segunda-feira, 26 de setembro de 2022

" OUTONO OUTRA VEZ ... "

 


Hoje acordei outonal, como este Outono que começou entretanto, doce, aconchegante, envolvente.

Costumava dizer detestar esta estação, embora nela tenha nascido ... ou talvez por isso.  Mas isso fazia parte daquela angústia  e inaceitação mal resolvida comigo própria, que fui arrastando, enquanto me foi penoso, entendia e sentia ser demasiado pesado o fardo de viver ...
Estava psicologicamente fragilizada por certo, pelas peripécias que a vida me foi estendendo à frente, obstáculos que eu via vezes demais, quase sempre como injustos e demasiado devastadores para a minha robustez.  Inultrapassáveis mesmo ... derrotista que sou, pouco confiante e segura no meu próprio valor. 

Erro crasso !  
A vida vai caminhando, os anos vêm vindo e felizmente não trazem só aspectos negativos, mas também  aprendizagens, conhecimento e aceitação.  Começam a relativizar-se as coisas, a atribuir-se-lhes outro valor e outro significado.  Começa a olhar-se para trás e de repente, o que parecera negro, carrasco, mortalmente castigador, aparece como uma fonte de lições, de ensinamentos, de experiências, não necessariamente marcantes ou perturbadoras.
Começamos a perceber que a inteligência que possuímos nos deve posicionar como capazes de análises isentas, como alunos desarmados, intelectualmente objectivos sem avaliações persecutórias, ou melodramatismos excessivos, face ao que foi o nosso percurso.
Hoje, sou capaz de me sentir grata e não injustiçada, sou capaz de me sentir privilegiada e não vítima, sou capaz  de perceber o quão valeu a pena tudo o que há tempos atrás eu via como azar, destino ou pouca sorte ...
Hoje sou capaz de assumir uma paz e uma tranquilidade interiores, capaz de olhar o meu percurso, capaz de "me" olhar enquanto agente mas também enquanto espectadora do meu próprio existir, sem ódios, rancores, raivas ou angústias.
Hoje, sou capaz de "rever" a travessia e os que a dividiram comigo, valorizando o que de bom trocámos, o que me deixaram de si e o que levaram de mim, percebendo o bom, o gratificante, o inesquecível, e guardando numa caixinha especial na minha mente e no meu coração, com bonomia contudo, paz e tolerância não ressentida, o que de menos bom aconteceu ...
Tudo foi crescimento, tudo foi aprendizagem, tudo são afinal momentos, etapas, caminhos que haveriam de ser percorridos, experiências que haveriam de ser vividas, porquê, por onde, para quê ... ninguém sabe, talvez apenas porque vivendo-os, eles viessem a constituir um capital meu de crescimento, assim determinado quem sabe,  pelo destino !...
Tudo isso afinal, foi VIDA que eu pude viver !...

Hoje, quase sempre me sinto bafejada por ela, quase sempre me sinto mais paciente, quase sempre sou capaz de sorrir, e páro, muitas vezes páro e sorrio mesmo ... 
Basta que olhe à minha volta, para me sentir de facto feliz !  Basta olhar p'ra perceber como sou  abençoada.  Sinto-me pacificada interiormente muitas vezes, sobretudo nas horas de reflexão e meditação.  
E se o não sinto, reprogramo o meu coração e faxino a minha alma se ela claudica sem razão, num trabalho de reconstrução permanente.
Quando me sinto acarinhada por tantos e tantas, uns mais próximos que outros, é verdade, mas que ainda não me obliteraram nas suas vidas, percebo que alguma pegada tenho afinal deixado pelas veredas da existência ... E isso é muito bom, e faz-me muito bem pelo ânimo que me transporta ...

Hoje encontro-me aqui numa curva da estrada, num dobrar de caminho que me deixa ver com clareza o que os dias já percorreram, e me deixa perscrutar também, a linha do horizonte, desenhada longe ou perto ... o que for ... não me interessa ... não pode ou deve interessar-me.  
Apenas penso que terei paz a percorrê-lo, penso que terei olhos para o ver atentamente, penso que caminharei com as mãos abertas para o receber sempre, no bem e no mal, de acordo com as escolhas que fizer, as decisões que tomar, com as certezas mas também as incertezas ... 

