quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

" A VIRADA "




A esta hora, o ano já virou na Nova Zelândia e na Austrália.
Vem vindo por aí fora, de fuso horário em fuso horário, a virar páginas do calendário, a acrescentar mais um risquinho na contagem das vidas ...

As pessoas afobam-se, aceleram nesta recta final, parecendo querer agarrar não sei o quê ... antes que acabe e não cheguem a horas ...  Parecendo querer AINDA fazer, o que não fizeram ao longo do ano que agora termina.
Espalham-se votos pelo ar, saudações e desejos aos conhecidos, mas também aos desconhecidos, numa bonomia especial e própria da época.
O ser humano está mais tocado nas emoções, nos sentimentos, e o melhor de si, está logo ali ao pé da boca !
Há uma espécie de redenção interior, uma espécie de beatitude nos corações, e uma expectativa qualquer que não se controla, mas que se percebe ...

Por que acreditamos nós, que num qualquer passe de mágica, o tempo, de repente, fica complacente, fica um bom amigo e nos vai dar uma "mãozinha" daqui para a frente ?!
Por que achamos nós, que nesta repentina necessidade de balanço, de correcção, de planificação ... nesta ânsia de melhoria e de mudança, tudo se vai agora resolver de vez ... porque vem um Ano Novo ?!
Por que sentimos uma necessidade urgente de faxina, de arrumação  na mente e nas vidas ... em carácter irrevogável ?!
Por que queremos atabalhoadamente definir metas, estabelecer objectivos, que agora sim, temos a certeza, vamos cumprir ?!...

Porque a esperança, mesmo para os menos convictos, nunca abandona o Homem nesta sua caminhada !
É ela, que  lado a lado com o sonho, o empurra adiante, lhe ilumina a estrada, lhe acende a existência !...

E o Homem vira criança outra vez, com a virada do ano !
Afinal, ganhou um brinquedo especial ... Ganhou de uma vez só, mais 365 oportunidades novas !...

Hoje, é  inevitável que se recue e se reveja o "filme" da senda já percorrida.
É inevitável que alguma nostalgia desça ...
Que o que já foi e quem já foi, nos assomem  de novo à porta ...
É natural que  as lágrimas corram ... de saudade, de tristeza ... até mesmo de cansaço.  É natural !

Mas é muito importante que se reúna a paz possível, a tranquilidade necessária, para avaliarmos e valorizarmos com maturidade e compreensão, tudo o que já nos foi dado viver, todas as oportunidades boas e más que nos caíram nas mãos, todas as adversidades mas também toda a felicidade, mesmo curta,  que também experienciámos .
Que tenhamos benevolência para connosco mesmos, pela forma às vezes errada como encaminhámos os nossos momentos, como gerimos as nossas opções ...
Que tenhamos tolerância e isenção no nosso próprio julgamento ...
Que percebamos sem excessiva punição e sem arrependimento, a incapacidade ou a falta de força que manifestámos muitas vezes, incapazes de fazer escolhas mais assertivas ... de ir mais além ...
Que não nos julguemos por aquilo que não fomos capazes de fazer, mas nos regozijemos por aquilo que fizemos ...
Que não nos apontemos nem amarguremos  por tudo o que encarámos como "fraqueza", falta de coragem, imperfeição ...
Porque certamente em cada momento, teremos feito aquilo e apenas aquilo de que fomos capazes, aquilo que acreditámos como certo, aquilo que respeitou as nossas convicções e as nossas tentativas de acerto ...
Percebamo-nos simplesmente como humanos ... incompletos, imperfeitos, frágeis !...

E sobretudo sintamo-nos agradecidos à Vida, por todos os ensinamentos, todos os fogachos de felicidade que tivemos o privilégio de viver ...
Agradecidos por termos passado por ela, experimentando nos nossos corações, sentimentos ímpares, como o amor, a amizade, a paixão, a ternura, a alegria, a dádiva ...
Agradecidos por todos os que, cruzando os nossos caminhos, nos acrescentaram pedaços na nossa construção, enquanto seres humanos ...

E NUNCA chorarmos pelo que passou ... mas sorrirmos SEMPRE por ter acontecido !!! ....

FELIZ  2016 !

Anamar

domingo, 27 de dezembro de 2015

" O MEU SONHO DE GAIVOTA "





Olhei-a.
Ela parecia apenas dormir por entre a aragem.  As asas  esticadas, o corpo esguio magistralmente delineado, projectava-lhe a cabeça adiante.  Os olhos miudinhos e sagazes, auscultavam um possível caminho.
Haveria caminho para uma gaivota sobre a cidade ?...

Voltei a olhá-la e ela dançava por entre as chaminés, por cima dos telhados, absorta, distante ... mas sobranceira.
Indiferente ... eu diria, indiferente !
Tenho a certeza que no descolorido do casario, aquela gaivota vislumbrava azul.  Porque sem azul, uma gaivota está amputada no coração !

Lá de cima, no seu voo rasante e ronceiro, seguramente ela cheirava a maresia, adivinhava as falésias, escutava o vaivém da maré, e via o azul ... o azul infinito do marzão sem fundo e sem limite.
Via o azul de um céu de cristal, que só o é, lá, onde o oceano feito amante presente, beija e beija e beija, a terra que lhe estende os braços ...
Havia de sentir a areia fofa, onde o mar rendilha as franjas, havia de perceber a brisa salgada que embrulha as rochas, as algas e todos os seres viventes.
E teria saudades ...

Era uma gaivota solitária, uma gaivota que carregava silêncio.
Uma espécie de andorinha fora da Primavera.
Uma espécie de sopro que não abandonou os lábios.
Uma espécie de sorriso traído pelas lágrimas ...
Era uma gaivota sem liberdade nas asas, sem alegria na alma.  Porque ela tinha alma, que eu sei !

Vagueava, como se vagueia sem norte ou rumo.  Baloiçava, como cambaleia quem já não tem destino ou sorte.  Ia sempre adiante, entre curvas e volteios, entre paredes e cinzento ... como quem busca sem buscar nada.  Como quem tenta esperançar-se, desesperançado.

Segui-a, enquanto a vista deu, enquanto a distância deixou ... enquanto os muros, os becos e os telhados o permitiram.
Queria ter ido com ela ...
Porque também eu sou um fruto fora de época, uma flor dependurada de caule ressequido.
Também eu tenho saudades de lá.
Das águas de infinito onde o sol se deita, onde a lua se espreguiça com lascívia de prata, num leito de veludo ponteado a estrelas.
Queria ter a determinação e a indiferença do seu voo ziguezagueante por cima das copas inventadas, aqui, nesta terra de tristeza !...

O meu olhar perdeu-se na distância impiedosa.
E eu fiquei mais melancólica, no cinzento desta tarde de Inverno indefinido, como sonho não acabado de sonhar, como beijo não acabado de saborear, como amor não consumado no viver !...

Anamar

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

" HOJE ... MAS "




Hoje

Queria escrever-te duas linhas
Queria dar-te emoções que foram minhas
e torná-las nossas, como antigamente ...

Mas

As emoções secaram no meu peito,
As palavras esqueceram qual o jeito
do passado voltar a ser presente ...

Hoje

Queria dar-te as minhas mãos pelo caminho
Envolver-te num abraço de carinho
Colher p'ra ti, outra vez, aquela flor ...

Voltar a ser o teu porto de abrigo
Dar-te um colo, um ninho, um ombro amigo,
Sussurrar-te ao ouvido, o meu amor ...

Hoje

Queria lembrar-te tantas histórias que conheço,
os sonhos como rendas que entreteço,
quais canções de embalo e de ninar ...

Mas

Ficaste naquela curva da estrada
Perdeste o norte da caminhada,
e esqueceste qual o rumo p'ra voltar ...

Hoje

Somos donos dos silêncios que detemos
Somos escravos das palavras que dizemos,
quais pássaros fugidios ... alvoroçadas ...
Como folha arrastada  pelo vento
carrego  comigo este lamento
e com ele, trespasso a madrugada !

Anamar

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

" COMO UM PRESENTE DE NATAL ... "






Liceu Nacional de Évora - MEMÓRIAS


As gaivotas voavam em bando  bem  aqui por cima.
A tarde estava cinzenta, emborrascada, desalinhada.   Elas também.
Parecia não se chocarem  nos céus, apenas por acaso, num remelexo indisciplinado, acompanhado de grasnidos cortantes.
Tinham pressa, as gaivotas, uma estranha pressa de recreio de criançada.  Uma aparente hora de ponta lá pelo alto.
Perdi-me por ali, quieta, apenas olhando e pensando, do alto do meu sétimo andar : como o tempo nos foge !  Como corre célere, dobra esquinas, voa nas rectas, desaparece no nevoeiro, escapa-nos na vida !...

Hoje experimentei viver uma espécie de milagre.  Um milagre de Natal, seguramente !
É certo que os milagres têm tamanhos, talvez.  Talvez tenham graus, julgamos ... mas não deixam de ser milagres !

E entrar na máquina do tempo, recuar mais de meio século, abrir cortinas e espreitar ...
Desencaixotar imagens, reabilitar rostos, desempilhar emoções, faxinar a poeira dos anos como quem abre uma arrecadação de conteúdo meio esquecido, como quem viola um baú arquivado que não cogitávamos arejar ...
Esgaravatar em lembranças algo difusas já, em memórias meio empalidecidas, rebuscar histórias que nos fogem, e querer agarrá-las com desespero, antes que se esvaiam de vez, só de pirraça ...
Virar menina outra vez , pegar na pasta, vestir a bata, calcorrear as ruas, procurando nas calçadas o eco dos meus passos de então ...
Esperar de novo que o sino interrompa as brincadeiras, o jogo do "mata" e do agarra,  no encaminhamento da meninada para as salas ( será que ainda toca ? ... )
Olhar o sr. Francisco , miudinho, mexidinho, pelos claustros ... afobado, no uniforme de botoadura dourada ...

