segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

" BALANÇO "





Os diospiros estão no fim, disseram-me há pouco.
O plátano está quase despido, na praceta onde o farrusco se esconde da intempérie.
O azul há muito sumiu de um céu que, promitente de Verão fora de época, envergou finalmente roupagens escuras, encasteladas e molhadas.  Adequadas a este tempo de silêncio interior, de quietude e sonolência .
As gaivotas, algumas, esparsas aqui por cima, parecem não ter rumo, mercenárias que são do betão.
Deixaram mais além a orla marinha, nunca entendi porquê ...
Trocar aquele mar de paz ou de borrasca, de verde ou de azul ... aquele vaivém de balanço, de cólo ou de berço por este nada que a cidade lhes oferece ... não é coisa que eu entenda ...

O tempo avança, inexoravelmente.  Pula de estação em estação, de mês em mês, de ano em ano.
Agora, outra vez aquela época insana de uma espécie de alucinação colectiva, numa urgência de salvar não sei o quê, de redimir não sei o quê, de inventar não sei o quê ...
Parece querer agarrar-se o que se deixou fugir o ano inteiro.
Parece querer vivenciar-se uma bonomia de redenção inexplicável.
Parece querer salvar-se uma humanidade dissoluta e distraída ...
Parecemos querer atordoar-nos no mergulho suicida de miragens felizes ...
Tudo a correr muito, ao ritmo estranho do calendário que parte ...

E as pessoas partem também das nossas vidas ...
As "nossas", as próximas, as distantes, as conhecidas ... mesmo as quase desconhecidas...
As que nos pertencem e as que a vida determinou pertencerem-nos ...
E sempre, seja em que circunstância for, empobrecemos.  São pedaços de nós que se dispersam por aí.  São marcos de caminhos que vão ficando sem sentido.
São  horizontes  que se vão distanciando e entrando na linha penumbrenta das névoas das madrugadas ...
São silêncios instalados em lugares vazios e ausentes ... são espaços que se agigantam em frio descomunal ... são marcas quentes deixadas em camas desfeitas há muito ...
Risos e gargalhadas que já só ecoam, olhares descoloridos pelo desconexo da vida, memórias que empalidecem com toda a injustiça do mundo ... sem apelo ... só porque tinha que ser assim !...
São perdas ... sempre perdas ... inevitáveis perdas !...

E a história vai-se escrevendo .
Como num livro,  as páginas vão virando, as folhas vão dobrando  amarelecidas, como esquinas contornadas sem retorno.  E caminhamos, apoiados no que fica, nos que ficam ...
E nada vai ficando igual.
E um destes dias, nós, que minuto a minuto deixamos de nos conhecer, acabamos olhando apenas o horizonte distante das memórias ... enquanto a tivermos.
E tudo o que aquela foto desfocada ainda nos mostra, já não fará sequer sentido nas nossas mentes !...

Balanço inevitável e injusto das vidas !!!

Anamar

terça-feira, 28 de novembro de 2017

" AS PEQUENAS COISAS "






Um dia talhado a pedido ...

Parece que a natureza, a vida, o tempo, sei lá ... resolveram dar-me uma colher de chá, nesta tarde mansa, cinzenta e chuvosa.
Frente à minha janela, o dia fechou docemente, o casario foi ficando restringido no alcance da vista, silenciaram os ruídos lá fora ...
Tudo se esbateu, como a subtileza de uma aguarela pintada.  Lá longe, na linha do horizonte pouco se divisa, e muito se pode imaginar.  Sei claramente tudo o que está para além, mas sou livre de voltear na aragem desabrida deste fim de dia e dançar por ali, nas correntes que empurravam há pouco as últimas gaivotas, que em recuo, se atreveram ...
Também como elas, posso esbaldar-me céu fora, sem limite ou barreira, sorvendo apenas a quietude e a paz !
Junto de mim, a música que sempre me acompanha, torna maior e mais cúmplice o aconchego que me envolve.
Deixo-me tomar pela emoção das pequenas coisas ...
Deixo-me o direito de me embrulhar neste silêncio gostoso, nestas notas largadas no éter, como cobertores envolventes, como macieza de lençóis de cetim, como sorrisos de madrugadas promitentes !
E é uma volúpia, um estado de graça, uma espécie de clímax, com o mesmo sabor de um orgasmo desejado ...
Quase não ouso mexer-me além do essencial.  Quase não ouso perturbar esta bênção descida, esta beatitude de silêncio e tranquilidade. Quase não ouso ... simplesmente ...

 E viajo.  Viajo pelas memórias, pelos lugares, pelas pessoas ... Todas.  As que amei, as que amo, as que me amam ... Mas também as outras ... as que não me escolheram ...
As que estão, as que se perderam, as que ficaram, as que partiram e me deixaram mais só ... Todas.