... seguramente usufruindo com a maturidade que o Outono dá à Natureza, com a sabedoria dos frutos das árvores, que do verdor fulgurante da estação cessante atingiram a plenitude da doçura na estação calma, silenciosa, aconchegante, envolvente e doce que apenas há três dias nos acompanha ...

É assim também o Outono da vida ... tenho a certeza !!!

Anamar   

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

" APENAS MEMÓRIAS ..."


Perguntaram-me se eu estava a ouvir música ... não estava, agora já estou.  
Richard Clayderman num CD que ganhei de presente da minha mãe no recuado Natal de 2001, toca na aparelhagem ao meu lado ...
São temas imortais, transversais aos tempos e às vidas ... melodias calmas, dolentes, embaladoras, como gosto de ouvir quando escrevo.
Temas doces, preguiçosos, envolventes ... como o dia lá fora, indefinido entre o sol e a chuva que de quando em vez despenca convicta, quando uma nuvem mais decidida se atreve.

Estou triste, profundamente triste ... não sei porquê.  As lágrimas estão mesmo aqui por detrás dos olhos húmidos ... Incompreensivelmente, talvez.
Nada motiva ou justifica este meu estado de alma.  Nenhum tormento me inquieta, nenhuma preocupação ou angústia acrescida me toma, nesta tarde beirando o Outono.  Talvez seja apenas este recolhimento que ele sempre me traz, este abandono estranho, esta sensação de perda, de ausência ... de lugares vazios ...
Fiz a caminhada, aproveitando a promessa de que não choveria entretanto.  A mata estava totalmente vazia de gente. Não cruzei uma só pessoa pelas veredas silenciosas.  Apenas os pássaros continuavam as rotinas  habituais.  Os patos nos tanques, uma ou outra borboleta esquiva, um ou outro animal residente, que mais se pressentia do que se avistava, eram os sinais de vida ... além do gorgolejar da ribeira, agora com o caudal bem mais abundante depois da intempérie dos últimos dias.
Adoro a mata exactamente assim.  A Natureza e eu, num solilóquio abençoado ! 

Mas eu dizia que experimento um misto de sentimentos tão herméticos que os não sei explicar, um desconforto interior, um coração espremidinho dentro do peito, onde parece não caber ... pesado, que só ele ... e uma saudade também, não concretizada, sem rosto ou nome.
Mas uma saudade que dói.  Objectivamente dói, como se fosse um espinho impiedoso a enterrar-se, cada vez mais fundo. Acho que se conseguisse chorar, as comportas deixariam escorrer esta avalanche que me tira o ar, e um almejado alívio atenuaria esta angústia que me maltrata.

"Viajo" pelos anos que foram, pelas pessoas que passaram, pelos sonhos que se sonharam, pelos projectos que se desenharam, pela esperança que iluminava os caminhos da vida ... 
"Viajo" pelos rabiscos que fui escrevendo na junção de letras que formavam palavras, construíam vontades, decidiam rumos, faziam escolhas, arquitectavam ideias ...
"Viajo" pela trilha que ficou para trás ... Vejo-me e vejo todos os que, de esquinas e travessas se me juntaram no percurso, me enriqueceram a marcha, me desvendaram paisagens que eu nem sabia que existiam ... Todos os que me engrossaram a súmula dos dias.  
Estiveram comigo uns tempos, percorreram comigo pedaços da existência, dividimos estórias das nossas histórias ... e depois, porque é assim que sempre é, foram ficando parados na sombra protectora das árvores  da estrada, foram saindo para caminhos alternativos, de mansinho, sem aviso ou alarde foram-me deixando aos poucos mais sozinha, no cumprimento do destinado ...
E foram vozes, rostos, corações que partiram e se diluíram na distância.  Foram momentos, instantes saboreados, trocados, divididos, guardados ... Foram coisas tão incríveis e irrepetíveis que até nem sei se foram reais de verdade !

E depois, como tudo é efémero, tudo é precário, tudo verga sempre sob o peso inelutável do tempo ou pelo cansaço da rota, fica-nos apenas o buraco vazio cravado no coração, os braços órfãos das ramadas  de flores que havíamos colhido ... e um horizonte cada vez mais curto em que as cores do arco-íris, de tão esbatidas, já não iluminam ...

... e memórias ... apenas memórias ...

Anamar

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

" A CHUVA ..."

 


Já quase não sabia o que é chover.  Quase já não lembrava como é agradável apanhar uma boa carga de água, sobretudo se os dias estão quentes, abafados, ardentes, como estes que vivemos há tempos infinitos.