... requer uma robustez de coração, e uma estrutura de alma que não lembra ao Diabo !  ( rsrsrs )

Pois foi o que me aconteceu neste dia cinzento, de gaivotas em algarviada nos céus aqui por cima.

Quando as tecnologias da actualidade  ( que invadem, quantas vezes abusivamente as nossas casas e devassam as nossas vidas além da conta ), resolveram surpreender-me e me deixaram bem no colo, um "embrulho de Natal", com laço de fita e tudo, com estrelinhas em piscadela, recheado de surpresas e emoções, de sorrisos e de afectos resguardados nas memórias, conservados nos tempos, partilhados nos corações, arquivados na vida  ... eu fiquei pasma, enquanto o sorriso enternecido e a lágrima emocionada se atropelavam, na pressa de romper  !...

Sensação de contornos difíceis de definir... Surpresa, alegria, ternura ... saudade !
Sim ... saudade, o sentimento maior de todos eles, sem sombra de dúvida !...

Bem haja a quem tenazmente me "procurou" ao longo dos tempos !





Anamar

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

" WHEN WINTER COMES ..."




Assistir ao declínio de um pai ou de uma mãe, é assistir à pré-figuração do seu próprio fim.
Não se descreve.  Sente-se.  Vive-se !
É um processo de uma violência sem tamanho, no misto de emoções, de estados de alma, de interrogações, de culpas, de dúvidas, de impotências e de medos que nos assaltam e nos atormentam, dia após dia.

Cair-nos nos braços aquela "criança" engelhada, encarquilhada, aquele ser tão indefeso quanto um dia o teremos sido... aquele ser cujos olhos opacizados,  pouco já  exprimem além de ausência, tristeza e indiferença ...

Cair-nos no colo alguém que quase nos volta a caber nele, naquela figura fetal  e desarticulada, esquálida e esfíngica, de ossos cobertos por pele ressequida ... naquelas pernas imprestáveis, naqueles braços que mal nos envolvem o pescoço, naquelas mãos que atontadamente atiram beijinhos para todos e para ninguém, para tudo e para nada ... para um  infinito, quiçá finito na memória que já não tem ...

Escutarmos aquelas palavras desconexas, aquelas frases sem significado, discursos sem linhas de lógica ... encararmos posturas que não reconhecemos, identificamos e jamais lembramos no percurso daquela alma ...

Confrontarmos aquela fragilidade, aquela completa dependência, aquela folha de papel pregueado que o destino amassou e jogou para uma cadeira, que nem consegue mover ...

... são realidades em que mergulhamos, com que convivemos e que temos que aceitar, embora com revolta, embora sem que o percebamos, embora o achemos monstruoso, aviltante e injusto !
Embora seja uma gigantesca maré que avança e avança e avança, bem por cima da nossa cabeça e do nosso coração, com toda a força destrutiva  da sua agressividade, em dor e em desespero .

Uma mãe e um pai foram sempre as figuras maiores das nossas vidas.
Foram sempre os seres ímpares em quem nos revimos, que ansiávamos alcançar, que desejávamos seguir.
Foram sempre as imagens que o espelho da vida  nos devolvia, como referências, como poço de valores, como repositório de ensinamentos e princípios.
Eram figuras agigantadas, intocáveis, quase inquestionáveis. Eram muralhas e fortalezas inexpugnáveis aos nossos olhos.
Uma espécie de "deuses" confinados à condição humana.
Eram entidades que nos pareciam imbatíveis, irretocáveis, inatingíveis ...
E por isso, "imortais", perenes, imunes, invencíveis por todas as intempéries da vida, inclusive a morte, que não ousamos sequer questionar, quando ainda somos crianças.
Talvez por defesa ...
E recusamos sempre nas nossas mentes, esse pesadelo, esse sossobrar, essa finitude do percurso, afastando para tão longe quanto podemos, esse fantasma que sempre pensamos futuro e distante ...

Até que um dia, aquele pai e aquela mãe, se reduzem de repente ao seu real "tamanho", se remetem de repente, à sua pequenez de barro moldado, à sua dimensão de vulnerabilidade irremediável...
E caem-nos, bem nos nossos braços, que nada podem fazer, além  de segurá-los, ampará-los, aquietá-los no seu calor ... talvez embalá-los numa canção de ninar  ...

E surpreendemo-nos, e sempre somos apanhados desprevenidos e incrédulos, chamados que somos então, à dolorosa condição de pais dos nossos pais, na condução dos seus dias finais, no aconchego dos nossos corações ...

E simultaneamente também, bem na nossa frente, como uma imagem desfocada reflectida num espelho - para que o não esqueçamos - estamos nós mesmos, enfrentando um Inverno que se aproxima a passo estugado, com um frio gélido e paralisante, que ameaça descer ... ali, no virar da esquina !...

Anamar

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

" COMO UMA CONDENAÇÃO "





Cortavam a relva na praceta.
Os sons da rua chegavam-me ao sétimo andar, pela fresta da janela entreaberta, para que o resto deste sol de Outono ainda luminoso e quente ( neste "intermezzo" de regra, de meio de Novembro ), me pudesse inundar a sala.
Breve chegarão os dias escuros, a chuva tamborilará na cobertura do terraço ou escorrerá pelas vidraças.  Breve Dezembro, breve Natal, breve um novo ano ...
E o pingue-pingue do calendário a jorrar dias, datas, anos, numa determinação impiedosa e tirana, sempre irredutível !

O tempo !...

Este tempo que não existe, a empurrar-nos adiante, implacável, na fila imparável em que nos seguimos ...
É uma fila silenciosa, de gentes silenciosas e submissas, em que ninguém ousa contrariar a "ordem normal" .
É uma fila cinzenta, de gentes descoloridas e cinzentas também, que carregam consigo o peso absurdo das memórias ... só das memórias.  Essa, a bagagem que transportamos, enquanto não somos atraiçoados ...
Fernanda Montenegro diz : " Não quero perder a minha memória, porque EU sou a minha memória "!...

A memória ... a nossa identidade, o que nos correlaciona, nos situa, nos refere.
E tão precária, tão a prazo, tão injustamente brincalhona, sempre a olhar-nos com ar de escárnio.
Senhora absoluta dos destinos, algoz de vida, manipuladora da existência ...
Joga de esconde-esconde, trapaceia vezes de mais, ludibria as vontades, desorienta o caminho !
Qual bússola descomandada, qual farol desactivado e imprestável, qual norte sem norte, a memória aliada ao tempo, cria mecanismos e circuitos viciados que conduzem o ser humano a estradas sem luz, a rotundas entontecidas, a túneis escuros sem saída !...

O desgaste físico do Homem, perturba-me, mas entendo que este, como máquina complexa que é, tem associada  a si um prazo de validade.  A deterioração das peças que a constituem parece uma inerência evidente a qualquer mecanismo de utilização permanente.
As engrenagens emperram, os rolamentos enferrujam, os amortecedores tornam-se ineficazes, o envelhecimento instala-se ...
O coração da máquina e os veios de transmissão bloqueiam.
Parece objectivo, compreensível, aceitável ... inevitavelmente !

Agora, a degenerescência do seu centro de comando, a delapidação do seu património essencial, a falência da matriz diferenciadora enquanto ser espiritual, emocional e sensorial que é,  a perda da sua herança pessoal única e intransmissível, a desestruturação do seu arquivo referencial no tempo e no espaço ... são dolorosas, injustas e violentas facécias do percurso a ser trilhado pelo ser humano, com que nos  confrontamos, que não consigo entender, aceitar, sequer conviver pacificamente ...
... provação a que ninguém deveria ser condenado a  sujeitar-se um dia !...

Anamar

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

" UMA CARÍCIA NO PEITO "




E o S.Martinho que não nos falha !...

Se há santo em que tenho obrigação de acreditar, é mesmo nele !
Ano após ano, por mais "entruviscada" que esteja a situação, por maiores negaças e caras feias que o céu, as nuvens e o sol nos venham fazendo ... é inevitável.  Tudo dá a volta, e este "break" climatérico sempre se instala.
Os dias azulam outra vez, a temperatura ameniza, a Natureza deslumbra-nos de novo com o seu traje de gala ...
E de repente apetece passear pelos caminhos, ora cobertos de folhagem dourada como os dias que fazem ...

São envolventes.  Amanhecem transparentes  e diáfanos.  Juram permanecer sempre assim até que a noite suba.  Têm um sol ímpar.  É particular, distinto, indizível !
É um sol que fecha definitivamente a porta às estações luminosas e amenas que já foram, e abre as portadas às sombras, à interioridade, à penumbra dos dias curtos, agrestes, cinzentos e entristecidos que hão-de chegar ...

É um sol que não se define.  Só se sente!...
Porque não há vocábulos no léxico, que nos digam com perfeição, como ele é, de verdade !
Lembra um colo, lembra a doçura de um cachecol em dias frios ... a fofura de um novelo de lã !...
Tem a cumplicidade de um beijo longo, tem a envolvência e a segurança de uns braços queridos ...
Penetra e entranha, numa devassidão consentida ...
Aquece as fímbrias da alma e adoça o coração, com generosidade ...
Dá-se, sem perguntar !...

E depois, tem o brilho resplandecente das auras santificadas, em capelas penumbrentas.
Pinta-se no arco-íris, com tonalidades insuspeitas, e que nenhuma paleta conhece ...
É claro, luminoso ... afaga.  É um sol de despedida e de carícia, que oferece o melhor de si antes de partir ... para que se retenha na memória ...
Tem  o  cheiro  das  castanhas  que  estalam  no  assador,  e  o  alaranjado  dos  diospiros  maduros ...
Tem o calor macio que aquece os velhos silenciosos dos bancos do largo ... adormentados, com a "pirisca" esquecida no canto dos lábios ... inverno à espreita, na esquina da vida !
Tem impregnados em si, os acordes de Chopin, que ecoam em sonatas embaladoras, por claustros imaginados ...

