penetrando até à alma, me aquietasse o coração.

A minha mãe já não tem olhos para o sol.  Silenciou por dentro em definitivo.  Iniciou o caminho, também ela em pezinhos de lã, discretamente, para não perturbar ninguém ...
É um percurso lento, bem vagaroso, sempre olhando para trás, por cada passinho que avança.
O seu caminhar lembra a lentidão de um gato ronceiro, esgueirado pelos telhados.  Lembra o esvoaçar silente do passarinho que vai deixar o ninho ... porque chegou a hora.

A minha mãe, não vai ... está indo ... todos os dias um pouco mais, todas as horas lhe encurtam a caminhada.
Assumidamente.  Acho que agora, assumidamente.  Com aceitação.  A aceitação da inevitabilidade do cansaço da jornada.
Encerrou as portadas.  Reuniu os pertences que vai transportar consigo, pingos de amor e de entrega.  Olhou ainda os seus, uma vez mais, pelas frestas de umas pálpebras que se esforçam por se manterem entreabertas, a espaços ...
Os olhos opacizados não têm já força, vontade ou expressão.  A minha mãe está extenuada e só quer paz...

Mas o coração ainda bate, num corpo que já não é.  Que foi deixando de o ser, momento a momento.
O simulacro de gente que está naquela cama retira-lhe a dignidade de uma partida como ela mereceria, como ela pedia, como ela acreditou ...
A injustiça incompreensível da vida, ergue-nos a piedade, mas ergue-nos muito mais a revolta e a raiva.
E a não aceitação ... por nós ... aqueles que a conheceram de perto.
A minha mãe mereceria sair de cena em grande estilo.  Como as árvores ... tal qual como as árvores, erectas, firmes, quase eternas, como os sobreiros ou as oliveiras do seu Alentejo
E protectoras, generosas ... regaço e berço ...

Olho-a longamente, e conversamos em silêncio.
Ela não me fala. Eu não lhe falo.  Mas o código do amor transporta aos corações as nossas longas "conversas" . O código dos afectos, só quem o sente o entende .
E eu sei que há um legado imortal que ela me deixou : o seu entusiasmo perante a vida, a sua resiliência perante as adversidades, o seu encantamento pelos laços do coração, a sua dádiva e entrega em generosidade ímpares, e a sua suprema alegria de VIVER !

Já tenho uma infinita saudade da minha mãe ...
E sei que daqui para a frente, sempre que eu não consiga ver o sol sorrir-me, olharei mais atentamente, e vou perceber  como é uma bênção continuar por aqui a poder olhá-lo ...

Anamar

domingo, 11 de fevereiro de 2018

" PORQUE OS PENSAMENTOS TAMBÉM SÃO COMO AS CEREJAS ... "





Uma  tarde cinzenta  de um  Domingo  de  Carnaval  meio  mascarado  de  quarta feira  de  cinzas ...
A minha música que embala, o meu computador que me dá voz, o meu silêncio que pacifica, o meu quarto com esta janela sobranceira ao casario, Sintra que continua lá, lá por detrás daquilo tudo que já não alcanço daqui, uma que outra gaivota dispersa em céus que não são bem os seus ... enfim, uma realidade tão doce, palco da minha vida, desenhado ao meu jeito há quase década e meia, preenche gratificantemente a minha tarde.

Não sei se seria fácil para alguém que não eu, perceber como esta interioridade me equilibra, me aninha, me acarinha o coração, e como este ninho protector me faz sentir tão segura, tão defendida da adversidade com que a vida, em frequência, nos presenteia.
É um porto seguro, é um cais de ancoradouro, é uma estação de chegada ...
Os gatos dormem no calor do radiador aos meus pés.  Também eles fazem parte da moldura que me rodeia .

Inevitavelmente penso na minha vida.  Na que detenho actualmente, na que já atravessei, na que terei adiante, sabe-se lá até quando ...

A que me é oferecida por cada manhã em que acordo, viva... e que aprendi por isso a amar e a valorizar ... começou a fazer-me finalmente o sentido de que talvez nunca tivesse desconfiado, ou de que andasse injustamente distraída.
Comecei a senti-la como um presente de laço e fita .
Comecei a olhá-la como uma guloseima de dia de festa.
Comecei a aprender a usufruí-la, sorvê-la  como refresco doce, disponível a atleta em meta de chegada.
Comecei a degustá-la como aquele pratinho de farófias que a mãe nos punha na mesa ... iguaria perecível, quando a última colherada esvaziasse a taça ...
Tudo isto, toda esta atenção mais desperta à sorte que me é disponibilizada, adveio da modelagem doída, operada no meu coração,  adveio do milagre operado na minha alma, pelos tempos adversos, dolorosos e violentos que atravesso, face à degradação irreversível e sem volta, da minha mãe, e tudo o mais que rodeia esta situação.  Face ao anúncio iminente da sua partida, e talvez por isso eu poder perceber, como ela encheu a sua vida, de uma forma simples, singularmente alegre e feliz, com bouquets de pequenas coisas.  Perceber como ela sempre deu o justo valor ao que foi o passar por aqui, sem exigências, a dividir-se com todos os que amou. E amou muito ... todos.
Perceber que ela ainda não partiu, simplesmente porque ainda não o quis.
Porque para ela, a vida sempre foi muito ... sempre foi tudo.