De facto, o calor exorbitante que nos tem flagelado há tempo demasiado, em que embora sendo Verão, as temperaturas e a seca sem fim à vista  têm trazido ao território do continente situações extremas verdadeiramente preocupantes ... mesmo verdadeiramente angustiantes, não dá sinais de abrandamento.
Obviamente são situações anómalas, drasticamente agressivas,  mas a que, cada vez menos teremos alternativa de fuga, já que são fruto das alterações climáticas a nível planetário, clara e progressivamente acentuadas ,
É mesmo uma situação catastrófica a que se vive nos campos onde a água escasseia, reduzida a precários charcos quase inexistentes, e em que a vida dos animais periga pela ausência também da comida, em campos calcinados pela canícula.
Os incêndios aterradores que nos últimos meses deflagraram e consumiram tudo o que lhes fez frente, destruindo reservas naturais de fauna e flora, um bem inalienável cuja reposição já não será para a minha geração, foram mais um factor evidente de que o futuro do Homem e de todos os seres vivos que com ele dividem na Terra o direito à vida, corre riscos reais, incontidos e irreversíveis, de sua inteira responsabilidade !

Pois bem, anunciada como a tempestade Danielle, inicialmente um furacão vindo do lado das Américas, que atravessou o Atlântico e rumava à Grã Bretanha, refez a rota e depois de ter atravessado ilhas dos Açores enfraquecendo no grau de agressividade, decidiu-se por Portugal Continental, caminhando de sul para norte até varrer todo o território.
Anunciava-se muita chuva, algum vento e temperaturas um pouco mais baixas.
E hoje choveu, de facto, mas nada que me convencesse.  Parece que a chuva anda tão arredia que não se fixa.  Não encontra o caminho esperado !
Caem uns pingos, a bem dizer,,. pára ... o dia faz cara feia ... mas só !
E que falta nos faziam uns bons e insistentes aguaceiros, concedo mesmo alguma trovoada, direi até que um ventinho desde que não fosse excessivo e puxasse as nuvens pra cima de nós ...😏😏
Mas qual quê !  A chuva já veio e já foi, parece.  O sol brilha outra vez, quente, por aqui, num céu que aos poucos faxinou e se tornou limpo e azul !... Descaradamente !
Estou decepcionada !  Estava eu tão contente, com aquela alegria infantil que leva a criançada a chapinhar de qualquer modo, nas pocinhas que ficam pelas ruas, depois da queda duma boa chuvada !...
Eles bem sabem porquê ...

Dentro de dois meses conto estar por uns dias num país tropical.
Deles guardo sempre memórias inapagáveis de fortes e cálidos aguaceiros, daqueles que encharcam o corpo e lavam a alma. Chuvas a sério, essas que vêm e vão rápido, mas que são tão intensas que nos tocam o coração !...
Da Jamaica, a Bali ... às Maldivas ... Santa Lucia, entre tantos outros destinos, a sensação doce e indescritível da profanação do meu ser, do devassar do meu corpo entregue, do abandono silencioso à chuva que açoita e afaga, sob um calor escaldante, uma febre sem nome, é um abraço da natureza inóspita e excessiva, é uma subtil carícia pra não mais esquecer ...

Assim, espero voltar de novo a mergulhar nessa onda crescente de emoção e paz !

Anamar

sábado, 3 de setembro de 2022

" AS CORUJAS INVISÍVEIS DO CREPÚSCULO ..."



 "Quando o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou", aplica-se direitinho ao avanço do ano.  Setembro abriu o último quarto de 2022, dará o cartão vermelho a um Verão que eu sinto não ter passado mas sim voado, e já nos deixa espreitar lá ao fundo mais um Natal a avizinhar-se ...
"Daqui a pouco é Natal" já se ouve dizer por aí, nas bocas de quem percebe objectivamente a celeridade do tempo.

Hoje um amigo escrevia, com notória nostalgia, sobre a partida de tantos habitantes da sua aldeia, pessoas e animais, com quem conviveu na já dezena e meia de anos em que por ali se radicou, referindo exactamente como os dias se fazem apesar dos lugares vagos, como acaba instalando-se alguma indiferença e distanciamento inevitáveis, impostos pela implacabilidade da vida que sempre continua e bem assim, como o esquecimento vai dominando os que por cá vão continuando ... 
É assim.  Todos o sabemos !

