segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

" A MARCHA DOS DIAS "


" Quem nos faz novos, são os velhos ... e quem nos torna velhos, são os que vão partindo"... 

Mais ou menos foi esta a frase ou pelo menos o sentido da ideia que li, algures, escrito também por alguém cuja autoria já não consigo reportar.

A correcção do pensamento exposto é duma assertividade absoluta que contudo escapa quase sempre à nossa reflexão.  Poucas vezes, ou nenhumas, pensamos que nas nossas vidas nos sentíamos jovens, novos, esperançosos e com horizonte, enquanto tínhamos uma "linha da frente" que ocupava a prioridade dos lugares de partida.
De facto, enquanto a fila à nossa frente, largamente recheada ia caminhando com a lentidão desejável, não nos sentíamos "em perigo". Afinal, porque desígnios absurdos do destino haveríamos de saltar lugares, desrespeitar a ordenação ditada, antecipar ilogicamente o expectável ??!!
Éramos então jovens, quando os pais, os tios, os avós, às vezes até os bisavós, respondiam à chamada por aqui.  Éramos novos, não cabia nas nossas conjecturas sequer, a suposição que poderia ser subvertida a chamada "ordem natural" das coisas ...

E o futuro ... porque existia muito futuro então, com mais de dois terços para andar contra apenas um terço já percorrido ... espreitava risonho, sem demais sustos, medos ou mesmo preocupações.
Era o tempo dos sonhos, dos projectos, das ideias fantásticas em apostas de caminhos bem sucedidos.  
É o tempo dos amores, das emoções avassaladoras, da entrega sem restrições, em dádiva total, acreditando, sem nuvens a escurecer o céu ...
Era o tempo do valer a pena, o tempo em que a energia e a disposição nos emolduram os dias, os tempos em que para cada preocupação ou dificuldade, parece existir ao virar da esquina uma solução satisfatória, e em que o cansaço não nos desarma ... nunca !
Somos novos, o timing é agora, a esperança ilumina-nos a alma e somos craques no salto de obstáculos ...
Acreditamos que tudo tem solução, tudo se ultrapassa ... claro que com mais ou menos trabalho e dedicação obviamente, mas em que nada nos parará ...

É a Primavera da vida.  Manhãs radiosas, promissoras, em que de tudo somos capazes, em que parece haver uma possibilidade ilimitada para as realizações que perseguimos, pessoais, familiares, profissionais e outras ... Em que acreditamos ... fácil, fácil ... claro que somos capazes ... porquê não ??

E assim, com aquele ímpeto, aquela aposta, aquela alegria com que despertamos em cada manhã, saltamos da cama com a determinação de vencer mais uma etapa, mais uma prova ... Não é hoje, é amanhã ... não é agora, será mais tarde ... mas lá chegaremos, afinal há tanto chão para andar !...

Só que os dias passam céleres, os anos correm depressa demais, a fila que era compacta começa a desfalcar-se ... para desgosto nosso.  Partem os avós, partem os tios, depois os primos mais velhos ... partem os pais ... partem os primeiros amigos, os vizinhos que nos compunham o quadro relacional diário.
Começa a haver demasiadas ausências de resposta à chamada ... demasiados lugares vazios ...
"Mau ... o que é isto "? Como não demos por isso, distraídos que estávamos ?!...
Por cada um que sai, outro dá um passo em frente ... E lá vamos nós, continuando na engrenagem ...

A casa envelhece, as pessoas que cruzamos envelheceram, os corpos, os cabelos, os olhos, os ouvidos, os dentes ... até as mãos, as benditas mãos que eram esguias, elegantes, sensuais no que faziam e no que tocavam, deram em se pintalgar sobre a flacidez que se acentua ... tudo, de um dia para o outro parece, deu em nos fazer negaças e sinais de luzes ... Atenção, confiram o lugar na fila ... analisem os espaços devolutos já, à frente dos vossos pés !!!

E deixámos de ser novos.  Os que partiram encarregaram-se de nos projectar adiante !
Se dúvidas tivéssemos, aí estão as dores, as limitações, o caminhar com esforço, o arfar se o caminho se encomprida, as insónias que se tornam companheiras inseparáveis ... 
Aí está a solidão, a mágoa pelo percebido, o cansaço, a falta de paciência para nos suportarmos e suportarmos os outros ...
E progride um recolhimento interior e uma desmotivação, mesmo pelas coisas que nos mobilizavam, com as quais vibrávamos, nos levavam a sorrir, empolgados quase sempre, não há assim tanto tempo atrás ... parece ...
E percebemos que envelhecemos definitivamente quando já não temos mais ninguém por quem chorar ...

Não será assim com todos, eu sei.  Há pessoas que, felizmente para elas, sempre vêem o "copo meio cheio", plenas de uma positividade permanente, face mesmo às contrariedades. Abençoadas maneiras de ser e sentir !
Eu sou uma pessoa extremamente negativa, dificilmente ultrapasso as barreiras sem um desânimo e um sofrimento atroz.  Reconheço que talvez exorbitando a dimensão dos obstáculos.  Antecipando-os mesmo, o que nada de saudável tem.  Fui demasiado protegida talvez. Tive os caminhos demasiado acolchoados também, o que indiciaria um golpe de sorte no destino. 
Engano.  Bem ao contrário, quem me quis ajudar, ou facilitar a marcha, acabou retirando-me as armas e os mecanismos para a luta e para a confrontação na selva diária que é a vida.  Acabo com menos capacidades a todos os níveis, do que quem aprende a esbracejar, a cair e a levantar, a não sucumbir.
Olho as minhas filhas, artilhadas até aos dentes para enfrentarem com denodo aquilo que lhes boicota os caminhos, que nem sequer têm sido de brisa e água fresca ...
E elas lá vão ... Tem dias que me pergunto como ?!

E assim vamos.  Assim vou... Penitencio-me pelo que escrevo.  Reconheço serem "uma seca" estes desabafos cansativos, enjoados e saturantes, como aquelas pessoas que encontramos na rua e sempre e só puxam do cardápio das doenças e só delas falam ... 
Eu sei que é assim, mas estou "atolada" em sentimentos negativos, colados à pele, os quais não consigo sacudir da alma e do coração, que me esgotam e exaurem inapelavelmente.
Afinal é esta a marcha dos dias ...

Anamar

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

" EU NÃO DEIXO O VELHO ENTRAR !... "

 


Esta é a resposta que o admirado nonagenário actor Clint Eastwood deu ao cantor country Toby Keith, quando lhe perguntou qual era o seu segredo para se manter activo e brilhante, na sua idade.
"Quando me levanto todos os dias não deixo o velho entrar "

O meu segredo é o mesmo desde 1959 : mantenho-me ocupado.  Nunca deixei o velho entrar em casa.  Tive que arrastá-lo para fora, porque o cara já estava confortavelmente instalado, me dando um pé no saco a toda a hora, não me deixando espaço para nada além da nostalgia.

Você tem que se manter activo, vivo, feliz, forte, capaz.
Está em nós, na nossa inteligência, atitude e mentalidade.  Somos jovens com independência.  Você tem que aprender a lutar para não deixar "o velho entrar."
Aquele velho que nos espera, parado e cansado na beira da estrada para nos desanimar.
Não deixo entrar o velho espírito, o crítico, hostil, invejoso, aquele ser que perscruta o nosso passado para nos amarrar com queixas e angústias remotas, traumas revividos, ou ondas de dor.
É preciso virar as costas para o velho fofoqueiro cheio de raiva e reclamações, sem coragem, que nega a si mesmo que a velhice pode ser criativa, determinada, cheia de luz e protecção.

Envelhecer pode ser prazeiroso e até divertido, se você souber usar o tempo, se estiver satisfeito com o que conquistou e se continuar tendo a ilusão, acrescenta Clint Eastwood, uma lenda com dez nomeações para os Óscares, dos quais ganhou quatro estatuetas, todas elas depois de já ter ultrapassado o limiar dos sessenta anos.  A isso se chama "não deixar o velho entrar em casa " ...

Essas palavras atingiram o cantor country Toby Keith tão profundamente que o inspiraram a compor a música " Don´t let the old man in ", dedicado ao lendário actor.

Nota : Tradução brasileira 


Clint Eastwood é desde sempre uma das minhas referências na sétima arte, primeiramente como actor, depois como realizador ou director cinematográfico.
Com ele sonhei em variadas películas, das quais guardo memórias inesquecíveis. Filme estrelado por ele, era garantido que seria assistido por mim. Era uma época em que, por razões particulares, eu estava extremamente desperta e era frequente espectadora semanal de uma sessão de cinema.
Era programa, eu diria que quase obrigatório, dos sábados após o jantar, até mesmo em sessões da meia noite. Depois de um jantarzinho simpático e feliz, rumava quase sempre a uma das nossas salas de espectáculos em demanda do filme já previamente escrutinado durante a semana e eleito para encerrar o dia.
Foi uma altura em que, mercê da assiduidade, eu estava completamente entrosada na programação semanal em exibição.
Hoje, pouco vou ao cinema. Estou totalmente por fora do cine cartaz por sala, na nossa cidade.
Os actores que ainda ocupam lugar na minha cabeça e coração, são aqueles "monstros" cujos nomes tenho marcados dentro de mim. Quase todos já ultrapassaram o seu culminar apoteótico ... quase todos são "lendas" que preencheram, com as histórias que me contaram, dias felizes da minha vida ...
Eastwood foi um deles, um "grande", um enorme senhor, detentor dum talento que ainda hoje, já nonagenário o torna um ícone, uma figura mítica, um expoente inalcançável nesta arte que nos leva ao sonho, que nos aligeira os dias, nos subtrai, quantas e quantas vezes, ao cinzento desinteressante e cansativo de realidades pouco compensatórias e gratificantes ...
Invictus, Gran Torino, Cartas de Iwo Jima, Million Dollar Baby, Mystic River e o inesquecível e maravilhoso As pontes de Madison County, foram películas vistas e revistas que sempre me empolgam e preenchem por cada vez, como se da primeira se tratasse ...