Aprende-se com o sofrimento.  Cresce-se nas vicissitudes. Amadurece-se na dor.

Por tudo isso, duramente aprendido, não só me posiciono com mais positividade e relativismo face ao dia a dia, como posso agora olhar o passado com mais bonomia, aceitação, benevolência e tolerância.
E  gratidão, sem dúvida.
Por tudo isso, em momentos de reflexão e interioridade, como estes, exercito a paz com a vida que vivi, com humildade e sem exigências,  pratico uma mentalização de aceitação e alegria com o que conheci, quem conheci, percebo a sorte e a riqueza que tive, porque a vida se me coloriu generosamente, e afinal me abençoou ....
E  procurarei não esquecer nunca, que  sem dias de chuva não haveria arco-íris !...

Sobre a estrada que ainda terei que percorrer, acredito na sua mansidão e sombra ...
Acredito que o mar estará "flat", que não haverá grandes tropeços no caminho, que haverá pássaros e sonhos azuis ... porque acredito que a existência não poderá ser um castigo, e que a hora da reconciliação sempre chega !...

Anamar

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

" PARTIDA "






" Não existe partida para os que ficam para sempre nos nossos corações" ...

É uma frase feita, talvez.  Daquelas boas de aplicar nas pagelas das câmaras mortuárias.

A minha mãe está no fim, acredito.  Não o quero encarar de frente.  Prefiro fingir que não é bem isso, ou então que talvez não seja tão difícil assim de suportar, ao acontecer, dada a situação mais que precária, dolorosa, violenta, de sofrimento psicológico atroz, em que se encontra há já tanto tempo, e porque afinal ... como profetiza a frase, não existirá de facto, partida.
O meu pai morreu há quase 26 anos.  Recordo até hoje, não o seu rosto, não a sua expressão, mas apenas os seus olhos e as suas mãos ...
Ah, é verdade, e muitos jeitos, hábitos, pequenas manias do dia a dia que o caracterizavam.
É essa panóplia de marcas deixadas por uma pessoa, que a tornam ímpar, irrepetível e provavelmente, inesquecível ...

A minha mãe é uma guerreira de vida.
A sua rebelião contra a inevitabilidade da existência é que lhe tem permitido driblar vezes sem conta, espantosa e quase absurdamente, as ameaças sérias de ordem de marcha.
Com quase 97 anos, com um comprometimento cardíaco seríssimo, que inclusive lhe inviabilizou o sucesso de um cateterismo, há já anos atrás ... com uma demência profunda, com uma imobilização que a confina há largo tempo a uma cadeira de rodas ( ela que sempre foi autónoma, independente, indómita ) ... claudica, oscila, parece sucumbir ... mas não cai.
E não cai, porque quer ficar.  Quer estar.  Agarra-se, como um náufrago, ao pedaço de madeira que lhe flutua ao lado.
Tem momentos em que parece ter desistido.  "Negoceia", inclusive, com os seus mortos e os seus santos, que bem poderiam vir buscá-la ...
Mas quando a coisa fica feia, como uma menina reguila, parece tocar à campainha e fugir rua abaixo, antes que lhe abram a porta !...

Acredito que o segredo reside aí mesmo.
Nessa força indomável de resistência face aos temporais da vida, e de aposta no amor a todos nós, os poucos que formamos a sua família.  São esses que ela não quer de forma nenhuma, deixar para trás !
Queria poder viver até ver as netas terminarem os cursos ... até ver o António chegar ao liceu ... depois à Faculdade ... ver a Vitória nos Jogos Olímpicos  ( já que no seu tempo e para seu grande desgosto, as mulheres não praticavam desporto ) ... ver o Frederico a ser tão bom aluno quanto a mãe ... possivelmente ver a Teresa, recém-chegada a este mundo, talvez casadoira ... não sei !!!

"Como queres que eu vá e os deixe cá, todos ?" - dizia-me, quando ainda dizia ...
"Como queres que aceite não ver mais a minha casa e as minhas coisas ?" - dizia-me, quando ainda lhe era dado sonhar ...

Desta feita, o cansaço é extremo.
Desta feita, cerrou os olhos, como querendo que lhe deixem a alma na penumbra reconfortante de claustro de mosteiro.
Parece incomodar-se com a luz, com o som, com o sol, com a alegria ... com a Vida e todas as suas manifestações de exuberância .
Parece ter encerrado as portadas, ter despejado as flores que adorava, das jarras, ter silenciado por dentro, do coração à garganta, e ter permitido que uma indiferença cinzenta e pesada, ameaçadora de borrasca, esteja a descer sobre ela ...
Sobre ela, e sobre todos nós ...

