segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

" PARALELO 66º 33' 44 '' N "

 





Ainda não falei do branco.  Do branco que não o é apenas ... mas que é laranja, róseo, cinza, verde, mas sobretudo azul !...
E aquele branco também não é apenas a cor que reúne e funde todas as outras, de uma vez só .  Aquele branco é cheiro, é luz e é lua, é silêncio, é agreste como o gelo que o reflecte e é tão fofo e macio quanto a neve que se amontoa.  É frio que corta por fora e é calor que conforta por dentro.  É real e é sonho.  É íntimo, é mítico e é místico ... é uma melodia esvoaçante ...
Aquele branco é uma história sem princípio nem fim que se desfia na penumbra dos abetos, na solidão de um lago gelado, ou no mar que se faz estrada, para que passemos.  É ausência e é presença, na luz que se acende na floresta ... Aquele branco é um convite ao irreal, sendo embora real e se sinta.  É um véu de noiva estendido na escuridão, pelos seres imaginários que adivinhamos ... só adivinhamos !
Não sei descrevê-lo, não quero descrevê-lo ... tudo o que eu ensaie dizer fica completamente aquém do que se experimenta.

Tinha uma enorme expectativa sobre esta minha viagem a terras do Círculo Polar Ártico;  era imensa a curiosidade que me invadia.  Afinal a minha relação com a neve é praticamente inexistente.  Não sou habituée de férias em estâncias de sky como tantos fazem anualmente, cumprindo, parece, uma espécie de liturgia ou ritual formal que os acompanha ao longo da vida.  Uma única vez me abalei até à Serra Nevada aqui na vizinha Espanha, e ainda assim não guardo memórias a contento. 
Ao contrário, privilegio destinos quentes, de sol inebriante, com pores e nasceres de cores envolventes.  Destinos de mares espreguiçados em areias mansas, de coqueiros e cheiros doces de trópicos ou equador por perto.  Destinos que convidem à nudez, ao primitivo, à imersão numa Natureza autêntica, onde a mão do Homem não molde ou defina.
Mas desta feita havia uma espécie de apelo à introspecção e ao silêncio, uma busca por um desconhecido promissor de outras sensações, que passavam muito por uma interioridade imaginada, um silêncio provindo de paisagens inóspitas e solidões apaziguantes.  
E lá fui !

A Lapónia é, de facto, qualquer coisa indefinível e simultaneamente mágica.  Há muito, muito tempo  que eu não via com tanta definição e precisão de imagem, um céu totalmente límpido, pontilhado de infinitas estrelas acesas sobre um breu absoluto. Um firmamento iluminado pelo clarão de uma lua cheia imensa, branca de prata, que reflectida pela neve tornava dia, a escuridão da floresta.
Duas horas de dia, no meio da penumbra e da escuridão que se abate depois das treze horas no relógio.
Um por-de-sol olhado longamente, como uma preciosidade imperdível ... venerado como religioso !...
Tudo foi silêncio, tudo foi mistério ... tudo foi irreal ! E o frio gélido que atravessava tudo mesmo, até às fímbrias das nossas almas, era algo puro, purificado ... quase apetecível !
Só sombras contrastavam nas clareiras desenhadas.  Só silêncio se perscrutava no estalido das agulhas dos abetos, pingando cristais de gelo como pequenas luminárias natalícias ...
Tudo tinha uma dimensão inalcançável, porque tudo o que é etéreo foge à mensuração humana ...

E por entremeio deste quadro silente e adormecido, quais fantasminhas irrequietos, as "luzes do norte", as buscadas e ansiadas auroras boreais, dançavam, indiferentes, um baile de máscaras, espreitando e fugindo, pincelando o escuro da noite, como se brincassem de esconde-esconde perante os olhos siderados de quem, estupefacto as aguardava !...




Anamar

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

" REIS EM TEMPOS DE COVID ..."

 


Normalmente era uma noite gélida.  Era uma daquelas noites típicas do Alentejo interior, nestes Janeiros fim de festas, quando o Natal já fora, o Novo Ano despertara e a vida se preparava para retomar a normalidade.