É um sol fugaz, um sol em trânsito, um restante sol de privilégio.
Breve partirá e deixará o sabor  promitente de um regresso futuro ... para quem estiver ainda por aqui !...

Será exactamente quando o S.Martinho voltar a despojar-se da sua capa protectora, e com metade dela, cobrir outro pedinte do caminho ...
Exactamente quando os dias azularem de novo, quando as alamedas se atapetarem saudosamente,  de folhas douradas ...
Exactamente quando "tudo der a volta" ... e nos deitar p'ra dormir ...
Exactamente quando  regressar o tempo das castanhas e a prova do vinho novo ...

Exactamente quando  voltar a ser  Novembro outra vez !!!...




Anamar

sábado, 7 de novembro de 2015

" UM IRRELEVANTE POEMA DE AMOR " - Irrelevante ... como quase todos !...







Os mistérios da minha cama
guarda-os em segredo, o mar
Nas rendas da maré baixa
vens de barco a navegar ...
E o meu corpo que te espera
que te anseia e adivinha,
fecha os olhos e adormece
quando em teu peito se aninha ...
O vento sopra baixinho,
seja nortada ou suão,
promessas do teu amor,
na concha da minha mão...
os gemidos da savana
e o silêncio da caatinga ...
Adoça-me o coração
a água fresca da moringa
que trazes p'ra me prendar ...
quando vens na maré baixa
dentro de mim, naufragar ...
Eram vales e planícies
eram grutas, eram montes ...
foram estradas e caminhos
foram florestas e fontes,
que sabias ... percorrias
pé ante pé, com vagar ...
os mistérios da minha cama
guarda-os em segredo, o mar !...
E ...  amor, vejo os teus olhos
na água pura das nascentes ...
e o fogo do teu olhar,
no vermelho dos poentes
que me foge, que adormece,
que me morre a cada dia ...
Não partas de mim, amor ...
Não me mates de agonia !...

Anamar

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

" OS VELHOS TAMBÉM SE ABATEM "





Sendo que este meu espaço também é informativo, divulgador, cultural, deixo hoje aqui um texto extraordinário, brilhante mesmo,  de Pedro Ferro, alentejano, jornalista e professor, que é totalmente meritório de ser partilhado, mormente com o público do Alentejo, interessado nas suas gentes, tradições, costumes, cultura e sentires.
Ele retrata com total e impressionante fidelidade , uma realidade que nós, os que vivemos o Alentejo no coração e na alma, conhecemos claramente.

A divulgação deste texto, prende-se a uma justa homenagem que Francisco Martins Ramos, também ele alentejano  e  professor catedrático de Antropologia da Universidade de Évora, lhe prestou.

Aqui vai  :

" Os velhos também se abatem "

"Os velhos alentejanos dão muito jeito.  São indispensáveis a cronistas com défice de imaginação e a fotógrafos artísticos carentes de reconhecimento.  Ficam bem nos desdobráveis turísticos : dão vida a uma paisagem desolada ; salientam, pelo contraste sombrio, os recantos caiados onde acoitam a pasmaceira.  A certos turistas da cidade satisfazem a fome acéfala de exotismo : são uma espécie rara em ambiente natural - como o tartaranhão caçador ou a abetarda.

Fazem um jeitão às alcateias políticas de todos os quadrantes e matizes - sobretudo quando, prazenteiramente, o país vai às urnas, como diria Eça.  Não há velhos mais fotografados, nem mais falados.  Não há velhos mais usados.
Sem eles o Alentejo talvez não passasse de um acidente geográfico, como um dia ironizou o então presidente de Câmara Francisco Felgueiras.  Com estes velhos, o Alentejo é um Parque Jurássico de matriz spielberguiana.

Mas estes velhos têm um único e gravíssimo defeito : não podem ser conservados em azeite.
Quando morrem, perde-se o molde.  É lamentável.  O Alentejo não tornará a ter velhos assim.
Povoam paragens de camioneta.  Pasmam de tédio pelos largos.  Contam "casos".  Lembram "partes".  Remoem "passagens".  Histórias que nenhuma História há-de escrever.  Mastigam um tempo que só a eles pertence e onde se instalam numa cápsula do passado.
Os velhos farejam no ar o crescimento das searas.  Adivinham nas viragens do vento o tempo que vai fazer.  Sentem o Suão e a geada nos ossos.  Têm os olhos cansados e pontadas no coração.  Sabem que a morte não tarda : " Eu sou devedor à terra / a terra me está devendo / a terra paga-me em vida / eu pago à terra em morrendo " - dizem quando se põem a cantar.

Chupam cigarros enrolados à mão.  Cigarros grosseiros como tochas, enrugados como pernadas de sobro.  Sopram um fumo negro, pesado, gordo como um chouriço espanhol, capaz de ser talhado a riscos de navalhinha petisqueira.
Os velhos ficam horas a fio com o mesmo cigarro colado ao canto dos beiços : pedacinhos de mortalha de papel, como esfarrapados pendões de paz, acenam-lhe dos lábios sempre que os queixos se mexem em bocejos cavernosos.

São velhos : sabem de cor e salteado todas as manhas da planície e das covas das azinhagas.  Isso autoriza-os a serem opiniosos.
Ficam envinagrados se os netos os tratam por tu - é camaradagem a que se não habituam, preferindo o respeitoso tratamento de "vossemecê".  Franzem os sobrolhos quando vêem as netas beijar os namorados e dizem "tomara que casem" - só para que não tenham de assistir a tanta falta de vergonha.
Mas ficam babados com as mini-saias e dói-lhes a alma e o resto, de já não terem a tal idade.
Lá na sua ideia, estão convictos de que os moços de agora não passam de uns "bananas" - uns "empalermados" sem nervo, nem heroísmo para apanhar, ali ao alcance da mão, o que no tempo deles tinha de ser conquistado a golpes manhosos, escuridão e alguma cumplicidade : " Ficávamos sentados no chão. / Imóveis. / Só as famílias puxavam cadeiras para as portas. / E conversavam coisas antigas e misteriosas. / ( ... ) Decerto / foi numa noite dessas / que eu pus os dedos sobre o teu peito / e senti os teus seios nascerem debaixo das minhas mãos ", Manuel da Fonseca.

Os velhos dormitam no barbeiro.  Quando despertam tornam ao largo, ao abrigo caiado da parede, à paragem da carreira.  Um pouco antes do sol-posto marcham-se a caminho de casa em busca da ceia e da amaga, a deita.
Lá em casa, os velhos ainda fazem menos do que quando estão aos cantos a apanhar o "olhinho do sol ".  Acham que já fizeram tudo o que tinham a fazer : nem o chapéu tiram da cabeça. Jantam com ele puxado para a nuca, com a soberba de um rei coroado pelo Papa.  Limpam a boca às costas da mão.  E, se as mulheres os contrariam, vão-se deitar sem comer - por caturrice, só para lhes afirmarem que, em 40 e tal anos de casamento, continuam a ser eles os homens lá de casa.
O único gesto a que os velhos se permitem, depois de engolida a ceia, é fechar e devolver à algibeira a navalhinha de lâmina gasta e afiada.  A mesma com que cortaram o moreno pão de trigo às sopas miúdas.

Os velhos são mestres de escárnio e da má-língua.  São "escarneadores" e sabem fingir como ninguém uma incredubilidade que não têm.  Na verdade são cépticos fundamentalistas : à televisão dão o benefício da dúvida, mas dizerem-lhes que o homem foi à lua, é estarem a "mangar" com eles.
São rudes.  Casmurros como mulas.  Venenosos.  Irónicos.  Ásperos como toiros eriçados de picos.  Amargos como piorno.
São frágeis como colmos de trigo.  Ternos como a água dos açudes.  Graves como os abismos da terra.  Altivos como faias.  Solitários como águias.  Sábios como poucos - a perpetuar um tempo e uma geografia da memória que fatalmente lhes escapa das mãos de barro seco.
São o próprio tempo das palavras.  O tempo grande : herdade semeada de outros tempos, sem raízes para no tempo ficar.
Com a razão dos anos que têm, os velhos cospem nas calçadas todo o desprezo pelos tempos modernos.  E quando ficam viúvos, sem trambelho para as coisas domésticas, penduram-se na trave da cozinha.

Afinal, do Alentejo, não são os novos que desaparecem.  Os velhos também se abatem.  Ao efectivo. "

"Público" - 28 de Novembro de 1993

Anamar

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

" AQUELA CASA"




Ir àquela casa, é um pesadelo.
Ir àquela casa é uma violência sem tamanho.
É como o devassar de um local meio mítico, meio sagrado ... inviolável !  Ir lá, é perturbar demasiado as memórias, as imagens, os espaços... É mexer com o que foi, mas também com o que é ...

E no entanto, por ali continuam ainda todos !
Eu bem os vejo, mal meto a chave à porta, mal penetro na penumbra de fim de tarde, mal confronto o cheiro a silêncio e a solidão ...
Andam todos por ali, apesar do desalinho, apesar da poeira, apesar das gavetas e dos armários esventrados, apesar do bafio crescer e se insinuar pelas frestas.
Andam todos por ali, e reclamam o direito ao sossego e à paz.  Eu ... bem, eu entro quase pé ante-pé, quase me assusto com a minha própria sombra, quase não ouso respirar ...

Porque, na cozinha a minha mãe ultima o almoço.
Na mesa já posta que aguarda, o meu pai sentado de fente p'ra quem entra, dá a direita à minha mãe, que ma dará, que a darei às minhas duas filhas.
O cheirinho apetitoso dos bifes de cebolada, sobe do frigir da sertã.  A salada de frutas refresca-se no frigorífico,
A Cláudia usa o guardanapo de quadrados azuis ... e a Catarina usa o guardanapo de quadrados vermelhos. Diferentes só na cor, p'ra não haver confusão.
As farófias em segredo, só se anunciarão no fim ... Isto, se as meninas fizerem jus a merecê-las.