Há pouco chegou-me ainda às mãos um artigo dentro da mesma temática, o envelhecimento, cujo autor é o historiador Leandro Karnal, o qual foi republicado pela jornalista brasileira Maya Santana no seu espaço online "50 e mais - Vida adulta inteligente", do qual vou retirar alguns excertos, porque o achei, de facto, fabuloso. 
"Quando o tempo que está pela frente fica menor do que o que já passou" foi o título aposto a esta publicação, substituindo o original "as corujas invisíveis do crepúsculo", para que fosse mais explícito o tema da abordagem do escrito, uma profunda reflexão sobre o nosso caminhar para o fim da vida :

" Há maneiras bonitas de descrever o processo.  A metáfora poética da geada dos anos clareando os cabelos, por exemplo.
Como todo o conceito incómodo, o envelhecimento apresenta denominações diversas , desde o suave "melhor idade" até ao cruel "zona do desmanche".  Rubem Alves sugeria o lirismo de "pessoas com o crepúsculo no olhar".
O Outono não é um raio num céu azul ... Há sintomas prévios.  A primeira vez que nos chamam de "tio" é um alerta.  A percepção acelera-se quando alguém nos cede o lugar no metro lotado, ainda que com o sorriso generoso de um bom escoteiro ...Por fim o elogio que mata o último botão da nossa fantasia de juventude finda, é disparado : "Você está muito bem para a sua idade "... Pronto !  Chegámos lá : à região obscura do Cabo da Boa Esperança ".  Carimbamos o passaporte para a terra sem volta. O que está pela frente fica menor que o que passou.
Uma mulher de 30 anos olha com docilidade e insinua : " Você gosta de mulheres mais jovens ?"
O Dom Juan cinquentão estremece.  Em breve surge o primeiro refluxo após um pouco mais de álcool à noite.  As letras teimam em diminuir diante das retinas cansadas.  Incorporamos palavras complexas ao vocabulário : presbiopia, estatinas, colonoscopia ... A nossa casa fica cada vez mais confortável e a rua mais desafiadora.  A "nécessaire" de remédios aumenta a cada ano.
Há pessoas optimistas e pessimistas.  As duas posturas envelhecerão.  Lutar contra o tempo é como rebelar-se contra a lei da gravidade.  Angustiar-se com a idade é temer a chegada do fim do dia ou das fases da lua.  Não existe maneira indolor de viver o processo, mas há coisas objectivas a considerar.

Hegel notou que a coruja de Minerva levanta voo apenas com as sombras da noite.  Esta era a análise tradicional para indicar que a ave símbolo da reflexão e ponderação ( dedicada à deusa da sabedoria Minerva ) consegue subir no instante do declínio da luz.
A sabedoria nunca é alcançada cedo e nem sempre a tempo.  Não existem garantias, mas a tradição ensina que podemos melhorar com o tempo.  A diminuição dos movimentos rápidos dos anos do vigor máximo colaboram nesta conclusão. O carro vai mais devagar e a paisagem é mais clara, ainda que com óculos.
É uma idade de sinceridade.  Crianças, velhos e bêbados têm um compromisso maior com a verdade.  Nem sempre ficamos pacientes, mas cresce a autenticidade.  A idade madura abre os olhos para as coisas essenciais.  Idade do fim ?  Há controvérsias.  Para muitos é o momento de começar a fazer o que realmente gostam.
Quando o mundo não precisa mais ser conquistado, ele pode ser fruído.  Há mais tempo para isto.  Os ritmos podem ser respeitados.  Há vagas em estacionamentos e filas preferenciais.  De quando em vez, surgem netos, um estágio superior de paternidade e maternidade.  Alguns possuem mais dinheiro na maturidade do que na juventude.  Perdemos a obsessão com o julgamento alheio.  Quase sempre saímos do jogo da sedução.  As cabeças não se voltam assim que entramos.  Como muitos perceberam, aumenta a nossa invisibilidade para o mundo.
Na infância, eu achava que o "Homem Invisível" dos programas da televisão, poderia fazer quase tudo.  Os seres crepusculares podem !!!