Breve, o regresso a Évora onde a casa de sempre me esperava, deixaria para trás a mágica quadra que se atravessara.  As aulas do segundo período já acenavam, deliberando o fim das férias passadas ano após ano, em casa dos avós.
Já fora a Missa do Galo, já foram os cantares ao Menino em volta do braseiro sempre aceso naquela chaminé de parede a parede, já fora a consoada com os tios, os primos, os avós, os pais ... e sempre mais algum que aparecia, já foram todas as delícias da avó e das tias prendadas que se juntavam na confecção de tudo o que se esperara o ano inteiro ... Já fora o sapatinho na chaminé e toda a magia em torno da chegada, pela madrugada  ( sempre a horas proibidas à criançada ), do Menino Jesus que haveria de, generosamente, trazer uns chocolatinhos e uma roupa para estrear no dia ... 
Que mais, o Menino não dava e Pai Natal não existia então ...
Árvore também não, e era junto aos sapatos deixados no borralho que os presentes haveriam de se buscar na manhã seguinte !

A noite de Reis, a noite das Janeiras pautava-se quase sempre por um céu bem escuro e limpo, pontilhado por miríades de estrelinhas que piscavam lá por cima.  Há mais de sessenta anos, a pequena vila de Redondo, pouco iluminada, preparava-se para escutar os cantares dos grupos, pelas ruas, de porta em porta, lembrando que os Reis Magos haviam chegado a Belém, também eles obsequiando Jesus pequenino, com os simbólicos ouro, incenso e mirra.
Eu sempre jantava a correr, na ânsia da chegada das outras crianças para que, com casacos bem quentes, luvas, gorros e cachecóis, demandássemos, sacos na mão, as portas vizinhas, saudando os que lá moravam.  Pediam-se as janeiras ... doces, nozes, frutos  e outros acepipes que por bem nos quisessem dar.  
"Estas casas são bem altas e bem altas que elas são, aos senhores que moram nelas, Deus lhes dê a salvação !"  "Oh senhora lavradora, raminho de salsa crua, aos pés da sua cama, nasce o sol  e põe-se a lua" "Esta casa está caiada, esta rua está varrida, moradores que nela moram, Deus lhes dê anos de vida !"
Lembro bem a euforia da corrida de casa em casa, bochechas afogueadas, nem o frio sentíamos, tal o entusiasmo , tal a compenetração !
E havia aqueles que nada davam e se enfastiavam do incómodo. A criançada então cantava, ameaçando  : " Oh senhora lavradora, tem olhos de marrã morta, se não nos vier dar a esmola vamos-lhe cagar à porta !"...

E era assim !
Tudo já foi, quase todos já partiram.  Poucos já lembram.  À maioria não faz sentido, porque o desconhecem, porque o não viveram, porque talvez o não entendam ...
Foram outros tempos, foi outra vida, fomos nós há sessenta anos atrás !
A quem pode interessar ?!...

Ainda assim, nestes tempos que vivemos, gostei de recuar, gostei de lembrar ... voltei a sonhar um pouco !
E a noite está também gélida, as estrelas não se vêem ofuscadas pelas luzes da cidade ... é de novo 6 de Janeiro ... é de novo Dia de Reis !!!

Anamar

domingo, 2 de janeiro de 2022

" O ANO TERMINA E NASCE OUTRA VEZ ... "


 

... diz Simone na maravilhosa e tão conhecida canção de Natal ...

O malogrado ano de 2021 terminou de facto, e no imparável rumo da Vida, outro se lhe substituíu, novinho em folha, promissor, mentiroso como todos, insinuando-se com aqueles olhinhos de sonhos, sorrindo como o rosto da criança marota que quer convencer-nos ...
Hoje, nestes dias primeiros, tudo é doce, tudo é tão azul como aquela paisagem silenciosa de neve, da Lapónia lá longe ...
Até porque hoje, nós precisamos que o seja, p'ra não soçobrarmos, não desistirmos e podermos voltar a abraçar os desejos, os planos, as metas, os horizontes esfumados que deixaram há muito de ser definidos !

