quinta-feira, 1 de junho de 2023

" INDO ... "



" Vou-me embora, vou partir ..." diz Vitorino, com o cantar da nossa terra em fundo ...
  Também eu hei-de ir e hei-de voltar ... com o vento...

As minhas viagens, a minha "arte" de navegar por aí fora, a minha ânsia de percorrer pedacinhos deste mundo como meus, não pertencendo embora a lugar nenhum, atormentam-me a cabeça como sezões que fossem e sempre voltassem exactamente a cada curva do tempo, feito um ar que preciso pra não morrer ... como uma necessidade louca de me soltar, ciclicamente, de ir e voltar, exactamente  na liberdade da aragem que corre ...

Não sei o porquê, não explico a razão, não passa por nada mais esta minha precisão, do que a ânsia imperiosa de sentir na alma a liberdade da gaivota que só respeita o balançar da correnteza ... faça-se ela na crista das ondas ou no topo das falésias invencíveis ...
É uma purga, uma libertação, um abrir de janela encerrada, um pedaço de pão para a boca, uma emoção de descoberta, incontida ...
É um reencontro de bocados de mim que se repõem nos lugares certos, para que não me faltem, neste coração errante ...

Já parti muitas vezes ... não posso queixar-me.  Já sonhei muitos sonhos de distância.  Já regressei com a alma plena das cores, dos cheiros, da luz, dos sons de outros chãos.  Já os perpetuei "ad eternum" e os guardo para sempre no recôndito da alma.
Já aconcheguei em mim os rostos dos meninos de S.Tomé, das crianças de Myanmar, os sorrisos tímidos das mulheres de Bali, ou do Vietnam, os silêncios das águas no Pantanal ou os os gritos da mata amazónica longínqua.
Já olhei perdidamente o luar sobre as águas infinitas, quando a lua ficou cheia e misteriosa, por tantos lugares do mundo ... e o silêncio mágico de destinos por aí espalhados se me impregna por debaixo da pele.
Já me empanturrei com os pôres e nasceres de sol inigualáveis duma África inexpugnável, e já me perdi nas terras sem limites ou horizontes, como se o mundo não acabasse nunca ...
E tantas, tantas outras memórias a alimentarem-me e a vitaminarem o meu espírito ...

"Viajar é olhar", alguém disse.  E essa frase é de facto o maior compromisso que podemos ter, quando a viagem começa a desenhar-se dentro de nós.
Primordialmemte, sem dúvida.  
Mas viajar também é "sentir", e estar desperto e disponível para absorver todas as sensações, emocionar-se com todas as vivências, desarmar-se perante todos os desafios, sem preconceitos, juízos pré-concebidos, ou "formatações" impostas .

As minhas viagens têm assumido roupagens diferentes ao longo dos tempos, ao longo da idade e da maturidade adquirida, embora eu considere, talvez desafiadoramente, esta não ser a nossa melhor companhia numa viagem.
Comecei a viajar ( pouco ) ainda com família constituída, no desenho tradicional dessas viagens.  Marido, filhas, recursos bem contabilizados, nada de exigências ou veleidades. Esse período já me encontrou com mais de quarenta anos, e mercê do que era, pouca gratificação tive nessas experiências.  Pouca fruição, pouco encanto ( porque a vida já não era então encantatória ), alguma decepção, algum tédio e pouca alegria ... 
Eram os tempos que eu vivia ...
A vida deu então uma volta de cento e oitenta graus e a realidade virou do avesso.
Depois de quatro viagens marcantes e inolvidáveis na minha vida que por razões estritamente particulares não vêm ao caso, comecei a viajar sozinha.  
Comecei a desafiar destinos pouco comuns, por isso emocionantes, carregados de aventura e adrenalina.  Viajava entregue a mim própria, sem verdadeiramente ter uma agência turística por detrás,  explorando, saboreando até à exaustão cada recanto, experimentando e sorvendo cada emoção disponibilizada, sem medos, sem peias ... atrevidamente entregue a mim mesma.
Nessas viagens eu voei ao infinito, eu derrubei fronteiras, eu deixei-me guiar apenas pelo sonho, pela vontade,  curiosidade  e  pelo  ímpeto incontido de olhar,  de  compreender  e  sentir ...
Tudo foram experiências inebriantes, tudo foram emoções indescritíveis ... livre, totalmente livre ! 
Foi o chamado "período da gaivota" em que as amarras e os compromissos eram inexistentes, em que não havia justificativas ou explicações para dar até a mim própria, em que a liberdade, a leveza, a alegria e uma felicidade desconhecidas me preenchiam e inebriavam.
Foram destinos irrepetíveis que abençoadamente persegui e ficaram na minha memória para todo o sempre !

Mas a vida seguiu adiante ... a vida sempre segue adiante ...
Com ela, os anos e algumas já objectivas e sentidas limitações inevitavelmente se vão instalando, e uma consciencialização de que pode sempre ser necessário algum apoio ou rede de segurança por trás, determinaram que as minhas viagens passassem a acontecer em figurinos de grupo, promovidos por agências turísticas.  Sem dúvida é mais prático, tudo se articula sem sobressaltos, mas ... para mim nada já é, como era.  
A  fase  de  "gaivota"  nunca  mais  retornou  ao  meu  imaginário  de  aventureira  livre  e  sonhadora !!!
Tudo passa, na verdade !

Nas minhas primeiras viagens, eu documentava todos os pormenores, ao ponto de, ainda hoje, visualizando as fotografias e os vídeos, eu consiga claramente "rever" o momento em que os fiz.  Consigo saber da luz, dos sons, dos cheiros e cores ... e até às vezes, claramente, o que emocionalmente eu experimentei na altura.  E é fantástico... acreditem !
Fazia-me acompanhar de duas máquinas fotográficas de topo, objectivas suplentes de diferentes alcances, e uma máquina de filmar Sony, também de muito boa qualidade.
Hoje, toda essa parafernália fica em casa, apesar de eu continuar a adorar fotografar e registar visualmente cada momento. Apenas transporto comigo um telemóvel com três câmaras, obviamente com alcance e capacidades insofismáveis ... e os olhos, os ouvidos e o nariz !
E chegam claramente para que eu faça uma cobertura absolutamente escorreita e de qualidade insuspeita, que registe aquilo que vivi ao longo da jornada ...
 
E ainda sou capaz de chegar ao aprumo de um amigo de há anos atrás ( que na altura me deixava incrédula e escandalizada ), que conhecia o mundo todo, viajando sempre sem colher uma única imagem do que visitava.  
Dizia o Paulo : "o que registamos na mente e no coração sempre é inalcançável pelos mais avançados e perfeitos dispositivos de audio-visuais.  O importante é OLHAR, olhar e VER !  Sempre !!!"

E não é que ele tinha total razão ??!!

Anamar