segunda-feira, 29 de novembro de 2021

" OUTONICES "


 
Na mata os pássaros já pouco se ouvem.  Por certo, alguns demandaram paragens quentes para os meses que se avizinham.  As árvores e arbustos pintalgam-se das cores da época, ou simplesmente despem o que ainda vai ficando dia após dia,  resistindo ao vento ou à brisa que corre os caminhos e as veredas.
O chão de todos os trilhos está atapetado de um manto fofo de folhas secas, esquecidas pela aragem, e que nos estala debaixo dos pés, à passagem.

Dezembro espreita na curva da estrada.  O Natal vem ao nosso encontro em passadas largas, pressurosas  e impacientes ... Em suma, estamos naquela quadra que me confrange e a qual pularia nos destinos do calendário, se o pudesse !
É interessante, porque se trata de um sentimento que eu sei partilhar com muitas outras pessoas, talvez mais do que as que pudéssemos suspeitar.  Efectivamente, é um período de momentos difíceis, sobretudo quando se vivencia uma faixa etária já não muito promissora, e em que aquilo que mais povoa o nosso espírito, são memórias idas.  
Atravessamos estes dias quase sempre lembrando.  O passado é a época da vida que mais nos acompanha, pois o presente nem sempre nos gratifica e o futuro é um pouco uma miragem, lá longe no deserto das emoções.
Os sonhos já não vão cabendo muito nos nossos corações, pois o tempo útil adiante, afigura-se-nos  um doseador parcimonioso.  Então, pouco mais deveremos perseguir, do que a ideia velha de um "carpe diem", simplesmente !
Os lugares vazios já são muitos, nas mesas, nas casas, nas conversas, nos risos ... nas histórias ...
Sempre à nossa revelia, por isto ou por aquilo, as vozes vêm sentar-se à nossa beira, preenchendo os silêncios doídos.  E queiramos ou não, os nossos, todos os que nos escreveram a história, perduram presentes nas nossas vidas !
É quando pensamos no tanto tempo que perdemos ou desperdiçámos alienando quantas vezes as  suas companhias, como se tivéssemos à frente todo o tempo do mundo para as usufruir e desfrutar.
Quanto do que deveríamos / quereríamos ter dito, se silenciou nas gargantas ... porque não fomos capazes, porque não soubemos ... porque não valia a pena ... porque não tivemos tempo, na voragem louca dos dias !...
Quantos afagos, mimos ou carinhos sufocámos ao nascerem ... quantas palavras, soluços ou desabafos secámos, não dissemos ou escutámos ...
E não é nada disso.  Nunca foi nada disso !... 

Esta viragem do tempo, este encerrar do que foi, seguido de um reabrir do que virá, difuso e nebuloso no devir, sempre me deixa nostálgica, saudosa, ansiosa.  Esta época de recolhimento e de balanço obriga-me a regressar à concha, a remeter-me ao silêncio pacificador, a aninhar-me num limbo protector onde adormeço em paz !
É uma espécie de tempo de transe em que reabilitamos as doçuras que vivemos, em que embalamos as recordações que ficaram, em que repovoamos as noites com a sorte de conseguirmos repegar os rostos que nos habitaram, sentindo o calor das mãos, o afago dos abraços ou os beijos das cumplicidades e dos afectos ... Até que acordemos outra vez ... ou que adormeçamos um dia, na eternidade !...

"Eu sei que é Outono e o meu espírito amarelece sempre com as folhas, as mesmas folhas que cobrem por inteiro os antigos caminhos" ... mas tudo isto é também VIVER !...

Anamar

domingo, 21 de novembro de 2021

" UNS E OUTROS ... "

 


Por vezes flagramo-nos encompridando a mente sobre o que foi, como foi a nossa vida pregressa.  Por vezes surpreendemo-nos deambulando sem rumo definido sobre tudo o que já vivemos, como o vivemos, porque o foi dessa forma.
Quase sempre, esse "passeio" não programado, se faz acompanhar de um saudosismo e de uma nostalgia que inevitavelmente nos fazem recuar no espaço e no tempo, ao que fomos e ao que éramos então.