Clint Eastwood é uma personagem absolutamente incontornável, multifacetado e completo. Dez indicações para os Óscares, das quais venceu quatro, é a única pessoa nomeada para melhor realizador e melhor actor numa mesma película.
Lúcido, capaz, objectivo, mantém uma performance invejável para os seus já vividos noventa e três anos, sendo inolvidavelmente uma honrosa referência para a sétima arte mundial.
O seu segredo, parece resumir-se a uma mente laboriosa e ocupada, que se recusa a parar, a uma nunca considerada desistência, a um foco permanentemente perseguido, a uma criatividade incessante, a uma aposta e uma assertividade espantosas bem como uma alegria irresistível de viver e de sonhar ... em suma , um empenho e uma vigilância para "não deixar nunca, o velho entrar "!!!
Absolutamente admirável, fantástico e fascinante !!!

A propósito de Eastwood, lembrei outra figura igualmente ligada ao mundo da magia e do sonho, desta feita brasileiro, um ícone novelístico, um actor igualmente carismático, que também completará em Março próximo, 94 anos ... Lima Duarte cuja vida parece ser muito idêntica à de Clint Eastwood.
Também ele não se entregou ao inevitável desgaste dos anos, também ele recusou sossobrar às inevitáveis limitações da escorrência do tempo, também ele continua, tanto quanto se conhece, a ocupar o seu cérebro, a exercitar as suas capacidades físicas, a viver intensamente numa fazenda que possui perto de S. Paulo, mergulhado na natureza, onde se refugiou definitivamente, aquando da pandemia de Covid.
Ali, usufruirá seguramente de excelente qualidade de vida, viverá uma existência saudável, partilhada com os seus cavalos, cães, as suas infinitas memórias e a paz inerente a uma vivência plena, realizada e feliz ...
Ali, certamente continuará a considerar-se útil, importante na vida dos seus e da sociedade, e provavelmente até continuará a alimentar e a regar as suas fantasias, já que o sonho comanda a vida !...
Também ele fechou , obviamente, a porta a que o "velho" pudesse entrar !!!...

Anamar

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

" SOBRE TUDO E SOBRE NADA ... "

 


Acho que já escrevi sobre quase tudo.  Por "tudo", entenda-se aquilo que me mobiliza, sejam acontecimentos do dia a dia, sejam perfis humanos que me tocaram, sejam experiências que no fundo do meu ser me acompanham, me empolgam, me assustam, me emocionam ... enfim, o mix de sentimentos que ao longo dos tempos vão recheando a minha vida !
Talvez por isso sinta em mim, nos últimos tempos, um vazio de necessidade de escrever.  Sempre acho irrelevante, sempre acho que não acrescento ou retiro nada de importante a qualquer tema, sempre me parece redundante qualquer posicionamento meu, por o considerar insignificante, sem interesse justificativo, ou mesmo desnecessário.
E o que tenho escrito, do que já escrevi, raramente rebusco para lembrar, raramente releio achando que vale a pena, raramente tenho paciência para revisionar, anos decorridos, uma outra vez,  o que quer que seja !
Isso aqui neste espaço, mas também em memórias mais longínquas.  Até porque desinserindo de contextos aquilo que se escreve, correm-se graves riscos de avaliações erróneas ou interpretações falsas.
Ontem, falando com uma pessoa conhecida, dizia-me esta que relê com frequência os diários que ao longo das décadas e décadas da vida, tem escrito.  Referia ter vinte e tal diários escritos, desde a juventude, quando ainda se passeava pelos bancos da faculdade, aos quais acede.
Acho isso fantástico e até interessante.  Eu não tenho paciência para tal !

Precisava dar uma virada na minha vida.  Está demasiado monótona e cinzenta, sem nenhuma ou pouca emoção, está cansativa, sem graça, totalmente rotinada, sem colorido ou loucura.
Contudo, embora tenha esta clara visão sobre o estado das coisas, falta-me totalmente o "combustível" para atear uma labareda interessante ... e o motivo prende-se exclusivamente ao óbvio peso do tempo que, como a minha mãe dizia , tudo dá e tudo leva ...
Não será, é claro, uma questão exclusivamente minha.  Muita gente, ou quase todos, referem exactamente queixas semelhantes, uns com mais, outros com menos capacidade reactiva, coragem e fé para apostarem na reversão possível deste lastimoso estado de coisas.
Eu, sou das mais tristes, das mais desistentes, das mais revoltadas ... acabando também por ser ironicamente, das mais acomodadas ... como se a minha insatisfação fosse na proporção daquilo que a vida me deu, daquilo que vivi, dos sonhos que criei, dos filmes que inventei ... Tudo proporcionalmente grande, tudo inevitavelmente irreversível, tudo em excesso, tudo imenso, como a pessoa extravasante e intensa que sempre fui. 
Fui ... e que não consigo ser mais !... "tudo dá e tudo leva ... "
Tudo  suficientemente  "dramático",  como  já  me  disseram ... tudo  astronomicamente  pesado !...
E como acho que falar destas queixas, destas insatisfações, deste cansaço é verdadeiramente uma "pepineira" que não interessa a ninguém, remeto-me mais e mais ao meu silêncio, ao meu canto, ao meu lugar.  As pessoas, individualmente, nesta vida tão conturbada, já têm chatices que cheguem, problemas que lhes tirem o sono, preocupações que as acabem, e vão-se também isolando, vão também encontrando pouco espaço ou disponibilidade nas agendas diárias, vão procurando formas construtivas de viver e sobreviver, e de não se deixarem sucumbir pelo cansaço, pelas angústias, pelas preocupações e pelo cinzentismo de vidas, quase todas já, crepusculares !  E fazem muito bem !

Entretanto ando cada vez mais irritada, com uma postura noticiosa, dos mídia, no relato de acontecimentos que vão ocorrendo na nossa realidade diária.  Trata-se fundamentalmente não dos conteúdos, mas da forma de abordagem das questões.  
Passo a explicar :  a terminologia adotada passou a ser de "um idoso, uma idosa ... " sofreu isto, aquilo, aconteceu-lhe isto ou aquilo ... etc, etc.
Deixou de ser "um homem, uma mulher ..."
Uma criança, está perfeitamente identificada, um jovem, também.  Até aos cinquenta continuamos como  "homens ou mulheres", designação de imediato extinta dos sessenta para cima !  
Aí, não há safa, adquirimos automaticamente o rótulo do idoso ... do "velhinho", do "empata", do "cota" pejorativamente falando.  
E é um desespero, porque ainda que provavelmente bem escorreitos física e mentalmente, quantas e quantas vezes, caímos em desgraça e passamos a fazer parte da turba cinzenta do pensionista, do desocupado, de quem não tem nada p'ra fazer, do que está cá para onerar o sistema ... do que "empata" ... finalmente, do sujeito passível de uma qualquer desgraça a engrossar a estatística do "idoso" !!!

Bom, isto foi apenas um desabafo, ironicamente aqui abordado para aliviar o peso da malfadada conotação ... da incómoda injustiça social !
Que saudade do tempo em que em última análise, eu era apenas "uma mulher de tantos anos "... etc, etc, etc !!!...

Anamar

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

" SEMPRE SEREMOS AS NOSSAS MEMÓRIAS ... "



O tempo fechou totalmente.  O meu horizonte, aqui do alto da minha janela, circunscreveu-se apenas aos prédios próximos.  São cinco horas duma tarde gélida e chuvosa.  Estamos sob a influência duma frente glacial polar que coloca Portugal sob condições adversas, com temperaturas severas bem abaixo dos valores normais para esta época, embora estejamos como se sabe, em pleno inverno.

É segunda-feira, dia de caminhada, hoje não realizada.  Havia comprado um saco de comida para os gatos da colónia da mata, só que, deixar lá o saco sob a chuva que cai poderia comprometer o seu aproveitamento.  Assim, levarei amanhã em que não se prevê mau tempo.
Aqueles mais de vinte animais que ali vivem, dão-me conta da cabeça e do coração.  
Se no Verão é aprazível a zona da mata onde estão os abrigos engendrados pelo senhor Sérgio que deles, à custa de dedicação, esforço físico e monetário, cuida diariamente, agora no Inverno, com este tempo carrasco que se faz sentir, aquilo vira um pesadelo de frio e humidade ... pobres bichos !!!
Estou aqui sentada frente ao radiador que o Jonas não permite que eu desligue, a pensar nos desgraçados que não nasceram em berço de ouro ou que o destino jogou na rua, pela maldade e insensibilidade humanas.  E dói-me a alma !