Vamos chegando, vamos dando as novidades das manhãs de aulas.
A televisão, na sala, anuncia o telejornal da uma.  O avô insiste no lavar das mãos, às pestinhas que tentam fazer-se esquecidas.
Todos os dias discutem, todos os dias brigam, todos os dias correm em maratonas malucas à volta da mesa, no espaço exíguo que periga as jarras da Vista Alegre sobre o aparador.  Nunca ninguém percebeu por que o avô tanto se amofina com o partir eminente daquelas jarras ... Horríveis, dos nossos pontos de vista !
Todos os dias se trazem à mesa os testes recebidos nessas manhãs e todos os dias, se havia ralhetes a propósito, a água-benta do avô, era o primeiro socorro a acudir aos apertos de ocasião ...

Depois, um dia, o avô foi embora.
Foi o fechar da primeira porta naquela casa.

A avó já não punha a mesa senão em ocasiões especiais, as farófias e a salada de frutas deixaram de ter lugar de privilégio.
A meninada cresceu. As aulas já não ocupavam as manhãs.  Eu passava por lá à noitinha, antes das sete, no caminho da escola.
A minha mãe estava à janela de trás, para me dar as boas noites, antes de se deitar, daí a pouco.
O Gaspar empoleirava-se com ela  no parapeito, e festejava-me até ao dia seguinte.
Eu dobrava a esquina, num último adeus ... e seguia, a tempo ainda de ouvir o correr da persiana, na janela daquele rés-do-chão.

E tudo se repetia, dia após dia, mês após mês ... ano após ano !
E tudo se repetia na paz possível da memória dos ausentes, na vida dos presentes ...
E  tudo  se  repetia, como  se  nada  nunca  pudesse  mudar ... Como  se  não  houvesse  amanhã !...

Passou tempo, muito tempo !

Hoje, eu meto a chave à porta de mansinho, p'ra não assustar os que por ali andam.
Rego as flores que restam, e elas continuam a florir.  Sento-me nos sofás e olho o nada e o tudo daqueles vultos que perambulam.  Aquieto-me para poder ouvir as suas vozes.  Concentro-me e vejo os olhos verdes, miudinhos do meu pai, como duas pequenas ranhuras no rosto esquálido e seco.
Já não lhe lembro a expressão, com definição aceitável ...  Recorro às fotografias para que mo tragam, porque o tempo é impiedoso e carrasco !
A voz ... essa, julgo escutar com nitidez. E as mãos ... é verdade ... as mãos eu "vejo" ... como então !
O cheiro da casa ainda me perturba.  Não é o frio e bafiento, de hoje.  É aquele que ficou nas ranhuras, nos interstícios, nas almofadas, nos roupeiros ...
E os espelhos, quando os olho, devolvem-me tudo. Com absoluta lealdade e fidelidade !

Hoje, a persiana de trás, não me aguarda, subida, pelas sete horas.
Também, há muito que a roupa não se dependura dos estendais.  O Gaspar ... ui ... esse já partiu há tempo e tempo !
Os olhinhos verdes e piscos que me fogem quase sempre, estão para lá, para a terra do sempre ...
As aulas já não me esperam, nem esperam mais as pestinhas, que cresceram, e têm outros pestinhas, que não pertencem a este filme ...
A Nossa Senhora de Fátima, não obstante,  permanece empoleirada na peanha, na cabeceira da cama  ainda  feita ... De longe, acho que continua a ser interpelada e agradecida !...

Ir àquela casa, é um pesadelo.
Ir àquela casa é uma violência sem tamanho.
É como o devassar de um local meio mítico, meio sagrado ... inviolável !  Ir lá, é perturbar demasiado as memórias, as imagens, os espaços...

Até porque as portas ... todas ... em definitivo, estão prestes a cerrar-se !!!...

Anamar

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

" AS DORES DE CRESCIMENTO "



Faz muito tempo que não consigo escrever.
Pareço uma ramada seca, vazia que estou, de ideias, de emoções e de reais sentires.
Uma ramada frágil que oscila à ventania, que verga acima e abaixo, descomandada, enrodilhada, açoitada com despudor.
Uma haste atontada, sem vontade, que se deixa ir, entorpecida ... de raiz no solo e folhas decrépitas.
É a raiz que ainda existe, que a aguenta, que ainda a firma, apesar do despautério do temporal.

Acho que estar numa ressaca, seja isto !
Vaguear entre uma mente parada, adormentada ... uma mente que se recusa sequer a pensar, exaurida e sem força ... e torrentes de pensamentos desarticulados que se atropelam, em desordem súbita, num vórtice incontrolável, como caudal impetuoso que assusta e intimida.  Que provoca uma vertigem violenta, que alucina e nauseia ...

O "olho do furacão", a cratera do vulcão, o remoinho ciclópico da tempestade ... é isto, onde estou sentada !...

Tempos bem difíceis estes, embora se diga que reais problemas, são os de saúde !
São-no, de facto.  Seguramente os mais complicados de enfrentar, resolver e ultrapassar.
Para tudo o mais, há remédio, ainda que no fim, de nós só restem cacos !...

No meio desta tormenta que me parece infinita, no meio desta luta com muitos contornos e muitas frentes, no meio deste desnorte sofrido ... como em tudo na vida, sabe-se  que nem tudo é totalmente negro ou totalmente branco.
Nem tudo é totalmente mau ou totalmente bom.
E os períodos de provação  mais não são do que períodos de crescimento pessoal, de maturação, de aprendizagem, de reflexão profunda ... de sofrimento ... talvez redentor ...
Não sei !
Mais não são, muitas vezes, do que ondas agigantadas e devastadoras, que varrendo as nossas vidas, testam muito de nós.
Avaliam da nossa capacidade de resiliência, da nossa determinação, da nossa envergadura na luta e na superação ...
São barómetros da nossa força interior, da nossa convicção em valores e princípios que defendemos e em que acreditamos ...
São parâmetros analíticos sobre a nossa fibra enquanto seres humanos, aferidores de quão pacientes e lutadores conseguimos ser, da nossa persuasão e coragem ... da força da nossa esperança, das nossas auto-estima e confiança na busca de caminhos, de rumos e saídas com luz, em percursos frequentemente demasiado escuros ...

E se lhes sobrevivermos, e se não soçobrarmos entretanto,  seguramente experimentaremos um advento de vida, um fortalecimento da nossa identidade, e  a  regeneração gratificante, perante nós mesmos, do respeito pela imagem com que nos vemos.
Alcançaremos um convívio pacífico, com o ser tão imperfeito e frágil que sempre somos, restituindo-lhe  o equilíbrio e a tranquilidade tão fundamentais e determinantes à  sua  existência ...

... porque tudo isto, afinal, são as "dores de crescimento" que nos estão destinadas no caminho !...

Anamar

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

" A LINGUAGEM SECRETA "




Não sei quanto tempo mais, a minha mãe viverá.
Não sei por quanto tempo, ainda, beneficiarei do seu cólo ...

Hoje, as pernas descarnadas semi-esquecidas, a figurinha frágil de passarinho, a mente que oscila entre o certo e o errado, o real e o irreal, já não abrigam grande coisa.  Já não fazem regaço de embalar ... porque não podem.
Hoje,  a  minha  mãe  aninha-me  no  coração.  Esse,  cresceu  na  proporção  do  mingar  do  corpo ...

É a esse ninho que nunca ma faltou, é a esses ouvidos que nunca ensurdeceram para mim, é a essas mãos que continuam sábias no acariciar, que recorro, onde continuo a buscar arrego ... ainda que não me perceba direito, que não me escute com clareza, que não saiba nem sonhe, tudo o que tenho aqui dentro.

Ainda que os seus horizontes sejam agora os limites daquela sala dividida com estranhos, agora "amigos" ... ainda que a televisão lhe conte ininterruptamente, histórias cá de fora, do mundo que deixou, ainda que acorde de manhã sem ter por perto os rostos familiares que gostaria ... tem aqueles que já se tornaram extensão dos outros.  Dos que estão agora um pouco mais longe fisicamente, porém ali, ao lado, no afecto e no espírito ...

A minha mãe teve um período demasiado longo e sofrido, de corte com a realidade.  Um período em que deixou de estar no meio de nós.  Um período em que a sua única ponte  era, ou com os que a deixaram há muitos, muitos anos, ou com aqueles que espera "encontrar" no futuro.
Então, aquela minha mãe, não era mais a minha mãe !

E ela sabia-o.  Sempre o soube.
Nos lampejos de lucidez que tinha no meio daquela bruma cerrada da mente, dizia-me em desespero : " Filha, a tua mãe já cá não está há muito " !
E era um grito lancinante e um sofrimento atroz, que me aterrorizava e me deixava sem chão e sem ar, olhar e ver à minha frente, uma desconhecida, um lamentável equívoco do destino, uma injusta e patética pirraça da vida ...

E de facto, a minha mãe havia "partido" mesmo ...

Mas como sempre foi teimosa, obstinada, determinada, e sempre lutou contra todas as marés adversas no seu caminho ... como nunca foi mulher de "entregar os pontos" e sempre driblou o que parecia irreversível ... "regressou" ...

Hoje, ali onde divide os dias com os seus parceiros de percurso, parece a menina que no infantário escolhe amigos, partilha brincadeiras, conta e ouve histórias, sorri e parodeia com todos ( e são quase todos mesmo ) que se aproximam do seu rosto aberto, sorridente e disponível.
Um rosto que se ilumina à nossa chegada ... aqueles que ela guarda no mais fundo de si.