É domingo, dia já fechado, no silêncio da minha casa os gatos dormem-me aos pés.  Mais uma semana a começar, o vórtice do tempo a acelerar para o Natal, para o fim do ano, para o virar outra vez da ampulheta dos dias ...
Continuamos com uma cansativa realidade de tempos estranhos, pesados, assustadores, entrando inapelavelmente numa quinta vaga da pandemia deflagrada há quase dois anos.
Uma sensação de insegurança e de instabilidade instaladas, lembram-nos diariamente que continuamos a viver uma roleta russa por cada dia das nossas vidas. 
E o que se vive e o que se sente, além dum cansaço instalado, além dum desgaste psicológico irreversível a acentuar-se, é, de certa forma também já, uma espécie de quase indiferença e saturação face às notícias e aos acontecimentos circulantes.  Dou por mim, na maioria dos dias totalmente desinteressada da actualidade que me cerca, não abrindo sequer o televisor sobretudo nos serviços informativos.
Parece que sinto uma conformação absurda, uma acomodação triste e indiferente sobre o que me rodeia, uma impotência e uma inércia de quem já jogou a toalha ao chão.

Há pouco, arranjando-me para sair, peguei numa bijuteria adormecida numa gaveta e coloquei-a, distraidamente, mecanicamente, meio absorta ... meio cá, meio lá.  Um gesto automatizado, distante, sem intencionalidade consistente. E pensei : como me arranjava ao pormenor há alguns anos atrás !  Como nunca saía de casa sem me maquilhar, sem escolher diariamente a roupa a vestir, o calçado e os restantes adornos adequados ... Os saltos ... o salto alto era parte intrínseca da toilette, a bota, de salto fino ou não, de bico se a moda o ditasse ...
Daí os pares de calçado existirem por aqui, p'ra todos os gostos em cor e forma, as malas em consonância também ... e os cachecóis, agora que o frio começa a despontar, e os fios, brincos e mesmo chapéus ... porque tudo valia a pena, porque havia destinos a ir, sítios a frequentar, lugares e pessoas a encontrar ...

Hoje, os ténis reinam no vestuário usado, não só porque integram o equipamento das caminhadas, como porque são mais cómodos e seguros nas calçadas irregulares.  Já dei uns quantos trambolhões na rua, perdi o jeito de me equilibrar no sapatinho delicado, ganhei medo no caminhar ... desabituei-me quase de olhar o espelho, porque afinal perdi mais juventude, sonhos e ilusões nestes últimos tempos do que nas últimas décadas da minha vida !
Casa - compras - casa e pouco mais, são a história do meu quotidiano.  Pouca paciência, não recebo nem faço visitas.  Genericamente, as conversas cansam-me.  As pessoas também.  E dou por mim, agreste, deixando mesmo transparecer alguma impaciência além da conta ...
Sinto uma espécie de não valer a pena, estranho e complexo que me toma e angustia.
A silhueta que hoje detenho desagrada-me e entristece-me.  Ganhei peso, perdi formas e a frescura da pele foi-se também, com o transcurso dos tempos.  Sem retrocesso, sem volta, duramente implacável ... como uma irreversível e injusta condenação ...

Acho que nunca me pareci com a minha mãe.  Em quase nada, como costuma dizer-se, saí a ela.  Quase sempre, com pena e perda minhas.  Mas numa coisa somos iguaizinhas, estamos a tornar-nos iguaizinhas: no desgosto e na inaceitação da degradação inevitável do envelhecimento, na mágoa que tinha, como ela dizia, de envelhecer ...
A inconformação da perda das capacidades, as limitações objectivas nas faculdades físicas e mentais, sentidas e avolumadas diariamente, foram-na entristecendo e moldando negativamente nos derradeiros anos da sua existência. 
Eu sigo o mesmo trilho ... azedo, escuro, sem horizonte ou sequer um colorido arco-íris que adoce os meus dias ...

Eu sei que é inútil, é uma luta sem glória, é uma pura perda de tempo, eu rebelar-me contra tudo isto;  é mesmo uma idiotice, uma infantilidade, por certo um sinal de insanidade ... mas é assim que me sinto, este é o registo do meu permanente estado de espírito.
Por isso não entendo a leveza, a bonomia, quiçá mesmo a euforia com que uma amiga ufanamente me dizia há pouco :"sou cota ... ora bem ... e então ?  Sou bem feliz assim !..."
Como as pessoas são diferentes !!!...