Num dia, como disse, perfeitamente insuportável, e felizmente sem nenhuma necessidade de ir à rua, fiquei por aqui a escrever, a ouvir música, a passear-me pelo computador, sem objectivo definido.
Entre fotos arquivadas de pessoas conhecidas ou amigas falecidas no período da pandemia, apareceu-me a foto do Rui Mendes, aquela figura pequenina, bastante desengonçada, mercê do problema físico que o atormentava.  Artista plástico que trabalhava aqui na Câmara da Amadora, não sei bem em que área, sempre com um aspecto negligenciado mesmo a nível de cuidados de higiene e limpeza, o Rui  frequentava o Pigalle a que eu também ia para o café da manhã.  Convivia pouco, as pessoas evitavam a sua companhia.
O Rui era portador de nascença, duma doença grave e rara, do foro hemático  que desde sempre lhe lera a sentença duma esperança de vida limitada, inclusive já atingida.  Semanalmente deslocava-se ao Hospital de S.José onde levava uma determinada injecção sem a qual a sua vida perigava.
Sempre vivera só com a mãe, a qual esteve acamada durante alguns anos, e era ele que a tratava e a rodeava do conforto possível.  O Rui, mercê daquela responsabilidade, tinha então a sua sobrevivência como o foco da sua vida. Até que ela partiu.
Após o seu falecimento o Rui ficou só e mais abandonado ainda.  
Depois veio a Covid e fomos deixando de saber uns dos outros. A tertúlia e o convívio diário que se ia mantendo com aqueles que acabavam tornando-se figuras familiares, extinguiu-se.
Os sucessivos confinamentos, encerraram-nos entre quatro paredes, quebraram-se laços, extinguiram-se pontos de encontro, fecharam até definitivamente muitos outros.  E do Rui e da sua bonomia e boa disposição, no rosto sorridente com a barba de "pai natal" bem branquinha, fui deixando de ter notícias.
Até que, quando já deitávamos um pouco a cabeça de fora, indagando junto da Cátia do Pigalle, soube acidentalmente que o Rui também partira, num qualquer dia de Novembro de 2020, mergulhados que estávamos em plena Covid ...
Entristeci.  Fiquei mais pobre e mais só. 

Não mantive com ele nenhum laço privilegiado de amizade além do que me conferia a tertúlia quase diária de alguns momentos, em conversa de circunstância ... pouco mais.
Não interessa ... o Rui atravessou num determinado período a minha vida, e é hoje mais um lugar vazio nas memórias que ao longo dos tempos me compõem a existência.
Que esteja em paz ! 
Mais de três anos volvidos, quem lembrará hoje o Rui Mendes ?!...😢😢

Anamar

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

" FIM DE LINHA ... "

 


Ontem, olhando os títulos que circulam nos tablóides, deparei-me com o do suicídio de dois jovens respectivamente de quarenta e sete e trinta e oito anos, figuras públicas ambos, do nosso meio artístico. 
Ambos modelos, artistas na área da ficção, ambos com filhos ... aparentemente com histórias de vida em fim de linha.
Ela com três filhos, com um arrastar de uma vida sem escapatória, da qual terá desistido.  Ele, com um bebé de três anos, e mergulhado, também ao que parece, numa depressão profunda que o terá atirado para o tapete ...

Até aqui, infelizmente são apenas situações mais comuns e frequentes do que o imaginável, inseridas num panorama que quase sempre nos escapa, obviamente porque não se referem a ninguém com visibilidade mediática.
Mas são seguramente situações extremas de dor, de cansaço, de desistência, para as quais a sociedade foi absolutamente incapaz de ter uma resposta preventiva, atempadamente. 
São dramas sangrantes bem frente aos nossos olhos, são pessoas para quem todas as portas parecem ter-se fechado, pessoas que esbracejaram até à exaustão e a quem nenhuma bóia de salvação foi atirada.  Ao contrário, os horizontes cerraram, a borrasca abateu-se e as forças, certamente, esgotaram a capacidade de resistência.
E atinge-se aquela altura em que os corações esgotaram o limite de esperança, aquela altura em que todas as armas são depostas, aquele momento em que a escuridão é de tal ordem que nada já interessa. As perspectivas inexistem, os projectos defraudam-se, o futuro some da história, os afectos já não têm força pra segurar o que quer ou quem quer que seja ...
E pronto ... arranca-se a ficha da tomada !  Fim de linha !...

Todas as pessoas que têm a coragem de consumar este acto tresloucado, merecem o meu mais profundo respeito.  A coragem necessária para fechar os olhos e "saltar", é duma dimensão inalcançável !
A sociedade não soube protegê-las, não soube responder-lhes, "vê-las" ... não soube sequer acarinhá-las.  Andamos todos demasiado ocupados a salvar-nos, demasiado insensíveis para sequer percebermos, lermos as entrelinhas, vermos os sinais dos que, bem ali ao nosso lado, os foram deixando ...
Não conseguimos visualizar a luz vermelha da desistência, a piscar-nos.  Não conseguimos sentir o grito de socorro que quantas vezes nos é lançado, das mais diversas formas...  Não temos capacidade para descodificar palavras, olhares, ouvir frases aparentemente enviesadas ...
Estamos todos demasiadamente distraídos ... a esbracejar também por aí ... às vezes também apenas à procura dum nexo, dum rumo, duma alvorada a levantar-se ...
O mundo torna-se insuportável, desaprendemos de viver.  Às vezes guardamos ainda no fundo do nosso âmago um lampejo de esperança que sonhamos, mas em que na verdade não acreditamos.  Não sabemos o que buscamos, apesar de vivermos cercados de uma poluição informativa, de uma poluição de soluções, caminhos aparentemente fáceis e acessíveis, num mundo do parecer e cada vez menos do ser ...
E vamos indo, calcorreando as veredas que às vezes apenas nos confrontam duramente com uma solidão a que parecemos também já não pertencer, e em que o túnel da desesperança estreita mais e mais, convidando-nos a partir ... 
À nossa volta já não existe mais sinal de pertença ... o cansaço não dá tréguas, a voz estiola na garganta e ir embora é a solução que nos resta ...

Há então aquele segundo maldito em que o vazio se estende mesmo até à alma e em que a exaustão nos apaga por dentro.  São instantes de silêncio, de escuridão ... de abandono imenso e total ...
Já não fazemos parte deste chão, já aqui não pertencemos ... e simplesmente, partimos !...

Nada mais faz sentido .  A linha chegou definitivamente ao fim !

Anamar

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

" ÀS VEZES A GENTE SÓ QUERIA UM MIMO ..."



Dia 3 do primeiro mês do ano que há pouco se iniciou.  
O tempo, profundamente instável, presenteou-nos com um dia escurecido, abóboda cinzenta pesada, com chuva ininterrupta desde ontem.  Dia bom para estar à lareira, ou não a tendo, dia bom para deixar perder a vista até onde ela chega, através das vidraças, por onde os pingos escorrem desenhando linhas incertas e imprecisas.
Hoje foi o funeral de uma colega de trabalho, contemporâneas que fomos a vida toda na mesma escola e antes disso, colegas de liceu, da mesma turma, no tempo em que éramos estudantes.  Tínhamos portanto exactamente a mesma idade.  A doença "da moda" vitimou-a depois de prolongado sofrimento, ao que parece.
Fui ao velório ontem.  Hoje, poupei-me.

Com o avanço dos anos, estou a atingir um grau de fragilidade enorme, absurdamente preocupante.  Sempre fui saudável, costumava dizer que nem as "simpáticas dores de costas" que se tornavam amigas inseparáveis das pessoas minhas contemporâneas ( inevitáveis parecia ), queriam nada comigo.  Nem coluna, nem "cruzes", nem pernas, nem braços me atormentavam.
"Sortuda" ... era assim que me diziam, era assim que me considerava ...
Só que, sem eu dar por isso, de repente, de supetão, apanhando-me na curva da estrada, parece que tudo se me chegou. Ou então sou eu que de repente também, dei em viver com medos, com temores assombrados, com fobias idiotas... E aquela mulher destinada a varar a bitola do tempo, ficou da noite para o dia, como um passarinho assustado.  
Deito-me e até que o sono faça a caridade de me levar para os seus braços, passam por mim todos os filmes possíveis.  Sozinha em casa, com o gato aos pés, em cada noite que chega, a reprise assustada vai desfilando.  Tudo fica passível de acontecer.  Tudo é mais do que provável que aconteça ...
E fico encolhidinha entre o macio dos lençóis e o quente aconchegante do édredon, tentando sonhos e não pesadelos ...