Não haverá partida, tenho a certeza !
A minha mãe nunca foi mulher de despedidas.  Por isso, sempre nos "indrominou" numa pirraça de menina brincalhona ... Era o que faltava que a apanhassem distraída !  Ainda não era hora !...

A minha mãe está a ficar distraída agora ... parece-me ...

Anamar

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

" VOLTAR "






Voltar é juntar dois lados
Reunir pedaços
Reescrever a história ...
É buscar cá dentro
aquilo que fomos,
lembrando o guardado
na nossa memória ...

Voltar é ter na vontade
um recomeço  outra vez     
de cabeça erguida,
deixando p'ra trás
as lembranças tristes
a mágoa sentida
o desencanto e as dores ...
É prender a esperança
É crer no futuro
Apostar no sonho
de novos amores ...

Voltar é sorrir à vida,     
como se ela fosse
uma nova alvorada
É renascer
É pegar a estrada,
sempre olhando em frente
e é acreditar   
fazer do amanhã
um novo presente !...

Anamar

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

" E A MAIS NÃO SEREMOS OBRIGADOS ..."


Nesta tarde mansa e ensolarada, com um sol tímido a espreitar-nos, neste Janeiro frescote, resolvi meditar um pouco, aproveitando o silêncio e a serenidade que baixaram por aqui.

Desde sempre que a minha maneira de ser, introspectiva, exigente, perfeccionista e por isso severa, me coloca sem dó nem piedade, nas linhas da frente das batalhas com que a existência não me tem poupado.
Não sou uma pessoa optimista por natureza, sempre vejo o copo mais vazio que cheio, sempre desvalorizo além da conta aquilo que meritoriamente talvez me fosse devido.
E porque sou honesta comigo mesma, antes de o ser com os outros ... e porque me exijo sem apelo, o alcance de uma fasquia que talvez nem me fosse exigível ... guerreio, brigo, colido  ... e quase sempre saio injustamente perdedora nas análises que faço sobre mim própria.
Sempre me acho mais responsável por isto ou aquilo, que o razoável ... sempre me acho mais culpada por isto ou aquilo que o racionalmente aponta ... sempre me penalizo por não ter feito isto ou aquilo que se calhar nem me seria devido.

Contudo, desde os anos em que semanalmente dispunha de apoio psicoterapêutico, que fui orientada no sentido de reciclar estas posturas, no sentido de ser mais imparcial, isenta e justa com a pessoa que eu sou ... em suma, de ME repensar..
Filha única que fui, de pais centrados exclusiva e doentiamente em mim, sempre me foi exigido o máximo, e não o aceitável  Sempre fui confrontada com o ideal e não com a realidade possível ao meu alcance.  Sempre fui cotejada desfavoravelmente com os que me rodeavam ...
Tudo isso, frequentemente me deixava um profundo gosto amargo de insatisfação, uma infelicidade, uma insegurança  e uma culpa desgostosa.

Mas enfim ... a vida prosseguiu.
Os anos trazem maturidade, distanciamento, aprendizagem ... calo, "endurance" face às intempéries.
Tudo isso tem custos, contudo.  A modelagem de uma personalidade não é pacífica, o olhar sobre a vida e as pessoas, é quase sempre de defesa e de difícil exposição.
A carapaça grudada não despega fácil. O sentido de "vigília" e guarda, não facilita.
Ganha-se dureza, resistência à saída da zona de conforto que nos aninha e pacifica, inércia perante reinícios, alterações de fundo, novos figurinos.

Assim, porque a  frescura  da  idade  já  foi, e  porque a  saúde  e  o cansaço  também  começam  a  dar sinais, neste momento o meu trabalho pessoal, prende-se numa luta comigo mesma sobre a relativização dos acontecimentos que me povoam a vida, prende-se numa reaprendizagem de vida mais saudável, menos penalizante e destruidora, prende-se numa busca de mais paz, a paz que advém de sabermos que talvez tenhamos dado o nosso melhor, ou pelo menos tudo o que sabíamos e de que podíamos dispor para superar cada dificuldade.
Dessa forma, por cada noite, ela será seguramente  de sono tranquilo e não de vigília, porque certamente a consciência, de nada poderá acusar-nos ...

... já que a mais não seremos obrigados !...

Anamar

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

" UM DIA DE CHUVA ... "






O dia amanheceu finalmente em "modo" inverno, depois de ontem nos ter sorrido primaveril, diáfano, de céu transparente e azul, sem que sequer um fiapo de algodão o pintalgasse ...
Hoje o firmamento carregou-se de nuvens dantescas, ameaçadoras e choronas, que ainda não pararam de verter água cá para baixo.  Felizmente.  Obviamente de forma feliz, para nos amenizar a preocupante e ameaçadora seca severa que se estendeu temporalmente além da conta, de uma forma contra-natura para a época.
O frio também fez jus à estação que atravessamos.  E eu diria que até sabe bem ...