Este meu escrito ganhou título e lugar, nos últimos dias ainda de 2021.  Mas morreu antes mesmo de nascer, sem força anímica para se fazer gente ou tornar realidade.
Vou querer, contudo, que incorpore ainda assim o meu espólio do ano cessante. Uma espécie de porta a cerrar-se sobre um período inexplicável na minha produção literária.  Um período que não entendo, em que não me entendo, tão escurecido na minha existência.  Um período de um esvaziamento intelectual, de um cansaço anímico, de uma calcinação no coração e na mente.  Um período em que simplesmente deixei de escrever, de conseguir escrever o que quer que fosse, por nada ter que dizer sobre nada, por não nutrir já, nenhum apreço em relação a tantas coisas que sempre me alimentaram o espírito, me erguiam e me davam força p'ra caminhar.
Doente, é como me vejo.  Porque quem não sonha, não se emociona, não dá asas à esperança e à fé para continuar, e se move indiferentemente dia após dia, noite após noite como um autómato, como um robô, como um pássaro apeado, de asas cortadas ... só pode estar doente !

Mas talvez porque outro ano nasceu, e tudo o que chega, tudo o que começa sempre parece transportar-nos um outro acreditar, sempre parece dizer-nos ( como uma criança que pela primeira vez abre os olhos ao mundo ), que é outra vez tempo de viver um tempo novo ... senti em mim um revigor, uma espécie de alegria esquecida, uma espécie de promessa no coração, uma espécie de ânsia de abraçar de novo o sonho, sentindo que talvez volte a ser capaz de sorrir, volte a ser capaz de me sentir viva !

O dia é de muita paz por aqui. 
Amanheceu cinzento, toldado, com um céu plúmbeo uniforme, com um nevoeiro que abafava bem perto, a paisagem circundante, como se tivesse engolido o horizonte.
Também as "nieblas" teimosas acabaram cedendo, a definição do casario foi tomando forma à medida que um sol fraquinho e bem envergonhado se anunciava.  As gaivotas dançando aqui por cima, faziam um bailado lânguido e preguiçoso, ao sabor de uma aragem mais adivinhada que real.  Os seus conhecidos grasnidos ecoam no silêncio da tarde, porque afinal hoje é domingo e o "brouhaha" de sempre, é inexistente.
Apeteceu-me Enya.  De novo, ao fim de tanto tempo sem a ouvir, ela que me apaziguava o espírito, ela que sempre me foi uma referência dos dias de maior solidão, voltou à minha companhia.  
"Winter came" ... tudo a ver com os dias que atravessamos ...

E porque acabei de chegar das terras das neves, dos gelos, das paisagens cinzentas ou azuladas, das terras do silêncio e da escuridão, em que o sol se ergue por duas horas em cada dia ... com Enya voltei a escrever.
Fui, numa viagem que parecia pouco enquadrar-se no meu perfil de mulher do sol, do calor, dos sentimentos impetuosos e quentes, talvez na busca inconsciente duma interioridade que se calhar me fazia falta, dum reencontro  comigo mesma na natureza inóspita e genuína, dum silêncio equilibrante, duma verdade sussurrada, duma identificação de coração e de alma ...
E vi tudo, e bebi tudo e sufoquei-me com as sensações que não se descrevem, e embriaguei-me com as emoções que as coisas simples despertam, e empanturrei-me com a autenticidade de cada imagem, com a surpresa de cada clareira, com o reflexo esmagador que a lua cheia desperta no branco imaculado do gelo, na escuridão das noites onde as constelações se desenham sem esforço ...
Adivinhei a vida errante e dura dos lapões.  Conheci-lhes as histórias, embrenhei-me na floresta de abetos mais brancos que verdes, claudicantes do peso da neve neles poisada, guiei-me em trenós puxados por huskies ou renas, sentada nas peles quentes, frente a fogueiras bruxuleantes, comendo salsichas grelhadas num espeto inventado, acompanhadas de chá de bagas do bosque, bem quente, para aquecer o corpo, já que a alma parecia confortada !...
Varri a superfície do Ártico gelado, no Golfo de Bótnia, em trenós velozes, e deslizei em motos de neve na superfície de lagos igualmente gelados.  E de novo comi bolachas e chá de frutos vermelhos bem quente, para retemperar a hipotermia dos dedos gélidos e insensíveis, enquanto ouvia as histórias deste mundo mítico e onírico ... e esperava o sortilégio de olhar as auroras boreais !

E afinal as "luzes do norte" não me defraudaram !!!...






Anamar