Eu sei que a vida se fez, que os anos foram indo.  Sei que os filhos cresceram, que as crianças que eram não são mais, que hoje estão aí aos comandos das próprias vidas e próprias responsabilidades.  
Olho-lhes as rugas à socapa, para não darem conta da fortuita avaliação ... Sei-lhes as dificuldades, as preocupações. E lamento-as.  E sofro com elas ...  
Percebo-lhes o tempo de que não dispõem, o muito que têm que fazer ... Falar-lhes da dor do joelho que me atormenta, é pura ousadia ... lamentar que os olhos ainda que operados, não voltaram a ser o que eram e que os ouvidos também me atraiçoam despudoradamente, é falta de senso...
Não caibo nos cólos que já aninhei ... nem posso embalar-me nos braços que já embalei ...
O equilíbrio ... ( Queres o quê ? Tens a idade que tens !... )... é inquestionável, pieguice e exigência absurda, esperá-lo afinado ...
E tudo o mais ... o medo do "escuro", do frio, da dependência ... os degraus da escada ... o esquecimento, a confusão que se gera quando à nossa revelia os neurónios resolvem fazer um baile de trapalhões na cabeça, que até há algum tempo atrás, era finória, esclarecida, decidida mesmo nas curvas do caminho ...

E acontece tudo num piscar de olhos ?!  E de repente a estrada fica caótica no trânsito do raciocínio ?!
E sabotam-nos os pensamentos, esvaziam-nos as ideias, fazem-nos tropeçar nas palavras como se precisassem de bengala para andar ?!
E de repente ficamos estranhos face ao espelho.  Nem fisicamente ele nos devolve a grata imagem que ainda, esbatida, lembramos de nós mesmos ...
E foi apenas há meia dúzia de anos !...

Falar  estes  despautérios,  com  quem ?  Expor  esta  avalanche  de  mágoas  onde  e  para  quê ?  
Desvendar estas ironias tontas, em praça pública ?  Ridículo !  Será que também perdi o senso do razoável, do lógico, do real ?... 
Ou simplesmente conflituo com a inevitabilidade da vida, recuso o percurso inexorável comum a todos, digladio o destino ... escrito sei lá por quem ?!...

E é isto !

É que às vezes a gente só queria um mimo !...

Anamar

domingo, 31 de dezembro de 2023

" SEM PALAVRAS ... "

 


" Sou uma criança ... nascida para viver, não para morrer !... "

Não sei porque não escrevi, até hoje, sobre mais uma guerra devastadora no planeta. Um genocídio ... mais um, levado a cabo pelo ser humano desprovido cada vez mais de sentimentos de empatia, compaixão, fraternidade.  Uma guerra sem contenção ou fronteira, insensível, absurda, cruel, um conflito sem limites, totalmente radicalizado onde parece não haver mesmo cabeças a pensar, que dirá corações a sentir ...
Com a guerra na Ucrânia sem sinais de acalmia, com o ódio, a prepotência, a ganância, a total indiferença face ao sofrimento alheio a grassarem exponencialmente,  a observância do respeito pelos valores humanos é algo completamente ignorado.   
Por isso, a violência e todo o tipo de crimes de guerra são a realidade vivida por todos aqueles que resistem, e as imagens que nos chegam diariamente, são indescritíveis, terríficas, duma dimensão que nos questionam se são homens ou monstros que os praticam.
E são os mais vulneráveis e desprotegidos, velhos, crianças e até os animais companheiros das vidas, os que mais sofrem, perdidos que estão no tempo e no espaço, jogados aleatoriamente no meio de bombas, de mísseis, de drones ... no meio do inferno nem nos piores filmes de terror imaginado ...

Chegámos ao fim de mais um ano, a folha do calendário vira, lentamente, dos confins do planeta, varrendo fuso a fuso todas as terras, desde as mais perdidas às grandes e insensíveis capitais ...
Logo mais, será a meia noite por aqui.
O dia está triste, melancólico, enfadonho.  Cai uma chuva miúda pouco convincente.
As gaivotas pairam em voos erráticos neste cinzento uniforme de borrasca.  Gosto de as ouvir, gosto de as ver em bandos dispersos em gritos reclamantes, com o mar em tempestade na costa.
Eu estou profundamente melancólica e triste.  Olho esta manta de rasgões que é o Mundo à nossa volta, e não enxergo uma réstea de azul que aconchegasse ou iluminasse os corações ...
As pessoas, afobadas, têm urgência de se desejarem votos e votos de paz, saúde, felicidade, como se conseguissem aturdir-se com as bolhinhas do champanhe que mais tarde irá estoirar,  como se fizéssemos todos de conta que além das nossas fronteiras pessoais, tudo está e estará perfeito.
O tempo, o tempo magistralmente cantado por Drummond de Andrade, numa visão redentora, positiva e quase feliz, para mim representa uma implacável, infalível torrente impetuosa como as imagens que a televisão nos passa quando os tornados, as tempestades, assolam aqui e ali o planeta, semeando dor e morte.  Ninguém contém, ninguém refreia ... ninguém domina !!!  Assim é o tempo !...
Não consigo assumi-lo de outra forma, com outro rosto, com outro rumo ...

Este será o último post aqui no meu espaço, no ano que agora finda.  Em cima da mesa, todos os textos que escrevi, aguardam a vez de o encadernador os transformar em mais um livro, respeitando este a 2023, e onde se arquivam todos os pensamentos, todas as histórias, todas as emoções diversas que me assolaram ao longo dos últimos trezentos e sessenta e cinco dias.  
São o meu espólio pessoal que ficará para quando eu partir, ser dividido pelas minhas filhas, e que não é mais do que eco dos meus sentires, expressão das minhas dúvidas, angústias, mágoas ... mas também sonhos, esperanças, desejos ou vontades.  São reposição de tudo, tudo aquilo que é a minha essência, tudo aquilo que simplesmente sou eu, sem filtros ou máscaras ...
Muito pouco expressivo será o livro deste ano ... tão pouco escrevi ... tanto abandonei esta válvula emotiva de escape, na minha vida !!
Certamente, sinal de muita coisa, de muitos vectores acontecidos, de desânimo ... sobretudo de falta de vontade e de aposta !

Bom, e agora relendo tudo isto que escrevi, penso que sei exactamente porque o não escrevera antes.  
Dentro de mim experimento uma impotência atroz, um desespero e uma tristeza sem tamanho !  
Penso que de alguma forma sucumbi à dureza da realidade, à negritude das imagens, à violência dos sons, à dor das palavras, à crueza dos sentimentos, á incapacidade de acreditar no ser humano.  E desisti de escrevê-las !
As palavras soam-me vazias, curtas, incapazes, ocas, distantes ! 
Ouvindo este vídeo dos meninos de Ramallah, percebo claramente que não há uma só palavra, em nenhum alfabeto, que dita, dimensionasse com verdade, autenticidade e realismo a ausência do AMOR, que afinal será sempre a chave de tudo !!!

"SEM PALAVRAS", portanto !...



Vídeo -  Coro de Ramallah Friends School   ( 2023 )

Anamar


Nota :  Adiciono o vídeo com o poema declamado, de Drummond de Andrade




domingo, 24 de dezembro de 2023

" OUTRA VEZ NATAL "



Ontem 22 de Dezembro, o Inverno chegou.  
Por aqui eu diria que mais parece ter chegado a Primavera, tão risonhos andam os dias, lindos, solarengos, claros.  O céu insiste no azul, um azul diáfano, quase transparente e luminoso, as temperaturas não são severas e a aragem que esvoaça, apenas esvoaça, vaporosamente.
A mata apresenta-se totalmente verde com todos os cambiantes da cor, como se um talentoso pintor tivesse ido por ali aguarelá-la.  As azedas, descaradamente já pintalgam todos os tufos nos cantos e recantos dos caminhos, e os pássaros, lembrando Março, pipilam pelas copas, como se já estivéssemos no mês dos ninhos.  A natureza continua totalmente baralhada ... como não, os animais e nós próprios ?!

Entretanto o Natal espreita.  Vinte e quatro horas nos separam da noite da Consoada.
No ano que agora finda fui passá-la no sul do país com parte da minha família.  Este ano conto passá-la aqui por casa mesmo.  Prevejo uma noite muito pouco animada, pois os três que se sentarão juntos na mesa de Natal têm poucos motivos para festejar. Estamos todos numa faixa etária já meio descolorida.  Depois, as doenças que atormentam uns e os desgostos recentes que atormentam outros, fazem prever uma relativa boa disposição apenas, para o convívio.  Acho que no próximo ano vou implementar uma reviravolta neste estado de coisas, pois isto parece estar mais para velório que para uma confraternização que nos deixasse animaditos.
Ou então vou para o quente da cama, como se nada fosse, e faz de conta que estou encerrada para balanço ...
Afinal, como dizia o meu pai, parece ser um dia igual  aos outros todos ... 
Em viagem profissional, viajante que era, se estivesse mais afastado, por esse Alentejo fora numa época em que as ligações e os transportes não eram fáceis, chegou a passá-lo onde quer que estivesse, não vindo sequer a casa ... Outros tempos ... outras épocas !...
Hoje nada disto parece fazer sentido, pois tudo fica ao virar da esquina.