Olho os lugares. A minha infância, que foi o lugar mais seguro e certo que já tive. O cólo da minha mãe ... as mãos do meu pai ...
Depois, o amanhã que já foi ontem ... e o amanhã que será depois ...
Olho as marés nas praias todas que pisei. Recolho o que me trouxeram e o que levaram, no incessante vai-vém das ondas da vida ...
Olho as noites enluaradas a coroarem-se em auroras de desejos, sonhados em silêncios.
Olho o sol amarelo, laranja, vermelho do fogo de outros ocasos, de outros levantes , distantes ... À distância de memórias impressas debaixo da pele ...
Escuto os sons das matas, do vento, das vozes que se foram apagando no vórtice da intemporalidade ...
Escuto o grasnar das garças na renda da rebentação. Oiço o pipilar das aves ao raiar do dia. Comprazo-me com a melopeia incessante do pica-pau no coqueiral ... com o açoitar da chuva lá, na floresta  cerrada ... com  o  tamborilar  das gotas  aqui, na  vidraça  da  minha  janela ...
Impregno-me com os cheiros, adocicados das paragens inóspitas...   salgados, das maresias espreguiçadas ...
O cheiro das rabanadas no Natal dos meus avós ... o cheiro da coentrada na açorda de domingo ...

Enfim, o  privilégio das coisas pequenas e insignificantes  é  um brinde de dia de festa, é presente de aniversário festejado, é oferta para a alma e para o coração, recebida com a ternura e o carinho daquilo que não se compra , não se paga, não se exige ...
Recebe-se com o calor da emoção, surpreende-nos com a autenticidade do que não tem preço ... maravilha-nos com a força do inesperado, sempre novo e surpreendente ... ainda que seja apenas uma " pequena coisa " !...

Anamar

" INFERNO " - 15 Outubro 2017





E escureceu em céu e terra ...
De vermelho se pintou o universo
Vermelho, cor de sangue, cor de inferno
vermelho, cor de morte, cor de guerra ...
As ondas de loucura que avançavam
nos espasmos de um vento aterrador
sacudiam, destruíam e vergavam
as árvores que clamavam em estertor ...
A trenodia da floresta murmurava
súplicas aos homens e aos deuses
indiferentes ...                                       
De desespero e impotência soluçava,
no estrépito langor da morte que cercava ... 
mas como sempre, são os deuses, seres ausentes ...


E a noite que era noite, ficou dia
e  acendeu de horror a escuridão
foi das árvores silentes, agonia
foi um grito de revolta,
um coração sangrante, moribundo e estropiado
abraçando os troncos ainda erguidos
que p'la natureza-mãe foram paridos
e pela mão do Homem, sepultados !
Erectas sobre a encosta, amordaçadas,
como esfinges, árvores mortas, sonolentas ...
no verde da memória ainda gravadas,
de pé, para sempre recortadas
quais fantasmas, se acabando na tormenta !                             

E em tudo aquilo que restou,
não há cantos, não há sombras, não há vida
só o tempo, indulgente, dará paz ...
Silenciam os mortos que ficaram
são testemunhas injustas que tombaram
são a voz da floresta em despedida !

Anamar

domingo, 26 de novembro de 2017

" AFINAL ... "






Estou convencida de que afinal até gosto, e muito, do Outono !
De que afinal até gosto um bom pedaço da chuva !
De que afinal até amo perdidamente o friozinho com cheiro a castanhas no assador, que até amo o céu nublado que custa a definir-se, a "fumaça" a sair das bocas que falam ... e o silêncio cúmplice que paira quando nada é dito, e quase tudo é sentido !...

Afinal eu tenho umas saudades infernais, de calcorrear veredas e alamedas pisando firme a gravilha, deixando a aragem gelar-me o nariz, embiocando as mãos na malha das luvas e soltando o cachecol no desalinho da brisa ... sem destino ou norte, saboreando apenas porque sim ...

Tenho umas saudades infinitas dos cheiros a terra molhada, a musgos trepadores, a sombras húmidas e recolhidas, de caminhos que só tinham volta se eu quisesse ...

Tenho desejos insustentáveis dos silêncios, da ausência de gente, nestes castanhos, ocres e dourados.
De olhar os plátanos a despirem-se na intempérie.  De brincar com os ouriços preguiçosos das castanhas que ainda não tombaram ...
E do tamborilar de gotas  atrevidas  e  abençoadas,  na  época  em  que  a  chuva  nos  comprazia ...