As corujas voam mais livres no fim !!! "

Há os optimistas e os pessimistas, é dito no texto.
Há os que dizem "eu nem penso nisso", "eu convivo muito bem com o passar dos anos" ... E também os que garantem ":  eu orgulho-me de cada ruga do meu rosto, é um sinal de vida vivida, e isso é muito bom !"
Esta última afirmação normalmente sai de bocas femininas e perdoem-me se sou leviana na conclusão de que se trata duma profunda hipocrisia, uma espécie de tentativa de se escamotear o lugar onde dói mais ...
Costumamos perseguir bons cremes, boas marcas, bons resultados, plásticas e outras alternâncias ... certo ?...

Eu não me orgulho nem um pouco de sentir que o envelhecimento me confere prerrogativas.  Reconheço que talvez seja mais cómodo, mais fácil, sentir-me livre de alguns espartilhos cansativos que a sociedade impõe ao longo da vida, agora no declínio desta.  A vida profissional, a vida familiar, a vida social ditam regras impiedosas, quase sempre rígidas.  Os exemplos que devemos dar aos filhos, aos colegas, à sociedade duma forma geral são normalmente castradores de tão impositivos.  E não devemos/podemos afastar-nos dum impoluto desempenho ao longo dos anos. e isto é brutalmente cansativo e desgastante !
"Idade é estatuto", ouvimos dizer, como sinal de libertação.
"Para as crianças e para os velhos ninguém olha", dizia a minha mãe quando por vezes eu lhe exigia esta ou aquela postura mais severa e gravosa já no fim da vida.
Hoje, já me permito, também eu, transgredir um pouco.  Já me "borrifo" para o que pensam, acham ou mesmo dizem ...
Vivo mais descontraidamente, porque na verdade não tenho satisfações a dar, sou totalmente anárquica nas horas das refeições, nas horas da dormida, a pouco ou nada me submeto a terceiros ... pauto-me pelo meu calendário interior, tão só !  Faço quase sempre apenas o que me dá "na gana", e isso é de facto uma mais-valia neste timing da vida.
Depois, já não sou mãe, sou avó, e isso confere-me o "doce" da coisa.  Raramente tenho que opinar, menos ainda decidir e a responsabilidade dos acontecimentos nessa matéria, não onera sobre mim.
Giro o meu dinheiro e consequentemente as minhas "loucuras"...

Esta, a vertente agradável neste deslizar rampa abaixo...

O meu pai que partiu com 90 anos e se deslocava já há alguns com uma canadiana num braço, manteve a sua possível autonomia e independência até bem tarde.
Morando nos arrabaldes, quase todos os dias ia dar o seu passeio até à Baixa da capital, tomar o seu chocolate quente na pastelaria Suiça e frequentemente bater uma sorna nos confortáveis sofás do Montepio Geral, de que era cliente.
Olhando a sua visível e óbvia limitação motora, era frequente darem-lhe o "tal lugar" no comboio que utilizava.  Pois bem, lembro até hoje a sua exasperação pelo facto, sendo mesmo frequente recusar a gentileza ...
O meu pai nunca aceitou que envelhecia a olhos vistos, coitado ...
A minha mãe que também partiu com uma longevidade invejável, 97 anos, tinha um desgosto profundo ao constatar o evidente declínio que os anos lhe foram somando.
Extremamente autónoma quase até morrer, independente, dona da sua vontade ( quase sempre indomável ) e da sua mente que apenas no fim a atraiçoou, apresentou inevitavelmente, limitações físicas crescentes com o transcurso do tempo.  O prazo de validade da "máquina" foi-se aproximando do fim ... e ela bem o sabia.
Penso que quando ficou numa cadeira de rodas, dependente de terceiros, foi  finalmente  obrigada  a enfrentar o inegável, e  de  mansinho  foi  desistindo  de  viver.  Sempre  sob  protesto !
" A vida tudo dá e tudo leva" era a máxima que não cansava de repetir.  Olhava as suas fotos antigas e percebia-se claramente o profundo desgosto com que dizia : "desta Margarida já não existe nada!..."
A minha mãe também conviveu muito mal com o crepúsculo da vida !

