segunda-feira, 23 de julho de 2018

" VOANDO COM ELAS ..."



Pelas seis da manhã já aí andam.
Elas, as pegas rabudas, os melros, as rolas, as andorinhas ...
Mas são elas que me acordam.  As gaivotas.  Muitas, planantes, ao sabor do vento que aqui é muito, quase sempre.
Não se inquietam no bater de asas.  Deixam-se embalar no baile que se faz lá por cima.  E grasnam, em gritos estridentes de marinhagem.

Acordo e fico quieta.  Sorrio para dentro.

Acho que as gaivotas não pertencem bem a este cenário arrumadinho, de Natureza plastificada.
Sei que estou no Algarve e que o mar aqui é rei.  Aliás, vejo-o a cada esquina ou recanto. Azul intenso, rematando um céu sem mácula.  Ponteado a vezes, por uma ou outra vela branca ...
Sei que estou num condomínio para privilegiados, para uso turístico ou para consumo interno ... de quem pode, bem entendido.
E obviamente todo o contexto tem que ser perfeito ... e é-o, de facto !
Flores, muitas flores cuidadosamente tratadas, de todas as cores, rochas dispostas aparentemente ao acaso, que o não é, relva bem cuidada, árvores e trepadeiras multicores aqui e ali, com intencionalidade ... fazem deste espaço, como de muitos idênticos, oásis para utentes exigentes.
Aqui, claro, praticamente todos falam outras línguas.  Provêm de países não bafejados por este clima abençoado, esta envolvência pródiga e generosa, que é a nossa.
São ingleses e alemães na maioria, gente de uma estranja de névoas, de céus cinzentos e dias escuros.
Gente fria e distante, bem ao contrário deste sul de uma Europa namoradeira de África, que empresta calor, emoção e paixão ao sangue dos que aqui nasceram.

Como dizia, o mar está por perto.  É o coração desta terra, e é dono destes areais.
E  se  o  mar  está ao virar de cada esquina, é expectável  que  as  gaivotas  também  o  estejam ( ainda que eu não ache tão lógico assim ... )
A menos que elas, já mercenárias, sejam também pássaro decorativo para "camone" consumir  (rsrsrs ) ...
Porque, gaivota para mim, é pertença de escarpas, falésias, arribas selvagens.  É pertença de costa bravia, de areais desertos, de ondas que tripudiam, no incessante vai-vem, dos rochedos que massacram ...
Gaivota é pássaro de liberdade total e absoluta, de horizontes sem limites, pássaro de silêncios ... pássaro de maresias, de marulho suave ou agreste ... de solidão e memória ...

E por isso elas me levam ...

Libertam-me deste "caixilho civilizado", e conseguem transportar-me daqui para bem longe.  Lá, onde eu vejo tudo isto, onde eu sinto tudo isto ... onde a Natureza é talhada à séria ...

Junto de mim, Énya solta os acordes da música da sua Irlanda rude, inóspita e selvagem.  Uma Irlanda  de  costas  impiedosas,  abruptas,  açoitadas  por  mares  encrespados  e  alterosos ...
Costas  envoltas  na  magia do indomado, do autêntico, das  neblinas  cerradas  e  misteriosas ...
E lembro " A filha de Ryan", um filme de há muitos anos.  Icónico na sétima arte, inesquecível ... fantástico ...  Visto e revisto ... Arquivado, sempre ...

Será por tudo isto que me sinto nostálgica ?!...

Anamar

" NÃO ADIANTA ... "



A gente adona-se dos lugares, de acordo com o que neles vive.
Sempre digo "a minha casa", "a minha rua", "a minha janela" ... mas também digo "o meu mar", "a minha serra", "as minhas praias", "a minha gaivota" ... "os meus horizontes" ... só porque eles são "aqueles" que têm história minha.
Minha, do princípio ao fim.  Mesmo que já não tenham.  Estão lá, mais ou menos intocados, vertendo momentos pelos poros.
Afinal, tudo passa por emoções.  Emoções reais que vêm do domínio da pele, dos olhos, do coração ... e se fixam como numa película, na mente, para toda a vida.