No meu posto habitual, que é como quem diz, o meu "miradouro privado", frente ao tal casario inexpressivo  que se estende aos limites do horizonte ( permitindo que os meus devaneios nunca sufoquem por aqui ) ... olho as nuvens no alto, que se deslocam ao sabor da aragem,  vejo  algumas gaivotas  intrépidas  que  ousam  planar  desfrutando  a  intempérie ... ( ou não fossem elas pássaros de falésias, de mar encapelado e de salpicos de espuma endiabrada nos areais ), assomo por instantes breves, tentando ver se o meu Farrusco se atreve, no terraço lá de baixo ... constato uma outra vez  que o meu plátano atrevido  se desnuda mais e mais, despudoradamente ao sabor do vento que o sacode e lhe eleva as folhas mortas ao nível do meu sétimo andar, e penso ...

Penso como na verdade a vida é interessante, curiosa, desafiadora, estimulante !...

Reli  ao longo desta tarde, alguns posts  meus, com tempo de escritos.  Remontam a alguns anos atrás.
Revisitei-me assim, à distância que o tempo permite.
Re-olhei-me com a isenção e o desapaixonamento possíveis, de alguém que se analisa cirurgicamente. A que eu era, a que eu fui,  como o fui, por que o fui.  De fora para dentro, sem complacência ou pieguice.
Reflecti, maturei pensamentos, auscultei posturas.  Esgravatei emoções,  mexi em sonhos que me povoaram, percebi dores e sofrimentos ... pacificamente ... e não me penalizei por isso.
Convivi com a vida real.  Com as escolhas reais.  Assentei e firmei os pés bem no chão, por forma a catapultar-me ao futuro, com esperança e confiança.
Porque o futuro é afinal o desconhecido que nos espera, a partir do presente que vivermos.  Há  por isso que valorizar cada momento, enfrentar corajosamente cada atribulação, deixarmo-nos surpreender  com os desafios, acreditar que a vida é como as marés ... depois da maré baixa, sempre uma preia-mar chegará ao destino e que, tal como este tempo atmosférico de sol radioso seguido de um abençoado dia de borrasca ...

   " um  dia  de  chuva  é  tão  belo  como  um dia de sol ;  ambos existem ... cada um como é ! "

Anamar

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

" E A RODA RODOU DE NOVO ... "





Época estranha esta !
Mesmo os mais resistentes, sempre se deixam envolver e "mexer", por um clima global de sentimentos, emoções, reflexões, balanços contraditórios.

Todos sabemos racionalmente que o 31 de Dezembro é igual ao 1 de Janeiro.
Todos sabemos que a escorrência do tempo prossegue segundo a segundo, com a inevitabilidade do que nunca é reversível.   Mas de repente, porque o Homem criou fronteiras, balizas, bitolas, achamos que pulámos de uma qualquer margem para outra, promissora  margem de valer a pena, miraculosamente diferente e seguramente melhor !
Olhamos para o Novo Ano como auspicioso, como um paraíso que nos pisca o olho, a nós que ainda estamos num ano já rançoso, já gasto, que já deu o que tinha a dar ...
E agora  sim, os milagres da mudança, da reconstrução, do aperfeiçoamento e consequentemente da felicidade ... aquela que nos foi escorregando das mãos nos 365 dias transactos ... aquela que nos espreitava e fugia  num esconde-esconde sádico de jogo de promessa ... vão propiciar-nos finalmente a almejada existência que sempre acreditámos merecer ...
E melhor ... numa espécie de passe de mágica, na proporção das Boas Festas que fomos pulverizando profusamente, com o coração cheio de bonomia e generosidade, por amigos, conhecidos e até desconhecidos ...

Só que esse "balão" insuflado de ingenuidade esperançosa, de boa vontade a rodos, de solidariedade magnânima, irá inevitavelmente esvaziando com o transcurso das horas, dos dias, dos meses ... até que outra passagem recarregue as expectativas, os sonhos, a fé e as vontades.
Até que outro rio de esperança se reabra à nossa frente !
Até que volte a ser Dezembro de novo, e a "roda" complete a caminhada !...

Agora ... bem, agora que o Ano está fresquinho de recém-chegado, criança de nascido, vemos, revemos, rebobinamos as nossas histórias.  As histórias das vidas,  porque todas as vidas sempre são enredos mais ou menos felizes de histórias ... as nossas !
Só nós as conhecemos no recôndito do privado.  Só nós lhes conhecemos os cheiros, as cores, os risos e as lágrimas.  Só nós lhes podemos dar nomes e reconhecer as personagens.  Ninguém mais !
E temos que as abordar sem severidade, acredito.  Temos que as encarar com tolerância, carinho e aceitação. Porque foram seguramente as que conseguimos escrever, como conseguimos escrever, com a convicção de que cumpríamos o designado.