E percebo como é aconchegante, preenchedor, IMENSO ... pegar-lhe de novo nas mãos secas de carnes, onde apenas as veias desenham rios, beijar-lhe de novo a face "plissadinha", olhar-lhe sem pressa os olhinhos "piscos" ... ou simplesmente ... e é TUDO... absorver a linguagem silenciosa da sua alma, os recados mudos do seu peito, deixar-me tocar pelos fios invisíveis do seu amor, sorver a generosidade escorrente do seu coração, ler a mensagem eloquente e terna do seu olhar, sentir-me embalada nos seus braços outra vez ... e dizer-lhe tão somente, sem falar, com todo o tempo do mundo : " Mãe, estamos aqui !...  Continuamos aqui ... ainda ... OBRIGADA !... "

Anamar

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

" MAIS QUE UMA TRILOGIA ... "




Os melhores companheiros das janelas, são o gatos.   Os gatos e as flores.

Os gatos maravilham-me, as flores sempre me deslumbram e as janelas  ... as janelas, já sabem, fascinam-me e desafiam-me.
Contam-me histórias intermináveis, de quem é e de quem foi, do agora e do antes, dos segredos ou das conversas banais.
Uma janela é um pouso sem tempo.  É uma pausa, para seres sem pressas ou compromissos.
São locais de luz e de vida.  As flores buscam-nas, e nelas sorriem, florescendo.
Os gatos aninham-se-lhes nos parapeitos, semi-cerram preguiçosamente os olhos, transformando-os numa fresta desenhada, e alongam-nos rumo ao nada e ao tudo que só eles vêem ...

Os velhos também.  Os velhos também as buscam, também as amam.
Junto à janela, tomando os raios de sol que a atravessam, quase sempre dormitam.
Às vezes "cuscam" o movimento de quem lhes anima os dias.
Meditam, distantes, e deixam-se ir, com aquele ar sapiente, legado do destino ...

A mim, as janelas aguçam-me o espírito.
Mas  não  as  janelas vulgares das colmeias urbanas.  Essas, são todas iguais, incaracterísticas, insípidas ...
Essas, são demasiado jovens para terem grandes coisas para contar ... porque as não viveram ...
Interessam-me as janelas com carisma, com porte, com estirpe.
As  janelas  concebidas  com  maestria,  por  artistas  que  ainda  tinham  tempo  para  as  conceber ...
Ou simplesmente aquelas em que a patine implacável do tempo, lhes conferiu aristocracia, dignidade ... lhes deu "marca", singularidade ... distinção !

Essas, têm histórias intermináveis, no seu espólio da memória.
Histórias de felicidade, ou histórias de intempéries de vida.  Histórias de dor, mas seguramente também, histórias de muitos risos e alegrias.
A pé firme, continuam a atestar os percursos das gerações que por elas passaram, e só não no-los desvendam, porque  aquelas  pedras, discretamente,  há  muito  desistiram  de  falar ...
São baluartes de  sonhos sonhados.  São testemunhos de projectos cumpridos.  São histórias da História das gentes que as viveram.

E depois, quando os anos que não perdoam, por elas passam, quando a sua tirania indiferente, como furacão, as abala, quando tudo à sua volta sucumbe e desiste ... ainda assim, aqueles aros esventrados permanecem hirtos, inabaláveis, com a coragem e a determinação dos fortes.
E oferecem-se então, generosamente, como molduras reais, às plantas livres e selvagens que as amarinham e as entrelaçam ...
As vidraças que as compunham, estilhaçaram há muito.  Já não delimitam o dentro e o fora, de antanho ... Mas mais bonitas do que nunca, deixam-se possuir com deleite, ostentando em segredo, o silêncio da eternidade, gravado em cada recanto secreto, em cada pedra instável, em cada musgo atrevido !...

Janelas ... janelas ... janelas ...

Velhos, gatos e flores ... Muito mais que uma trilogia !
Com  elas, as janelas, uma combinação perfeita ... uma estrada que se foi partilhando !...




Anamar

terça-feira, 6 de outubro de 2015

" POEMA DE AMOR "



Não há tempo para olhar o firmamento,
nem há tempo p'ra escutar a voz do vento
e sonhar ...
É um tempo de sombras e de silêncios,
em que o sol deita cedo,
junto ao mar ...
Era o tempo de seres cais e eu ser navio
Era o tempo de navegar o teu rio
de águas doces, da nascente até à foz ...
Era o tempo de viver acreditando,
De acordar com os pássaros cantando,
Tempo de elos, de promessas e de nós ...
Era o tempo de dormir no teu regaço
De sonhar e me envolver no teu abraço,
e me perder ...
Houve um tempo em que partiste, e me deixaste
na beira do caminho que trilhaste ...
Foi um tempo de morrer ...
E na cama que era meu ninho e meu porto,
no desenho do teu corpo
cabia perfeito, o meu ...
Mas o tempo que é o meu tempo presente,
seguiu o seu rumo indiferente,
e indiferente, me esqueceu ...
E agora ... Qual tempo é o meu tempo ?
Já não escuto a voz do vento ...
Já não navego o teu mar ...
Nas mãos, só tenho a saudade
que espalho pela cidade,
qual veleiro a naufragar !...

Anamar

sábado, 3 de outubro de 2015

" E É ASSIM ... "






De dia para dia, me sinto mais e mais uma estranha dento do invólucro que carrego.
De dia para dia, as minhas emoções, os meus sentires, tudo aquilo que me perturba ou me balança, tudo o que me aflige ou me gratifica, retorna adentro de mim, mergulha nos meus silêncios ...
Os diálogos são muito mais comigo mesma, as interrogações são muito mais dirigidas apenas à minha mente e ao meu coração, as dúvidas e as ansiedades, sentidas muito mais só na paz da minha interioridade.

Pareço um bivalve que cerra lentamente a concha, mantendo apenas uma fresta precária aberta ao exterior, numa espécie de fuga ou recusa aos confrontos com a realidade de que disponho.
Não sei se é doença, do corpo ou da alma, não sei se é cansaço, insatisfação, desânimo ... ou se me sinto simplesmente perdida por aqui.  Uma estrangeira no seu próprio "chão" !...
A cidade sufoca-me, a casa espartilha-me, o meu mundo fica-me progressivamente curto e desinteressante !

Talvez tenha a ver apenas com o Outono que vivo, por dentro e por fora.
Talvez tenha a ver apenas com o apelo da Natureza, ao ensimesmamento, à pausa, ao abrandamento ... ou não !...
Talvez seja apenas uma inabilidade de vida, um desajuste com a realidade, uma perda da expectativa de horizontes, uma insatisfação utópica face à existência, uma premência idiota e absurda de encontrar rumos outros, caminhos outros ... outras realidades ...
Talvez seja apenas ausência de fé ...
Não sei.
Sinto um apelo fundo e profundo a fechar portas e janelas, apagar as luzes, parar a faxina, cortar os circuitos ... desligar a vida ...

Daniel Sampaio refere no seu livro "Tudo o que temos cá dentro", que os suicidas não são os cobardes que simplesmente fogem às dificuldades.
Não são os desinseridos ou desajustados que não conseguem encaixar-se satisfatoriamente no figurino.
Não são os egoístas, que só pensando em si próprios, são indiferentes  ao tsunami emocional, familiar e social que desencadeiam e deixam depois de si.
Não são os desertores que oportunistamente abandonam o campo de batalha ...

São sim, aqueles que mais amam a vida e mais a quereriam viver !
E tanto a amam e tanto a anseiam, que não conseguem vivê-la com o sofrimento que ela lhes representa.
Não conseguem aceitá-la, com a incompletude que ela lhes oferece.
Não suportam mais, a dor objectiva ( porque de dor real se trata ), que ela lhes inflige dia após dia.
Não convivem mais, com a precariedade da satisfação que ela lhes propicia.

E por isso, há um dia em que "basta" parece ser a única chave de tudo.  Em que "chega", parece ser o alívio ansiado.  Em que "não" parece ser a alternativa salvadora de que dispõem ... a  libertação  do calvário  que  experimentam ... a  "luz"  nas  trevas  que  atravessam ...

E é exactamente assim !   Eu sei que é exactamente assim !...

Por isso, os entendo claramente !
Por isso , não os julgo !
Por isso, os respeito tanto !
Por isso até os admiro, e quase ... quase, lhes invejo a coragem e a determinação !

Pelo menos, eles não sucumbiram atolados no pântano, eles tiveram força para definir um caminho !!!

Anamar

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

" UMAS E OUTRAS ... "



Andei atrás dela, a noite toda.
Eu, e eles. Os gatos ... desaustinados e endemoninhados.  Como "possuídos" por um qualquer sortilégio que não se descreve !...
Às vinte ( previsivelmente já nascida ... ), às duas, às quatro, depois às cinco e tal....
Prevenindo-me ... porque em 2033, não sei se estarei cá, para a recepcionar de novo.

Catorze por cento maior ... trinta por cento mais brilhante ... quarenta e oito mil quilómetros mais perto dos terráqueos ... mais difusa, mais vermelha ... por aí !
No eclipse, ou fora dele ... antes e após ter sido "engolida" pela sombra terrestre ... com óculos, sem óculos, com máquina fotográfica ... de menor e maior zoom ... no perigeu, ou ainda não ...
Andei atrás dela a noite toda !...

E até moro de varanda privilegiada, juntinho ao firmamento ... E até vivo paredes meias com as estrelas,  as  nuvens,  o  sol ... e  claro... as  luas,  que  me  visitam  com  generosidade ...

Mas apesar de todo este desassossego, não tenho normalmente muita sorte nestes eventos.  Acho que sempre vou com "demasiada sede ao pote"... Deve ser isso !
É certo que a minha vista já deve claudicar ... É certo que a minha ânsia de transcendência é imensa ... É certo que sempre tenho com elas ( as luas ), longas conversas de "pé de orelha", assim  numa  de  igualdade  cúmplice  e  conivente,  em  diálogos  de  mulher  para  mulher ...
Mas sendo tudo isso certo ... não deu realmente rotundamente certo !...