E é só isto.  Simplesmente isto ... não mais !

O que verdadeiramente não foi emocionalmente nosso, nunca se tornará nossa propriedade de afecto.
Poderá ser excelente, extraordinário, maravilhoso.  Mas não "nosso" !

As emoções sufocantes, as vivências de tirar fôlego, os "coups de foudre" que nos cegam o discernimento, nos aceleram o coração e nos emudecem a voz, acontecem apenas algumas vezes na vida.  Vivem-se apenas em momentos predestinados.  Mágicos.  Privilegiados.
E esses momentos são aqueles que fixam os "nossos lugares" em nós.  Para sempre !
São códigos emocionais inalienáveis e intransmissíveis.
E são poucos.  Apenas alguns.  Contudo indeléveis, eternos, incomparáveis ... insubstituíveis !

E nada disto se explica.
Como quase tudo o que pertence ao domínio do subconsciente, do sentido, do vivido na alma, não adianta tentar alterar, ou acreditar que será diferente.

Passei por muitos sítios ao longo dos tempos.  Como seguramente toda a gente.
Pisei muito chão, olhei muito mar, escutei muitos pássaros.  Deslumbrei-me com nasceres e pores de sol, sorvi todos os cheiros possíveis, bebi todas as cores de todas as flores que estavam lá e mais aquelas que eu inventei.  Perdi-me na luz mansa do horizonte e embalei-me na aragem cálida perpassante.  Vi a transparência das águas, reflectida em olhos meus e guardei silêncios de palavras não ditas, porque não era preciso ...
Toquei pele, mergulhei em corpos escaldantes, rebolei-me na areia quente do destino ou sombreei-me na mata tão inexpugnável quanto a minha alma ...
E tudo isso foi vida.  Ou melhor ... apenas isso é que foi Vida !!!...

A gente adona-se dos lugares, como se adona dos momentos, das memórias, dos retalhos de tempo que conseguimos guardar.  Apenas quando, e só, o coração o determina !
Tudo o mais são parcelas de história, que tentamos rechear como a vida se nos oferece, que tentamos escrever o mais harmoniosamente que podemos ... quando podemos ...
Contudo, nunca com a singularidade do irrepetível, do único ... do verdadeiramente nosso ... do tactuado para sempre !!!

Anamar

domingo, 22 de julho de 2018

" EU "



Sou do desejo, a fogueira
que se acende sem dizer
Sou o raio que se incendeia
à revelia do querer ...
Sou uma cama desfeita
ainda quente de te amar ...
Acalmia ou tempestade
Sou um riacho ou sou mar
Sou a loucura de um sonho
sonhado na madrugada ...
A palavra que não disse ...
numa folha, desenhada
Sou centelha do prazer
que não ouso confessar ...
Sou vulcão que não sossega,
vontade que não se nega
e não cansa de buscar ...
Eu sou a força do vento
do que sopra, e soprará ...
Sou um gemido e um lamento,
guardo os segredos do tempo
que passou e que virá !
Sou o que fui e me fez
a vida, que já passou ...
Sou um sim e sou um não
Certeza ou contradição ...
Nem eu mesma sei quem sou !...

Anamar

quinta-feira, 12 de julho de 2018

" E TER, DEPOIS, MENINOS ... "



" O amor em Portugal continua a ser diferente.   Começou pelos sinos a tocar e um par que se ajoelhava e acabou por um anúncio no jornal e uma fotografia que se devolve ... "

" Antigamente, quando o amor sorria
e os vates o cantavam com talento,
tudo em volta de nós era poesia,
ternura e sentimento !
Os olhos das mulheres enamoradas
brilhavam como sóis,
os cardos eram rosas delicadas,
as águias rouxinóis,
o riso era cristal, a pele arminho
e a vida cor-de-rosa !
Os poetas em tardes outonais
não estavam lá com tretas
descobriam no cheiro dos currais
o aroma suave das violetas ;
a Lua era de prata,
as tranças d'ouro, os lábios de coral
e quatro pés de couve a verde mata
as áleas dum quintal ...
Como era bom, então, viver, amar
e unirem-se os destinos
quando bastava apenas p'ra casar
ouvir tocar os sinos,
por o joelho em terra aos pés do altar
e ter, depois, meninos ...