E depois, sim ... pacificados com a nossa alma e de boas relações com o nosso coração, podemos então calmamente, fazer  uma "arrumação de casa", uma "faxina" de decisões, um "cardápio" de sonhos ...
Mas sobretudo, é desejável que esse processo de intenções seja permanentemente dinâmico, actualizável, corrigível, questionável, aperfeiçoável, fazível ... ao alcance das nossas forças, das nossas incompletudes, de acordo com as nossas vontades, longe das utopias e angústias da perfeição, envolto no acreditar que passa por nós e apenas por nós, a capacidade da renovação e portanto da melhoria !

Só dessa forma  fará  sentido o balanço que nos propomos  com perseverança, ano após ano, no esgotar dos doze meses que nos são concedidos !

Anamar

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

" BALANÇO "





Os diospiros estão no fim, disseram-me há pouco.
O plátano está quase despido, na praceta onde o farrusco se esconde da intempérie.
O azul há muito sumiu de um céu que, promitente de Verão fora de época, envergou finalmente roupagens escuras, encasteladas e molhadas.  Adequadas a este tempo de silêncio interior, de quietude e sonolência .
As gaivotas, algumas, esparsas aqui por cima, parecem não ter rumo, mercenárias que são do betão.
Deixaram mais além a orla marinha, nunca entendi porquê ...
Trocar aquele mar de paz ou de borrasca, de verde ou de azul ... aquele vaivém de balanço, de cólo ou de berço por este nada que a cidade lhes oferece ... não é coisa que eu entenda ...

O tempo avança, inexoravelmente.  Pula de estação em estação, de mês em mês, de ano em ano.
Agora, outra vez aquela época insana de uma espécie de alucinação colectiva, numa urgência de salvar não sei o quê, de redimir não sei o quê, de inventar não sei o quê ...
Parece querer agarrar-se o que se deixou fugir o ano inteiro.
Parece querer vivenciar-se uma bonomia de redenção inexplicável.
Parece querer salvar-se uma humanidade dissoluta e distraída ...
Parecemos querer atordoar-nos no mergulho suicida de miragens felizes ...
Tudo a correr muito, ao ritmo estranho do calendário que parte ...

E as pessoas partem também das nossas vidas ...
As "nossas", as próximas, as distantes, as conhecidas ... mesmo as quase desconhecidas...
As que nos pertencem e as que a vida determinou pertencerem-nos ...
E sempre, seja em que circunstância for, empobrecemos.  São pedaços de nós que se dispersam por aí.  São marcos de caminhos que vão ficando sem sentido.
São  horizontes  que se vão distanciando e entrando na linha penumbrenta das névoas das madrugadas ...
São silêncios instalados em lugares vazios e ausentes ... são espaços que se agigantam em frio descomunal ... são marcas quentes deixadas em camas desfeitas há muito ...
Risos e gargalhadas que já só ecoam, olhares descoloridos pelo desconexo da vida, memórias que empalidecem com toda a injustiça do mundo ... sem apelo ... só porque tinha que ser assim !...
São perdas ... sempre perdas ... inevitáveis perdas !...

E a história vai-se escrevendo .
Como num livro,  as páginas vão virando, as folhas vão dobrando  amarelecidas, como esquinas contornadas sem retorno.  E caminhamos, apoiados no que fica, nos que ficam ...
E nada vai ficando igual.
E um destes dias, nós, que minuto a minuto deixamos de nos conhecer, acabamos olhando apenas o horizonte distante das memórias ... enquanto a tivermos.
E tudo o que aquela foto desfocada ainda nos mostra, já não fará sequer sentido nas nossas mentes !...

Balanço inevitável e injusto das vidas !!!

Anamar

terça-feira, 28 de novembro de 2017

" AS PEQUENAS COISAS "






Um dia talhado a pedido ...

Parece que a natureza, a vida, o tempo, sei lá ... resolveram dar-me uma colher de chá, nesta tarde mansa, cinzenta e chuvosa.
Frente à minha janela, o dia fechou docemente, o casario foi ficando restringido no alcance da vista, silenciaram os ruídos lá fora ...
Tudo se esbateu, como a subtileza de uma aguarela pintada.  Lá longe, na linha do horizonte pouco se divisa, e muito se pode imaginar.  Sei claramente tudo o que está para além, mas sou livre de voltear na aragem desabrida deste fim de dia e dançar por ali, nas correntes que empurravam há pouco as últimas gaivotas, que em recuo, se atreveram ...
Também como elas, posso esbaldar-me céu fora, sem limite ou barreira, sorvendo apenas a quietude e a paz !
Junto de mim, a música que sempre me acompanha, torna maior e mais cúmplice o aconchego que me envolve.
Deixo-me tomar pela emoção das pequenas coisas ...
Deixo-me o direito de me embrulhar neste silêncio gostoso, nestas notas largadas no éter, como cobertores envolventes, como macieza de lençóis de cetim, como sorrisos de madrugadas promitentes !
E é uma volúpia, um estado de graça, uma espécie de clímax, com o mesmo sabor de um orgasmo desejado ...
Quase não ouso mexer-me além do essencial.  Quase não ouso perturbar esta bênção descida, esta beatitude de silêncio e tranquilidade. Quase não ouso ... simplesmente ...