Com os dias conturbados que se vivem por esse mundo fora em que o Homem parece ter apenas como objectivo de vida exterminar o seu semelhante, eu diria que o Natal já só faz sentido para a criançada, a quem o Pai Natal, cortando os céus no seu trenó, de saco às costas com os ansiados presentes, ainda consegue criar uma ambiência onírica nas suas cabecinhas.
O planeta Terra tão mal cuidado, tão agredido, tão negligenciado, só pode mesmo queixar-se dos atropelos de que é vítima, num crescendo incontrolável. Apesar das pseudo-intenções de contenção dos desvarios provocados, em cimeiras, conferências, encontros, plataformas, movimentos cívicos, etc, envolvendo as altas esferas responsáveis das maiores potências mundiais, o sucesso alcançado nas negociações, é diminuto ou quase nulo.
Sempre, vergonhosamente os interesses económicos, os lobbies financeiros gananciosos e incontroláveis, se sobrepõem às intenções, aos alertas e às tentativas de reposição da sensatez nos posicionamentos mundiais.
A Covid seguida de uma inesperada guerra às portas da Europa, numa Ucrânia tão devastada já, uma nova guerra de desfecho imprevisível no Médio Oriente, mergulhada numa sanha sanguinária como já não esperaríamos ver em pleno século XXI, culminando num genocídio de populações encurraladas pela insanidade dos beligerantes ... atrocidades pelo mundo fora, crimes cometidos aleatoriamente duma forma inesperada sobre inocentes apanhados de surpresa, extremismos e fanatismos religiosos descontrolados levando a ódios e vinganças ... subtraem-nos toda a convicção que ainda pudéssemos ter de acreditar nos valores desta quadra e consequentemente na pureza de coração e na humanidade dos nossos semelhantes.

E este cocktail desalentador e "explosivo", culmina internamente, com um país esfrangalhado, mergulhado em acontecimentos políticos inqualificáveis, uma espécie de  barco  que  perdesse  o  leme e  que  navega  em  mar  alteroso  sem  rota  ou  porto  que  se  aviste ...
Um cansaço !!!

Com todos estes "retalhos" demasiado lúgubres e pesados, me despeço.  Afinal, hoje já é Natal outra vez !! ...

Anamar

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

" UMA LUFADA DE AR FRESCO "


Hoje acompanhei uma amiga de toda a vida a um cartório notarial onde ela foi fazer a escritura de um apartamento adquirido há cerca de dois meses. 
Tem ela talvez mais uns três anos que eu, e há tempos atrás essa mudança na sua vida seria impensável.  Ou talvez ela a não quisesse verdadeiramente questionar.
Tendo contraído poliomielite em criança, e tendo ficado com sequelas da doença, o que lhe conferia em permanência  algumas restrições motoras, sofreu, em acréscimo, um acidente grave fará exactamente um ano agora em Dezembro, com uma consequente lesão na coluna, que a atirou para uma recuperação longa e difícil, e uma perspectivação diferentemente obrigatória da sua vida futura, no dia a dia. 

A  Fatinha que sempre viveu exclusivamente com a mãe, teve uma vida com a normalidade possível.  Era e é totalmente autónoma, viveu em pleno a sua vida profissional até à aposentação, com sucesso absoluto e competência reconhecida, e depois da mãe ter falecido passou a aproveitar essa liberdade imposta, para viajar, com um grupo de colegas de profissão.
Sem dificuldades económicas, deambulou, de leste a oeste, pelo mundo inteiro.  Aproveitou portanto, o melhor que pôde, a disponibilidade que a vida lhe ofereceu.

Havia um senão.  A Fatinha viveu e vive ainda num prédio antigo, num segundo andar sem elevador, o que, se até aqui ia dando, melhor ou pior, para ir levando, depois da fatídica queda sofrida há um ano, as dificuldades aumentaram substancialmente, e ela passou a ter uma vida praticamente confinada ao espaço habitacional, limitada portanto na sua liberdade de movimentos.
As amigas insistiam que ela deveria encarar a sua realidade e mudar de casa o quanto antes, alertando-a para o normal avolumar das dificuldades face à implacabilidade do decurso dos tempos, o que parecia não fazer muito eco junto da Fatinha, ligada sobretudo emocionalmente ao espaço adquirido pela mãe e sempre com ela partilhado.

Até que,  um qualquer clique inesperado, fez eco na sua cabeça.  Acho que, da noite para o dia, decidiu que o rumo seria não pactuar com uma aparente negação da realidade, encará-la de frente e decidir a vida.  Assim o fez, e desencantou o imóvel à medida dos desejos em velocidade de cruzeiro.
Em dois meses, a Fatinha encontrou um apartamento fantástico, localizado num lugar de excelência, com todos os requisitos necessários e mais ainda.
E hoje foi então realizada a escritura do mesmo.

Fui buscar esta história, porquê ?
Porque, à minha frente estava uma Fatinha decidida, resolvida, com a felicidade de objectivos cumpridos, que alimentou sonhos e está a realizá-los.  Uma mulher que sempre aparentou ser dependente, até meio atrapalhada face à vida, com uma experiência pouco desenvolvida, já que sempre viveu com excessiva rede protectora enquanto a mãe foi viva, surge agora já neste timing  com disposição, vontade, confiança e fé ... sem fantasmas ou medos, parece ... pelo menos com a coragem necessária a iniciar mais um ciclo, ou a recomeçar uma nova estrada !
De alma aberta a novos sonhos !

Mexeu comigo este episódio, um destes dias explico porquê ...

Anamar

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

" IRRESOLÚVEL ... SERÁ ? "



Referi aqui vezes sem conta, como me isolo gradualmente mais e mais, numa indisponibilidade emocional para conviver, sair de casa, cumprir programas, espairecer ...
Argumentando uma real falta de paciência, uma intolerância óbvia para as trivialidades diárias, um cansaço para as minudências do dia a dia, afasto-me, silencio-me, remeto-me ao espaço confinante da minha casa, e consequentemente adio ou remeto para melhores ocasiões, encontrar pessoas, partilhar momentos, dividir conversas nem que seja simplesmente em frente a uma chávena de café.

Telefonar, só em "desespero de causa", ou seja, quando as escapatórias já não existem.
Não recuso nada, digo sempre sim a tudo, ou melhor, não me inibo de prometer qualquer coisa, só que ... sempre sem data marcada.
"Ah sim, claro, temos que tomar um café ..." , "vamos, afinal já passou tanto tempo ... ", "havemos de almoçar ... quando agora o tempo melhorar" ... etc, etc.  Tudo com a mais séria intencionalidade.  Quando prometo e me comprometo com a disposição, até tenho intenção de cumprir, e até pareço já saborear a pequena felicidade dessa promessa.  Só que, depois, desinvisto totalmente, e o passo seguinte é ou fazer-me de desentendida ou inventar uma súbita impossibilidade para me fazer presente.

Sinal de envelhecimento, disse-me assim de caras, frontalmente, uma conhecida que já não via há algum tempo e que é, ao contrário de mim, toda gaiteira.  Eu ri-me, achando que ela estava inteiramente certa.
Acho que o imobilismo que me domina, a inércia que me envolve e esta espécie de "paralisia" onírica, conduz-me a um estado de letargia muito pouco saudável.  Pareço atascada num lamaçal que me está a limitar na vida diária.
Deixei de me entusiasmar, deixei de me empolgar com o que quer que seja, estou remetida a um "silêncio" interior, a um torpor desmotivador, em relação ao mundo.  É como se estivesse numa hibernação emocional doentia, como se estivesse por aqui esperando apenas que o tempo passe.  E isso em termos de saúde física e mental não é positivo.
Faço esforço para interagir, à conta de não ter paciência.  Fico indiferente e pouco disponível face a quase tudo, num abandono patológico.  A verdade é que a realidade pouco me motiva ou entusiasma.  Notícias terríveis pelo planeta, que já não sei se é melhor conhecê-las, se não.  Que me martirizam e penalizam profundamente, sem remédio à vista, deixando-me com o peso da impotência ainda maior sobre o coração.
Até as viagens que não há muito tempo atrás sempre eram motor de arranque para eu ficar feliz, não conseguem alavancar-me para novos sonhos, desejos ou vontades.  Nada. Vibro, mas não como dantes me acontecia.
"Velhice" ... martela-me os ouvidos ...

Esta terra que habito está descaracterizada.  A Covid deu conta do convívio, da partilha, dos encontros entre as pessoas.  Deixámos de sair tempo demais, confinámo-nos em períodos demasiado longos, os espaços nossos conhecidos alteraram-se fisicamente, uns fecharam, outros vocacionaram-se de outra forma.  As pessoas, afastadas umas das outras não conseguiram reabilitar os hábitos, os laços, os interesses.  Morreu muita gente, outros saíram das grandes cidades e rumaram à terra, onde por vezes possuíam casa, deixámos de saber dos destinos de muitos ... e fomos ficando mais sozinhos.  Nós e os nossos novos esquemas de vida, numa readaptação às exigências dos tempos.  
Em suma, tudo mudou, muita coisa, irreversivelmente !
Eu entristeci ...

Não consigo engendrar uma estratégia remediadora que me impelisse para diante, que me iluminasse de novo os olhos, que me acelerasse as batidas do coração, que me tirasse desta podre zona de conforto e me restituísse o sorriso ao rosto.  Nada que me fizesse acreditar que a minha alma afinal ainda é jovem, ainda arrisca, que ainda ousa, como dantes... que ainda tem rasgos de loucura ... Uma estratégia que me faça de novo pular as baias, mergulhar no impossível sentindo-o possível ... que "me livre da morte em doses suaves" ...