Quando se trata das prometidas e anunciadas estrelas cadentes... a chuva de perseidas, que são as maratonistas do céu ... sempre penso que a minha inabilidade em vê-las, se deve ao destempo óbvio, entre a corrida da lebre e da tartaruga ... Elas têm pressa... o meu olhar vagueia lento ...

Agora, uma lua gigantesca, uma superlua que se dá ao desfrute, lânguidamente deitada num céu doce e manso, como leito de amante sem pressas ... não ter matado a minha ânsia imaginada de vê-la "posar"em grande estilo ... já é demais !

Acho que, quando a fasquia sobe além da conta, tudo fica estragado !
Ingenuamente, devo ter acreditado que catorze por cento maior ... trinta por cento mais iluminada, quarenta e oito mil quilómetros mais perto de mim, "lua de sangue", assim lhe chamaram ... seriam particularidades tão visíveis e suficientes, que satisfariam estrondosamente as minhas expectativas retumbantes de fenómeno único ...
Tonta, mesmo !...

Grandiosa ?... Sim, estava !  Esmagadoramente bela e mágica ?... Sim, estava !  Comprometedoramente feminina, capciosa e tentadora ?... Sim, estava !  Desafiadora e irreverente ?... Também ... Num jogo de sombras e luzes em erotismo cósmico, sedutor e inatingível !
Ela era, de facto, uma jovem voluntariosa e atrevida, cavalgando o céu ... com a soberba de uma amazona distante e inalcançável !...

No entanto, mesmo sem luneta, sem telescópio, sem  que a tivesse esperado num descampado escuro e silente, ainda assim a superlua me devassou  com a sua luz branca  inigualável, violando-me o quarto, intencionalmente desprotegido de persianas, portadas, sequer cortinados ...
Inundou-me a cama, ofuscou-me os olhos, desnudou-me a alma e o corpo ...
E desvendou-me os segredos inexplicáveis do Universo, confrontou-me com a pequenez do humano, tangeu-me  um canto celestial ... em serenata com dimensões divinas ...

... e  marcou encontro comigo, para daqui a dezoito anos !...


Anamar

domingo, 27 de setembro de 2015

" SONHO "



Partiste e foste sombra outra vez,
além ... onde o vento faz a curva ...
Deixaste a minha vida mergulhada
neste charco tenebroso de água turva ...

Serviste-me o licor, frutas e mel,
do festim que do sonho é alimento ...
Em cálices de cicuta e de indiferença,
fizeste órfão de ti, meu sentimento !

E o tempo que vai e que volta, nas voltas da gente,
ignora a dor fria e vazia desta solidão
Amei-te  acima do certo, do tudo e do nada,
ficou-me a saudade e a dor, no meu coração !

E os dias que chegam e partem no Inverno da vida,
não sabem, nem sonham razões deste meu sofrer ...
Caminham comigo, a meu lado, numa despedida
e estarão comigo p'ra sempre, enquanto eu viver !...

E o sonho que foste e que já não és mais,
escureceu o meu dia, tirou-me o alento ...
Foi maré de praia vazia ... de areias desertas ...
Foi folha arrastada no mundo, em dia de vento ...

Foi sol que desceu no ocaso, lá longe ...
Foi batalha  perdida antes de começar ...
Amei-te acima do certo, do tudo e do nada ...
O meu crime e castigo, foi apenas sonhar !!!...

Anamar

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

" O ENCONTRO " - flagrantes da vida real



" Estou à espera do Mário !...

Voz de timbre marcado e assertivo, num corpo débil, alquebrado, semi-curvado.
Aquele homem idoso, apoiado numa canadiana, óculos fortemente graduados e passinho muito miúdo, entrou no café e disse que ia almoçar.  Pediu uma sopa.
O seu andar era de pardalito indeciso.  Não andava ... tacteava o chão !
Titubeava em cada passo, perigando cair a cada movimento.

Pouco depois, entrou outro homem bem mais jovem.
Caminhou decidido, não parecendo surpreendido, em direcção ao velho.  Pelos vistos, seria previsível encontrá-lo ali.

- " Então, não tinha lá comida ? " - perguntou.

O velho rejubilou frente ao rosto que lhe era familiar.  Como uma criança feliz que acaba de ganhar um presente, insistiu efusivo : " Almoça comigo !  Almoça comigo ! "

- " Não ! Vamos para minha casa !  A Teresa está à nossa espera para almoçarmos ! "
- " Não posso !  Estou à espera do Mário.  Ele disse que vinha aqui ter !...  Eu estava à janela e vi-o passar, com uma criança.  Não posso ir ! "

Pacientemente, o homem novo respondeu :
- " Não.  Ele não vem.  Ele morreu há mais de vinte anos !  Vamos, a Teresa está à nossa espera ! "

E o velho, confuso, desalentado e perdido : " Então e eu não soube de nada ? "

Silêncio.  Frio.
O velho com as mãos na cabeça :  "  Ihhh  mãe ... como é que eu não sabia ?!...

A infelicidade no rosto pregueado.  O sofrimento nos olhos opacizados.  A orfandade e o abandono nas mãos trementes ...  O vazio, o medo e a escuridão !...

Mais silêncio.  O homem novo procurando no bolso, as moedas para pagar a despesa do velho.

- " Vamos ... agora  vamos  para  minha  casa, almoçar ...  A Teresa  espera-nos ! "

- " Não  posso !  Estou  à  espera  do  Mário -  repetiu, irredutível.   Ele  disse  que  vinha  aqui  ter ! "
- " Ele não vem !  Ele era seu irmão.  Eu sou filho dele, e ele morreu há mais de vinte anos, tio ! "
- " Não pode ser !  Ele disse.  Ele disse para eu esperar aqui.  Ainda há pouco o vi.  Eu estava à janela, e ele disse !... "

O passado e o presente.  O passado que apaga o presente.  Desesperante ... patético !...

A casa, os afectos, a família ... Hoje, o Lar ... As sombras demasiado espessas que cobrem o que já foi !...
E o Mário que já não vem !...

Silêncio ... demasiado silêncio ... Vida ... ou ausência dela !...

Anamar

sábado, 19 de setembro de 2015

" SONHO "



Todos deviam ter direito a um palmo de terra de plantio, que  pudessem revolver com as mãos e perceber o milagre ...
Todos deviam ter direito a um quintal, a uma floreira, a um canteiro, a um vaso de flores...

Eu sinto isso todos os dias, desde que deixei de o ter, e me confinei, dadas as circunstâncias da vida, à casa do betão, mergulhada no meio dos "cogumelos" que todos os dias eclodem à minha volta, no cinzentismo das colmeias que proliferam, genericamente iguais, como fardas de meninos de orfanato ... nem sempre bem comportados ...

"Sufoquei" a casa há largos anos atrás, quando entrei na sanha de angariar todo o espaço possível, empurrando as divisões, fechando recantos, à custa de varandas abertas à rua.
Ganhei com isso, centímetros de paredes, áreas de chão, mais móveis, mais candeeiros, mais tapetes ...
E perdi o sonho de verde, o sonho de céu, a esperança de andorinhas nos beirais, que também sumiram ... a magia do vento livre nos cabelos ... e claro, a remota hipótese de trepadeiras rumando ao firmamento, de cheiro de terra molhada em vasos inventados, e de êxtase de cor generosa em miscelânea genuína ...

E tenho saudades infinitas !

Depois, cortaram-me também a palmeira centenária frente às minhas janelas, ex-libris daquele meu chão.  E o plátano dourado, pousio de pássaros nocturnos pelas madrugadas, e de aves arribadoras, no prenúncio das Primaveras, em cada ano ... cumpriu  o mesmo destino.
E foi como se me amputassem por dentro, me empobrecessem a alma, me cerceassem o sonho ...
Foi como se apagassem o sol na minha paisagem.  Como se me extorquissem o coração ... me orfanassem o espírito ...
E entristeci, fiquei mais pobre ainda ... mais sem "amigos" por perto ...

Por isso fujo.
Sempre que posso fujo e vou atrás do apelo da terra.  Busco o chamamento das sombras, procuro o silêncio embalador das matas, a paz dos matizes, o perfume de tudo o que nasce sem ser semeado, o estalido  crepitante  do  areão  calcado  debaixo  dos  pés, em  cada  volta ...

Sempre que posso, aspiro o ar leve e transparente pela ausência de mácula, escuto o gargalhar de um riacho solto por entre as pedras, oiço o sussurro das brisas nas ramagens, as conversas dos pássaros empoleirados nos galhos ... as histórias dos silêncios nas penedias ...

Sempre que posso, perco-me de olhar uma flor já esquecida no pé, extasio-me por entre os dourados e os vermelhos das novas roupagens da natureza, sigo a nuvem que faz e desfaz bonecos no firmamento ... deixo o vento desalinhar-me o cabelo e voar-me o pensamento ...

Sempre que posso, sento-me numa pedra qualquer do caminho, num muro perdido de curva de estrada ... ou simplesmente num tufo de erva fresca ...

... e esgravato a terra, sonhando-me com chão, com rumo, com destino !!!...

Anamar

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

" FALL "





E pronto, como sempre, no cumprimento do ciclo inevitável, mais um Outono nos espreita já aí, numa volta da estrada !

Os dias começaram a ficar meio pardos, o sol perdeu a luminosidade convincente do Verão, mas sobretudo enfraqueceu no calor com que nos afaga ...
As primeiras chuvas, o vento já desabrido e as nuvens de cara mais feia, pairam sobre nós. Acordamos com eles e escutamo-los pelas madrugadas.  De longe, encompridamos o olhar seguindo o movimento sinuoso dos novelos encastelados e caprichosos, bem à nossa frente, varrendo o cinzento uniforme.