 E viajo.  Viajo pelas memórias, pelos lugares, pelas pessoas ... Todas.  As que amei, as que amo, as que me amam ... Mas também as outras ... as que não me escolheram ...
As que estão, as que se perderam, as que ficaram, as que partiram e me deixaram mais só ... Todas.

Olho os lugares. A minha infância, que foi o lugar mais seguro e certo que já tive. O cólo da minha mãe ... as mãos do meu pai ...
Depois, o amanhã que já foi ontem ... e o amanhã que será depois ...
Olho as marés nas praias todas que pisei. Recolho o que me trouxeram e o que levaram, no incessante vai-vém das ondas da vida ...
Olho as noites enluaradas a coroarem-se em auroras de desejos, sonhados em silêncios.
Olho o sol amarelo, laranja, vermelho do fogo de outros ocasos, de outros levantes , distantes ... À distância de memórias impressas debaixo da pele ...
Escuto os sons das matas, do vento, das vozes que se foram apagando no vórtice da intemporalidade ...
Escuto o grasnar das garças na renda da rebentação. Oiço o pipilar das aves ao raiar do dia. Comprazo-me com a melopeia incessante do pica-pau no coqueiral ... com o açoitar da chuva lá, na floresta  cerrada ... com  o  tamborilar  das gotas  aqui, na  vidraça  da  minha  janela ...
Impregno-me com os cheiros, adocicados das paragens inóspitas...   salgados, das maresias espreguiçadas ...
O cheiro das rabanadas no Natal dos meus avós ... o cheiro da coentrada na açorda de domingo ...

Enfim, o  privilégio das coisas pequenas e insignificantes  é  um brinde de dia de festa, é presente de aniversário festejado, é oferta para a alma e para o coração, recebida com a ternura e o carinho daquilo que não se compra , não se paga, não se exige ...
Recebe-se com o calor da emoção, surpreende-nos com a autenticidade do que não tem preço ... maravilha-nos com a força do inesperado, sempre novo e surpreendente ... ainda que seja apenas uma " pequena coisa " !...

Anamar

" INFERNO " - 15 Outubro 2017





E escureceu em céu e terra ...
De vermelho se pintou o universo
Vermelho, cor de sangue, cor de inferno
vermelho, cor de morte, cor de guerra ...
As ondas de loucura que avançavam
nos espasmos de um vento aterrador
sacudiam, destruíam e vergavam
as árvores que clamavam em estertor ...
A trenodia da floresta murmurava
súplicas aos homens e aos deuses
indiferentes ...                                       
De desespero e impotência soluçava,
no estrépito langor da morte que cercava ... 
mas como sempre, são os deuses, seres ausentes ...


E a noite que era noite, ficou dia
e  acendeu de horror a escuridão
foi das árvores silentes, agonia
foi um grito de revolta,
um coração sangrante, moribundo e estropiado
abraçando os troncos ainda erguidos
que p'la natureza-mãe foram paridos
e pela mão do Homem, sepultados !
Erectas sobre a encosta, amordaçadas,
como esfinges, árvores mortas, sonolentas ...
no verde da memória ainda gravadas,
de pé, para sempre recortadas
quais fantasmas, se acabando na tormenta !                             

E em tudo aquilo que restou,
não há cantos, não há sombras, não há vida
só o tempo, indulgente, dará paz ...
Silenciam os mortos que ficaram
são testemunhas injustas que tombaram
são a voz da floresta em despedida !

Anamar

domingo, 26 de novembro de 2017

" AFINAL ... "






Estou convencida de que afinal até gosto, e muito, do Outono !
De que afinal até gosto um bom pedaço da chuva !
De que afinal até amo perdidamente o friozinho com cheiro a castanhas no assador, que até amo o céu nublado que custa a definir-se, a "fumaça" a sair das bocas que falam ... e o silêncio cúmplice que paira quando nada é dito, e quase tudo é sentido !...

Afinal eu tenho umas saudades infernais, de calcorrear veredas e alamedas pisando firme a gravilha, deixando a aragem gelar-me o nariz, embiocando as mãos na malha das luvas e soltando o cachecol no desalinho da brisa ... sem destino ou norte, saboreando apenas porque sim ...

Tenho umas saudades infinitas dos cheiros a terra molhada, a musgos trepadores, a sombras húmidas e recolhidas, de caminhos que só tinham volta se eu quisesse ...

Tenho desejos insustentáveis dos silêncios, da ausência de gente, nestes castanhos, ocres e dourados.
De olhar os plátanos a despirem-se na intempérie.  De brincar com os ouriços preguiçosos das castanhas que ainda não tombaram ...
E do tamborilar de gotas  atrevidas  e  abençoadas,  na  época  em  que  a  chuva  nos  comprazia ...