O cansaço é progressivo, e vou ficando por aqui ...
Talvez, como diz Pablo Neruda ... irresoluvelmente, a "morrer devagarinho ..."

Anamar

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

" REVISÃO DA MATÉRIA "

 



O dia está profundamente cinzento.  Uniformemente escuro.  Ainda não parou de chover, chuva grossa, agressiva, forte.  Bate nas vidraças com ímpeto, não facilita a vida a quem, nas ruas, tenta cumprir as rotinas diárias.  Corre-se, procuram-se abrigos, porque a inclemência do temporal não deixa margens ...
Queiramos ou não, a interioridade a que este tempo nos remete, leva a uma introspecção incontornável.  
Afinal será Dezembro dentro de horas, o Inverno está por dias e consequentemente, o caminho que percorremos nas nossas vidas está claramente a par do ciclo da Natureza.

É já uma estrada em que o que andámos bate objectivamente o que temos para andar, em tempo e em qualidade, e em que à nossa volta, as pessoas, as conversas, as preocupações que nos tomam, os sentimentos e até a forma como respondemos emocionalmente ao dia a dia ... são em tudo muito próximos, senão idênticos, às vivências daqueles que nos cercam.
Uns mais optimistas, outros menos, efectivamente todos de uma maneira geral partilhamos similitudes sensoriais.  
Convivemos preferencialmente com pessoas da mesma faixa etária, que já cessaram a actividade profissional, com famílias dispondo de uma lógica autonomia, com as independências naturalmente adquiridas, pessoas que ou têm uma vida familiar cujo desenho se mantém desde sempre, ou se encontram sós pelas mais variadas razões.  De qualquer forma, temos todos obviamente uma linguagem muito próxima, posturas e reacções comuns.  Quase todos nascemos e crescemos nas mesmas décadas, passámos por experiências semelhantes, crescemos em figurinos com forma e linguagens comuns, habituámo-nos a olhar o mundo de forma parecida ... até os sonhos e os trilhos percorridos para os alcançar, foram formalmente próximos.
Portanto, não será estranho que as nossas conversas sejam idênticas, as preocupações também, as angústias e as incertezas idem, até as sensibilidades se tornaram indiferenciadas.
As doenças, as limitações de natureza física ( mas não só ), que diariamente nos vão surpreendendo, as dificuldades materiais que indistintamente se experienciam fruto da sociedade e dos tempos que atravessamos, a falta de paz com a conjuntura sócio-política universal que nos rodeia, a insegurança e as incertezas que diariamente nos surpreendem ... em suma, o dia de amanhã ... ponteiam as nossas conversas, assombram os nossos sonos.
Os filhos quase sempre estão longe, física e emocionalmente muitas vezes.  A vida corrida, exigente, de competição, com valores e interesses diversificados já bem distintos dos nossos ( afinal, outra geração, outra visão e foco ), não lhes deixa folga, disponibilidade ou mesmo vontade para se fazerem presentes.

Nós, os do costume, já nos rimos às vezes, porque na verdade, andando andando, e reclamando, ainda assim lá vamos parar às doenças, lá vamos parar à solidão, ao isolamento, à resistência a sairmos de casa, de convivermos, de combinarmos programas.  Falta de paciência para ouvir, falta de complacência para entender e aceitar ... intolerância mesmo...
Antes ficar em casa, o telefonema amanhã se devolve, o chá fica para outro dia ... Saturação mesmo ! "Pachorra", nenhuma !

E vive-se, vive-se muito do que era, como era, como foi, o que foi, nos registos do passado.  Revisita-se vezes sem conta esta data, este acontecimento, estes dias ... num saudosismo que dói, que objectivamente amachuca, pois nos flashes que nos descem, o cenário está lá, apenas nós hoje somos apenas meros comediantes duma peça cujo pano já fechou ...
E fica estranho. É uma brutal sensação de desconforto ...

Hoje estou melancólica, ou melhor, mais melancólica.
Talvez o dia ... talvez o telefonema ou a tentativa de chamada a uma grande amiga com demência profunda, com quem já não consegui trocar mais que duas ou três palavras ... talvez um livro fantástico que estou a ler ... talvez ... talvez tudo isto e apenas isto, me tenha encapsulado no silêncio que acabou a envolver-me nesta tarde cinzenta e chuvosa.

Anamar

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

" OUTRA VEZ NATAL ... "

 


São pouco mais de quatro horas e a noite espreita.  O dia fechou completamente e até já chove lá fora.
As gaivotas recolheram.  Andava aqui por cima um bando em desnorte, rodopiando na aragem, como se sem rumo estivesse. Ouviam-se claramente os gritos que emitem ... não sei interpretá-los.  
Uma coisa é certa, parece terem recuado da orla marítima, prenúncio de tempestade.  Ou não seja verdade que "gaivotas em terra" sempre denunciem borrasca lá longe...
A meteorologia bem a sinaliza.  Parece que as próximas anunciadas chuvas que aí vêm, se devem à aproximação de "rios atmosféricos", uma nomenclatura recente, creio eu.
Pelo menos tem sido nestes últimos tempos que esta "novidade climatérica" surgiu no nosso léxico.  Antes, ou eu andei distraída, ou ainda não tinha dado por tal, na linguagem comum ... 

Entretanto é quase Natal.  Novembro, o "tal" mês para mim, encerra as portas já amanhã.

De ano para ano, esta quadra mais me cansa.  Aliás os únicos Natais que recordo com doçura e alegria foram os Natais da minha infância, aqueles que eram vividos com a família nuclear ainda intocada, em casa dos meus avós.  Até aos meus treze anos sempre esta quadra era passada no Alentejo, na casa grande, com pais, avós, tios, primos ... enfim, todos para quem estes dias de lazer eram pretexto para uma confraternização que reunia até os que lá não viviam.
Morávamos então em Évora, a escassos trinta e cinco quilómetros de distância.  As aulas haviam terminado, estávamos em férias, o meu pai em período de balanço na firma, e como tal o trabalho que desenvolvia permitia que fosse feito naquela mesa baixinha, dentro da grande lareira de parede a parede, que ocupava o fundo da cozinha dos meus avós.
A seu lado, de manhã à noite ardia o madeiro imenso que vinha rebolando pelo quintal fora, já que não havia viva alma que pudesse arrastá-lo de outra forma.
O meu pai, cutucava o lume, mexia as brasas, usava incansavelmente o abanico, e consequentemente enchia-se de cinza da cabeça aos pés ...  Mas isso, que importava ? Era o preço do consolo que representava o calorzinho com que eram aquecidas as noites gélidas do Alentejo !
As chamas bruxuleavam e o seu luzeiro era cúmplice dum conforto inigualável.  Os chouriços, as linguiças e as morcelas, como roupas num varal, dependuravam-se por cima das nossas cabeças, num fumeiro que reunia os enchidos da matança anual.  
Ao jantar, numa mesa que aos meus olhos de criança parecia não ter fim, quase sempre era o perú a fazer as honras, enquanto que os doces de tradição, arroz doce, aletria, leite creme, bolo de buraco ... do que me lembro... completavam o cardápio.  Lá pela meia noite, depois da Missa do Galo, a carne de porco frita, as filhós, as azevias, os mexericos e a pinhoada, aguardavam-nos, feitos pelas mãos de quem não fora à igreja.´
E os cantares ao menino Jesus, soltavam-se das bocas de quem, com a barriguinha cheia, entrava na desgarrada.
E eram de uma paz e de uma cumplicidade os sentimentos que ali se partilhavam.  Contavam-se histórias, lembravam-se pessoas, ríamos, assinalávamos os faltosos e mesmo aqueles que noutra dimensão haveriam de estar a ver os que ainda tinham lugar cativo na mesa da consoada ...

Eu era uma menininha de seis, sete, dez anos ... pra quem, uma roupa nova para estrear, umas sombrinhas de chocolate, uns lápis da Regina, umas libras igualmente de chocolate, brilhando do ouro que fingiam, já estavam de bom tamanho e chegavam bem para na manhã seguinte me transbordarem  de alegria, quando já, de olhos arregalados, descia ao sapatinho ...
E era assim, não me lembro sequer de um livro ou um brinquedo, juro que não lembro !...

Há memórias que se nos colam à pele sem que façamos o mínimo esforço para tal.  Há outras que "deletamos" mesmo sem querer ... novamente não carecendo de qualquer vontade ...
Há momentos que ficam, com cheiro, som e cor para sempre. 
 
Eu ia com a minha avó à Missa do Galo.  Só as duas e o frio daquela noite gelada.  A Igreja da Saúde resplandecia com uma luz clara, onde a talha dourada reflectia a luz dos círios acesos. Cheirava a cera, lembro claramente que cheirava. O xaile da minha avó era macio, fofinho, tinha uma cor azulada escura como veludo.  A minha mão pequenina cabia nele na perfeição.  O lenço adamascado cobria-lhe a cabeça totalmente branca.
Os cânticos ressoavam , amplificados pela abóboda bem alta da Igreja e o Menino Jesus na toalhinha de linho era dado a beijar no fim da cerimónia.  
E era tão lindo aquele querubim róseo, de caracóis dourados !!!
Cá fora o céu estava escuro.  A vila tinha poucas luzes nas ruas e por isso a luz das estrelas piscava lá no alto.  E o ventinho, aquele sopro cortante que corria e nos gelava a ponta do nariz, lembrava que era Dezembro, que nos esperavam lá em casa as iguarias e as doçuras, o calor aconchegante do lume aceso, a magia da noite que havia de nos envolver, a união familiar, o afecto a pingar dos corações ... e que era Natal outra vez !...