E eu ?
Teria que ser obviamente semelhante aos meus pais, no abordar deste sensível tema.
Convivo pessimamente com a ideia da morte.  Todos os dias, posso garantir, que em algum momento esse tema aflora o meu espírito ... por isto ou por aquilo. Às vezes sem um nexo de causalidade aparente.  Ou porque mais um dia passou e menos um dia faltará, ou porque estando só em casa, num prédio sem barulhos ou movimentos tudo parece na maior solidão, ou porque constato que para subir a um banco devo colocar um outro intermediamente ... se não, já lá não vou ... , ou porque o ouvido vai dando sinais quando nos diálogos dos programas que assisto na televisão, metade é adivinhado e só metade percebido, ou porque, apesar de intervencionada cirurgicamente às cataratas e à miopia, pareço continuar a ver outra vez pior ... ou porque a rua ( como também se diz no texto ) , é lugar pouco fiável, bastando ver os trambolhões já dados só porque a maldita sandália embicou num desnível de meio centímetro ... ou porque já morreram não sei quantos colegas de sempre, e este e aquela estão com doenças sem horizonte possível, ou porque ... ou porque ...
Também eu olho as fotos de há dez, quinze anos ... e olho-me hoje.  E não aceito, e não quero e recuso este "el dourado" de vantagens, de compensações, de contrapartidas que o envelhecimento promete trazer.
Queria continuar a sentir-me a mulher inteira que eu era, queria continuar a poder sonhar todos os sonhos do mundo sem restrições ou limites, queria ter forças e vontade para cometer iguais loucuras, e acreditar nelas com igual verdade e veemência ... queria poder continuar a jogar o jogo da sedução ... ainda que eu saiba quão utópica sou ... quando os pés me pesam na terra embora as asas me levem acima dos píncaros ensolarados das escarpas, pelos céus rumo ao infinito da liberdade dos sonhos ...

Queria ser condor e não coruja ... ainda que estas voem mais livres no fim !!!...





Anamar

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

" UMA IMENSA MANTA DE RETALHOS "




O tempo muda e muda-nos.  
Não há um dia igual ao outro, um momento que se repita.
E quando olhamos para trás, nunca encontramos absoluto rasto do que fomos.   
Física e inevitavelmente, a que acordámos hoje pouco tem a ver com a que adormeceu há algumas horas.  Emocionalmente ocorre algo muito próximo ... e quando queremos descortinar onde encalhámos no percurso, nem sempre vislumbramos uma conclusão aceitável.  Por isso, "nunca" e "sempre" deveriam ser vocábulos a banir no nosso linguajar, simplesmente porque são conceitos inexistentes, apesar de quase sempre neles acreditarmos.

É com convicção, não tenho dúvidas, que num determinado momento garantimos que isto ou aquilo será impossível de se repetir, ou que isto ou aquilo que agora experimentamos, é matriz definitiva da nossa personalidade pelos tempos fora ...
E por tudo isso, por essa incoerência, quando nunca o sempre que julgamos óbvio, se repete, ficamos surpresos e incrédulos.  Afinal parecia que seria exactamente assim ... Impossível ser diferente ... achávamos !

A vida faz-se precisamente de mudança, de mudanças imprevisíveis.  O crescimento passa pelas dores dessas mudanças e pela sua aceitação, e é na gestão lúcida e assertiva das mesmas, que ele se processa saudavelmente.
De que servem saudosismos, rejeições, inaceitações, de que serve guerrearmo-nos em permanência se o que é inevitável não é passível de caminhar sob o nosso critério ?!
A inteligência está pois, em gerir pacificamente os diferentes estadios da existência, sem conflitualidade ou confronto, tirando de cada momento, de cada situação ou acontecimento, tudo aquilo que, até ao tutano, eles nos possam proporcionar.
O que verdadeiramente importa é ter capacidade de equilíbrio esclarecido e perceber as melhores formas de desenhar cada dia coerentemente, sem atropelarmos ou nos atropelarmos, sem nos violentarmos ou quiçá nos vilipendiarmos ... sem nos desrespeitarmos ou desrespeitarmos aqueles que connosco convivem.

Nada disto é simples, menos ainda fácil.
A vida equaciona-se diariamente como resultante de muitos vectores, fruto ou consequência das circunstâncias, quantas vezes perfeitamente imprevisíveis.  Ela é sempre uma resultante do que experienciamos, do tapete que se estende em cada momento aos nossos pés, de todo o background que nos enforma, das emoções, dos medos e das angústias, da coragem e da determinação ... mas também da esperança, do sonho e da força do acreditar em cada momento !
Porque a grande premissa que norteia a existência é exactamente a impermanência !  Essa é a maior verdade e a maior certeza !
Há que assumir a nossa história pacificamente, com a convicção de termos feito, em cada circunstância, as escolhas que com verdade, seriedade e autenticidade tomámos como as certas e as que não feriram ou violentaram aquilo que em consciência tivemos como correcto.
Dessa forma, pelo menos, teremos paz, alienaremos culpas ou penalizações desnecessárias, aliviaremos o julgamento inútil com que com frequência nos martirizamos, reduziremos insatisfações e conviveremos mais pacificamente com o nosso coração e o nosso espírito.
Se o conseguirmos, já terá sido um ganho !...