Recuo no tempo e revejo o tempo, simplesmente... Volto páginas, dobro esquinas, abro dias, meses e anos ... Perambulo pela vida que desfila.
Era eu lá atrás, embora custe a crê-lo.
Era eu, eu e todos os sonhos que sonhei.  Eu e todas as esperanças que raiavam de verde pelas madrugadas.  Eu e uma cesta de rosas fora de época, contudo cheirosas e doces.
Era eu, aquela que dançava em desafio atrevido no meio das noites que eram minhas.  Ou talvez já não dançasse ... Daqui, não consigo já olhar tudo.  Uma bruma interpõe-se entre o hoje e o então.
Um nevoeiro corre as cortinas da mente ...
Seria mesmo eu ?!
Por que  restou  então  apenas  isto ?  Será  essa  a  inevitabilidade  da  existência ?  Onde  fiquei ? Onde me parei e esqueci ?
Em que pedra do caminho me adormeci ?  Em que encruzilhada me perdi ?  Em que labirinto me cansei ?  Em que estrada desisti ?...

Outro fim de Novembro a cheirar a bafio, a mofo, a solidão e abandono... Outro fim de Novembro a saber a raiva, a mágoa, a dor ...
Histórias mal terminadas ... Romances mal alinhavados ... Enredos mal escritos ...
As pirraças dos destinos jocosamente brincando de esconde-esconde nas nossas vidas !...

Anamar

sábado, 30 de setembro de 2017

" SEMPRE O OUTONO ... "




E o equinócio de Outono aconteceu.
O Verão partiu e com ele os dias prometedoramente azuis, quentes e luminosos.
Passei-o por aqui mesmo.  Nada de praias, nada de férias no que elas têm de especial, nada de significativa mudança de vida, na tentativa que se faz de a arejar quando se muda o local de poiso ...

Talvez por isso não me tenha verdadeiramente dado conta de que o ano está a iniciar o seu último trimestre, de que, mais um pulinho e é Natal outra vez, de que os dias escuros, curtos e sorumbáticos estão a bater-nos à porta.

Tenho sim, a sensação de uma escorrência demasiado célere de tudo isto.  Sinto dentro de mim um desejo imperioso, sonhador e utópico,  de fazer retardar a sua marcha ... Como se o pudesse ... como se isso fosse possível ... como se correndo em sua perseguição, numa qualquer volta a pudesse abrandar.
Como se pudesse retê-la antes de realizar tudo ou quase tudo que um dia sonhei ... que fui sonhando pelas esquinas da vida.  Como se esta tivesse comigo, uma dívida a saldar.

A nossa existência não se renova. É um bem de que dispomos, que devemos gerir com o cuidado e o carinho com que se trata tudo o que é valioso, mas frágil e insubstituível.
A precariedade com que tudo acontece, a aleatoriedade com que tudo nos surpreende  apelam e impõem que estejamos despertos e vigilantes, que não sejamos perdulários e estejamos atentos à fruição de cada pequena coisa que nos cai no regaço momento a momento, como presente em dia de aniversário, ou fruta madura pendida do ramo.
Estar por aqui, respirar, rir ou chorar ... viver afinal, deverão ser bênçãos que descem sobre nós, como a chuva doce em dia quente, que ameniza, envolve, embala ... adocica o caminho ...

Não tenho sido uma pessoa muito deslumbrada com a vida.  Por vezes arrasto-a, como quem carrega um fardo que me deixa dúvidas sobre as vantagens de o fazer.
Sobretudo nos últimos tempos, as "dores de crescimento" que tenho experimentado, fazem-me crer como  inevitáveis, demasiados danos colaterais.
Mas ainda assim, vagueando em pensamento até onde a memória mo permite, terei que concluir da generosidade de tudo quanto me tem sido disponibilizado.
Terei que concluir que se foi sendo assim, é porque teria que o ser ... E que as marés se sucedem nas subidas e descidas em praias que as acolhem ... E que as Primaveras sempre vêm no fim dos Invernos, sem nada que as altere ... E que depois do silêncio tantas vezes perturbador de noites escuras, sempre aclara uma alvorada que progride até à luz ...
Pelo menos, terei que entendê-lo como tal !... Terei que me obrigar a concluí-lo !...

E sempre assim, nas andanças das existências, por mais injustificáveis que as achemos ...

A vida é o sobe e desce dos carrosséis da minha infância ... É a ansiedade da subida, seguida da adrenalina louca da descida desenfreada, que atacávamos estugadamente, com um sorriso inevitável nos olhinhos matreiros pela satisfação da conquista do mundo ... parecia !...
Quando cavalgávamos aqueles corcéis de pau, em montanhas inventadas ... Quando o friozinho na barriga, nos tomava agradadamente, no desejo de que a viagem e a corrida não terminassem nunca !...