Eu moro juntinho do céu.
Tenho o privilégio de, por cima de mim, só ter o firmamento, ter os telhados do casario espreguiçando-se aos meus olhos ... e com sorte, ter alamedas abertas até ao sol ( desde que se ergue, até que adormece,  lá ao fundo ) ... E  ter caminhos francos até à lua, e às estrelas aqui por cima !
Por isso, o meu horizonte é quase sem horizonte !...

Eu nasci no Outono, no entanto é uma estação que custo a atravessar ...
Por um lado, estes primeiros sinais de recolhimento  impostos pela Natureza, sempre me convidam à introspecção, ao intimismo, ao ninho ... ao útero ...
E talvez, disso já sentisse  saudades ...
E isso agrada-me, aconchega-me e aninha-me ...
Por outro, para quem está só, para quem os tempos não são fáceis, a redução da luz, o encurtar dos dias, a aragem fria que nos enxota para casas silenciosas ... desconfortam,  e potenciam todos os sentimentos mais sofridos do ser humano !

É o tempo da folha  cair, é o tempo em que o fulgor das cores estivais dá lugar ao recato doce dos tons quentes e aveludados, dos dourados aos vermelhos, passando por todos os cambiantes de castanhos ... Como se a Natureza quisesse presentear-nos apenas com emoções cálidas e calmas, como se quisesse remeter-nos ao afago do embalo, rumo à estação agreste que virá depois ...
A "hibernação" inicia-se.
À nossa volta, os "decibéis" da Vida, baixam ... na antecâmara do sono que a aguarda.

Época de recolecção.   A Natureza, generosa, oferece o que de melhor nos preparou.
E despe-se.  Despe o manto garrido de folhas e flores, sons e aromas dos tempos que nos deixam,  e encaminha-nos para o ensimesmamento, para o "baixar das luzes" ...
Tempos de reflexão, propiciados por dias curtos e noites compridas ... Tempos de solidão ... Tempos pesados !...

Mas são também tempos felizes.  Tempos de partilhas e cumplicidades.
São gostosos os passeios sem horas,  mergulhados nos primeiros agasalhos,   pelas veredas da serra, ora  atapetadas de folhagem ...
E sentir o cheiro intenso das carumas, dos musgos trepadores de caules seculares ... o cheiro inconfundível da mata !...
É gostoso cortar as uvas, apanhar os cogumelos selvagens, os arandos, os mirtilos, as framboesas, as nozes, as avelãs, os medronhos, as romãs ... e também os marmelos e os diospiros ... Tudo  quanto há-de virar compota de dias doces!...
É gostoso  deambular pelos areais já vazios, rasando a beirinha da maré ... e brincar com os seixos, olhar as gaivotas ...  mais donas das praias do que nunca, colher os ouriços dos castanheiros, úberes das castanhas já maduras ... dividir as mãos em bolsos que se tornaram comuns ... e seguir rindo ou silenciando, conforme o momento ... conforme a emoção !...
É gostoso ... para quem pode ...

Sempre assim ...
Sempre igual ... e contudo, sempre diferente, sempre novo, sempre inesperado !

Damos por nós a concluir que ainda fora ontem ... e que afinal, mais um ano entretanto passou !...




Anamar

domingo, 13 de setembro de 2015

" QUIMERA "


A minha mãe pediu-me um colar
e em cada conta do mesmo, estava um sonho de sonhar ...
Pediu-me uns brincos também ...
Neles se guardavam histórias,
e pingavam as memórias,
que a sua vida contém...

Foram lendas, foram esperanças,
Foram contos e lembranças
que p'lo seu rosto, passaram ...
Sorriu ao espelho outra vez,
e num milagre que se fez,
as mãos que tremem, pararam ...

Todas as cores  e matizes
lembrando dias felizes
no seu rosto a afoguear,
devolveram-lhe a candura,
despertaram-lhe a doçura,
quando lhe dei o colar !...

E em cada sonho sonhado,
feito um rosário desfiado,
por momentos, renasceu ...
A menina, hoje velhinha
com a cabeça bem branquinha
de novo,  sonhos teceu ...

E o seu silêncio profundo
que continha  a dor do mundo,
tinha  a imensidão do mar ...
Mas ...
Olhou ao espelho e sorriu,
adormeceu e "partiu" ...
quando lhe dei o colar !...

Anamar

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

" ADIANTE ... SEMPRE ADIANTE !... "


Liga-se a televisão, e é inevitável.  Lêem-se os jornais e é inevitável.  Entra-se na Internet e é inevitável !

Não há como fugir às notícias, como ignorar a realidade, como esquecer o terror, como encolher os ombros à angústia.
A sangria rumo à Europa, de fluxos intermináveis de gente em fuga, de continentes em dor e sofrimento, lembra a escorrência incontrolável das avalanches monstruosas encosta abaixo, nas derrocadas e deslizamentos das altas montanhas.
Também aí o processo não se trava.  Também aí, o caminho é imparável ... e há uma inevitabilidade de morte e destruição, que não se detém.
O Homem não tem capacidade de freiar essa catástrofe.

O êxodo dos refugiados, a migração desesperada de milhares e milhares de seres humanos, em fuga da guerra, da miséria e da morte, configuram talvez já, o maior flagelo do século XXI, e reportam-nos de novo, aos tempos escuros e doídos, da Segunda Guerra Mundial.
As imagens eram então a preto e branco ... agora são bem coloridas. Mas os rostos de famílias inteiras em desespero, transportam em si, o mesmo tipo de sentimentos : horror, cansaço, medo, dor, angústia ... dúvida, incerteza ...
Mas também esperança, determinação e fé.
No limbo, entre o nada ter e o poder assegurar pelo menos a vida ... na divisória que separa o risco do que virá, e o nada ter já quase para  arriscar, há uma força interior que impulsiona  aquelas torrentes humanas,  que sem rumo ou norte definido, assumem que é proibido olhar para trás ...

Impressiona-me particularmente, o rosto dos milhares de crianças arrastadas no caudal, pelas mãos ( num esforço exigido, seguramente acima das suas reais capacidades ), aos ombros, em carrinhos, nos braços de mães e pais que tentam desesperadamente  aninhá-las, protegê-las, subtraí-las, se isso fosse possível, às agruras de toda a ordem a que são submetidas.

E seguem, em rios de gente ... seguem sempre ...

Que se passará nas suas cabecinhas infantis ?...
Que será feito dos amiguinhos de rua, da escola onde deveriam estar, da casa que habitavam, das bonecas e das bolas com que deveriam jogar ?...
Que lhes será dito, sobre a insanidade que vivem ?...
Que lhes será explicado, sobre os afectos que lhes ficaram pelo caminho ?...
Que lhes será exigido, para também elas não desistirem, não adoecerem ... não morrerem antes de tempo ?!...

E não há parança.  Não há remédio.  Não há solução.
A chaga social há muito aberta em África e Oriente Médio, continua a purgar.  O exsudado fétido corre inevitavelmente, como se os diques precários tivessem cedido ... como se fosse impossível estancá-los !

E nós por aqui, numa Europa humana, política e socialmente incapaz, sentimo-nos agoniadamente mal ... muito mal !
Os homens não se concertam nas políticas a tomar, nas acções a desenvolver, nos rumos a dar a esta gente.
Os esforços dos organismos de apoio humanitário são curtos, são gotas de água, são pequenos curativos, visando minorar apenas temporariamente, a dor e o sofrimento pungentes.

Erguem-se fronteiras, arames farpados,  constroem-se "campos de concentração", levantam-se muros ... outra vez !...
Engendram-se combóios, cheios ao milímetro, no transporte, por vezes enganador e desumano, dos migrantes. Lembram Auschwitz, Birkenau ... o caminho  para o horror !...
A Europa barrica-se de novo.  E barrica-se também em si mesma, porque os medos e os terrores, também lhe minam as entranhas !...

As sociedades e os países vivem crises inomináveis.  Sobre o nosso chão mesmo, também os nossos "refugiados" e "migrantes" se avolumam, com a ausência de recursos, a precariedade das condições de vida e oportunidades.
Também aqui, a maioria sobrevive ... Pouco se vive !
Os nossos velhos estão desprotegidos, e arrastam fins de vida indescritíveis.  Os jovens vêem horizontes limitados à sua frente, e confrontam-se com uma desvalorização e desaproveitamento das suas valias e capacidades ...  E partem, também eles !
A geração charneira, aqueles que estão etariamente pelo meio, vão percorrendo o trilho destinado ... um dia de cada vez, em cinzento e pardo ... de sol manso e enevoado ... esperando apenas, que nenhum maior sobressalto  lhes assombre a marcha, ou que de repente, lhes tire ainda o curto e incerto chão, que têm debaixo dos pés ...

Como se pode então pedir, que estas sociedades doentes, de doença crónica  contudo com dor controlada, se abram a amanhãs desconhecidos, imprevisíveis, com consequências inimagináveis, mas que se adivinham gravosas ?

Porque a chegada desta leva incontrolável de pessoas, é como o assalto de mais ocupantes, a um bote precário, de lotação há muito esgotada ... É como a chegada de um salvador,  junto de quem está na iminência de afogamento ...
São questões de sobrevivência ... e o desespero da sobrevivência, tudo permite, como sabemos.

Em sociedades com sérias precariedades, com desequilíbrios e assimetrias profundas sem resolução visível ... como assimilar uma sobrelotação que implica a todos os níveis, um agravamento do peso social, que não conseguimos carregar nas costas  ?!...
Como aceitar a entrada de povos, cujas raízes culturais e religiosas pouco conhecemos e nada têm a ver com as nossas, acarretando o risco inerente de maiores  clivagens e fracturas sociais ?!...
Como não recear, que estando conotados com fundamentalismos religiosos e políticos extremistas, estes povos ( que talvez  injusta e levianamente reconhecemos por norma, associados a actos bárbaros e de vandalismo absoluto ) ... não aproveitem esta infiltração encapotada, subscrita e aceite pelos países hospedeiros, para  aí  alcançarem os seus desígnios criminosos ?!...
E como tal, o racismo e a xenofobia recrudescem, como defesa, eventualmente  legítima !