Recuo no tempo e revejo o tempo, simplesmente... Volto páginas, dobro esquinas, abro dias, meses e anos ... Perambulo pela vida que desfila.
Era eu lá atrás, embora custe a crê-lo.
Era eu, eu e todos os sonhos que sonhei.  Eu e todas as esperanças que raiavam de verde pelas madrugadas.  Eu e uma cesta de rosas fora de época, contudo cheirosas e doces.
Era eu, aquela que dançava em desafio atrevido no meio das noites que eram minhas.  Ou talvez já não dançasse ... Daqui, não consigo já olhar tudo.  Uma bruma interpõe-se entre o hoje e o então.
Um nevoeiro corre as cortinas da mente ...
Seria mesmo eu ?!
Por que  restou  então  apenas  isto ?  Será  essa  a  inevitabilidade  da  existência ?  Onde  fiquei ? Onde me parei e esqueci ?
Em que pedra do caminho me adormeci ?  Em que encruzilhada me perdi ?  Em que labirinto me cansei ?  Em que estrada desisti ?...

Outro fim de Novembro a cheirar a bafio, a mofo, a solidão e abandono... Outro fim de Novembro a saber a raiva, a mágoa, a dor ...
Histórias mal terminadas ... Romances mal alinhavados ... Enredos mal escritos ...
As pirraças dos destinos jocosamente brincando de esconde-esconde nas nossas vidas !...

Anamar

sábado, 30 de setembro de 2017

" SEMPRE O OUTONO ... "




E o equinócio de Outono aconteceu.
O Verão partiu e com ele os dias prometedoramente azuis, quentes e luminosos.
Passei-o por aqui mesmo.  Nada de praias, nada de férias no que elas têm de especial, nada de significativa mudança de vida, na tentativa que se faz de a arejar quando se muda o local de poiso ...

Talvez por isso não me tenha verdadeiramente dado conta de que o ano está a iniciar o seu último trimestre, de que, mais um pulinho e é Natal outra vez, de que os dias escuros, curtos e sorumbáticos estão a bater-nos à porta.

Tenho sim, a sensação de uma escorrência demasiado célere de tudo isto.  Sinto dentro de mim um desejo imperioso, sonhador e utópico,  de fazer retardar a sua marcha ... Como se o pudesse ... como se isso fosse possível ... como se correndo em sua perseguição, numa qualquer volta a pudesse abrandar.
Como se pudesse retê-la antes de realizar tudo ou quase tudo que um dia sonhei ... que fui sonhando pelas esquinas da vida.  Como se esta tivesse comigo, uma dívida a saldar.

A nossa existência não se renova. É um bem de que dispomos, que devemos gerir com o cuidado e o carinho com que se trata tudo o que é valioso, mas frágil e insubstituível.
A precariedade com que tudo acontece, a aleatoriedade com que tudo nos surpreende  apelam e impõem que estejamos despertos e vigilantes, que não sejamos perdulários e estejamos atentos à fruição de cada pequena coisa que nos cai no regaço momento a momento, como presente em dia de aniversário, ou fruta madura pendida do ramo.
Estar por aqui, respirar, rir ou chorar ... viver afinal, deverão ser bênçãos que descem sobre nós, como a chuva doce em dia quente, que ameniza, envolve, embala ... adocica o caminho ...

Não tenho sido uma pessoa muito deslumbrada com a vida.  Por vezes arrasto-a, como quem carrega um fardo que me deixa dúvidas sobre as vantagens de o fazer.
Sobretudo nos últimos tempos, as "dores de crescimento" que tenho experimentado, fazem-me crer como  inevitáveis, demasiados danos colaterais.
Mas ainda assim, vagueando em pensamento até onde a memória mo permite, terei que concluir da generosidade de tudo quanto me tem sido disponibilizado.
Terei que concluir que se foi sendo assim, é porque teria que o ser ... E que as marés se sucedem nas subidas e descidas em praias que as acolhem ... E que as Primaveras sempre vêm no fim dos Invernos, sem nada que as altere ... E que depois do silêncio tantas vezes perturbador de noites escuras, sempre aclara uma alvorada que progride até à luz ...
Pelo menos, terei que entendê-lo como tal !... Terei que me obrigar a concluí-lo !...

E sempre assim, nas andanças das existências, por mais injustificáveis que as achemos ...

A vida é o sobe e desce dos carrosséis da minha infância ... É a ansiedade da subida, seguida da adrenalina louca da descida desenfreada, que atacávamos estugadamente, com um sorriso inevitável nos olhinhos matreiros pela satisfação da conquista do mundo ... parecia !...
Quando cavalgávamos aqueles corcéis de pau, em montanhas inventadas ... Quando o friozinho na barriga, nos tomava agradadamente, no desejo de que a viagem e a corrida não terminassem nunca !...

Mas éramos então crianças, e ainda não sabíamos grande coisa disto por aqui ...