Mas éramos então crianças, e ainda não sabíamos grande coisa disto por aqui ...

Hoje, neste Outono doce e morno deixo-me tomar por uma lassidão de astenia de alma.  Deixo-me invadir por um silêncio que busco e desejo, na protecção da castanha no ouriço...
Fico e parto ... daqui.
Tenho que ficar, mas desejaria partir ... Subir ao pico da encosta, ao lugar tão alto que só tem céu e mar em contraste atrás de si, e adormecer por lá mesmo, afundando-me no musgo fofo das penedias, olhando as estrelas quando subissem no firmamento, escutando a brisa que promete ser vento qualquer dia ... simplesmente adormecer, quando o sol dormir também, lá longe, no horizonte vermelho, que sempre se acende p'ra noite ...

Na certeza de respirar a paz ... a paz que sempre sobe, gratuitamente, da Mãe, que é colo e útero...  Que é verdade suprema, primordial ... Que nos trouxe e nos há-de levar qualquer dia, e nos dará guarida e abrigo  na verdade única, matricial ...
Lá, onde reside a  nossa essência !...

Anamar

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

" NO DESACERTO DO PASSO ... "






Quando a Vida custa a acertar-se, é um cansaço atroz !
Quando os volteios  com que nos enrola, por cada dia que amanhece, se estendem temporalmente numa espécie de teste de resistência a cada um, numa repetição aparentemente sem fim ... aí, a resiliência pessoal  é mesmo a única coisa que pode ajudar-nos.
E esse grau de adaptação à realidade resiste enquanto resiste, enquanto a saúde deixa e a esperança não esmorece.  Enquanto ainda temos força no nosso íntimo ...
Mas é uma prova de fogo que exige uma "endurance"  de atleta de alta competição, que nem sempre ( ou quase nunca ), temos capacidade de alcançar, menos ainda de manter.
É um equilíbrio laborioso, alcançado a duras penas e com juros demasiado elevados.
Sobretudo quando os dias vão e vão e vão, esticando no tempo e na vida, os túneis se obscurecem, os horizontes se vão afastando cada vez para mais longe de nós ... num simulacro de meta a que nunca se irá chegar ...

E quando as pegadas  deixadas são demasiados e intermináveis rastos que se desenham em simultâneo nos areais da nossa existência, num desafio monstruoso e desproporcionado, abate-se então uma canseira que nos retira a capacidade até mesmo de viver, até mesmo de sobreviver ... até mesmo de nos erguermos sobre as nossas pernas por cada manhã, simplesmente !
São sucessivos e nunca desistentes reacendimentos, em frentes de fogo incontroláveis !

E apetece hibernar.  Apetece esconder a cabeça sob uma qualquer carapaça, na esperança de uma protecção providencial que abençoadamente nos subtraísse ao desafio de viver, à obrigação de resistir, à necessidade elementar de caminhar.
Apetece buscar um lugar anódino ... um refúgio a salvo ...
Manter o equilíbrio no desacerto instituído ... é urgente !

Estou assim, nesse "modo" alforreca, como uma amiga em tempos classificava este estádio letárgico e quase indiferente já.
Uma espécie de opção por silêncio, uma espécie de recolhimento auto-imposto, uma espécie de sono ansiado de uma sonolência abnegada ... misericordioso e comiserador ... uma espécie de escolha da paz do recolhimento de claustro de abadia ...
Queria que se esquecessem de mim.
Queria poder retirar-me para uma qualquer ilha  inóspita, perdida por aí ... como o protagonista do último romance que terminei de ler .
Queria habitar um farol sozinho e abandonado, sobranceiro  aos  rochedos, adormecido pelas ondas alterosas, ameaçado pelos ventos agrestes que empurram as gaivotas e despenteiam os arvoredos ...
Queria deixar-me possuir anónima, pelo encantamento melífluo de um lugar de paz, como se nada existisse à minha volta e eu não existisse também, numa anestesia ou torpor !

Para finalmente, nele poder repousar ...
Estou tão cansada !...

Anamar

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

" PEREGRINANDO "


Liberdade é ser poeta,
é pintar a noite negra
com as cores do arco-íris
É fingir acreditar
que ora é hora de voltares
quando eu sei que vais partir ...
É enfeitar as estações
É escolher sempre os Verões
em vez do Inverno frio
É ser dona do viver
conforme me apetecer
num insano rodopio ...
Liberdade é desbragar,
é rir ou então chorar,
fingir que tudo é verdade ...
inventar como eu quiser,
pois tudo o que se disser
ao poeta é perdoado ...
Ser poeta é liberdade ...
A maior que a gente tem,          
e é espelho de uma alma pura
Não se acomoda ao real,
mesmo sendo um temporal,
é uma doce loucura !

E por isso vou escrevendo ...
De palavras vou vivendo
não me importando o destino ...
E ao longo da caminhada,
ainda que  penosa a estrada,
levo a fé de um peregrino...

Anamar