E depois, há todo um aproveitamento político, que se joga nos bastidores e que o comum dos mortais não alcança, e que advém duma engenharia ardilosa, dos lobbies de que infelizmente tanto ouvimos falar ...
Passam-me pela cabeça infindáveis interrogações, cujas respostas não descortino com clareza :
porquê a Alemanha, super potência do velho continente, sempre tão rigorosa, pouco maleável e radical nas exigências aos seus parceiros europeus, encabeça agora uma posição de tanta tolerância, colaboração e disponibilidade ?!
De tanta filantropia e redenção?!...
Será mesmo e apenas, isto ?
Que interesses e manipulações menos louváveis, se escamotearão e presidirão por detrás de um "rosto" aberto e generoso ... franco e fraterno ?
Quem se "serve" também, de toda esta situação ? Porque será indubitável, que também se jogam economicamente interesses fortíssimos, em todo este xadrês ...

Depois, porquê os irmãos de "sangue" e de convicções religiosas, os parentes ricos do Médio Oriente, os que falam a mesma linguagem de coração ... não se chegam agora à frente, e não assumem a postura humana e religiosa expectável e propagandeada nos seus dogmas ?!
O que ditariam os seus Profetas ?
O que ordena o Alcorão, na questão em apreço ?!...

Enfim ... demasiado complexo para mim !
Demasiado obscuro para todos nós, acredito  !
Intencionalmente demasiado confuso, para o entendimento do maioritariamente desinformado e ingénuo cidadão ... ( com quem também se joga em chantagem emocional ) ... quer-me parecer !
Nada linear !  Nada exactamente o que parece !  Nada exactamente o que na verdade será ... seguramente !...

Enquanto isso, as hordas de gente perdida, atravessam mares, calcorreiam caminhos, engolem pó, engolem a fome, a dignidade e o desespero que os corrói ...
Enquanto isso, secam as lágrimas, carregam os filhos ... calam os gritos de aflição ... silenciam a revolta dentro do peito ...
Enquanto isso, enterram os mortos, pelo caminho ...
Enquanto isso, as crianças não mais adormecem as bonecas, na beira das estradas, não mais carregam os livros nas mochilas da escola ... não mais pontapeiam bolas, em campos passados e felizes ...
Enquanto isso, não mais escutam canções de ninar, em sonos que não são de paz e tranquilidade ...
Enquanto isso, os seus olhos incrédulos e sem luz, opacizam de cansaço e doença, os corações esvaziam de sonhos nunca vividos, e as suas almas desesperançadas e sem futuros, sufocam o medo ... e continuam em frente, sempre em frente ... ao ritmo do que as suas pernas pequeninas, as levam...

... adiante ... sempre adiante ...
Num suplício e num pesadelo, que nós, os que por aqui estamos, não sonharíamos ainda, ter que assistir, impotentes, nesta nossa existência !!!...





Anamar

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

" VIAJANDO ... "





Gostava de voltar a encontrar-te ... Pensa nisso.
Que idade tens tu agora ??  Quarenta e quatro, e tu ? Conversa estrategicamente contornada.  Para quê, pensar nisso ?...
Cinquenta vai fazer o António, breve, breve ... e o João ... Sempre o João !
Reencontrei-o, tinha trinta e oito ... Como é possível ?  Ainda foi ontem !...

Tudo inacabado !  Esquinas e mais esquinas.  Ângulos rectos de vida, a impedirem o olhar de se insinuar outra vez, no trajecto percorrido.
Sim, porque nas curvas, a gente sempre espicha os olhos pela paisagem que foi, e pela que há-de ser ...
Assim o é, nas encostas das montanhas.  E nada se perde quase em definitivo !

Tudo estranho !

Saudades da Maria.  Esquisito saber-se alguém nosso, que já não é bem nosso.  Que anda por aí ... Bem ?  Mal ?  Vivo ?
Sim ... tem que estar vivo.  Ainda que longe.  Ainda que seja um filho nosso ( que dizem ser um pedaço de nós ... )
Então, como pode um pedaço de nós ter-se soltado, e voejar ... sem que o saibamos ?
E como existimos nós, sem esse pedaço ?!
Por que é a vida feita de amputações ?!

Esquisito ... tudo esquisito !

Quero ir e quero ficar ...

Como é que alguém pode dizer  que vai  lutar sempre ... insanamente ... numa  roda louca de hamster ?!
Assim, sem pensar.  Engrenado,  simplesmente ... atordoadamente ?!  Sem sequer querer sentir o que deixa, o que dispersa,  nos restos que vai largando pelo caminho ?!
E que um dia morrerá ... mas que até lá vai continuar adormecido, autómato de um destino, morto-vivo,  sem o saber ?!...  Como pode ?!...

Percebo-me numa varanda, numa mansarda ... E só olho os bocados de histórias semi-escritas.
Passam vertiginosamente, ligeiras ... umas ... Outras estão amodorradas nas soleiras dos bancos de jardim ... sem pressa.
Fazendo render os minutos, que têm a mania de escoar-se rápidos.
Essas são as histórias que mergulham em silêncios.  As outras, tagarelam pelas ruas, gargalham nas esplanadas, que são sempre lugares de sol.

Gosto de me perder no penedo, em frente ao mar.  Porque aí, eu mando no horizonte.
Levo o sol, devagarzinho, devagarzinho, a percorrer a descida, ao ritmo que eu quiser.  E só o deixo dormir, quando eu também estiver cansada.
Comigo, o vento no seu zunzum entorpecente.  Comigo, os pássaros que vão e que vêm.  Que são livres e soltos.  Comigo, os caminhos incompletos que percorri.  As veredas que me fizeram retroceder.  As estradas sem saída, os ziguezagues do destino ... os labirintos da vida ...
Vida !...
Como o vai-vem das ondas lá em baixo, onde o mar se faz mar a sério.
Sempre diferente, enganadoramente igual, na melopeia da sua canção ... Como os dias ...

Os olhos húmidos ...

Sem nexo ... quase tudo sem nexo !

Acordar, dormir ... acordar, dormir.  Que brincadeira mais sem norte !...
Marionetas ... palhaços ... robots ... sei lá !
Como aquele homem de olhar macerado, que naquele café, lavou o olhar na água fria, como se quisesse acordar ... como se quisesse lavar a alma ...
E saíu sem dar por nada, sem estar ali ... carregando na mesma, o pesadelo escuro que lhe pairava por cima , e não sabia ...
"Marionetas" ... somos só marionetas.  "Peões de xadrês", disse o João.  E o "Arquitecto", a divertir-se sei lá onde !
E as lágrimas a escorrerem-me.  Porquê ?  Porquê isso ?!
Perplexidade e impotência !  Triste ... demasiado triste !...
Há tanto tempo já !...
Será  que  o  homem  ainda  anda  carregando  por  aí,  aquela  nuvem  negra,  ameaçando  borrasca ?!
E aquela sombra de desesperança no rosto, que a água daquele café não lavou ?!

O João já não lembra ... seguramente.  Só se eu o recordasse.  Então, eu tenho a certeza que ele lembraria aquela longa conversa, de pequeno almoço fora de horas ...
A existência ... o viver ...
Esta coisa do acordar, dormir ... acordar, dormir ...
E nós, pequeninos, pequenininhos ... por cá, neste terreiro de feira ... a sermos olhados, sadicamente ... Só a sermos olhados ...

Tudo estranho, tudo esquisito ... tudo sem nexo !...

Quero ir e quero ficar ...

Os olhos húmidos ...

Anamar

terça-feira, 1 de setembro de 2015

" CURTINHA ... "




Setembro chegou.
Enfarruscado, mal humorado ... cinzentão !
Chegou com prenúncios de chuva, com ameaças de vento, com mercúrio a cair no aparelhinho.
Chegou uma coisa assim, mal convencida, com cara de quem não é carne nem peixe, apitando o fim da partida ... doa a quem doer !

Recomeça a azáfama.
A "canalha" já anda eléctrica, a antever aquilo que irá fartá-los, lá mais para a frente.
Os livros pintam-se de cores convidativas, por enquanto.  As mochilas, os ténis, os fatos de treino ... e mais os estojos, os cadernos e tudo o que faz e mais o que não faz falta, mas que se insinua das vitrinas, deixa os putos acelerados, em "palpos de aranha".
Os pais, esses fazem e refazem as contas de um mês que promete ser " longoooo " ...

Sempre assim ... sempre igual !
Ano após ano, a miudagem recém chegada do calorzinho dos areais ainda bem mornos  mas muito mais vazios ... tem uma urgência urgentíssima, de rever os amigos, os colegas, os companheiros.
As novidades de férias fazem-lhe cócegas debaixo da língua.  Há uma pressa no ar  que se percebe , que se sente, que se transmite.

Até o sol amarelou, com cara de parvo.
Não consegue mais pintar a bochecha radiosa, com todo o empolgamento dos dias decorridos.
Já só convence poucos !

Começa a olhar-se a roupa e os sapatos ... e a verificar-se como num passe injusto de mágica, as mangas puderam encolher tanto !..
A constatar-se como as biqueiras  se tornaram impiedosas ... E já que as sandalinhas, não demora estão de lado ... fazer o quê ???!!!...

Como foi possível os ganapos terem medrado assim, em escassos meses ?!
Será que os regámos de mais ?!...
Será que nos distraímos,  mergulhados que estávamos, no creme suculento das bolas de Berlim ?!...
Será que adormecemos nas areias mansas, e recusámos acordar antes de tempo ?!...

Sempre assim ... sempre igual !

E como tenho saudades !...

Anamar