Mas hoje não arrulham pombas mansas,
nem se murmuram já palavras ternas ;
são outras as andanças
das práticas modernas
e como o Tempo volta a toda a hora
as costas ao passado,
aquele que hoje em dia se enamora
e quer mudar de estado
para seguir, enfim, p'la vida fora
até se reformar divorciado,
dispensa a frioleira
duma aliança d'ouro ou dum bragal,
não faz questão co'a flor de laranjeira,
põe de parte o que for cerimonial,
convivas mascarados,
passadeira e cortejo nupcial
com fatos alugados
que assentam muito mal
e chapéus com grinaldas de florinhas,
em troca dum anúncio no jornal
de quatro ou cinco linhas :
"  P'ra fins matrimoniais, sem mais rodeios,
um homem que não tem bens de raiz
pretende uma mulher com alguns meios,
que faça um lar feliz ;
uma mulher que entenda os seus anseios,
loura ou morena, de qualquer idade,
viuva ou separada, 
esteja ou não esteja em plena mocidade,
ou já recauchutada ... "

Diga o leitor agora, francamente,
com a sinceridade habitual,
se continua ou não a ser diferente
o Amor em Portugal ... "

                     V. M. S.



Estou a desfazer a casa dos meus pais.  Paulatinamente ... ao sabor da força e da coragem.

Afinal, foi casa de uma vida, carregada de histórias, de sombras e memórias.
Custo a mexer-me.  Quero e pareço não querer fechar definitivamente aquela porta, já que as janelas estão fechadas há largo tempo.
Tudo me tem passado pelas mãos.
Quando se desfaz uma casa, as coisas sabidas e impensadas nascem como cogumelos, das gavetas, das estantes, dos lugares que não frequentávamos.
Se nas nossas casas, isso acontece, imaginem em casas que não foram exactamente nossas ...

A minha mãe, num afã de afecto e saudosismo, tudo parece ter guardado :  o registo das minhas notas do colégio ao liceu ( e de outras colegas também, para ter bem a certeza, por comparação, que eu havia sido a melhor aluna da turma ... rsrsrs ) ... fotografias aos montes ( de caras conhecidas e de muitas outras que não identifico de nenhuma forma.  A maioria, a preto e branco ou a sépia, atestam bem a época a que respeitam.  Cavalheiros com bigodes façanhudos e respeitáveis, chapéus e raposas nos ombros de ignotas senhoras ... criancinhas com folhos e touquinhas ... ou completamente nuas, repousadas no cetim do fotógrafo de ocasião ... ), registos de actos públicos  como certidões, contratos, cartas de condução caducadíssimas, bordadinhos feitos por mim no colégio, mais tarde nos lavores femininos já no liceu ( logo eu que não fui dada a prendas domésticas !... ), rendas iniciadas e jamais acabadas ... quilos de cartões de felicitações por aniversários, Natal, Dia da Mãe ... pequenos riscos e desenhos feitos nos primeiros anos das netas, versinhos e pinturas feitos por mim e esquecidos em papéis velhos e rasgados, textos já então desabafados ... enfim ... um acervo interminável !

Eu própria, que sempre vivi muito sozinha naquela família curta, de pais velhos, sem autorização para grandes saídas e convívios, ocupava também os meus tempos livres, coleccionando religiosamente alguns tesourinhos da época : fotos dos meus ídolos do cinema e da canção, revistas femininas e ingénuas e recortes, muitos recortes de jornais e outras publicações, que reputava certamente como interessantes, por razões que hoje não descortino ! ( rsrsrs ).

É exactamente aqui que se prende o tema deste meu texto.

Entre toda a panóplia inimaginável e ternurenta, caíu-me nas mãos um pequeno recorte de jornal amarelecido, da década de sessenta.
Não tinha data precisa e está assinado por um, ou uma tal V.M.S.
Transcrevi-o e apu-lo a este post.