Hoje, neste Outono doce e morno deixo-me tomar por uma lassidão de astenia de alma.  Deixo-me invadir por um silêncio que busco e desejo, na protecção da castanha no ouriço...
Fico e parto ... daqui.
Tenho que ficar, mas desejaria partir ... Subir ao pico da encosta, ao lugar tão alto que só tem céu e mar em contraste atrás de si, e adormecer por lá mesmo, afundando-me no musgo fofo das penedias, olhando as estrelas quando subissem no firmamento, escutando a brisa que promete ser vento qualquer dia ... simplesmente adormecer, quando o sol dormir também, lá longe, no horizonte vermelho, que sempre se acende p'ra noite ...

Na certeza de respirar a paz ... a paz que sempre sobe, gratuitamente, da Mãe, que é colo e útero...  Que é verdade suprema, primordial ... Que nos trouxe e nos há-de levar qualquer dia, e nos dará guarida e abrigo  na verdade única, matricial ...
Lá, onde reside a  nossa essência !...

Anamar

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

" NO DESACERTO DO PASSO ... "






Quando a Vida custa a acertar-se, é um cansaço atroz !
Quando os volteios  com que nos enrola, por cada dia que amanhece, se estendem temporalmente numa espécie de teste de resistência a cada um, numa repetição aparentemente sem fim ... aí, a resiliência pessoal  é mesmo a única coisa que pode ajudar-nos.
E esse grau de adaptação à realidade resiste enquanto resiste, enquanto a saúde deixa e a esperança não esmorece.  Enquanto ainda temos força no nosso íntimo ...
Mas é uma prova de fogo que exige uma "endurance"  de atleta de alta competição, que nem sempre ( ou quase nunca ), temos capacidade de alcançar, menos ainda de manter.
É um equilíbrio laborioso, alcançado a duras penas e com juros demasiado elevados.
Sobretudo quando os dias vão e vão e vão, esticando no tempo e na vida, os túneis se obscurecem, os horizontes se vão afastando cada vez para mais longe de nós ... num simulacro de meta a que nunca se irá chegar ...

E quando as pegadas  deixadas são demasiados e intermináveis rastos que se desenham em simultâneo nos areais da nossa existência, num desafio monstruoso e desproporcionado, abate-se então uma canseira que nos retira a capacidade até mesmo de viver, até mesmo de sobreviver ... até mesmo de nos erguermos sobre as nossas pernas por cada manhã, simplesmente !
São sucessivos e nunca desistentes reacendimentos, em frentes de fogo incontroláveis !

E apetece hibernar.  Apetece esconder a cabeça sob uma qualquer carapaça, na esperança de uma protecção providencial que abençoadamente nos subtraísse ao desafio de viver, à obrigação de resistir, à necessidade elementar de caminhar.
Apetece buscar um lugar anódino ... um refúgio a salvo ...
Manter o equilíbrio no desacerto instituído ... é urgente !

Estou assim, nesse "modo" alforreca, como uma amiga em tempos classificava este estádio letárgico e quase indiferente já.
Uma espécie de opção por silêncio, uma espécie de recolhimento auto-imposto, uma espécie de sono ansiado de uma sonolência abnegada ... misericordioso e comiserador ... uma espécie de escolha da paz do recolhimento de claustro de abadia ...
Queria que se esquecessem de mim.
Queria poder retirar-me para uma qualquer ilha  inóspita, perdida por aí ... como o protagonista do último romance que terminei de ler .
Queria habitar um farol sozinho e abandonado, sobranceiro  aos  rochedos, adormecido pelas ondas alterosas, ameaçado pelos ventos agrestes que empurram as gaivotas e despenteiam os arvoredos ...
Queria deixar-me possuir anónima, pelo encantamento melífluo de um lugar de paz, como se nada existisse à minha volta e eu não existisse também, numa anestesia ou torpor !

Para finalmente, nele poder repousar ...
Estou tão cansada !...

Anamar

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

" PEREGRINANDO "


Liberdade é ser poeta,
é pintar a noite negra
com as cores do arco-íris
É fingir acreditar
que ora é hora de voltares
quando eu sei que vais partir ...
É enfeitar as estações
É escolher sempre os Verões
em vez do Inverno frio
É ser dona do viver
conforme me apetecer
num insano rodopio ...
Liberdade é desbragar,
é rir ou então chorar,
fingir que tudo é verdade ...
inventar como eu quiser,
pois tudo o que se disser
ao poeta é perdoado ...
Ser poeta é liberdade ...
A maior que a gente tem,          
e é espelho de uma alma pura
Não se acomoda ao real,
mesmo sendo um temporal,
é uma doce loucura !

E por isso vou escrevendo ...
De palavras vou vivendo
não me importando o destino ...
E ao longo da caminhada,
ainda que  penosa a estrada,
levo a fé de um peregrino...

Anamar