Anamar

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

" INDEFINIÇÕES ..."

 


Quase em tudo na minha vida, queimei etapas, atropelei timings, acelerei processos.  Ou seja, quase em tudo na minha vida, meti as mãos pelos pés numa pressa e numa ânsia de rapidamente virar esquinas e ver mais além, de chegar rapidamente aos horizontes, só para ter mais horizontes, para que o tempo não se gastasse antes dos meus sonhos se consumirem.
Corro atrás do tempo, sempre, sou escravizada por ele, tenho a angústia da falta dele para cumprir os desígnios que persegui e persigo.
Por sorte do destino, ou dos acasos de vida, não me tenho dado mal.  Pergunto-me às vezes, como ?

Sou uma incoerência nata, sou uma utopia além da conta.
Agarro o tempo, mas não aproveito o tempo !  Estranho, isto !...
Nunca usufruo o momento.  Nele, já me angustio com o que vem a seguir, nele, eu já sinto saudade do que ainda não foi ...

Guardo contudo, religiosamente, as sobras, que é como quem diz, as memórias.  Essas já não têm para onde se perder.  Pertencem ao arquivo indelével da mente e do coração.
Nelas me espanejo em dias de repouso, quando o cansaço é muito e a tristeza me toma conta.  Então, entro nelas, como se de um "país de maravilhas" se tratasse, no espanto e no êxtase.  Percorro-as de frente para trás e de trás para a frente, num deleite único e inalienável.  É como se entrasse num mar sem ondas, doce e quente, como as águas de lá longe que busco quando posso ...
São espaços de interioridade, vedados, privados e únicos.  E re-experimento as emoções, as angústias e as mágoas, mas também as alegrias, as conquistas e as realizações.
Mas depois farto-me.  Termino a visita, saio pé ante pé e fecho a porta de novo, até uma próxima, até que um outro dia me amanheça a vontade louca de descer às caves das lembranças e verifique, com alívio, que elas ainda por lá estão.
Às vezes quero remexê-las, tirar-lhes o pó, mudá-las de prateleira, segundo a vontade de lhes pegar ou não.  Outras, abro e franqueio a entrada, simplesmente ... espreito pela talisca da porta entreaberta e nada mais.

E o tempo continua.  Sempre continua ...

E de igual forma me envelheço a correr.  Dei por mim, sem remédio, de um dia para o outro, entre momentos que não preciso, a ficar definitivamente envelhecida.  E espanto-me como não me apercebi, como de repente morreu uma e no seu lugar nasceu outra, que é, de certa forma, uma estranha em mim.  Não sei como foi, não sei quão distraída ou dispersa eu estava que não enxerguei a mutação a ocorrer.
Deve ter sido nos tempos em que deixei empoeirar os sonhos por já não valerem a pena, em que deixei de acreditar em estrelas, nasceres e pôres de sol no meu céu, em que perdi a inocência das grandes descobertas, e em que perdi a vontade de ter vontade de sorrir ...
Possivelmente foi isto.  E nisto, não se volta atrás, nunca se volta atrás, pois o caminho de regresso perdeu-se no nevoeiro.

O desconforto toma-me.  É como se vivesse dentro dum fato que não é meu, dentro duma pele que não me pertence, dentro de uma entidade que não me assenta e desconheço.
Olho-me no espelho e pouco identifico da que fui, busco no avesso e não encontro o rascunho.
E zango-me.  Zango-me com o espelho por não me ter avisado, e garanto a mim própria não voltar a cruzar quem integrou a película que chegou ao fim.
Adoro pessoas resolvidas.  Vou morrer sem o ser.  Mas há pessoas que vivem com certezas, que sabem exactamente com toda a tranquilidade as escolhas que devem fazer, que certificam com igual tranquilidade os caminhos que já pisaram, as lutas que dirimiram. 
Adoro gente sem equívocos, esclarecida, decidida, clarividente ...
Logo eu que sou um poço de interrogações, uma montanha de dúvidas, um trabalho por terminar, uma reflexão por fazer !...
E insatisfaço-me comigo mesma,
Para quando uma pausa no conflito de histórias sem epílogo ?!
Para quando a paz que o fim da turbulência que me assola, me transmitiria ?!
Para quando o fim da inquietude da obra inacabada que eu sou ?! 

Anamar 

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

" POR ESTES DIAS ..."

 


Por estes dias fui e vim de viagem como relatei, entretanto contra minha vontade, aniversariei ...😉😉, coisa que me irrita profundamente não poder controlar ...😁😁 
Enfim, retomei as rotinas de sempre, porque a vida faz-se todos os dias .
Este ano o dia caíu em cheio num domingo ( também nasci num domingo de acordo com as informações maternas ), e como tal, estava mesmo a pedi-las que eu juntasse a família toda, não só porque há séculos me não propunha partir para um evento desta envergadura, mas porque sendo domingo não havia desculpas por parte dos participantes de se demarcarem da respectiva presença. 
Dessa forma, a minha filha mais velha calar-se-ia com as acusações habituais de que sou uma egoísta e comodista, que nunca me disponho a tais confraternizações como as matriarcas das famílias "normais" fazem ... e patati e patata ...
Reconheço-lhe de facto alguma / bastante razão, pois fujo abissalmente ao paradigma da família funcional, e como também a afectividade e a proximidade entre os elementos da nossa micro-estrutura familiar não são a marca reconhecida, pautando-nos bem ao contrário, com uma imensa falta de partilha e cumplicidade  ( sobretudo com o referido núcleo ... ), desde que nos saibamos com saúde e sem particulares contratempos, mantemos o distanciamento prudente para que alguns conflitos não possam eclodir mais violentamente.
Devo referir que as maneiras de ser e pensar entre mim e ela são totalmente opostas, os valores que defendemos também, os interesses e preocupações raramente se afinam, a forma de estar na vida, e ver o mundo ao redor, igualmente. 
Como tal, existe potencialmente uma mistura explosiva iminentemente pronta a deflagrar à mínima fricção, que se deve evitar a todo o custo.
A fórmula "familiarmente correcta" de convivência pacífica, passa portanto por nos sabermos bem de saúde, sem problemas significativos de outra ordem, sem grandes ondas, perturbações ou turbulências.
E assim vamos andando !...

Entre as duas irmãs, e porque a mais nova é substancialmente parecida comigo, logicamente o "status quo" é idêntico, e portanto a situação é paralela.
O relacionamento é feito "com pinças", sempre num equilíbrio ameaçado. O que uma entende não entende a outra, o que uma defende nada tem a ver com os objectivos da outra, e assim sucessivamente.
Não foram poucas as vezes em que ao longo do almoço eu espetei beliscões na mais nova, ou lhe dei pisadelas por debaixo da mesa, por iniciar caminhos "suicidas" nos temas abordados.  Já sabíamos onde iriam dar, e sinceramente, não tenho pachorra ou folga emocional pra grandes embates que de nada valem a pena e a lado nenhum, nos levam ...

Como se vê, uma verdadeira e interessante animação, foi o meu almoço de anos !

Chegados ao fim, apresta-se a necessidade das arrumações.  Tudo sai dos lugares e tem que voltar, tudo se suja e há que limpar, etc, etc, etc.
A minha realidade diária é de uma pacatez total. Sou eu e o meu gato, com um esquema de vida e rotinas que preservam os espaços e as coisas, pelo que os dias se passam sem grandes afobações ou tarefas exaustivas.  Cheguei portanto à noite, totalmente feita em fanicos.  
Pude constatar claramente o que o avanço do tempo nos causa, em capacidades, resistência, frescura.  Há alguns ( não necessariamente muitos ) anos atrás, estas tarefas eram realizadas com uma perna às costas, a frequência com que se promoviam por ano estes convívios, era largamente maior, e o grupo que desta vez se sentou à mesa era bem mais alargado, por evento.
Pois, mas o tempo é carrasco e não se compadece !...

O cansaço físico e a falta de disposição que me confina grande parte dos meus dias à casa, sem que me anime a grandes outros programas, é acompanhado igualmente dum exasperante cansaço mental e emocional.
Hoje em dia, o nosso mundo alargado, as realidades doídas que se vivem lá fora, o horror que nos aturde de todos os lados, a dor que dói mais porque não se entende ou justifica, são um "ruído" assustador, deprimente e mortal !
Há uma "poluição" emocional tão desestabilizadora que nos mata aos poucos.  A impotência experimentada, o cansaço da dor das imagens sem alívio, de duas guerras a grassarem em simultâneo, a cegueira e a surdez do Homem que parece ter-se transformado numa espécie amputada de sentimento ou emoção, num estado de alucinação ou loucura, deixam-nos também a nós em desvario, petrificados, gélidos, anestesiados ... em choque !