É incompreensível, coisa de extra-terrestre mesmo, para as gerações actuais, o seu teor.
As pessoas da minha geração entendê-lo-ão, certamente, e lembrarão que o mesmo respeita ainda assim,  já a dois períodos cronológicos distintos .
Ri-me ao lê-lo. O "naïf" do seu conteúdo, revelador de valores sociais, familiares, pessoais mesmo, bem característicos de tempos idos, é duma ternura imensa, duma ingenuidade quase infantil, que nos dias de hoje, lembra uma historinha inverosímil ...
Pela curiosidade e por se tratar de um apontamento literário praticamente humorístico, resolvi trazê-lo a té aqui.

Pergunto-me então, o que escreveria hoje ( certamente escandalizado até à medula ), o ou a  V.M.S. se pudesse deitar um olhar sobre a actualidade, e sobre as formas como se vive nas sociedades actuais, à luz dos costumes, das revoluções sociais, tecnológicas e todas as outras nossas conhecidas e com as quais já nem pestanejamos ... o famigerado " amor em Portugal " ?!...



Anamar

domingo, 1 de julho de 2018

" FIM DE FESTA "...



Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...

E hoje é véspera de partida.
O Príncipe ficará exactamente como é e será, ao longo das eras : selvagem, doce, estonteante na beleza com que se veste, emocionante na simplicidade com que acolhe.
Os rochedos de basalto duro, apenas se irão desgastar mais e mais, e novos retoques na orografia surgirão, no preenchimento das faltas.
As areias continuarão dançando, vergadas ao sabor das marés ... para cá e para lá, incessantes ...
A floresta morre e renasce.  Por cada dia, novas flores, novos frutos, novas árvores nascerão e morrerão sob um sol de equador que mais acarinha, que castiga.
Os coqueiros da beira da praia, como anciãos cansados, dobram-se lentamente, até beijarem as águas.  E um dia, desistentes, irão com elas mundo fora, contar histórias para o outro lado da Terra !
Os pássaros também cumprirão os seus desígnios.  Sem dúvidas ou perguntas.  Apenas, cumprindo-os.  Ano após ano, enquanto for ...
O mar será manso ou encrespado.  Continuará azul, verde ou prateado, consoante o céu se adorne e as nuvens viajantes ou adormecidas, o determinem ...
O sol fará as negaças de um amante que ora se dá, ora se ausenta, sempre embevecido ... e a chuva tropical, quente e forte, abençoará a terra úbere e parideira ... E sempre será certa, quando a gravana passar ...
As luas que se sucedem, tornarão em dia as noites silenciosas e escuras, onde o ponteado estelar é um bordado de pé de flor, a desenhar os céus ...
As crianças crescerão, mas continuarão a sorrir.  E novos meninos encherão os terreiros, sob o coqueiral e no chapinhar dos charcos.
E estarão descalços, rotos, sujos e ranhosos ... mas continuarão com alma de meninos ...

Vou partir.
Amanhã, o Príncipe ficará para trás ... na cauda do avião de hélice que me vai levar,  na esteira do barco da saudade já, que deixarei no mar ...

Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...
Não sei se algum dia volto.  A vida, crepuscular, poderá ou não permiti-lo.
Mas os pores de sol que bebi por cada dia que o vi deitar lá longe na linha do horizonte, rendida à magia e ao fascínio de uma África genuína, pura e autêntica ...
As carícias a que rendi o meu corpo nu, nas águas quentes, doces e mansas, como nos braços do homem que é só nosso e a quem nos entregamos na volúpia do abandono...
Os cheiros  fortes, penetrantes e únicos que devassam e  grudam na pele, no corpo inteiro e na alma ...

Todos esses  ficarão para sempre na caixinha das emoções, no recôndito de mim mesma, em mim tactuados com as cores e o sal desta terra única !
Ficarão afinal,  na eternidade da curta e precária temporalidade humana !!!



Anamar