... porque afinal a Vida não é mais do que uma sequência interminável de pedaços costurados, todos eles tecendo uma imensa e imperfeita manta de retalhos !...

Anamar

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

" É SEMPRE ASSIM..."



Setembro chega e uma ténue película de nostalgia parece agarrar-se a tudo que me rodeia.
O sol perdeu a virilidade dos meses anteriores, brilha morno e adocicado e o Outono já espreita no virar de mais alguns dias.
É a época do ano em que uma sonolência mansa parece descer sobre a Terra, em que mais experimento uma solidão corrosiva, mas disfarçada.  O ano lectivo acena, a mexida entusiasta dos que irão começar, anuncia-se.  As férias inevitavelmente terminaram e já não teria a mesma graça assistir-se ao esvaziar dos areais ... Tudo isso ficará aguardando novo ano, novo Verão, novos sonhos e projectos.

Sinto-me mais do que em qualquer outro momento, na rectaguarda da vida.  Como se já só assistisse a um jogo, da arqui-bancada, sem grandes sobressaltos, euforias ou aplausos. Sem participação ou interveniência ... pouco mais que atenta mas irrelevante espectadora ...
É como se, duma esquina qualquer eu ficasse apenas acenando aos meus netos que demandam as escolas, os livros, os amigos ... a Vida !  Vendo-os ir com os rostos esperançosos, com a alegria rodopiando-lhes os olhos, com o gargalhar da juventude inundando-lhes os corações ...
E é estranho ... como se eu estivesse sobrando num filme a desenrolar-se, como se eu já não pertencesse bem a este acto, da peça que se vai desfocando em distanciamento ...

Énya toca ao meu lado.  Quem mais tão bem traduziria o que sinto ?... a mesma nostalgia ...

O meu ano sempre se partia por Setembro.  Não se dividia pelo fim de Dezembro ou pelo começo de Janeiro. Não ! O ano era agora que começava à séria.  Era agora que a urgência, a afobação, os preparativos inadiáveis e meticulosamente calculados, se faziam.  Era agora que o "frisson" do recomeço fervilhava dentro de mim.  Era agora, tal como as crianças demandam a busca dos novos materiais, os livros, os cadernos, os estojos, os lápis e as canetas, que também eu recomeçava tudo, outra vez, quase com o "cheiro" a tinta fresca retocando-me os miolos e a ponta inquieta dos dedos !...
E esse borbulhar intempestuoso e imparável era isso mesmo ... o borbulhar da Vida a chamar-me à equipa, novamente ... com tanto tempo diante de mim, parecia ... e uma estrada tão longa quanto o afastamento do horizonte, lá longe ...

Tudo isto flui como doença crónica, no sangue.  Como aquelas maleitas que volta e meia despertam duma letargia roçando o eterno. 
E por mais que eu pense o coração adormecido, lá vira a folha do calendário, e lá vem Setembro a sorrir, desmentindo a insensibilidade e o esquecimento acreditado ... Como se pudesse !...

Os livros ainda repousam silenciosamente nas prateleiras, quase a tocarem-me.  As canetas secas ainda estão nos estojos de fechinho corrido, dentro da pasta que já se encarquilhou um pouco, como velha desocupada e desleixada ... dormindo a um canto.
Pareço ter um respeito inviolável, um respeito religioso que sacraliza tudo o que foi e que ainda paira por aqui ... 
Porquê ? - pergunto-me.  Porque não dou um fim ou destino a tudo isto, por desnecessário ?
Não sei.  Sei que adio, sei que recuso, como se cometesse um crime qualquer, como se recusasse fechar a última porta de um lugar que me foi caro e imprescindível ... como se com isso cortasse amarras a um cais distante, deixando o barco à deriva ...
Como se com tudo, eu perdesse o norte e o rumo, orfanizasse um pouco, esvaziasse, como se uma onda me varresse a alma ... e fosse ...

E foi apenas ontem ...

Anamar