No nosso universo estrito, que é como quem diz, na nossa realidade diária, num país que estrebucha mergulhado em corrupção, compadrio, desonestidade ... crime ... e em que cada um procura tirar o melhor quinhão para si, apenas para si, mesmo que tenha que pisar, trucidar, levar na avalanche todos os que se meterem à frente ... a vida é feita a pulso, tostão por tostão, degrau a degrau, subindo um e descendo quantas vezes, dois ... num esforço e num desencanto sem tamanho.  
Numa competição feroz e doentia, num oportunismo descarado,  numa insegurança tormentosa, as esperanças fenecem, os sonhos estiolam, o cansaço torna-se patológico ... o reconhecimento e a compensação quase nunca acompanham as competências, o esforço e a dedicação ... 
Bem ao contrário !...
E tudo isto derruba, esgota, instala o cansaço, exponencia a incerteza e adoece a alma.  E atrás de uma alma doente, é fácil um corpo desistir ...
Afinal, fica difícil, muito difícil costurar os pedaços !...

Enfim, já me alonguei neste mix atordoante a preto e branco ...
Só que ... foi assim por estes dias ...

Anamar

domingo, 5 de novembro de 2023

" MARROCOS - do Atlântico ao deserto ... "



Marrocos já vai sendo uma memória... Mais uma memória singular e inesquecível, como para mim sempre são todas as viagens.
Todas elas são aprendizagens, são enriquecimento, são lazer, novidade, certeza de sair mais plena no regresso.
Conhecer sempre mais mundo, ou melhor, juntar mais mundo ao meu mundo é um privilégio e um fascínio que não canso de repetir.  
Afinal habitamos um planeta comum, a que uma multitude de espécies diversas conferem diferenças, particularidades, peculiaridades irrepetíveis.  E sendo embora "vizinhos", quando daqui saímos, nem uma gota de água deste oceano imenso cruzou os nossos destinos !

Deveria ser possível a qualquer um de nós, poder ver, sentir, perceber, tocar-se com o mundo lá fora, com os seres, as cores, os cheiros, as vozes, as palavras, os costumes ... em suma, a realidade que existe, pois assim seria mais fácil para cada um conviver com a diferença, aceitar a igualdade dos desiguais, cumpliciar com os sonhos dos que têm em comum connosco, o facto de sermos humanos apenas ... e trabalhar a tolerância, a empatia, a generosidade, a aceitação do outro !

A viagem de doze dias em que percorri Marrocos de ponta a ponta, entrando por Tânger e saindo por Casablanca, tendo rodado praticamente por todo o país, esteve comprometida, quando no passado 8 de Setembro o país foi assolado por um terramoto de intensidade significativa, que provocou mais de três mil mortos.  Só em segurança a Agência de Viagens a efectuaria, o que veio felizmente a concretizar-se.
E em boa hora, porque se trata dum país efectivamente muito particular, que eu lamentaria agora  profundamente não ter conhecido.

Marrocos é fundamentalmente uma terra de cor e som, um país em constante efervescência, com um povo hospitaleiro, humilde e sacrificado.  Com uma clivagem abissal entre as classes sociais, regido por uma monarquia absoluta e ditatorial, apesar do monarca ser conhecido como aberto a mudanças constitucionais, dividindo o poder com o primeiro ministro e o parlamento, a pobreza e miséria são extremas, face à sumptuosidade da vida de verdadeiros sultões e magnatas que constituem uma faixa social privilegiada, envolvida em luxos e riquezas astronómicas.
O rei Mohamed VI, é descendente duma longa linhagem de governantes que fazem parte da dinastia alauita, originária de povos que chegaram na região no século XIII, vindos da Arábia.  Assumiu o trono em 1999 após a morte do pai Hassan II e é igualmente considerado o chefe religioso no país, que é de maioria islâmica.  As mesquitas proliferam em todo o território, mesmo nas aldeias mais inóspitas do Rift, ou do Alto Atlas, enquanto que as catedrais católicas são praticamente inexistentes.
É divorciado e tem dois filhos, vivendo preferencialmente fora do país, apesar de nele possuir dezasseis sumptuosos palácios.  Assim, a sua residência fixa-se quase sempre, em Paris. É detentor de inúmeros automóveis de luxo e igualmente coleccionador de cavalos de raça provindos dos quatro cantos do mundo.

Falar sobre este país de uma diversidade espantosa, conseguir relatar, ainda que por aproximação a globalidade das suas características de culturalidade tão diferente da nossa, configurar-se-ia uma tarefa hercúlea e impossível.
Assim, vou remeter-me apenas a alguns aspectos talvez mais marcantes, face à minha sensibilidade.

As cidades, com uma arquitectura hispano-mourisca típica do norte de África e da Península Ibérica, têm características e designs absolutamente ímpares.  Influenciado por diversas culturas, tribos, árabes, romanos, berberes e colonizadores europeus que moldaram o seu estilo arquitectónico,  no Marrocos de hoje, prevalece como maior influência,  a islâmica, sobretudo nos ornamentos. 
Pode claramente observar-se esta afirmação na arquitectura das mesquitas, riads, souks, kasbahs, palácios e madraças.
As casas de adobe grassam nas zonas rurais do interior e nas cordilheiras longínquas do Rift ou do Atlas.
As medinas ou "cascos viejos", um emaranhado labiríntico de ruelas, que mais não são que o miolo histórico das cidades, são um mirabolante mundo de comércio onde tudo se vende nos souks, de comida a bens de consumo, numa agitação e numa promiscuidade de raças, cores, tipos e costumes.  Ali, tudo se regateia, as gilabas denunciam a miscigenação das etnias, os turbantes coloridos encimam rostos, na maioria ainda cobertos quase na totalidade com os véus do preceito religioso.
Os animais vivem da caridade dos habitantes.  As centenas de gatos e cães surgem de e em todos os lados, e vivem esfomeados.  Os burricos e as mulas, são quase em exclusividade os meios de transporte que cruzam as medinas, onde o brouhaha  parece nunca silenciar ...
As cidades do norte e da orla costeira, como a antiga Mogador hoje Essaouira, a "noiva do Atlântico", ou El Jadida, a Mazagão do tempo dos descobrimentos, assim como Fez, Arzila e outras, ostentam ainda sinais históricos deixados pela presença portuguesa, como as muralhas, os escudos em pedra ou os canhões por entre as ameias das fortalezas.  
Na orla atlântica, são cidades de fachadas brancas e azuis, a cor da espuma e das ondas, abertas e luminosas, onde os alíseos soprando, esculpem a paisagem ...
Cidades piscatórias, de barcos, gaivotas e gatos, de bom peixe e marinheiros nos portos, sabem à maresia que perpassa.
No interior, nas montanhas do Rift, a noroeste, surge uma pequena cidade isolada, na calma da cordilheira ... a inesquecível cidade azul do Marrocos, Chefchaouen, cuja fundação remonta ao século XV.  Para mim, foi o expoente máximo desta viagem, situa-se entre Tânger e Tétouan.  
A sua medina é absolutamente ímpar, com todas as ruas de paredes tingidas de azul, onde se pode caminhar, tirar fotos e observar calmamente a vida local,  os souks vendendo lamparinas marroquinas, peças de couro ou metal, roupas, panos, tapetes, especiarias e tinturas.
Foi a existência desta beleza única, a responsável máxima pela minha deslocação a Marrocos !

Pra não alongar excessivamente a minha narração, que fica a anos-luz do que lá vi e experienciei, refiro apenas o nascer do sol no deserto, em Erg Chebbi, onde subi lentamente, encaminhada por um berbere na condução de um dromedário, e onde a magia do silêncio da madrugada se acendeu aos poucos com as cores róseas, lilazes e laranja do primeiro esgar do sol por detrás das dunas do Saara !...
Jamais o esquecerei !...

Finalmente a "cidade ocre", Marraquexe, a cidade turística por excelência, onde o tipicismo da Praça Djemaa el-Fna, a maior de todo o continente africano, uma praça com o mundo inteiro dentro, mistura um furacão de experiências culturais e gastronómicas.  Os bazares labirínticos fervilham, os cafés com terraços panorâmicos onde se toma o chá de menta enquanto em fundo, do minarete da mesquita Koutoubia ( 70 metros e 800 anos de História ) se ouve o muezzim chamar para a oração do fim do dia.
Os encantadores de serpentes, as videntes a lerem as mãos, as pintoras artísticas da henna, os saltimbancos mágicos, os aguadeiros, os domadores de simpáticos macaquinhos e suas palhaçadas, convivem com as tendas ou os carrinhos com as ofertas gastronómicas de apelativo cheiro às especiarias, aos grelhados, às tagines ou ao sumo de laranja incomparável ...
Djemaa el-Fna é um espaço único, carismático, vibrante ... quase mágico !

O dia fora quente, a viagem aproximava-se do fim a passos largos, mas o cansaço não cedia à insaciável busca do bizarro, do desconhecido, do novo ...
Agora a brisa da noite já corria, mas a profusão das luzes, o colorido dos toldos, a música imparável, o recorte negro da Kotoubia em contraste com o sol já moribundo, e a magia de um chá de menta tomado no Grand Balcon du Café Glacier, encerraram indelevelmente da melhor forma possível esta incursão ao coração marroquino !...

Bslama Marruecos ... choukran !






Anamar