Anamar

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

" FIM DE LINHA "

 


Acho que não existirá nada mais destrutivo para um coração de mãe, do que ter que desistir de um filho.
Porque afinal, isso sempre será alguma coisa absolutamente contra-natura, monstruoso e inequacionável !
E para se chegar a esse extremo, para ter que se fazer uma opção dessas na vida, é porque se esgotaram seguramente todas as tentativas, todas as aproximações, todos os esforços ... mas também todas as esperanças, todos os caminhos a percorrer, todas as expectativas credíveis ainda, de um possível retrocesso numa relação mortalmente inquinada.
Quando o diálogo entre as pessoas não passa de uma conversa de surdos, quando as costas se voltam, quando já não se descortina um lampejo de fé num volte-face, e se percebe que já não existe sequer uma linguagem minimamente perceptível ( não digo obviamente convergente ) ... quando nenhuma mensagem passa para o outro lado e sempre encontra um muro intransponível ... percebe-se que o cordão umbilical, o tal que uma mãe acredita nunca ser totalmente cortado ao longo da vida ... o foi, sim, e o foi em definitivo !

Parece impossível isto poder acontecer, quando o mesmo sangue corre nas veias, quando para o bem e para o mal, uma mãe tenta fazer o melhor que sabe e é capaz ( ainda que com todas as imperfeições, todas as omissões, incoerências, faltas e incapacidades ... porque de humanos falo ).
Parece incompreensível que numa relação mãe-filhos possa no extremo, chegar-se a uma desistência, uma desaposta, um caminho sem retorno.  

As pessoas não nascem ensinadas.  Costuma dizer-se, e é verdade, que os filhos não vêm acompanhados de livro de instruções.  Ter e educar um filho ao longo da vida, não é apenas isso.  É uma tarefa hercúlea, submetida em permanência a milhares de factores condicionantes, milhares de vectores que se prendem com a realidade pessoal, personalística, familiar, social e todas as outras turbulências que quantas vezes de imprevisto, se instalam na vida das pessoas, as surpreendem e lhes determinam os percursos.
Mas as crianças crescem e, da dependência vital que mantiveram com os pais, surgem então, indivíduos autónomos, com personalidades instaladas, com capacidade de observação, análise e crítica de tudo o que os rodeia.  E é salutar e desejável que isso aconteça.  Afinal trata-se de seres em formação face a uma existência desafiadora, que os testa e põe à prova em permanência, já sem a rede parental a dar-lhes total cobertura ou protecção. 
Criaram-se afinal adultos que têm o mundo à frente.  
E a sã convivência então, entre pais e filhos, compreendendo-se e aceitando-se mutuamente, mormente entre mães e filhas ( em que a igualdade de género facilitaria teoricamente pelo menos, a compreensão do estar e do sentir da realidade ), aliada a uma maturidade exigível a uma fase da vida já muito mais responsável, geraria uma cumplicidade que então levaria a uma maior tolerância mútua, uma maior aproximação, partilha e simbiose.

Sem recriminações, sem dedos acusadores de erros ou falhas ( porque TODOS os temos e cometemos ), sem ofensas e agressões gratuitas, geradoras de mágoas quase sempre irreversíveis, sem ressentimentos e raivas ou ódios acumulados nos núcleos familiares, com tolerância, afecto e compreensão, iniciar-se-ia então uma outra fase da vida mais construtiva, estando já os progenitores numa faixa etária carente  de outro tipo de apoios, de estruturas, de amparo e aceitação ... Deveria encarar-se o futuro com adultícia, tolerância e paz.
Isto, o desejável ! 

Ao contrário, quando pais e filhos deixaram de ser "amigos", quando sentimentos destrutivos se instalam, quando animosidades muito sérias tomam irreversivelmente conta das pessoas, cegando-as, criando fossos intransponíveis entre elas ... quando o filho se sente "ameaçado" em vez de protegido e querido, e no seu íntimo só existe desconfiança, pensamentos persecutórios e uma turbulenta desestabilização que o faz agredir gratuitamente os pais ... quando o diálogo possível e desejável deixou de existir sem retorno ... e as pessoas se tornaram ressentidas, no mínimo estranhas e já não pertencentes ao "sagrado" núcleo familiar ... então, de facto, percebemos magoadamente, que se atingiu um fim de linha !!!

Anamar